a dureza da pétala
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A dureza da pétala
por Aldenilson Santos
A flor, indiscutivelmente, tornou-se sinônimo de
delicadeza, sensibilidade, afeto.
Dar uma flor a uma mulher pode dizer muito. Pode
deixá-la sensibilizada.
Já para os homens, receber uma flor pode significar
uma afronta. Afronta à masculinidade.
Porém, tanto homens como mulheres recebem flores.
Com lágrimas. São pétalas jogadas sobre corpos. Pétalas
molhadas por lágrimas.
Embora sinônimo de delicadeza, sensibilidade,
elegância, a flor num enterro torna-se sinônimo de
despedida.
Eis ai o outro lado que está escondido atrás de cada
pétala. O lado da dor. Do sofrimento de perda.
Quando as pétalas que formam a flor caem sobre um
corpo ou caixão é sinal que está na hora de dizer ADEUS!
A leveza da pedra
por Aldenilson Santos
A leveza da pedra está justamente naquilo que ela
não parece ser. Ou seja, leve.
A pedra é a base para a construção. Com ela outras
ideias tomam forma.
Nas mãos de um especialista a pedra fica leve. Torna-
se joia.
É através do manejo com a rocha que aprendemos
que ela é mais leve do que imaginamos.
É preciso parar, pensar, dar forma, modelar a pedra
para assim ela ter seu valor. Sua leveza.
Um diamante é uma pedra, originalmente, mas toma
uma leveza ímpar quando modelado. Quando burilado.
A partir disso, um diamante nas mãos de uma dama
torna a pedra leve, sensível, sinônimo de elegância.
A leveza da pedra está no que ela pode ser. No que
ela pode vir a ser.
No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma
pedra no meio do caminho.
Uma outra carta
por Aldrey Iscaro
Gostaria de poder te ver de novo, de te dar um “oi”, de
te abraçar e de sentir teu cheiro. De poder ouvir de você:
“olá, querida, estava com saudades, que bom que você
está aqui agora!”.
Sinto sua falta, sinto falta dos muitos momentos que
vivi com você, sinto falta de, ao som de um bom samba,
batucar na sua perna, e você me olhar com aquela cara de
“você está fora do ritmo”, e eu te olhar com aquela cara de
“você é musico, é claro que eu não vou discutir com você”;
de rir junto com você ao te ouvir, todo debochado, dizendo:
“ah, a Viviane Araújo queria me dar um beijo mas eu achei
melhor não... eu cheguei perto e percebi que ela tinha
bafinho”; e de te ouvir falar: “tô livre sexta à noite, vamos
nos ver?”.
Mas sinto falta também das coisas que nunca tive, de
um anel prateado com uma pequena, leve e brilhante
pedrinha em cima e seu nome gravado na parte de dentro;
daquele enorme buque de rosas, que mal poderia segurar
de tão bonito, grande e pesado que ganharia de
aniversário; e de poder, à meia-noite, te dar feliz Natal.
Mas só os encontros e desencontros do destino
poderão me dizer se um dia, novamente, te darei um “oi”,
sentirei novamente teu cheiro, ouvirei de novo a tua voz e
responderei pra você: “também estava com saudades.”.
A leveza da pedra, o peso da pétala
por Antônio Augusto Veríssimo
Quando ouvimos, lemos ou nos lembramos da palavra
“pedra”, logo somos remetidos às ideias de dureza, peso,
rigidez e imobilidade. Mas, nas mãos de hábeis e criativos
arquitetos e escultores, materiais da natureza podem
assumir formas e significados que podem modificar de
maneira substancial nossas impressões acerca de suas
características. Citarei adiante os exemplos de três obras
de grandes artistas que nos propiciam, por meio de suas
realizações, sensações muito diversas das acima expostas.
A primeira delas é uma obra-prima da arte gótica
francesa,Sainte-Chapelle. Atribuída ao arquiteto Pierre de
Montreuil, a construção dessa capela começou em 1241,
tendo sido construída com o objetivo de tornar-se um
grande relicário para acomodar as relíquias colecionadas
pelo rei Luís IX. Nesta obra foram utilizados, à perfeição, os
recursos e técnicas desenvolvidas pela arquitetura gótica
francesa, o que resultou em uma estrutura extremamente
delgada e delicada, vazada por vitrais majestosos, que nos
transmite uma sensação de leveza e que nos faz abstrair a
noção de que sobre nossas cabeças está uma estrutura
feita totalmente em pedra, cujo peso, em parte, é
engenhosamente descarregado, através de arcobotantes,
para contrafortes que estão fora de nossa visão. Sainte-
Chapelle é uma obra-prima da arquitetura universal que
nos dá a noção da capacidade do ser humano de modificar,
por meio de arte e engenho, as impressões que temos
sobre os materiais da natureza.
A segunda é a escultura O Rapto de Proserpina
(1621/1622), de Gian Lorenzo Bernini. Esta obra, de
grande beleza e referências eróticas, não somente nos
transmite leveza, pela visível facilidade com que Plutão
mantém o corpo de Proserpina no ar, mas sobretudo revela
a maciez daquele voluptuoso corpo feminino, marcado em
sua carne pela pressão vigorosa exercida pelas mãos
daquele deus mitológico.
A terceira é Loie Fuller das la Danse Serpentine, uma
escultura de 1893 que retrata a dançarina nascida na
cidade de Chicago considerada a precursora da dança
moderna. Nesta obra, o autor nos faz abstrair a concretude,
rigidez e imobilidade do material que a constitui. O que
temos diante de nossos olhos é o movimento, a fluidez, o
esvoaçar das vestes dessa bailarina que foi criadora da
Dança Serpentina e que, por meio de um artifício
engenhoso, criou uma extensão de seus braços, ampliando
os limites espaciais e volumétricos dos seus movimentos,
tornando-se inspiração para pintores e escultores do
movimento Art Nouveau.
Já sobre a pétala, pensada individualmente, parece
impossível lhe atribuir qualquer noção de peso; mas
pensada como constituinte da rosa, já nos permite atribuir-
lhe valores simbólicos que, se não remetem diretamente à
uma noção de peso no sentido físico, traz consigo a
densidade das ideias de sagrado, de paixão e de segredo.
CAMI(pedra)NHO
por Autenir Carvalho de Rezende
Movimento e permanência (ou, A leveza da
pedra)
Por Daniela Motisuke
Estática, em seu momento constante, pesa
Dinâmica, em equilíbrio instável, flutua
O vento que sopra, porém,
faz cantar o constante
e nem cócegas faz no instável
Leveza versus peso, eita falsa dicotomia
da vida, da arquitetura, da academia
Da arquitetura da pedra,
como já disseram o mestre francês e o mestre paulista,
“É preciso fazer cantar o ponto de apoio”
como uma pétala (ou pluma)
Leveza da pedra
Por Diana Aguiar
Abandonei-te porque assim como Gregório de Matos
te senti “madrasta dos naturais”, dos teus por nascimento.
Durante muito tempo quis ficar, mas me curvei à sensação
irremediável de que as pedras de tuas construções e
paralelepípedos no Centro Histórico, na Ribeira, no Dois de
Julho, no Bonfim eram grilhões que me atavam ao chão,
me impediam de voar. Então te abandonei voando em uma
estrutura de metal que, por uma engenharia que me é
incompreensível fora do campo da magia, torna-se leve e
se mantém suspensa no ar.
Longe de ti estive em muitos portos onde pousam
essas naves. Por muitos anos, voltava esporadicamente e
saía de fininho, sem compreender os amigos que ficavam,
por escolha, nessa terra “tão dessemelhante”. Mas
permaneceste em mim. Residindo com a teimosia de
Oxum. E sem me dar conta me vi subir as ladeiras da
Colina Sagrada aos prantos de saudade em tua procissão
mais afamada. Redescobri em cada esquina um deleite,
acompanhada de e iluminada por Carybé, Verger, Caymmi
e Amado.
Descobri que em muitas de tuas construções a
argamassa é composta de cal extraído da queima de
sambaquis. Sambaquis consolidados em milhares de anos
de ocupação indígena por toda Paraguaçu – o nome
Tupinambá da Bahia de Todos os Santos – apropriados
pela ocupação portuguesa. Descobri que tuas pedras
catalisam encontros e desencontros, idas e vindas, de teus
filhos naturais, bastardos e estrangeiros e daqueles que,
como eu, me senti-sinto um pouco de cada coisa ao longo
de minha vida. Continuo estranhando tua insistência em
(re)colonizar minha alma. Mas ando lutando (muito) menos
para resistir aos caprichos que exalam das pétalas da
Roma Negra.
Nautimodelista e apaixonado por Vespas -
Luiz de Castro (1931- 2013)
Por Frederica Padilha
Muitos anos atrás Luiz de Castro costumava levar as
filhas pequenas para uma represa, onde soltava suas
miniaturas na água. Num barco a remo ia seguindo com as
meninas as embarcações de brinquedo. Luiz era um
nautimodelista há mais de quarenta anos.
Sua paixão pelas miniaturas começou, na verdade,
com os aviões. Um dia, porém, viu no Ibirapuera alguns
barquinhos e decidiu construí-los. Exímio artesão e muito
caprichoso, seus minúsculos veleiros, que depois
passaram a ser guiados por controle, tornaram-se famosos.
Se não era o campeão, era o vice nas regatas, como
conta a família. Ganhou prêmios e ajudou a criar a
Associação Paulista de Nautimodelismo.
Natural de Santo André, viveu parte da infância em
Minas, até se estabelecer em São Paulo. Foi bancário e,
depois de se casar com Marília, em 1957, trabalhou com o
sogro em uma fábrica de laticínios.
Fazia a entrega dos queijos na capital paulista. Após a
morte do sogro, chegou a ter sua própria fábrica e ainda foi
cobrador num frigorífico.
Em 1992, ficou viúvo e voltou a andar em Vespas,
pelas quais era apaixonado. Antes, fora obrigado pela
mulher, que achava perigoso, a vender sua moto. Há
poucos anos quebrou a perna em um acidente, mas não
desistiu.
Estava feliz por ter encontrado uma nova
companheira, a publicitária Élmice, e por ter superado um
câncer na bexiga. Era piadista e otimista.
Na quarta foi levar um rádio para um amigo em São
Bernardo consertar, quando um caminhão o atingiu em sua
Vespa na Anchieta. Morreu na hora, aos 81, deixando duas
filhas e três netos.
A âncora do pintor chinês Fang - Chien
Kong Fong (1931- 2012)
Por Frederica Padilha
O pai de Chien, um engenheiro que dirigia fábricas de
papel na China, gostava de rabiscar figuras marítimas. O
filho sentava ao seu lado para desenhar e era incentivado
na prática artística.
Um dia o menino encasquetou com uma forma
desconhecida e quis saber o que era. O pai lhe explicou:
“As âncoras têm muita personalidade. São modestas e
silenciosas. O fundo do mar é um mundo cruel e, diante de
qualquer ameaça da correnteza, elas não mudam de
posição".
Chien Kong Fong ficou conhecido pelo nome artístico
Fang. Nascido na China, por volta dos dez anos viu o pai
ficar doente, perder o movimento da mão direita e morrer.
Em 1951, mudou-se com a mãe e o irmão para o Brasil.
Em 1954, Fang começou a estudar pintura com o
japonês Yoshiya Takaoka. Desde os quatorze anos já fazia
aquarelas e sumi-ê, pintura milenar chinesa trabalhada com
nanquim.
Começou a expor a partir de 1957 e a ganhar prêmios
em salões de arte. Quase não retratou figuras humanas.
Tinha paixão pelo “irregular, livre e assimétrico”,
características presentes nas pinturas que fazia de
casarios, plantas, paisagens e natureza morta.
Em 1972, foi convidado a dar aulas na Faculdade de
Belas-Artes de São Paulo. Quatro anos depois, expôs no
Masp.
Também mostrou sua arte em Brasília, Rio, Chicago,
Nova York e Tóquio. Assinava com uma âncora para
simbolizar que não desviara de seu rumo.
Praticava tai chi chuan todos os dias, como conta a
mulher Akiko. Passou por uma cirurgia cardíaca, mas não
resistiu a um infarto e morreu na quinta, aos 81. Teve três
filhos.
Leveza da pedra e dureza da pena
por Gilberto Schittini
A leveza da pedra e a dureza da pena,
são contingenciais, relacionais,
histórica e geograficamente determinadas
No espaço, a pedra flutua
Uma erupção lança a pedra como se não fosse nada
Numa lagoa a pedra pode quicar três vezes antes de
afundar
Sobre a dureza da pena
É bom perguntar para quem já tentou depenar um pato...
Melhor ainda, pergunte para o pato!
Pétala: a mulher Nua
Por Isis do Mar
Muitos conhecem o conto do Fernando Sabino, “O
homem nu”. Mas poucos conhecem a nudez das ruas e dos
becos de uma cidade, quiçá de uma cidade com tempos e
espaços distintos coexistentemente. A nudez da vida, para
Agamben, por exemplo, é uma vida nua que jamais se
despe e é obrigada a se vestir, maquiar-se e se mascarar
num cotidiano hegemônico.
Outra nudez, que representa a vestimenta da vida
nua, é a cidade e seu olhar para suas gentes. E, como
olhar aquilo que nunca é visto, narro agora meu olhar
diante do outro e de mim mesma, em um tempo e um
espaço distinto e múltiplo.
Hoje vi uma mulher nua. Completamente nua.
Sentada na calçada, tensa, envergonhada com sua nudez,
tentando dormir, mas percebendo os olhares destemidos e
desconfiados dos outros. Mulher nua que se despe ainda
mais na crueza da rua e no olhar atacado, mas
paradoxalmente o olhar de ausência das pessoas. O tempo
é curto, o espaço vai embora, a mulher passa... Mas será
que não fica em ninguém a angústia de ter passado por
essa nudez? Ninguém se move ao perceber que uma
mulher está nua, que sua vida está descoberta em todas as
feições e todas as situações? A mulher nua se despe
ainda mais, na cidade que se propõe igual, mas deixa, à
margem da calçada, a nudez de uma pessoa que vive e
que morre, em um mesmo tempo, em um mesmo espaço.
Hoje vi uma mulher vestida. Vestida de contradições e
de vergonhas por gente que sente vergonha de ver uma
mulher nua. Gente que, mesmo se sentindo aflito com a
desigualdade e com as máscaras da vestimenta que se
impõe sobre a nudez, passa rapidamente pela cidade, e
alimenta mais e mais esse mundo que jamais existiu e que
sempre foi assim. Uma vida tirana de uma mulher que
veste as roupas e as fardas de um mundo que não é seu,
mas também não é de ninguém. Essa mulher se
encontrava à margem da calçada, vestida de recolhimentos
e angústias, vestindo-se com as mãos no rosto, triste,
pensativa, sem contemplações, porque não há nada o que
contemplar neste mundo, não há nada a contemplar nesta
calçada, a não serem os olhares rápidos e imprecisos
sobre todos nós, que passamos rapidamente sobre o
conflito, e tentamos, sem conseguir, ignorar o tempo e o
espaço.
Hoje vi pessoas nuas, pelo menos por um segundo, a
observar mesmo que de lado a mulher nua, mesmo que por
um segundo cruzarem os olhares, e mil sentimentos
entrarem em conflitos e incursões sobre o que é vida, o que
é a nudez, o que é esta mulher... Mas, não sejamos
inocentes quanto aos nossos sentimentos. Passam coisas
boas e ruins, seja lá o que for bom ou ruim na vida nua, na
nudez, na nossa nudez.
Hoje vi um dia nu, tentando se vestir com roupas que
sempre e nunca serão suas.
Pedra: voz é sopro em pé
Por Isis do Mar
Na lenda da Ceiuci, dos índios Tuxauas, concentrados
em sua maioria no interior do Amazonas e Pará, o mundo e
o universo foi feito por tucandeiras. Tucandeiras são
formigas, uma espécie comum pela Amazônia, que possui
um ferrão e uma picada extremamente dolorosa, dizem que
mortal, dependendo da quantidade de picadas. O pai de
todos virou tucandeira. Ceiuci, a mãe de todas, virou cobra.
Mas os dois ensinam para todo o universo que voz é sopro
em pé.
Não à toa que sopramos e construímos, também, o
universo. Esse universo genérico, que não cabe na gente,
mas também nosso universo íntimo, peculiar, que cabe
menos ainda. Não à toa que fazemos nossas moradas a
partir deste universo desconhecido, para tentar conciliar
sua ajuda, que é a vida, nesse desenrolar doido que
fazemos da nossa trajetória, da nossa travessia. A voz é
um pouco esse tom vazio que é o sopro, entoado pela
gente (e quando falo gente, o tom da voz é de cada um, e
todo mundo sabe disso).
Por isso, é inalienável e intransferível nosso desejo de
resistir, seja na permanência de estar nesse mundo, seja
na produção de nossos próprios espaços, campos de ação,
de nossas escolhas.
Dia 22 de março, ao chegar à Aldeia Maracanã, e ver
os pertences de quem ali escolheu para habitar e para viver
sendo jogados à sorte de um caminhão de despacho,
desnudado de seus próprios construtores, fiquei pensando
nas escolhas dos outros para a gente. Mais ainda, fiquei
pensando nas escolhas que os outros fazem para a gente,
sem nenhum critério de sensibilidade e prazer, de afeto e
solidariedade. E como é fácil fazer escolhas para os outros
nos dias de hoje! E, ao contrário, como é duro e difícil, nos
dias de hoje, encarar nossas próprias escolhas e
considerá-las nossas, sem vergonha de viver e de soprar,
sem vergonha de entoar.
Ouvi no decorrer do dia e das reportagens (que
definiram as escolhas como se elas fossem as escolhas
erradas! Quem somos nós para definir que as escolhas dos
outros são erradas ou não?) alegarem que os índios nem
do Rio de Janeiro eram, que precisavam retornar ao seu
lugar de origem se quisessem lutar por algum pedaço de
terra. Concomitante a essas falas, em uma das reportagens
divulgadas na televisão, os índios em um abrigo andando
em direção a um terreno gramado por um mato verde claro.
A câmera fez um efeito que tendia a mostrar a nostalgia e
um retorno idílico e bucólico. Pensei: Por onde tudo isso
começou?
Aquele caminhão de mudança, mais cedo, ainda na
Aldeia Maracanã, me fez sentir a dor dos índios que lá
habitavam, mas também a dor de um morador na favela da
cidade do Rio de Janeiro que tem sua casa destruída por
algum órgão público, que é ameaçado veladamente e que
precisa entender o incompreensível: ele não faz parte
dessa cidade. Mas como? Ele se sente parte, ele produz
essa cidade e se produz em conjunto. Qual a razão e o
sentido dos outros escolherem que ele não é?
Abraçar o mundo com a voz. O grito seria o sopro
engasgado?
Após décadas de consolidação de uma política que
acentua as desigualdades espaciais, ao mesmo tempo em
que fantasia uma “cidade maravilhosa”, a relação e o
discurso do invasor, o problema que leva ao inchaço
urbano permanece como justificativa de atenuação de um
planejamento tendencioso e vinculado à máquina
capitalista.
Se a estrutura urbana precária tem como resposta
superficial a chegada do migrante, do escravo, do índio, a
resistência pela resistência permanece nas projeções de
subjetividade, de significante de uma ideia, na construção
de uma identidade imposta como o temporário, o pobre, o
não cidadão. Movimenta o discurso alheio do sujeito que
não é nem cidadão, nem parte da cidade. Da mesma
maneira o discurso de que suas pernas não são suas, nem
suas escolhas. Quem somos nós – os outros – para
dizermos quais são as nossas escolhas, e quais são as
nossas pernas?
Finalizo com a voz embargada, ao lembrar, em um
preciso momento, na Aldeia Maracanã, alguns índios
sentados, cantando forte e tenso, um cântico. Em meio ao
sol e ao calor que fazia, surge uma nuvem e começa a
chover exatamente onde nos encontrávamos. O choro, o
lamento, o silêncio, a espera da dor. Porque a dor dos
índios da Aldeia Maracanã é também a dor de quem não
pode saborear suas escolhas, nem defini-las como voz,
como sopro no universo, no nosso, no dos outros, nele
inteiro.
Sobre a leveza da pedra...
Por Josarlete Magalhães Soares
Epílogo
Pensando sobre a leveza e a dureza de objetos, a
princípio, inversamente duros e leves, fui levada
instintivamente para a dialética da vida e da morte. Acabei
escrevendo sobre a leveza da vida (que nem sempre é
leve) e a dureza da morte (que nem sempre deveria ser
dura)... No entanto, como pode ser percebido nos textos,
não pude falar da vida sem falar da morte e falar da morte
sem falar da vida. Sei lá, talvez tudo seja apenas uma
questão de ponto de vista...
Pensei sobre quão leve é o longo ciclo de
transformação da pedra na
natureza.
Afagada pelo vento – ar
– ou pela chuva – água –, a
pedra lentamente vai
retomando a mobilidade da
qual havia descansado por
algum tempo. E assim ela
encontra, num reencontro, a terra, os rios, retorna à
constituição dos seres vivos.
De início, quem sabe um alecrim, assa-peixe, flor-de-
maracujá, pé de manga, uma manga...
O verão se aproximando, o aroma se tornando cada
vez mais intenso e, num estupor de sabor, a pedra
devorada...
Por um sagui, talvez um pássaro, algumas centenas
de formigas doceiras, um menino banguela que, superando
a adversidade da idade, torna a pedra o seu próprio ser,
sua carne, seus ossos.
Hoje menino, amanhã homem. Talvez será feliz, talvez
amará, possivelmente comerá mais mangas e pedras...
E o menino, um dia, breve, devolverá à terra a
substância de que é feito, inclusive a própria pedra, que
talvez descanse por algum tempo ou, não se sentindo
cansada, se entregue a uma nova aventura de viver.
Sobre a dureza da pétala...
por Josarlete Magalhães Soares
Pensei sobre o material do qual se constituem as
pétalas, em sua função na natureza e sobre as mesmas
forças naturais que agem sobre elas, implacáveis, não
deixando alternativa em sua curta existência enquanto flor.
Pensei na semente encoberta pela terra, violada pela água
da chuva e pelo calor do sol, que rompe a superfície à
procura de luz, fugindo, assim, da morte prematura.
E nesse ímpeto pela vida, a planta entranha suas
raízes pelo solo e se agarra ao chão, ao mesmo tempo em
que o caule se alonga, ainda perseguindo luz, e as folhas
se abrem, mais luz.
A voracidade pela sobrevivência continua. Surge um
broto, um botão, que voluptuosamente se desabrocha em
flor.
As formas, o perfume, o colorido das pétalas a
alcovitar maliciosamente os insetos e beija-flores, usando e
manipulando a mobilidade desses seres em prol da ânsia
reprodutiva dos vegetais.
E tentando assim
escapar da morte, as
pétalas se entregam ao
máximo de sua vida,
para logo então deixá-
la...
Função cumprida
ou não cumprida, a
juventude da flor não pode ser sustentada por mais tempo.
Eis que seca, definha, cai sobre a mesma terra que um dia
foi seu berço e agora se converteu em seu túmulo.
A leveza da pedra e a dureza da pétala
por Julianna Malerba
O signo representa o presente em sua ausência, o
substitui. Jaques Derrida
Além do berçário, não consigo pensar em lugar mais
demasiadamente humano: a radicalidade da vida tornada
espacialidade. Pois essa seria a ocasião e o lugar ideal
para me permitir sentir – é o sentir, não o pensar que
humaniza nossa presença no mundo – mas, simplesmente
não consigo: aqui é a racionalidade que orienta meu olhar.
Meu autoperdão: talvez não consiga sentir por rejeitar
profundamente esse lugar. E ele é verdadeiramente
abominável! Pode-se descrevê-lo em sua abundância de
símbolos: tudo aqui indica, significa, simboliza. É um
pleonasmo hiperbólico de semiose exagerada que torna
insuportável o que já é, por si só, insuperável.
Olho à minha volta e me enojo: os espaços vazios, as
imagens sagradas, a crueza das lápides, a monotonia das
cruzes... Fecho os olhos em busca de auxílio, mas esse
profundo silêncio pacífico me atormenta; minha pele é
então golpeada por um vento frio, que parece vir de alguma
tumba deixada aberta; na boca, o abominável gosto de
cinzas... Nauseante. Mas definitivamente não há nada pior
que o cheiro desse lugar. Temo que nunca mais poderei ter
com flores. É começo de novembro, não poderia ser pior...
Sabemos que, entre os órgãos dos sentidos, nenhum é de
correspondência mais instantânea que o olfato. Por
sinestesia, terei meus sentidos paralisados toda vez que
me deparar com esse perfume: outrora apreciado, será, a
partir de agora, por mim, eternamente execrado.
Por isso, Miguel, perdoe-me, preciso fugir
imediatamente daqui... Mas não, não entenda como
vingança, devolução do abandono que involuntariamente
você me impôs. É que, para mim, você sempre significou
vida e vida em abundância e nada, absolutamente nada
daqui o representa.
Vou te encontrar então onde primeiro seu olhar cruzou
o meu: aquele nosso lugar da cidade onde uma praia
termina só pra que a outra comece, onde céu mar e terra
se confundem, onde o pôr do sol é aplaudido por aqueles
que conseguem saber que milagres podem, sim, ser
diários. Lá todos meus sentidos poderão, em sinestesia
positiva, encontrar você. Inclusive o sexto, que ainda agora
pode te cheirar, te tocar, te ouvir, te ver e te gostar...
Aquela pedra, lá no alto do Arpoador, será nosso para
sempre santuário: o lugar onde irracionalmente você
persiste e eu sensivelmente já não mais existo: justamente
para continuar sermos o que sempre fomos: nem eu, nem
você: nós.
Manguinhos e a leveza das noites pesadas
por Leonardo Brasil Bueno
Panorâmica
Tela: Oficina Portinari
Rio Faria Timbó
Tela: Oficina Portinari
Barbearia no Trailer
Tela: Oficina Portinari
– Isso foi tiro, né, Pretinha?
– Foi, mas está longe...
– Porra, vem pra cá, aumentou e agora tá mais perto,
parece troca com armas diferentes... acho melhor você sair
do quarto com janela e vir pra cá.
– Tô indo, já vou levantar da cama... caramba, que sono.
– Iiih, Leo, já sei que você vai demorar a dormir hoje...
Noite pesada e sono leve na favela. Levanto cansado
e preocupado, ligações telefônicas e mensagens virtuais.
Helicópteros voam baixo, as rajadas assustam. Aquele som
dos tiros parece se afastar, mas continua a preocupar. A
leveza das balas desconhece os limites da distância,
enquanto o peso das fardas e dos cordões brilhantes é
plenamente conhecido por quem aqui vive.
Qual o grau de precisão de uma guerra não
convencional na favela? Quanto de “projeto bem definido e
calculado” contém essa obra trágica imposta a
trabalhadores e trabalhadoras da cidade?
Nesse momento surgem várias imagens precisas na
cabeça. Parece incrivelmente nítida a imagem do pequeno
Diego andando pela rua, vestido pela surrada camisa do
Vasco, descalço, poucos dentes na boca, atrás de alguém
pra brincar na praça deserta ou no outro beco.
Por um instante, o pensamento também descreve a
família da corajosa Fernanda que tem muitos filhos, casa
pequena, olhar incisivo e pouco tempo para sorrir. A
memória também olha para seu caçula Carlos. Cabelos
longos, sorriso e choro fácil, sempre dois dedos em “v” na
pose de todas as fotos, além de uma receosa e contida
maneira de falar. Também aparecem as lágrimas correndo
sem parar ao ouvir a mãe falar da memória do irmão,
assassinado de forma brutal por policiais da UPP.
Lembro-me de Ana, cunhada de Fernanda. Expressiva
e bastante alta, andando com a pequenina Victória, mãos
dadas e mochila da filha de saúde frágil no ombro. Fala
bastante porque tem coragem, e tem coragem porque fala
bastante. Naquele momento pelo telefone, porém, a fala é
rápida, em baixo volume e precisa: “Leo, muito tiro e
bomba aqui, e tem uns caras de preto passando direto aqui
no beco da minha casa”.
Essas imagens e palavras insistem em residir na
minha memória. Aparecem com frequência nesses
momentos de noites pesadas, banalizadas. São acionadas
pela preocupação e por um desejo de leveza. É possível?
Por que há tanta leveza nas imagens que invadem o
pensamento em tão pesado momento? Não há resposta
segura. A noite vaga assusta, pois exige preocupação e
desespero que se somam a imaginação e a beleza das
quais nenhum trabalhador, jovem ou velho militante, deve
se desprender.
Chuva fina, manhã do dia seguinte. Um grito
estridente de criança: “Leooo!”. Um pulo repentino no colo,
um largo sorriso seguido de abraço carinhoso. Pergunto à
afetuosa Mari enquanto a seguro:
– Você comeu chumbo ou cresceu enquanto sonhava de
noite?
PÉTALA. PESA em PEDRA. LEVE
Por Letícia Castilhos Coelho
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
ódio.
Carlos Drummond de Andrade
Eis que me chega uma provocação:
expressar em escrita “o peso da pétala e a leveza da
pedra”.
Pergunto-me:
O que dizer do peso da pétala?
O que dizer da leveza da pedra?
Num primeiro instante, entre ideias bobas e certo
incômodo, dada a dificuldade de imaginar uma escrita
sobre tal assunto, decido não prosseguir... No entanto, a
perturbação não cessa e insistentes imagens perseguem
meus pensamentos. Constato e aceito o desafio.
O provocatório havia cumprido seu dever e, nesse ponto,
eu já não conseguia me manter isenta e deter os impulsos
indisciplinados que caracterizam o processo criativo.
Convencida, me entrego, me abismo e esboço,
timidamente, as palavras-imagem que me habitam e
povoam a imaginação.
Lembro-me do poeta, e me inclino a concordar que “uma
pedra é uma pedra é uma pedra” e “uma pétala é uma
pétala é uma pétala”.
Mas, e o peso e a leveza?
Soam como “rótulos” que se grudam às coisas e,
instantaneamente, atribuem qualidades, provocam
sensações, despertam memórias. Memórias...
Sob a guarda de Mnemosine, mãe das musas, sou
invadida por lembranças e rememorações de outros
tempos-espaços.
No fio que trama pedras e pétalas e pesos e levezas, me
trans[porto] para um outro Porto, nem distante, nem perto,
nem rio, nem mar, nem triste, porém, dito Alegre.
Por suas ruas e primaveras, a estação mais bela naquele
porto, me lembro caminhante, a errar pela cidade que,
outrora concreta como pedra do cotidiano, surge efêmera e
leve como imagem do pensamento.
Imagens nem nítidas, nem esvanecidas, imagens moventes
em que a pedra se faz rua ou calçada ou portuguesa ou
granito e a pétala se faz vento ou tapete ou cor ou textura.
Nessa mistura, o paradoxo se instaura entre a “pétala-leve:
pedra-pesa” e a “pétala-pesa: pedra-leve”.
E da pedra (às vezes pesada) surge a leveza do mosaico
esculpido pela mão humana. Torna-se caminho. Oferece-
se ao movimento caminhante, no qual fluxos, pensamentos
e olhares se desdobram em intensidades leves (e também
pesadas).
E da pétala (às vezes leve) surge no chão um tapete
colorido e denso, porque mesmo leve tem peso e
gravidade. Torna-se caminho. Oferece-se aos pés
caminhantes, no qual corpo, tatos e contatos se desdobram
em intensidade pesadas (e também leves).
945 PAVUNA- ANCHIETA
Por Natalia Urbina
Dedicado aos moradores da Maré, Acari, Jorge Turco,
Fogo Cruzado, Morro da Pedreira e Fim do Mundo. Zona
Norte - Rio de Janeiro
8/10/2014
Rota Fundão- Coelho Netto
Ônibus 945
Eis aqui no 945 Pavuna-Anchieta, saí cedo da aula
pra pegar meu filho na Escola, Escola nova para ele:
"Paula Fonseca", escola municipal situada na Praça
Zuinara, no morro do Jorge Turco. Um lindo lugar, que de
vez em quanto se vê interrompido, invadido por tiros que
obrigam as crianças a ter boas pernas, entre subir pra
estudar e se agachar para sobreviver (falando de pétalas,
pedras e balas).
Sim, minha pétala de rosa, meu filho maior tem sete
anos, é lindo, pequeno e macio, é uma flor, arrebento dos
meus sonhos e esperanças. A vizinhança conta que nessa
escola, o ensino é "melhor" (chame- se melhor a uma
professora que grita nos estudantes, que desliga a luz para
os estudantes ficarem quietos e que usa o medo e o
estigma verbal para ter alunos bem disciplinados, sem
contar os golpes na mesa) – falando sobre a dureza da
pedra e as pétalas da rosa e a educação pública das
nossas crianças.
Hoje eu estou conhecendo esta linha de ônibus,
antigamente eu pegava uma integração que custava R$
4,50 e hoje nessa mesma integração teria que pagar R$
6,50, ou seja, estou procurando alternativas. Na dureza de
um assento sem banco e uma janela pichada, o sol marca
meus braços que cortam o vento que flui, livre e fresco
embaixo do sol. É um ônibus bem bonito, muito colorido, na
dureza do tal 945 tem várias flores, nelas me incluo, a
mulher de vestido curto amarelo, a senhora dos brincos
dourados e eu, tentando escrever, várias flores que
ornamentam o contexto duro, como uma pedra. Aí que eu
penso: as flores mais lindas são aquelas resistentes,
falando das flores que crescem entre as pedras.
Poesia acadêmica, realista ou favelada?
Ao mais puro estilo de Gullar.
Se eu tivesse pegado a integração, aquele ônibus frio
e caro, eu estaria num contexto mais "macio", ar-
condicionado, janelas fechadas, cores cinzas, pardos,
pretos e brancos, não tem sol que esquente porque o ar
congela, até os pensamentos que poderiam –
eventualmente – dar um pouco de calor. Nesse ônibus que
é feito para flores, todo delicado, a dureza da pedra se
sente quando os estudantes não têm o rosto da vida, e
guardam as cores do frio, dentro de si, uma cor de pedra.
Há algumas semanas, subiu um rapaz nessa
integração, em frente dos tanques do exercito e gritou bem
forte: Perdeu, perdeu, universitário, agora você que
perdeu!!!! Os passageiros perderam tudo.
Quando o rapaz chegou até mim, e nos vimos frente a
frente, nos reconhecemos sim, nos lembramos da oficina,
da passeata, das crianças, do baseado, aí, justo aí, o
ônibus parou, e ele desceu correndo, só falou assim: toma
cuidado que mais na frente uns revoltados vão jogar
pedras. Agradeci por ter salvo os brincos de flor, herança
da minha avó.
Por tanto concluí que a melhor decisão é voltar para
casa de 945.
Um ônibus feito para pedras e enfeitado por varias
flores.
Vixi, cai na conta.
Na dureza do cotidiano.
Surgiu uma poesia.