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A DISCIPLINA DO DESESPERO MARIA CECÍLIA RUFINO (UFRJ) “Elas não têm gosto ou vontade nem defeito ou qualidade/têm medo apenas não tem sonho, só tem presságios o seu homem, mares, naufrágios lindas sirenas morenas.” (Chico Buarque de Holanda. “Mulheres de Atenas”) “A confissão de Leontina”, de Lygia Fagundes Telles, será ob- jeto de nosso estudo. Analisaremos a narrativa de forma a circuns- crever a representação do corpo, privilegiando o seu fazer literário. O título do trabalho visa sintetizar a história do conto. Os textos teóri- cos serão utilizados à medida que ajudarem como suporte para ques- tões discutidas na narrativa. Destacamos entre eles Vigiar e Punir de Foucault, mais precisamente o capítulo intitulado “Os corpos dóceis” no qual o filósofo aponta para o corpo como objeto e alvo de poder; corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil: o corpo disciplinado. A presidiária Leontina rememo- ra seu passado sofrido desde a infância até a vida adulta. O corpo em questão é marcado pelo sofrimento e por opressões de várias ordens. A epígrafe que abre este ensaio, retirada da letra da música de Chico Buarque, fala de mulheres destituídas de sonhos por estarem inseridas dentro de um contexto social de subordinação total, sem chance de reação, não só porque não podem, mas, também, porque não conhecem outro modo de viver. São submetidas a uma domina-

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A DISCIPLINA DO DESESPERO

MARIA CECÍLIA RUFINO (UFRJ)

“Elas não têm gosto ou vontade nem defeito ou qualidade/têm medo apenas não tem sonho, só tem presságios o seu homem, mares, naufrágios lindas sirenas morenas.” (Chico Buarque de Holanda. “Mulheres de Atenas”)

“A confissão de Leontina”, de Lygia Fagundes Telles, será ob-

jeto de nosso estudo. Analisaremos a narrativa de forma a circuns-

crever a representação do corpo, privilegiando o seu fazer literário. O

título do trabalho visa sintetizar a história do conto. Os textos teóri-

cos serão utilizados à medida que ajudarem como suporte para ques-

tões discutidas na narrativa. Destacamos entre eles Vigiar e Punir de

Foucault, mais precisamente o capítulo intitulado “Os corpos dóceis”

no qual o filósofo aponta para o corpo como objeto e alvo de poder;

corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde,

se torna hábil: o corpo disciplinado. A presidiária Leontina rememo-

ra seu passado sofrido desde a infância até a vida adulta. O corpo em

questão é marcado pelo sofrimento e por opressões de várias ordens.

A epígrafe que abre este ensaio, retirada da letra da música de

Chico Buarque, fala de mulheres destituídas de sonhos por estarem

inseridas dentro de um contexto social de subordinação total, sem

chance de reação, não só porque não podem, mas, também, porque

não conhecem outro modo de viver. São submetidas a uma domina-

ção que acontece de dentro para fora, que está na raiz do pensamento

dos homens e das mulheres. Leontina, a protagonista do conto anali-

sado, assemelha-se às mulheres de Atenas, todas têm seus corpos

marcados por uma profunda dominação, que as imobiliza e as coisi-

fica.

O conto é iniciado com uma revelação: uma voz que procura

confessar inocência. A palavra inocência não está sendo utilizada

apenas para nomear a situação de Leontina perante o crime que pesa

sobre seus ombros e que praticou em legítima defesa, mas, princi-

palmente, pela inocência de sua condição: ser mulher. O destino de

mulher de que falava Simone de Beauvoir se propaga por séculos na

sociedade de base patriarcal e aparece evidente nas entrelinhas da

confissão. Destino que reservou o espaço familiar, doméstico e ínti-

mo às mulheres e o espaço intelectual aos homens. A dicotomia men-

te e corpo será o cerne desta narrativa. O título do conto, também, é

plurissignificativo uma vez que nos remete a duas interpretações: a

confissão da vida de Leontina e a confissão da atuação do pensamen-

to e poderio patriarcal.

A personagem fala a uma senhora, não identificada, que per-

mite o seu desabafo sem fazer interrupções: “Já contei esta história

tantas vezes e ninguém quis me acreditar. ou agora contar tudo espe-

cialmente pra senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica

me atormentando como fazem os outros” (ACL, p. 87). Essa senhora

pode ser considerada uma metáfora dos leitores que escutarão o que

a personagem tem a dizer, mas que, talvez, conheçam histórias de

mulheres como a dela, dominadas e presas às amarras da subordina-

ção. O monólogo marca a importância em destacar a solidão da per-

sonagem, a união de forma e conteúdo favorece a construção da car-

ga dramática que Lygia tão bem imprimiu em sua personagem.

O desejo de se fazer acreditar aparece nas palavras da narrado-

ra que ao contar sua vida a revive, capturando momentos que vão da

infância à prisão. O trajeto realizado pela memória da personagem

aponta vários acontecimentos formadores de sua identidade. Não há

interrupção no monólogo, de forma que a personagem deixa transpa-

recer a lógica interna que a move, seu relacionamento com a realida-

de, da qual extrai elementos importantes para si, organizados de a-

cordo com o seu estado psicológico no momento em que fala. O

fluxo da consciência de Leontina nos dá acesso ao seu pensamento; a

linguagem e as construções sintáticas revelam o discurso de uma

mulher simples, prostituta e que se encontra presa, por isso são utili-

zados períodos simples; palavras e expressões comuns constroem o

monólogo.

A travessia existencial realizada por Leontina até o final da

narrativa não a faz repensar sua condição, não origina revolta, ao

contrário, ratifica o seu destino. Parte dessa observação a compara-

ção com as mulheres de Atenas. Leontina é refém da “violência sim-

bólica”, apontada por Bourdieu, que age através de um trabalho de

“inculcação” e “incorporação” a que tanto homens e mulheres são

submetidos:

(...) é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos direta-mente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio das predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos. Se ela pode agir como um ‘macaco mecânico’, isto é, com um gasto extremamente pequeno de energia, ela só o consegue porque de-sencadeia disposições que o trabalho de inculcação e de incorpo-ração realizou naqueles ou naquelas que, em virtude desse traba-lho, se vêem por elas capturados. (Bourdieu, 1999, p. 19)

Todos os condicionamentos do mundo patriarcal são absorvi-

dos com intensidade por Leontina, que representa um dos modelos

de mulher, produzido pela hierarquia das relações de gênero. Acos-

tumado a aceitar tudo com resignação:

“O jornal me chama de assassina, ladrona e tem um que até deu meu retrato dizendo que eu era a Messalina da boca do lixo. Per-guntei pro seu Armando o que era Messalina e ele respondeu que essa foi uma mulher muito à-toa. E meus olhos que já não têm lágrimas de tanto que eu tenho chorado ainda choram mais. (...) Me queixei pro seu Armando que tenho trabalhado feito um ca-chorro e ele riu e perguntou se cachorro trabalha. Não sei eu res-pondi. Sei que trabalhei tanto e aqui ma chamam de vagabunda e me dão choque até lá dentro. Sem falar nas porcarias que eles o-brigam a gente a fazer. Daí seu Armando disse para não perder a esperança que não há mal que sempre ature. Então fiquei mais conformada.” (ACL, p. 87).

A vontade de revolta é logo aplacada por um discurso apazi-

guador, reproduzido pela figura masculina. A personagem se con-

forma e acredita na esperança gerada nas palavras de seu Armando.

Ele não precisou discutir para convencê-la, com apenas uma frase

aplacou sua faísca de revolta. A ignorância da personagem fica evi-

dente no início de sua fala, quando comparada à “Messalina da boca

do lixo” alusão a uma prostituta devassa e fria não sabe, ao menos, o

que quer dizer messalina. A condenação de Leontina não é feita ape-

nas pela justiça, mas por toda a sociedade. Sem crédito, sem chance

de se explicar é vista através da aparência e dos determinismos soci-

as: “Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar”

(ACL, p. 87).

Grande parte do monólogo é dominada pela lembrança da vida

familiar da personagem, constituída pela mãe, pelo primo e por uma

irmã doente. A família será a grande “roda da fortuna” que girará o

destino de Leontina, pois é nela que aprenderá seu papel na vida,

internalizando-o e reproduzindo-o fielmente:

“Minha mãe lavava roupa na beira da lagoa. Ela lavava quase to-da a roupa da gente da vila mas não se queixava. Nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pen-sando onde ia buscar força pra trabalhar tanto. Não parava. Quando tinha aquela dor de cabeça de cegar então amarrava na testa um lenço com rodela de batata crua e fazia o chá que colhia no quintal. Assim que a dor passava ia com a trouxa de roupa pra lagoa.” (ACL, p. 88).

Leontina tem como espelho uma mãe “sem voz” e totalmente

voltada para os serviços domésticos, desprovida de qualquer sonho

próprio. O “discurso” da mãe, mesmo silencioso, consegue marcar a

submissão na memória de Leontina, disciplinada a aceitar a vida dura

de trabalho:

“Até a lenha do fogão era eu que catava no mato. Perguntei um dia pra minha mãe por que Pedro não me ajudava ao menos nisso e ela respondeu que o Pedro precisava estudar para ser médico e cuidar da gente. Já que o dinheiro não dava pra todos que ao me-nos um tinha que subir pra dar a mão pros outros. Quando ele for rico decerto nem mais vai ligar pra nós eu fui logo dizendo e mi-nha mãe ficou pensativa. Pode ser. Pode ser. Mas prometi para minha irmã na hora da morte que ia cuidar dele melhor do que de você. Estou cumprindo.” (ACL, p.89)

Em contrapartida, a figura do pai é ausente. A desestruturação

familiar divide o interior de Leontina, que “copia” a mãe e idealiza a

figura paterna. Seu convívio social é limitadíssimo. Seu “habitat

natural” tem a família como o único elemento de seu convívio. Con-

seqüentemente, Leontina tem na mãe a única referência feminina de

existência. Expondo um corpo totalmente dominado, a protagonista,

mesmo consciente do sofrimento de sua mãe, atrai para si o mesmo

destino dela. A personagem não luta para sair da miséria e mudar o

destino das mulheres de sua família, propagando inconscientemente

miséria e abnegação. A música que cantava com o irmão nos mo-

mentos de brincadeiras desencadeava a curiosidade pelo pai que não

conhecia:

“Anoitecia e a gente ia chacoalhando uma caixinha de fósforo e mentido pros vaga-lumes numa cantiguinha que era assim vaga-lume tem- tem vaga- lume tem-tem tua mãe está aqui e o teu pai também. Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer res-pondia minha mãe sempre que eu perguntava. Mas como ela não queria falar nisso fiquei até hoje sem saber como ele era. Então imaginava que era lindo e bom e podia escolher a cara que tinha quando me deitava na beira da lagoa e de tardinha ficava olhando o sol no meio das nuvens. Me representava então ver meu pai fei-

to um deus desaparecendo detrás da montanha com sua capa de nuvem num carro de ouro.” (ACL, p.92)

A ausência paterna tem como conseqüência a desestruturação

familiar da personagem, pois o provedor da família, falta, acarretan-

do sacrifícios para os outros membros. A personagem em questão

assume a responsabilidade dos afazeres domésticos e do cuidado

com a irmã e o primo.

A personagem nunca conheceu o pai e toda lembrança que tem

dele é fruto de sua imaginação infantil, através da qual o compara a

um deus, uma figura bonita e inalcançável. Rouanet, em O registro

do imaginário, discorre sobre o pensamento que se afasta explicita-

mente do real e apóia-se nas percepções e reminiscências, não para

organizá-los com vistas ao conhecimento da realidade, mas com

vistas à estrutura de cenários irreais, o que Freud chama de phantasi-

erendes denkens, pensamento imaginário, ou imaginação. Diferindo-

se do pensamento realista, originário da produção de idéias, que po-

dem ou não ser verdadeiras, o pensamento imaginário resulta na

produção de fantasias. Ao tentar “recuperar” a imagem do pai, Leon-

tina se ausenta totalmente do real. Para ela a realidade possível é de

um homem com características de um Deus. A palavra “Ouro” de-

termina que o pai, apesar de ausente, é altamente valorizado no ima-

ginário da menina. Essa valoração pode ser atribuída ao discurso

social patriarcal de que o homem é o grande destaque da família.

Mitscherlich, em Dialética da família, demonstra que a ausên-

cia do pai é uma das causas da crise da sociedade e da família; Cas-

tells, em O poder da identidade apresenta o mesmo pensamento de

Mitscherlich, apontando para as conseqüências dessa nova estrutura

familiar:

As principais vítimas dessa tradição cultural são os filhos, cada vez mais negligenciados nas atuais condições da crise familiar. Sua situação poderá piorar, seja porque as mulheres ficam com seus filhos em condições materiais precárias, seja porque elas, em busca de autonomia e sobrevivência pessoal, começam a negli-genciá-los da mesma forma que os homens (Castells, 1999, p. 270).

A figura do pai é descaracterizada de sua função: prover e pro-

teger. A cantiga infantil aos vaga-lumes aparece como metáfora para

a própria menina: “mentido pros vaga-lumes numa cantiguinha que

era assim vaga-lume tem- tem vaga- lume tem-tem tua mãe está aqui

e o teu pai também.” (ACL, p. 92).

O tempo não segue uma linearidade cronológica. A protago-

nista, por meio da lembrança, conta sua vida presente e passada. A

narrativa expõe um tempo psicológico medido pela vida interior da

personagem no momento em que narra. Lygia intercala os planos

temporais, mas a idéia da personagem fica clara. O grau de intros-

pecção forte, característico das personagens lygianas, não aparece

nesse conto com muita intensidade. Aliemos essa estruturação ao

fato de a personagem ser uma mulher de classe social baixa e, prin-

cipalmente, incapaz de subjeções e introspecções por representar um

corpo desprovido de estudo e extremamente sistemático.

O tempo é o do pensamento, este é que faz emergir toda a

complexidade de vida desvelando o eu da personagem. Conhecemos

seu interior a partir dele, do que o imaginário e a lembrança selecio-

naram para mostrar. Mesmo assim, o presente e o passado aparecem

bem claros na narrativa. O passado aparece como justificativa do

presente de Leontina e se torna presente pela constante invocação,

anulando a distância entre os dois. O espaço, portanto, é o interior da

personagem.

Pedro ocupa lugar principal nas lembranças da protagonista.

Os fatos do enredo vão modelando e submetendo a personagem a

uma constante sujeição aos outros e anulação de si mesma. Pedro é

quem gira a “roda da fortuna” de Leontina de maneira que ela não

consegue mais sair do destino que lhe fora imposto. É na infância

que essa disciplina se inicia: ele, por ser homem, fica com todas as

regalias e domina totalmente as ações e o existir de Leontina.

“Me lembro que uma vez Pedro inventou uma festa no teatrinho. Quando acabou corri pra dizer que ele tinha representado melhor do que todos os colegas mas Pedro me evitou. Eu estava mesmo com o vestido rasgado e isso eu reconheço porque minha mãe pi-orou da dor e tive que passar a manhã inteira fazendo o serviço dela e o meu. Mas achei que Pedro estava tão contente que nem ia reparar no meu jeito. E cheguei pra perto dele. Ele então fez aquela cara e foi me dando as costas. Essa daí não é a tua irmã? um menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo.” (ACL, p. 92-3)

Esta passagem deixa evidente a submissão de Leontina e a

vergonha que Pedro sentia dela. Ele detém todo o privilégio da famí-

lia enquanto Leontina é desprivilegiada. Ela, ao se aproximar de

Pedro perde ainda mais sua identidade, tendo serventia apenas no

espaço doméstico. O passado longínquo da infância explica o passa-

do recente a sua prisão. Em ambos a figura de Pedro é determinante

para o futuro da protagonista. As recordações da infância apontam

sempre para um tratamento diferenciado entre o Primo e Leontina.

Aquele exercia seu poder de dominador, enquanto esta entendia co-

mo verdade o domínio sem chance de pensar sua posição:

“Pedro era meu primo. Era mais velho do que eu mas nunca se aproveitou disso pra judiar de mim. Nunca. Até que não era mau mas a verdade é que a gente não precisava contar com ele pra na-da. Quase não falava. Voltava do grupo e se metia no mato com os livros e só vinha pra comer e dormir. Parecia estar pensando sempre numa coisa só. Perguntei um dia em que ele tanto pensa-va e ele respondeu que quando crescesse não ia continuar assim um esfarrapado. Que ia ser médico e importante que nem o dou-tor Pinho. Caí na risada ah ah ah. Ele me bateu mas me bateu mesmo e me obrigou a repetir tudo tudo que ele disse que ia ser. Não dê mais risada de mim ficou repetindo não sei quantas vezes e com uma cara tão furiosa que fui me esconder no mato para não apanhar mais.” (ACL, p. 88)

A força exercida por ele é tanto psicológica quanto física. Ela

aceita o domínio e não o reconhece, pois não vê na ação do primo

uma forma de judiação. Como nos aponta Elódia Xavier em Declínio

do Patriarcado, a infância, por se constituir na primeira etapa do

processo de socialização, num contexto familiar repressor, significa o

início de uma série de castrações e proibições. No caso da menina, há

o agravamento das relações de gênero, que agem assimetricamente

reprimindo muito mais a criança do sexo feminino.

A irmã doente não tem voz e não tem ação na narrativa. Nem

mesmo por ser debilitada tinha um tratamento melhor que o de Pe-

dro. Suas atitudes em relação à família contribuem para a morte da

menina, quando, ao não concordar com a ida de Luzia a sua formatu-

ra, faz com que Leontina a deixe sozinha em casa: “É que ele se en-

vergonhava da gente e com razão porque a verdade é que não era

mesmo muito agradável mostrar pros colegas uma priminha tonta

assim.” (ACL, p. 95). A cena da formatura demonstra a frieza com

que Pedro era revestido, conseguindo falar em “júbilo”, mesmo sa-

bendo que a prima doente havia se afogado. Revelando um caráter

frio e calculista. A dicotomia mente/corpo, Macho/Fêmea, é visível

neste conto. Pedro, agregado à família de Leontina, nunca se com-

portou e nem foi tratado como tal, denunciando, ainda mais, a su-

premacia masculina e sua conseqüente dominação. Pedro (macho)

fará oposição à Leontina (fêmea) durante toda sua vida. Observemos:

“Voltava do grupo se metia no mato com os livros e só vinha pra

comer e dormir.” (ACL, p.88) / “Eu fazia a comida e cuidava da

casa” (ACL, p.89).

Para que servem esses corpos? O de Pedro para se instruir e

estudar, o de Leontina para trabalhar. As mulheres neste conto não

têm lugar, são sofridas, totalmente destituídas de si mesmas e coisi-

ficadas. Apesar de assumir humildemente o seu papel, constatamos

na voz da personagem uma ânsia, mesmo que ínfima, por, também,

estudar e ser alguém diferente: “Quando você tirar o diploma não

vou mais lavar pra fora. Então vou poder andar em ordem e até estu-

dar.” (ACL, p. 94). Entretanto, a vontade não se sobrepõe em ne-

nhum momento ao seu comportamento impassível e, capturando

todos os dogmas oriundos das relações de gênero, ingenuamente,

ajuda Pedro a pisá-la e execrá-la, deixando-a para sempre à margem

da sociedade. Pedro, em contrapartida, utiliza-se da força física e

psicológica sem medição de esforços para alcançar seus objetivos e,

então, alçar vôos mais altos. Sua figura torna-se metáfora do poder.

A morte da mãe, a ausência do pai, o destino trágico de sua

irmãzinha e a partida de Pedro fizeram com que Leontina caísse em

total abandono:

“Vesti meu vestido cinzento e fui pra casa do padre Adamastor. Mal podia parar em pé de tanto desânimo. Uma tristeza no peito que chegava a doer. Minha mãe e Luzia e Pedro e a Tita mais os filhinhos dos filhinhos da Tita. Tinham sumido todos.” (ACL, p. 97)

O presente de Leontina terá o peso da vida passada. É na rela-

ção amorosa que ficará marcado todo o fracasso interior da persona-

gem. Suas relações afetivas serão cheias de conflitos e dúvidas, pois

o complexo de rejeição e as limitações vivenciadas na infância serão

transferidos para os momentos amorosos. Ao encontrar-se pela pri-

meira vez com aquele que surge como a grande possibilidade de

restabelecimento de sua dignidade, transfere toda a carga emocional

de carência para ele. Rogério surge como esperança de uma vida

melhor e do fim da solidão, porém, essa transferência é pautada,

principalmente, no fracasso da relação com o primo e no que apren-

deu a ser ao seu lado: rejeitada, submissa e desvalorizada.

Coerções, limitações e repressões direcionadas à Leontina aju-

daram na formação de um corpo pautado pela “docilidade”. Os cor-

pos dóceis, segundo Michel Foucault são aqueles “fabricados”. De

uma “massa uniforme” de um “corpo inapto” faz-se o produto que se

precisa, corrigindo aos poucos a ação, tornado, perpetuamente, dis-

ponível de forma que ele se prolonga, em silêncio, no automatismo

dos hábitos. Leontina é um corpo tão dócil que a ruptura com a famí-

lia, não propiciou a libertação das amarras da dominação em que

vivia inserida.

Quase todas as colegas do salão de danças contaram que se

perderam com moços que prometeram casamento. Pois comigo foi

diferente porque Rogério até não me prometeu nada. Foi o primeiro

conhecimento que fiz na cidade. Ele era grandalhão e tinha um riso

tão bom que dava logo vontade de gente rir junto. Assim que cheguei

sentei num banco da estação e fiquei ali parada sem saber pra onde

ir. Então ele veio prosear comigo e se ofereceu pra me ajudar. Repa-

rei que farda era aquela. Mas está é a roupa de marinheiro ele res-

pondeu. E começou a rir porque achou uma coisa de louco topar com

alguém que nunca tinha visto um marinheiro. Contou que morava no

Rio mas estava agora de licença pra tratar de umas coisas que tinha

que tratar em São Paulo. E ficou olhando pro meu vestido. Já entendi

tudo ele foi dizendo. Você fugiu de casa com o vestido da sua mãe

acertei? (ACL, p. 100)

Quando chega a São Paulo, a protagonista se encanta com a

cidade e logo é encontrada por Rogério, o primeiro amor de sua vida.

Esse homem será para ela um grande alento e ela despejará nele to-

das as suas esperanças amorosas. Sendo marinheiro, ele se identifica,

com a tradição popular de um homem que não se apega a ninguém e

tem uma mulher em cada lugar que aporta, indiciando que o destino

amoroso da protagonista não será feliz. O caráter de Rogério, ditado

por suas próprias palavras deixa claro sua total falta de intenção em

ter um compromisso sério com Leontina:

“Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas de tan-to problema e não quer nem ouvir falar no problema do outro. Depois me disse que se eu estivesse gostando dele como ele esta-va gostando de mim tudo ia ser muito fácil. A gente podia morar junto lá no hotelzinho mas desde já me avisava que não ia prome-ter nada. Nunca enganei nenhuma mulher ele avisou. Sou livre mas não vá ficar alegre com isso porque casar não caso mesmo. Meu compromisso é outro. Nunca esquentei o rabo em parte al-guma ele disse despejando mais cerveja no copo. Fiquei olhando a espuma. Chega uma hora me mando pro mar e adeus. Está bem assim?” (ACL, p. 101)

Rogério deixa previsto o término do relacionamento, com uma

postura “sincera” diante do que poderia oferecer a Leontina. Ele e-

xerce seu poder sobre ela, vivendo segundo a sua visão e o seu gozo.

Ela continua sendo objeto e aceita, sem questionamentos, a nova

realidade. Seu corpo, ao longo da narrativa, se adequa aos espaços

que a existência tem para lhe dar. Como nos aponta Foucault,

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recom-põe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente “mecâ-nica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domí-nio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fa-brica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. (Foucault, p. 119)

Esse modelo de dominação, por séculos implantado no imagi-

nário social e representado pelas normas, permeia o corpo de Leonti-

na. As relações de gênero aparecem como metáfora da maquinaria de

poder. O trabalho de “inculcação” é tão bem engendrado que uma

vez imposto faz com que os corpos continuem imersos no ostracis-

mo.

Para Rogério, entregar-se ao relacionamento com Leontina é a

distorção e a castração de sua liberdade. Ele aparece submerso no

idealismo patriarcal, atuando de maneira branda, cordial, asseme-

lhando-se a Pedro como representante do poder. A diferença entre

ambos brota da maneira como realizam a dominação. Enquanto o

primo, além da coerção psicológica praticava a força física, iludindo

Leontina com promessas, Rogério não promete nada, mas oferece, na

prática, momentos de realização plena para a personagem, preen-

chendo-lhe o vazio. Ficam resguardados os desejos e vontades mas-

culinas e, Leontina, mulher, não participa ativamente de nenhum

deles.

Simone de Beauvoir chama a atenção para o grande perigo da

entrega total da mulher ao homem amado, numa atitude que possi-

velmente resultaria em alienar-se no Outro. Explica que o amor au-

têntico assenta-se no reconhecimento recíproco de duas liberdades,

em que nenhum abdicaria de sua transcendência, nenhum se mutila-

ria; os dois desvendariam juntos a felicidade.

Toda a herança do pensamento patriarcal aparece legitimada

pelo discurso da Igreja. Em concordância, esses discursos, durante

séculos, propagaram e ratificaram a subserviência da mulher. A Igre-

ja, por sua vez, debruçou-se sob a implacável guarda da moral femi-

nina. Leontina se vê mergulhada nessa estrutura, não usufrui dos

prazeres do sexo. Seu imaginário confunde-se com essa herança e

com seu romantismo de menina, que se contrapõe ao ideal de rela-

cionamento de seu parceiro, que vivia o sexo como uma satisfação da

carne, apenas:

“Aprendi também a fazer amor e a fumar. Até hoje não consegui gostar de verdade de fumar. Comprava cigarro e ficava fumando porque todas as meninas em nossa volta fumavam e ficava esqui-sito eu não fumar mas dizer que gostava isso não gostava não. Também fazia amor tudo direitinho mas com uma tristeza que não sei explicar. Não sei explicar porque justo esse sempre foi o pior pedaço para mim. Toda vez de ir para cama eu inventava de fechar uma torneira que deixei aberta ou ver se minha carteirinha de dinheiro estava dentro da bolsa. Vem logo Joana que já estou quase dormindo o Rogério chamava. Quando não tinha mais re-

médio então eu suspirava e ia mas com uma aflição que só dis-farçava se bebia antes um copo de vinho.” (ACL, p. 102)

O desejo sexual aparece atrelado ao desejo do homem. Cabe

lembrar que a virgindade era prestigiada na sociedade patriarcal.

Delumeau nos aponta que “a sexualidade é o pecado por excelência:

essa equação pesou fortemente na história cristã (...) nos meios de

Igreja, tem-se doravante como verdade evidente que virgindade e

castidade preenchem e povoam os assentos do paraíso” (Delumeau,

1923, p. 316). Esse pensamento cresceu pela divulgação da idéia de

perigo do sexo feminino, calcado na “obscuridade” e no mistério

próprios da feminilidade, como a maternidade que faz da mulher

“santuário do estranho”. De forma que, para valorizar a figura mas-

culina, o homem definiu-se como apolíneo e racional (mente), por

oposição à mulher dionisíaca e instintiva (corpo), mais invadida que

ele pela obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho.

As experiências frustrantes sofridas na infância fazem com

que a personagem desenvolva um caráter fraco e dependente, sentin-

do-se totalmente dilacerada ao ser abandonada por Rogério. Leontina

entrou no perigo da entrega total, caindo num processo de inferiori-

zação forte. Seu corpo, que estava “livre”, sem nenhuma voz para lhe

dizer o que fazer, sente a falta do homem amado e, acostumado à

disciplina, tomba:

“Sem Rogério eu não poderia achar mais nenhuma graça na vida. E agora lembro que só depois que ele foi embora pra sempre é que eu vi como gostava dele e como a gente tinha sido feliz na-

quele quartinho da rua com cheiro de café. Chorei até ficar com o olho que nem podia abrir de tão inchado. Depois fechei a janela e fiquei ali trancada no quarto só querendo chorar e dormir no tra-vesseiro dele porque assim me representava que ele ainda estava ali. (...) Tomei banho com o sabonete dele. Vesti a camiseta com coisas escritas no peito que ele esqueceu na gaveta e enquanto o perfume durou em mim fiquei pensando que tudo estava como antes.” (ACL, p.104)

No passado, porém, a partida de Rogério é apenas vivida com

sofrimento, ao passo que, através da rememoração, ele surgirá como

o grande momento de sua vida, símbolo da única vez que ela real-

mente fora feliz. Infância e vida adulta aparecem revividas pela me-

mória da personagem sob o signo do sofrimento.

Com dificuldades econômicas, Leontina se vê obrigada a en-

trar no mundo da prostituição, fato que a deixará muito mais à mar-

gem da sociedade. Assim como Lúcia, de José de Alencar, Leontina

entra para a prostituição por necessidades financeiras. Ambas as

personagens vivem sob o julgo da sociedade de forma que o resgate

possível às duas se daria pelo casamento. No entanto, a personagem

romântica de Alencar contorna a sociedade e se realiza através do

amor e da morte. Nossa heroína moderna, porém, não tem o mesmo

destino; sua morte não será física, mas moral. Uma vez inserida no

submundo dele não mais sairá:

“Era bom quando seu Armando vinha prosear com a gente e de uma feita contou que uma tal de Mira acabou se casando com um cara que vinha dançar e que era dono de um montão de fazendas em Goiás. Hoje ela era uma granfa e vivia aparecendo no jornal em festa até de rainha. Essa história me animou demais. Mas

quando seu Armando viu minha animação começou a rir. Sosse-ga Leo que esse negócio de abóbora virar carruagem está ficando cada vez mais difícil. Em todo o caso não perca a esperança que eu também não perco a minha de encontrar um rio de ouro com aquele mendiga da Califórnia. Um santo se Armando. Pensando bem até que existe gente boa nesse mundo.” (ACL, p. 109)

As imagens de casamento e a espera por um príncipe encanta-

do que a tirasse daquela vida aparecerão com freqüência em sua

memória. Porém, nem mesmo esse destino poderia ser o de Leontina,

não teve para si o destino das mulheres: o casamento, pois fazia parte

da escória da sociedade. Sendo prostituta se opõe à esposa, de forma

a sonhar acordada com essa possibilidade:

“Não confessava nem para a rubi, mas no fundo do coração che-guei a esperar que de repente aparecesse alguém que gostasse de mim de verdade e me levasse embora com ele. Podia até ser al-guém que me falasse em casamento. E em toda a minha vida nunca quis outra coisa.” (ACL, p. 109)

O vestido marrom torna-se o grande cúmplice da ingenuidade

de Leontina. A personagem na primeira atitude concreta em querer

aproveitar-se de um homem, sem interesses amorosos, cai em mais

um fracasso:

“Juro que queria continuar meu caminho mas lá no fundo o vesti-do com aquela rosa de vidrilho vermelho no ombro. Quando ele fez a pergunta pela segunda vez então não agüentei e respondi quer se ele quisesse me dar eu aceitaria sim com muito gosto .” (ACL, p. 115)

Agredida fisicamente, lembrara de quando Rogério a defendeu

batendo em outro homem, apenas por ter esbarrado nela. Por legítima

defesa, Leontina ataca o agressor com um ferro na cabeça e consegue

fugir. Essa narrativa é representativa da dominação de um corpo que

se molda aos lugares, às ordens e ao inconsciente da própria perso-

nagem, sendo essa sua pior inimiga. Sua inocência a faz voltar à loja

para pegar seu vestido branco, por isso é presa, sem direito a explica-

ções.

A personagem Leontina insere-se no rol dos corpos disciplina-

dos, por ficar inerte aos ditos sociais, aceitando-os e absorvendo-os.

Sua imobilidade desprivilegia sua infância, sua passividade a faz

perder todos os prazeres da vida, sua ingenuidade toma-lhe a liber-

dade; seu desespero diante da vida é disciplinado.

Comparada ao modelo das mulheres de Atenas, Leontina sai

prejudicada, pois aquelas são respaldadas pelo casamento, exercendo

pelo menos o destino de mulher ao passo que Leontina, não usufruirá

dessa fortuna. A dominação que esse corpo recebeu e a obediência,

amparada pela falta de inteligência, acarretaram para ela um futuro

trágico.

Lygia escreve, assim, a história de mulheres ficcionais. A es-

critora como sujeito feminino fala pelas mulheres, que gritam dentro

dos livros e das histórias. A dor de Leontina é metáfora da dor de

todas as mulheres, submetidas ao domínio. Leontina não teve seu

retrato estampado na capa do jornal, por fazer parte da sociedade

burguesa, mas por ter assassinado, em legítima defesa, um homem. A

sociedade, porém, a condena e lá está ela, usufruindo a sua “hora da

estrela”.

Referências Bibliográficas

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