a. e. moodie - geografia e política

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I.F C.H. - U F R.G.Í. Oeoartamerto da Cií.-cta» focal» MESTOAOO C£ SCZICLC. A £ r'o .-A POul.i B j D L I C T E ; a A. E. MOODIE Professor de Geografia da Northwestern Vnlversity, Illinois GEOGRAFIA e POLITICA Tradução de Christiano Monteibo OmcacA ZAHAR EDITÔRES BIO DE JANEIRO 6SC8H/UFRQS

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Page 1: A. E. Moodie - Geografia e Política

I.F C.H. - U F R .G .Í. Oeoartam erto da Cií.-cta» fo c a l»

MESTOAOO C£ SCZIC LC . A £ r ' o . - A POul.iB j D L I C T E ; a

A. E. M O O D I EProfessor de Geografia da

Northwestern Vnlversity, Illinois

GEOGRAFIA e POLITICA

Tradução de C h r i s t i a n o M o n te ib o OmcacA

Z A H A R E D I T Ô R E SBIO DE JANEIRO

6 S C 8 H / UFRQS

Page 2: A. E. Moodie - Geografia e Política

Título original:

Geography Behind Politics

Traduzido da 5.“ impressãoj publicada em 1963 por H utchinson & Co. (Publishers) Ltd., de Londres

capa de

ÉRICO

1 9 6 5

Direitos para a língua portuguêsa adquiridos por

Z A H A R E D I T O R E S

Rúa M éxico, 31 — Rio de Janeiro

que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil

Page 3: A. E. Moodie - Geografia e Política

I N D I C E

P r e f á c i o ....................................................... - r ...................................... 7I O Ambito da Geografía P o l í t i c a ................................................... 9

II A Evolução dos E s ta d o s ............................................................................. 22III Geografía Política I n t e r n a ....................................................................... 39IV Relações E ntre os E s t a d o s ....................................................................... 65V Fronteiras e L i m i t e s ....................................................................................82

VT C o m u n ic a ç õ e s ...............................................................................................115VII Aspectos D e m o g rá fic o s ............................................................................149

VIII Sumário e C o n c l u s õ e s ........................................................................... 183

Relação dos Mapas

1 Urna Década de Esfôrço — Tentativas para Estabelecero Lim ite Juliano, 1914-24,........................................................................88

2 Limites Sugeridos na M archa Juliana, 1946-47 . . . 893 Aldeias Perm anentes e Colônias de Veraneio numa P arte

da T atra P o lo n e s a ...................................................................................1024 Lim ites Comunais em Certa P arte da T atra Polonesa 1035 A Seção Piedicolle da Linha de R a p a l lo ............................... 1056 Distribuição das Taxas de Produção Líquida na Europa

por volta de 1930-35 ....................................................................... 157

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P R E F Á C I O

O Autor de um livro sobre Geografia Política inevita­velmente está sujeito a críticas porque ainda não existem linhas claramente definidas e geralmente aceitas quanto ao seu assunto. Não se pode negar, contudo, a existência de importantes relações entre os assuntos políticos e os ambien­tes físicos em que se encontram. Bem recentemente, um líder do Sindicato Trabalhista, falando perante um grande auditório sôbre as relações entre a Grã-Bretanha e a Europa oriental, afirmou; “Não se pode fazer contrato com a Geo­grafia”. Por mais restrito que possa ter sido o seu conceito de “Geografia”, sua declaração indicou a da crescente apre­ciação das influências geográficas nas atividades políticas nar cionais e internacionais. A dificuldade reside no traçar a linha entre o geográfico e o não-geográfico. Nesse sentido, desejo registrar meu sentimento de gratidão 'aos Professores East e W ooldridge pela sua assistência, mas devo também tornar claro que a responsabilidade pelas opiniões expressas neste livro cabe sòmente a mim.

A bem da clareza, escrevi a palavra Estado com inicial maiúscula sempre que ela se refere a uma entidade política unitária ou federada. Fiz freqüentes referências de notas de rodapé de preferência a listas bibliográficas nos finais de capítulos a fim de sugerir material extra de leitura sôbre pontos específicos.

A Seção de Vendas Unitárias de Ultramar, da ONU, deu-me permissão para reproduzir a Figura 6 com ligeiras

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alterações, e G. Philip and Son, d e Londres, amàvelmente permitiu-me a reprodução das Figs. 1 e 5 do meu liura The Italo-Yugoslav Boimdaiy, publicado por aquela editôra em 1945.

Seria deselegante da minha parte não expressar com gra­tidão o auxílio que recebi de minha espôsa, tanto na leitura como na verificação do manuscrito e leitura de textos estran­geiros.

A . E . M o o d ie

Londres, 1947

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o ÂMBITO DA GEOGRAFIA POLÍTIGA

I

O MAPA POLÍTICO do mundo revela um padrão distributivo de Estados de várias espécies que têm pouca ou nenhuma semelhança com as “regiões naturais” do geógrafo. Um traço característico de todos êsses Estados é que superficialmente pouco possuem em comum, embora cada um represente os esforços organizados dos seus habitantes para adaptar suas atividades, políticas e outras, às suas condições ambientes, com o resultado de que o leitor de mapas se defronta com um mosaico um tanto confuso, podendo ficar algo embara­çado ao saber que os detalhes do seu mapa estão sujeitos a modificar-se em intervalos relativamente freqüentes. Além disso, a taxa e incidência de modificação variam, no tempo e no espaço. Os Estados têm a qualidade de mutabilidade em grau acentuado.

O campo do estudo da Geografia Política interessa-se por duas considerações básicas. Em primeiro lugar, e de importância fundamental, é a análise das relações entre a comunidade e o ambiente físico. Como todos os Estados, pela sua natureza como elementos constitutivos da estrutura política mundial, se acham mais ou menos intimamente li­gados a outros Estados, essas relações enquadram-se em dois grupos ou aspectos, cuja integração freqüentemente põe à prova a capacidade dos responsáveis pela formulação de po­lítica. Não se deve atribuir demasiada ênfase à divisão em relações internas e externas, mas tal divisão proporciona um

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modo útil de abordagem num tratamento analítico. Todo Estado organizado possui departamentos administrativos com­paráveis aos Ministerios de Negocios Interiores e de Rela­ções Exteriores, da Inglaterra, sendo que em cada caso parece haver colaboração insuficiente entre ésses dois órgãos do Govérno, embora sua própria existência sintetize a dualidade das funções do Estado. O fracasso dos líderes políticos em harmonizar as atividades internas com as do Estado como elemento constitutivo da comunidade organizada mundial representa, em grande medida, a causa daquela desunião e instabilidade que podem culminar em conflito mundial. A divisão é utilizada aqui simplesmente para conveniência de análise, mas deve-se fazer a ressalva de que a necessidade dominante dos tempos atuais é a integração tanto das rela­ções internas como externas do Estado.

Tôda a superfície terrestre da Terra, com sua grande riqueza de ambientes geográficos, é agora partilhada por gran­de número de Estados que não obedecem a qualquer tipo claramente definido, mas cada um dêles possui três elemen­tos essenciais: território, povo e organizações, que podem ser analisados, descritos e cartografados com exatidão con­siderável. Mas onde quer que vivam pessoas num território e qua’quer que seja o sistema polí'ico que possam adotar, suas atividades representam, pelo menos em parte, uma rea­ção às suas condições ambientes que, por sua vez, fixam limites e afetam aquelas atividades humanas que ocorrem dentro do arcabouço territorial.

Nenhum Estado pode existir in vacuo, sem um território, mas nenhum território pode ser formado num Estado sem povo. Pode haver “pessoas apátridas”, porém não pode haver Estados desabitados, embora algumas unidades polí­ticas modernas incluam áreas de baixíssimas densidades de­mográficas. Dessa forma, os dois pilares do Estado, territó­rio e povo, acham-se intimamente soldados por suas relações. Isso não constitui mero “determinismo geográfico”. Não há garantia de que o povo que habita o território de um Estado reaja às suas condições ambientes mima dada ma­neira: daí a grande variedade de organizações políticas e econômicas existentes, e que provàvelmente continuarão a

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existir no mundo. O que se pode dizer, em térmos gerais, dêsse aspecto da Geografía Política é que cada ambiente pro­porciona certas oportunidades que seus habitantes poderão ou não utilizar, que podem ficar em estado latente e não apreciadas até que tenha sido alcançada uma fase adequada no desenvolvimento do povo.

A extensão em que as oportunidades ambientes são com­preendidas e utilizadas reflete-se no éxito e estabilidade das técnicas económicas e formas políticas de um Estado em particular, mas daí não se segue que os métodos e formas de um Estado sejam igualmente aplicáveis a outro conjunto de condições ambientes. Urna das conclusões mais úteis a ser inferida dos estudos político-geográficos é a tolice de impor sistemas que obtiveram êxito num determinado Es­tado, mas em nenhum outro, mais especialmente no campo político.

Todo Estado moderno, portanto, representa um amál­gama de três elementos — territorio, povo e as relações entre éles. Os dois primeiros são de grande variedade, mas o terceiro elemento é de infinita complexidade, não sendo ca­paz, em parte alguma, de ser reduzido a fórmulas matemá­ticas, mas possui em tóda parte urna qualidade dinâmica, visto que essas relações estão sujeitas a incessantes mutações e desenvolvimentos. Nitidamente, o estudo de todos os as­pectos dêsses três elementos está além do âmbito da Geo­grafia Política. A arte do Govêrno trata de um ramo das atividades do Estado e, pode-se acrescentar, seus executantes muitas vêzes demonstram lamentável ignorância não apenas das relações entre o ambiente e o povo, mas também dêsses dois próprios elementos. O ambiente físico enquadra-se grandemente no campo de ação da Geografia Física, enquan­to as distribuições de populações e suas densidades diversas estão compreendidas no estudo da Demografia. Historiado­res, economistas, sociólogos, todos têm interêsses em um ou mais dos elementos essenciais do Estado.

Embora reconhecendo o trabalho e as contribuições de todos êsses ramos de estudo, bem como de muitos outros, o estudioso de Geografia Política justamente reivindica um campo mais amplo. Vê cada Estado como uma entidade

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dotada de seus aspectos característicos fundidos por suas relações internas, porém, ao mesmo tempo, também o encara como parte de urna estrutura maior que é o mundo em que vivemos e cujo caráter simbiótico, em virtude das relações entre suas partes componentes, reconhece e procura analisar.

Êsse reconhecimento do dualismo do Estado, como um todo e como parte de urna entidade maior, constitui um dos fatores de diferenciação entre a Geografia Política e outras disciplinas. Em caso algum existe uma linha divisória acen­tuadamente nítida entre o funcionamento interno e externo do Estado; os dois conjnntos de relações estão, na realidade, intimamente ligados. A fase de desenvolvimento alcançada pelas relações internas, a suavidade com que funcionam e o bem-estar do elemento humano no Estado inevitàvelmente afetarão suas relações externas.

Inversamente, relações externas insatisfatórias poderão perturbar as condições internas até o ponto de se tornarem intoleráveis aos habitantes e forçá-los a adotar uma linha de ação que, em outras circunstâncias, poderia parecer impos­sível. In fine, o ambiente imediato de qualquer Estado sò­mente existe no âmbito de um ambiente maior e mais am­plamente difundido, do qual constitui parte. Se o objetivo dos estadistas deve ser o de harmonizar as relações da co­munidade com êsses dois gmpos intimamente relacionados de condições ambientes, o do geógrafo político é o de anali­sar e registrar as bases geográficas de relações humanas sem as quais as sociedades não podem existir.

A segunda consideração básica na Geografia Política é que os Estados estão sujeitos à mutação, mormente durante reríodos tais como os do nosso século, que poderá muito bem vir a ser a maior época de experimentação da história do mundo. Essa suscetibilidade de mudar, de forma alguma, se acha restrita às condições internas do Estado, mas se estende às suas relações externas, e embora o conceito de mudança não seja descoberta recente, não pode haver dúvida de que o ritmo das atividades dos dias aluais acelerou-se de muito no tocante a eras pretéritas. Talvez o resultado prin­cipal seja uma percepção crescente das relações entre comu­nidades e seus ambientes, juntamente com um aprimoramento

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de adaptações humanas descrito, grosso modo, como a “Con­quista da Natureza”.

Tal expressão está longe de ser exata, em que pese às notáveis realizações alcançadas em muitos sentidos. Contudo, deve admitir-se que a humanidade está dentro do alcance de condições mediante as quais pelo menos suas necessidades materiais podem ser atendidas numa escala em que jamais foi possível. Milhões de chineses poderão passar fome todos os anos e não se pode dizer que o bem-estar material de outros milhões de habitantes da índia tenha atingido um nível satisfatório, porém mesmo nesses casos extremos me­lhores meios de transporte e de organização acarretaram certo alívio. Não constitui vão otimismo esperar que mu­danças outras na agricultura e nas atividades industriais pos­sam facilitar o desenvolvimento de melhores padrões de vida em regiões onde, até agora, o bem-estar d ̂ comunidade como um todo tenha recebido pouca atenção.

Quaisquer que sejam as fôrças motrizes em que se ba­seiem, essas mudanças são importantes pelo menos pelo úni­co motivo de se '(acompanharem de desenvolvimentos de grande amplitude no pensamento político e econômico que inevitàvelmente influenciam tanto as relações externas como internas dos Estados. Se a paz é indivisível, assim também o são as relações externas dos Estados, e, por sua vez, elas não podem ficar inteiramente isoladas das condições inter­nas. Uma sêca na América do Norte tem suas repercussões na Europa; uma “Política Australiana Branca” pode fomentar o militarismo no Japão; e a rápida difusão de um conflito armado do seu ponto ou região de origem é por demais co­nhecida para ser ressaltada aqui.

De modo semelhante, as idéias, seja de caráter moral, político ou econômico, não podem ser isoladas no âmbito de qualquer Estado. Jamais houve tal multiplicidade de canais de comunicações. A invenção do prelo por certo auxiliou a propagação das idéias, e seus resultados ainda são importantes, mas os possíveis efeitos do rádio e do ci­nema não podem ser calculados no momento. Mesmo a índia, com as suas centenas de milhões de analfabetos, já conta com seus próprios estúdios cinematográficos, atôres e

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atrizes nativos e'cinemas na maioria dos centros urbanos. Os efeitos, diretos e indiretos, de tal crescimento fenomenal, de forma alguma confinados a um único Estado ou a qual­quer parte da Terra, são ainda incalculáveis, mas as possi­bilidades são enormes.

Êsse fundo de “fermento e mudança” não pode ser des­prezado pelo geógrafo político porque constitui parte do ambiente em que vivem as pessoas e, como tal, exercerá in­fluência diretiva sobre as formas de Estados e sôbre o cará­ter das relações interestataís. O conhecimento crescente necessàriamente não coincide com a sabedoria crescente, mas o maior acesso ao conhecimento, agora possível sem o re­curso da palavra escrita, pode levar ao desenvolvimento de desejos e exigências que, acelerando a taxa de mudança, poderão modificar as formas e funções dos Estados a um grau além da nossa atual compreensão.

Há vinte e sete anos escreveu eminente geógrafo: “ . . .uma sociedade nacional pode ser moldada numa exis­tência desejada enquanto jovem, mas quando é velha seu caráter está fixado, sendo incapaz de qualquer grande mo­dificação no seu modo de vida”. ̂ À luz dos acontecimentos e modificações que ocorreram desde que essas palavras fo­ram escritas, é possível fazer hoje tal assertiva? A Rússia era um Estado “velho ’ em 1919; contudo, que alterações no “seu modo de existência” se verificaram desde aquela data! A unidade política poderá parecer impossível de realização na China atual, mas qualquer profecia referente aos principais eventos dos próximos vinte anos naquele país quase que por certo será inexata.

O fato essencial para o geógrafo político, como na rea­lidade para o político e o historiador, é que os Estados e suas relações se modificam com as condições mutáveis da existência humana no sentido mais amplo. Nem mesmo a própria estrutura geográfica se mantém permanentemente inalterada; em virtude dos persistentes e contínuos esforços

1 Sir Halford Mackinder, Democratic Ideais and Reality, Londres, 1919, pág. 12.

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da humanidade para adaptar os seus meios de existencia às condições ambientes, a própria paisagem sofre modificações. Muito maior é a taxa de alteração na organização política das sociedades, tanto interna como externamente, mas mesmo assim êsse ritmo não têm podido acompanhar as mudanças econômicas. Parece haver um atraso entre o desenvolvimento de sistemas políticos e econômicos; as modificações no segun­do ocorrem primeiramente porque representam, em geral, a função primordial da humanidade, que é prover-se das neces­sidades básicas da vida — alimentação, vestuário, abrigo, etc., ao passo que as modificações políticas, via de regra, surgem num estádio posterior porque uma das principais funções da estrutura política de um Estado é organizar e facilitar as atividades econômicas dos seus habitantes.

Se o político e o economista, então, devem reconhecer êsse conceito de condições mutáveis num mundo em transfor­mação, juntamente com tôdas as suas implicações, o geógrafo político preocupa-se com a observação, registro e análise das mndanças que já ocorreram bem como com as que se acham em curso no momento atual.

À luz do que acabamos de expor, torna-se patente que a Geografia Política é um aspecto do estudo ainda mais am­plo conhecido como Geografia Humana, mas possuindo um elemento diferenciador que lhe empresta um caráter especia­lizado. A Geografia Humana trata das relações entre as so­ciedades e seus ambientes físicos sem qualquer restrição ne­cessária às formas políticas particulares que possam assumir. Dessa forma, a unidade de área do geógrafo humano é, via de regra, a região geográfica, grande ou pequena, que é considerada como uma entidade “natural” possuindo uma in­dividualidade que decorre da simbiose dos elementos físicos e humanos que, por sua vez, torna a região nitidamente reconhecível, embora a delimitação exata dos seus limites possa ser difícil ou mesmo impossível.

Por outro lado, a unidade de área do geógrafo político é o Estado, que é mais ou menos artificial até o ponto em que é o produto dos esforços conscientes dos seus habitantes para criarem uma entidade política que possa ser — e geral­mente é — inteiramente diversa da região geográfica. Na

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prática, a humanidade demonstrou até agora completa in­capacidade para idealizar um padrão de Estados que coin­cida com o padrão “natural” sugerido pelas regiões do geó­grafo. O mapa político da Europa, por exemplo, ilustra o conflito particularmente bem. Do ponto de vista geográfico, muito se tem a dizer para incluir as costas meridionais do mar Mediterrâneo no continente da Europa. Mais uma vez, o limite oriental da Europa nenhuma realidade apresenta nas esferas da política e da Economia, não sendo sequer um limite administrativo interno na U.R.S.S . A bacia do Da­núbio central indica uma estrutura admirável para um único Estado, embora esteja dividida entre várias entidades polí­ticas entre as quais parece haver muito pouca esperança de união.

Podem-se encontrar muitos exemplos semelhantes, não apenas na Europa, mas em outras partes do mundo, todos apontando para a mesma conclusão. No seu desejo extre­mado de estabelecer e manter os Estados, o homem tem, em larga escala, desprezado a possível estrutura das regiões geo­gráficas; nos seus esforços para assegurar a integridade dos Estados, êle se vê compelido a impor limites políticos arbi­trários no tocante aos quais as relações interestatais se acham freqüentemente em conflito.

As áreas de que trata a Geografia Política são, portanto, claramente definidas e nitidamente demarcadas. Com tôda a sua grande variedade de tamanho, configuração e conteúdo, representam criações artificiais e, como tal, devem ser reco­nhecidas como realidades num mundo em que com dema­siada freqüência se confundem o real e o irreal. Vale a pena ressaltar, contudo, que, no seu interêsse pelos Estados, o geógrafo político conta com a grande vantagem de ter acesso a material estatístico de muitas espécies e que é compilado numa base estatal. Os estudiosos da Geografia Regional e Humana muitas vêzes se vêem embaraçados por não pode­rem obter provas estatísticas das suas deduções pela inexis­tência de um mecanismo adequado para a coleta de dados semelhantes pertinentes às regiões geográficas. Em virtude da natureza da organização política dos Estados e para fins administrativos, os censos e congêneres devem ser compilados

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para as áreas situadas nos limites políticos. Daí o estudo da Geografía Política ser facilitado, tornando-se mais exato pela disponibilidade de material estatístico coligido, sem o qual os argumentos não podem receber pleno apoio.

Não tem isso por fim indicar que o ámbito da Geografía Política seja acanhado. Pelo contrário, a grande variedade de Estados e a infinita complexidade tanto das suas relações internas como externas exigem uma amplitude de perspectiva que somente se pode fundamentar no vasto conhecimento que só agora vem surgindo e que de forma alguma é com­pleto. Ao mesmo tempo, e se se quiser evitar falsas dedu­ções, o estudo da Geografía Política também requer alto grau de objetividade e desprendimento; em suma, exige urna atitude de espirito científica por parte dos seus expoentes, que devem ponderar cuidadosamente as provas disponíveis e evitar generalizações precipitadas. Não há dois ambientes idénticos nem dois Estados idénticamente semelhantes no mundo. Não exislem leis exatas e conhecidas que governem as relações entre os povos e os seus ambientes. Certas ten­dências gerais são observáveis, mas mesmo a inegável fôrça do desejo ardente de adquirir os meios de existência poderá fienr subordinada a outros motivos, como o demonstraram à snciednde os vários movimentos de resistência nos países oeu|rndos da Europa.

Infere-se daí, portanto, que a Geografia Política jamais ])ode tornar-se uma ciência exata, e seria êrro supor que os seus problemas são tão suscetíveis de solução como os das ciências “puras”. Não obstante, deduções válidas podem ser feitas pelo estudioso objetivo que deseja utilizar as técnicas de observação, registro e análise que se tomaram caracterís­ticas dos estudos geográficos modernos. Isso constitui a exp>ectativa de um alto padrão, mas qualquer desvio da atitude objetiva quase certamente levará a êrro e confusão. Tal armadilha inevitàvelmente aguardava os expoentes da “Geopolitik” na Alemanha, Itália e Japão de antes da guerra.

A objetividade deve ser o fanal do geógrafo político. Não há um caminho fácil para a solução dos problemas do Estado, nem no âmbito da sua estrutura política interna nem nas relações interestataís. Realmente, o enunciado de tais

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problemas muitas vêzes constitui tarefa difícil, especialmente quando o emprego do têrmo “problemas” sugere que há soluções. O Professor Azcárate, com seu conhecimento por­menorizado e experiência pessoal de assuntos internacionais, frisa bem êsse ponto. “Como se o ‘problema’ das minorias (ou qualquer problema de natureza política ou social) fôsse tão suscetível de solução como os de Física e Matemática”, * escreve êle. Modos de vida, formas de pensamento, adap­tações a condições físicas, são o resultado de experimento, de erros e tentativas, e podem ser apreciados com exatidão sòmente quando considerados objetivamente e com despren­dimento. Embora não necessariamente permanentes nem imutáveis, sua existência deve ser reconhecida.

Outrossim, as sociedades políticas exigem o direito de formular e operar seus próprios sistemas, contanto que não ponham em perigo a sobrevivência de outras sociedades. Êsse grau de tolerância deve preceder qualquer esforço para integrar os sistemas políticos, diversos e díspares, do mundo; constitui requisito essencial que é, com demasiada freqüên­cia, desprezado, e em grau jamais tão intenso do que pelos crentes na “Geopolitik”, que atingiu seu zênite na Alemanha entre as duas grandes guerras. Cometeram o êrro fatal de subordinar os meios aos fins da hegemonia alemã. Sua pers­pectiva e literatura eram inteiramente subjetivas e represen­taram uma prostituição dos métodos e resultados da Geo­grafia Política. Isso foi ainda mais funesto pelo fato de mui­tos professores universitários e pesquisadores alemães terem devotado grande parcela de tempo e energia à tarefa de descobrirem provas em apoio das falsas doutrinas nazistas.

É de esperar que êsses mitos destituídos de base tenham sido destruídos, porém a “Geopolitik”, na tentativa de em­prestar um colorido científico a teorias espúrias, prestou um desserviço ao pensamento político-geográfico, o que ainda é mais de lamentar por ter sido um alemão, Ratzel, o primeiro entre os escritores modernos a estudar a Geografia Política

2 P . de Azcárate, L eague o f Nations and National Minorlties, Washington, 1945, p. VII.

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em normas científicas. “C'est Ratzel qui, le premier, comprit la complexité des conditions d’existence e de fonctionnement des Êtats et qui sut donner à leur étude le caractère d ’une Science", escreveu o Profesor Demangeon. “ Êsse eminente geógrafo francês não tem dúvidas quanto aos objetivos da “GeopoUtik”.

Nous devons constater que la géopolitique alleman- de renonce délibérément à tout esprit scientifique. Depuis Ratzel, elle n’a pas progressé; elle a devié sur le terrain des controverses etí des haines nationcães. II fut un temps ou tous les géographes d’Europe écoutaient ce que leur venait d ’Allemagne comme le voix même de la Science. Ce temps est revolu, s’il est démontré qui désormais la vérité varie selon les pa­tries. .. la géopolitique est um ‘coup monté’, une ma­chine de guerre. Si elle veut compter parmi les Sci­ences, il est temps qu‘elle revienne à la géographie po- litique. *

Tal acusação rigorosa é de justificar-se. Seu valor re­side no fato de ser uma advertência a todos os geógrafos políticos a fim de que andem cautelosamente ao examinarem as relações dos Estados.

Ainda não está claro até que ponto as pesquisas e os escritos geopolíticos de Haushofer® e seus associados influí­ram nos recentes esforços alemães para estabelecer uma nova ordem mundial, mas não há dúvida de que há uma relação estreita entre a “Geopolitik” e o pensamento e planejamento políticos na Alemanha de pré-guerra. Boa parcela da lite­ratura publicada encerra suficiente material concreto, com

3 A. Demangeon, “Géographie politique”, Annals d e G éographie, Tomo X L I, 1932, p. 23.

í Ibid., p. 31.5 V er G erm án Strategy of W orld Conquest, por D. Whittlesey,

Nova York, 1942, quanto a uma relação de escritos alemães sôbre Geopolítica. Para quem não sabe ler alemão, êste livro encerra valiosa coletânea de citações, traduzidas, de Haushofer e seus co­legas.

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freqüência ilustrado com mapas e diagramas impressionantes, para proporcionar ao leitor uma impressão de veracidade e plausibilidade muitas vêzes incorreta. Mas o êrro básico de tôda a teoria da ‘Geopolitik’ parece residir na interpretação incorreta do fator tempo. Todos os Estados, bem como a ordem política mundial, são os resultados da evolução histó­rica. Numa medida variável, representam uma herança do passado e, pelo menos em parte, se acham arraigados no passado.

Não quer isso dizer que se deva atribuir demasiada ênfase às realizações passadas. Muitas vêzes, e especialmente no caso dos Estados europeus, “demasiada história é recor­dada”, sendo que os esforços no sentido de reviver a grandeza e a glória de uma época mais recuada levaram a fracassos funestos, como o provam muito bem os últimos aconteci­mentos na Itália.

Mais uma vez, a história muito relembrada leva a uma rigidez de perspectiva, estimulando a má vontade de modi­ficar as formas e limites dos Estados com resultante sujeição a atritos e choques. Compreendendo e apreciando a conti­nuidade do desenvolvimento das unidades políticas, sob qual­quer forma que possam assumir, é possível apreender o fato de que qualquer nôvo sistema deve ser enxertado num tronco preexistente. Não pode haver, absolutamente, um ponto de partida inteiramente nôvo nesses assuntos. Qualquer ten­tativa de impor uma nova ordem, independente de condições pretéritas e atuais, implica uma interpretação errôinea de eventos históricos bem como a impossibilidade de compre­ender padrões e relações históricos. Os alemães não só jul­garam mal a sincronização da sua tentativa de conquistar o mundo como avaliaram erróneamente as fôrças de coesão e resistência que para êles provaram ser altamente bem suce­didas. A subjetividade dêles, mais fortes, porém mais cegas, do que o sacro egoímio de Mussolini, impediu-os de desen­volver um ponto de vista equilibrado sôbre suas próprias condições e das de outros Estados, parecendo ter-lhes faltado um senso de perspectiva no tempo e no espaço.

A evolução das formas existentes de Estados e de rela­ções entre os Estados constitui, adequadamente, a esfera da

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Geografía Histórica. Os estudos de Geografia Política in- teressam-se, primordialmente, pelas condições atuais, porém, em vista da importância dos fatos passados em modificar o que hoje existe, verifica-se, inevitavelmente, uma superpo­sição parcial dos dois campos de investigação. Não se pode proceder a urna análise satisfatória das relações internas e externas dos Estados independentemente do conhecimento das condições prévias. Não se pode traçar uma linha divi­sória nítida entre a Geografia Histórica e Política. Ao passo que a primeira trata das relações entre povos e ambientes em vários estádios no passado, a segunda preocupa-se prin­cipalmente com aquelas condições dos nossos dias que po­dem ser consideradas como uma fase na evolução dinâmica dos Estados. Seu principal objetivo é a análise das relações entre os Estados e as adaptações internas às condições am­bientes. Não começa por formular ou controlar as políticas dos Estados ou as relações entre êles, mas os resultados al­cançados pelos estudos político-geográficos, quando toma­dos em conjunto com os resultados de outros setores de in­vestigação, dificilmente podem ser desprezados pelos esta­distas. Embora procurando fomentar a compreensão das fôrças e dos sistemas políticos, prestando sua própria contri­buição característica, oriunda do seu próprio ponto de vista restritivo, não tenta confundir os meios com os fins sob um manto de slogans que pouco ou nenhum fundamento têm nos fatos.

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II

A EVOLUÇÃO DOS ESTADOS

O s Dois E M E io bilhões de habitantes da Terra vivem em grande número de Estados, sendo que mais de setenta déstes são mais ou menos independentes, mas variam amplamente em forma, área, população e sistema de Govêmo. Todos êsses Estados, apesar da sua diversidade, são iguais sob um aspecto: fundamentam-se na necessidade de organização po­lítica de algum tipo ou de outro. Em conseqüência, o Es­tado representa os esforços do seu povo para organizar as suas atividades, sendo que a expressão dessas tentativas no sentido da organização é vista na formulação e aplicação de regulamentos ou leis via de regra codificadas sob alguma forma constitucional. A característica essencial de tais sis­temas de leis é que elas são, pelo menos em teoria, formu­ladas pela comunidade como um todo, funcionando através dos ramos legislativo, executivo e judiciário, sendo conside­radas superiores aos regulamentos desenvolvidos por tôdas as outras associações dentro do Estado.

Os processos reais da formulação e execução das leis constituem o campo de estudo de peritos legais e não podem ocupar nenhum lugar aqui, porém o fato importante para o geógrafo político é que as atividades do povo num Estado se acham condicionadas pelas relações que existem entre o milieu físico ou geográfico e os seus habitantes. Segue-se, portanto, que o Estado não consiste apenas no território, nem no povo que nêle vive, sendo uma organização muito mais

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complexa em que o territorio, o povo e suas inter-relações estão indissolúvelmente soldados para formar urna entidade que possui uma individualidade, um caráter, que a distingue de todos os outros Estados.

A prova visível dessa unidade política é demonstrada no grau de consentimento comum na aceitação das leis de­senvolvidas pelas entidades governamentais do Estado; onde grandes setores da comunidade se recusam a aceitar o sis­tema de Govêrno que funciona através do código de leis, ai predomina a anarquia. Quando um Estado é organizado em desafio às relações entre o povo e seu ambiente, não pode haver estabilidade política. O único motivo válido para a existência de um Estado é que éle deve facilitar o funciona­mento harmonioso dessas relações. O Estado não pode, por­tanto, ser um fim em si mesmo — pode ser apenas um meio para um fim e, como tal, deve estar sujeito a modifi­car-se com crescente conhecimento e crescente poderio do elemento humano sôbre o físico.

Encarado por êsse ângulo, o Estado é, em grande parte, uma criação artificial até o ponto em que representa os es­forços dos seus habitantes para desenvolver uma estrutura em cujo âmbito suas atividades, tanto internas como externas, podem ser organizadas e regulamentadas a fim de acarretar os máximos benefícios para a comunidade. É uma entidade política, nitidamente definida, mesmo se arbitràriamente, e coincidente com uma área de território. Raramente, se é que isso ocorre alguma vez, é a área ou espaço identificável com uma região geográfica, de modo que à parte da superfície da Terra ocupada por um Estado geralmente falta homo­geneidade em estrutura geológica, fisiografía ou condições climáticas. Provàvelmente, isso constitui uma vantagem para o Estado, porque a variedade dos tipos de rochas, de formas de terras e do clima dá margem a uma diversidade de am­bientes locais e regionais que poderão resultar em maior riqueza de recursos materiais do que seria encontrada numa região monótonamente uniforme. Contanto que as diferen­ciações e os recursos concomitantes sejam reconhecidos e proporcionados na organização política, podem ser integra­dos de tal forma que os melhores interêsses dos habitantes

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sejam servidos. Não quer isso dizer que um Estado deva ocupar uma área contínua de terra. Uma área territorial claramente reconhecida e definida deve constituir a sua base, mas poderá consistir em áreas divididas pelas águas, tais como arquipélagos, e, visto que o mar não mais atua como grande barreira à movimentação humana, pode ser composto de áreas mais amplamente separadas como as outrora encontradas na República de Veneza ou na moderna União Francesa. En­quanto alguns Estados ocupam pequenas áreas compactas de terra, outros se acham espalhados por grandes partes da su­perfície terrestre.

Em suma, não há critérios físicos rígidos para a configura­ção e caráter geográfico dos Estados. O único padrão de julgamento da maturidade de um Estado é a medida em que a sua soberania, através da sua capacidade de legislar e fazer cumprir as leis, é de boa vontade aceita pelo seu elemento humano. Pode argumentar-se que isso não deve constituir preocupação do geógrafo, mas visto que a estabilidade, o fun­cionamento harmonioso e a bem sucedida exploração dos re­cursos ambientes dependem, em grande parte, da aceitação do “império da lei”, depreende-se que as adaptações humanas às condições ambientes estão, pelo menos, associadas intima­mente à organização política do Estado, e se se quiser que a Geografia seja algo mais que a Fisiografía, o expositor da primeira deve tomar conhecimento dêsse aspecto dos negócios humanos. ®

Do que já ficou dito, toma-se evidente que uma classi­ficação física rígida dos Estados é impossível em virtude da grande variedade resultante, pelo menos em parte, da diver­sidade da superfície terrestre. Além disso, a extensão terri­torial dos Estados, com modificações afins de limites e re-

3 É interessante notar, neste sentido, que o Professor van Val- kenburg inicia seu capitulo sôbre “Govêrno” declarando que, “O Autor está plenamente cônscio de que um capítulo sôbre Govêrno não se harmoniza com um estudo geográfico. Não obstante, o tipo de Govêrno de um país constitui fator definido numa avaliação polí­tico-geográfica, pois afeta grandemente as relações de um Estado com outros”. — S. van Valkenburg, Elem ents of Political Geogra- phy, Nova York, 1939, p. 302.

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cursos materiais, flutua. A configuração contemporânea dos Estados é diferente da do passado e será diversa no futuro. Essa é uma resposta àqueles que postulam um determinis­mo estreito. Se os Estados fôssem simples e unicamente o resultado de condições puramente físicas, então o âmbito do esforço humano seria intoleràvelmente limitado e o homem ficaria na realidade limitado e confinado.

Um ponto de vista mais razoável é o do Estado como o resultado de longo processo evolucionário, em que a coorde­nação das atividades humanas com o plano físico toma-se mais íntima, mediante a experiência crescente, ela própria agregada à herança social. Negar o valor e o objetivo da fôrça diretriz da humanidade, por mais ineficaz que às vêzes pareça ser, é ignorar os fatos da história. Eis por que um estudo dos Estados, como hoje existem no mundo, deve levar em conta o que aconteceu no passado, mas pode ser proveitoso apenas quando considerado como um enunciado das providências atuais que, por sua vez, darão lugar a outras configurações no futuro. Expressa de outra forma, a ordem mundial atual é o resultado de longas eras de experimento humano, que de nenhuma forma tem sido sempre consciente­mente projetado no sentido de um objetivo uniforme. Talvez uma característica predominante da nossa época seja a cres­cente percepção da existência de uma ordem mundial sofrí­vel, e uma crença, que se avoluma, de que essa ordem po­derá ser melhorada em benefício da humanidade como um todo.

Desde as eras mais primitivas da história humana o homem tem sido impelido a procurar a companhia e a socie­dade dos seus semelhantes em alguma espécie de grupo. Os antropólogos sociais têm ainda que chegar a pleno acordo quanto às economias dessas sociedades primevas, mas o há­bito gregário do homem foi desenvolvido da primeira, pro- vàvelmente como o resultado de uma combinação do instinto e de características adquiridas. O homem não sòmente acha agradável viver em grupos; êle obtém vantagens materiais da associação com os seus semelhantes. Consegue-se maior segurança, e gradualmente, pela divisão do trabalho, pode-se minorar os fardos econômicos da vida.

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B S C S H I U FK G S

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE CW 5 0 T_ — ------------ A • r ^ r - / ^ » r - K i / ^ i A C' c t n i n I A í Q hZ U i I R Í A M i H A n r

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Por outro lado, a associação em grupos pÕe em destaque individuos que revelam capacidade de liderança e procuram impor sua vontade a seus associados, tendendo assim a unificar a comunidade. A bravura adquirida em combate ou como resultado de maior habilidade na direção dos ne­gócios proporciona maior poder ao líder que pode, portanto, reunir seus subordinados pelo cumprimento de regulamentos para a conduta da vida e também pela sua inspiração pes­soal própria. A organização grupai, por conseguinte, é desen­volvida num nível primitivo, porém é de caráter mais com­plexo do que geralmente se admite, como o indicam as investigações sôbre a conduta dos povos primitivos existentes.

Desde êsses primeiros inícios da vida social organizada, baseada em grande parte em contatos pessoais, gradualmente evoluíram as civilizações primitivas, assistidas pelo cres­cimento vegetativo da população combinado com a crescente habilidade no atendimento das necessidades materiais da vida, porém muitas vêzes como o resultado do poderio militar su­perior que tornou possível a imposição de contróle por um grupo numéricamente inferior sôbre um agregado maior de povos. Com o desenvolvimento da agricultura sedentá­ria e suas indústrias e comércio internos afins, a terra habitada tomou-se mais produtiva, as sociedades mais

. intimamente unidas aos territórios com os quais se identifica­ram, e uma tendência à aglomeração por parte dos povos deu lugar a um crescimento urbano primitivo, mais parti­cularmente quando a circulação de bens e pessoas foi foca­lizada em pontos escolhidos que possuíam nodalidade.

Dessa forma, desenvolveram-se as primeiras Cidades-Es- tados, e a conquista militar pôde então acarretar o amálgama, como no caso da Grécia antiga, e, posteriormente, o estabe­lecimento dos chamados Impérios. Uma vez implementada com êxito a idéia de expansão territorial, seu corolário de organização interna exigiu atenção até o ponto em que o território recém-adquirido não pôde ser mantido unido, senão mediante a criação de linhas de comunicação, nem pôde ser defendido contra ataques externos ou desintegração interna sem essas artérias vitais.

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Nessa altura é possível discernir os primeiros grandes Estados políticos com seus elementos tríplices: povo, terri­tório e organização, e melhor exemplificados no caso do Império Romano. Então, como agora, o nível de organização, isto é, a habilidade, iniciativa e engenhosidade de adapta­ções humanas conjuntas ao ambiente físico, foi o fator dife- renciador entre os Estados. Povo e território de há muito existiam, mas o fator decisivo no êxito ou fracasso dos Antigos Impérios foi a parte desempenhada pelos seus habitantes no organizar as relações tanto entre muitos como entre dois de cada um dêles, e o ambiente físico em que viviam. É digno de nota, nesse sentido, que os gregos antigos foram os pri­meiros a formular teorias do Estado e que a Ciência Política, assim como a Geografia Política, foram as primeiras a receber atenção séria dos seus sábios.

A Era do Obscurantismo foi negra justamente porque o sistema estabelecido de organização política, no tocante à Europa, aluiu sob o impacto de uma série de invasões poli­ticamente desorganizadas por povos relativamente atrasados. Contudo, constituíram apenas um prelúdio a uma fase ulte­rior da evolução dos Estados e, como tal, mostraram lampejos dos esforços para alcançar organizações estatais que alguns historiadores consideram como os alicerces de desenvolvi­mentos posteriores. No decorrer de todo aquêle longo perío­do, as sociedades continuaram a existir, mas se ressentiam de qualquer contróle centralizado porque os sistemas de co­municação haviam entrado em colapso. Inevitavelmente, laços pessoais estreitos dominaram as relações humanas, con­forme é exemplificado no Sistema Feudal, em grande parte porque os contatos com uma autoridade central ou era im­possível ou de uma lentidão impraticável. Por meio de longa série de conflitos durante a Idade Média, as relações pessoais com os líderes locais foram substituídas por liga­ções a¡ dinastias, freqüentemente reforçadas por doutrinas tais como os direitos divinos dos reis e assim por diante.

No decurso de ambas essas Eras, o princípio de lideran­ça afigura-se ter sido universalmente aceito, e com êle o conceito do líder como a fonte da lei e do poder. A história

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política da Idade Moderna é, em grande parte, a historia da luta bem sucedida em dar combate a essa onicompeténcia partindo de um individuo ou de um pequeno grupo de privi­legiados e, através do crescimento do Govêmo Parlamentar e da extensão da franquia, em conceder-se autogovérno. O processo de modo algum está completo, sendo muitos os meios pelos quais diferentes sociedades ainda vêm lutando para erigir organizações políticas satisfatórias. Seria impru­dente encarar o Estado moderno como tendo atingido a per­feição, ou pensar nêle como havendo alcançado um estádio de finalidade, embora seja verdade que, sob a sua égide, o homem está mais livre de restrições inibidoras do ambiente físico do que jamais estêve no passado.

Com êsse bosquejo da evolução do Estado moderno, deve-se agora voltar a atenção para algumas de suas carac­terísticas relevantes. Acima de tudo o mais, o Estado mo­derno é um Estado soberano, isto é, exerce domínio supremo sôbre o território e o povo (com certas ressalvas secundárias) dentro dos seus limites, e nesse sentido não tem que dar satisfações a qualquer outra autoridade. Ê, portanto, intei­ramente independente politicamente. Para o geógrafo polí­tico, a soberania do Estado é interessante, principalmente em virtude dos meios jielos quais o poder soberano é em­pregado para dirigir e controlar tanto as relações internas como externas dos seus habitantes. É evidente que a influên­cia de um Estado, pelo menos nos assuntos externos, de­pende do poder de que dispõe para seu domínio absoluto. O fato de a classificação mais comum para os Estados ser a de Grandes Potências e Pequenas Potências é a prova da importância esmagadora do poder, tanto militar como eco­nômico, embora dificilmente se possam dissociar os dqis nestes dias de industrialismo altamente organizado.

Não existe nenhuma linha divisória nítida entre as duas espécies de Potências, e os últimos acontecimentos têm de­monstrado que uma Grande Potência pode ser reduzida a uma posição inferior pelos efeitos, por exemplo, da guerra. Não se pode afirmar que o poder de qualquer Estado re­pouse em qualquer elemento material, mas antes no grau

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de organização de todos os recursos disponíveis, tanto mate­riais como espirituais. Dessa forma a Rússia, empobrecida e desamparada como resultado da sua participação na Pri­meira Grande Guerra, temporariamente deixou de ser con­siderada Grande Potência. Evidentemente, urna grande área apenas não constitui base suficiente para reivindicar-se a condição de Grande Potência, mas quando os recursos de um grande Estado são mobilizados e organizados, então pode éle com justiça pleitear classificação entre as principais Po­tências. Quando uma grande área se combina com grandes recursos, e particularmente quando tal território bem dotado é densamente povoado de pessoas dinâmicas com elevada taxa reprodutiva líquida, então o Estado que controla êsse conjunto é realmente uma Grande Potência.

Não obstante, é importante ressaltar o fato de que a grandeza do Estado depende, em última análise, do grau de organização em todos os setores de atividade que lhe di­zem respeito. Uma vez que essa organização se desfaça, qual­quer que seja a causa, então o Estado inevitàvelmente perde importância. Por conseguinte, o poder estatal é primordial­mente uma função de organização. Isso é o que diferencia o Estado moderno de todos os seus antecessores. Eis por que a vontade e a capacidade de organizar são fundamentais em todos os Estados dignos dêsse nome.

Tomar-se-á evidente, contudo, que nenhuma parcela de capacidade de organização será valiosa na ausência de recur­sos, sob a forma de riqueza material e humana, de organizar. Os Pequenos Estados defrontam-se, portanto, com uma escolha alternativa. Podem contentar-se em continuarem pequenos e relativamente desprovidos de fôrça, ou devem expandir-se. As Grandes Potências atingiram tôdas a sua grandeza mediante a escolha da segunda alternativa numa ou noutra época, isto é, tôdas passaram, ou estão tentando passar agora, por uma fase de expansionismo a fim de adqui­rirem território maior ou maiores recursos com os quais organizar seu poderio. Os métodos empregados têm variado. No passado, a fórmula mais simples e mais amplamente utilizada era anexar território adjacente ou mais distante, mais particularmente em áreas onde as necessidades espe­

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ciais do Estado podiam ser satisfeitas, quer no suprimento de materiais, quer no estabelecimento de mercados. En­contram-se exemplos típicos no crescimento do Império Bri­tânico, na expansão dos Estados Unidos na marcha para o Oeste e na incorporação do que agora se chama a Ásia So­viética na atual U.R.S.S .

Tais formas de expansionismo foram possíveis graças à relativa falta de resistência nas terras recém-adquiridas e, note-se, não havia resistência em grande parte devido a uma organização deficiente. Onde se encontrava resistência, os Estados expansionistas empregavam outros dispositivos, não sendo a conquista e a ocupação militar os menos significa­tivos, com freqüência obtendo-se concessões de comércio. Há um limite a êsse tipo de expansionismo que parece ter sido alcançado. Os “espaços vazios” do mundo foram ocupa­dos no sentido de que haviam sido incorporados ao território controlado pelos Estados e, daí por diante, a expansão terri­torial somente pode ser alcançada por meio de guerras.

Contra isso, contudo, deve-se admitir que existe ainda uma espécie de imperialismo econômico pelo qual os Esta­dos procuram adquirir o controle de materiais e mercados por manipulações de sistemas monetários e diversos outros meios. O atual resultado de tôdas essas tendências e esfor­ços expansionistas é que um pequeno número de Estados possui a classificação, influência e prestígio de Grandes Po­tências, enquanto o restante está enquadrado numa ordem de importância mundial decrescente, mas, grandes e peque­nos, cada um reivindica ser soberano e, portanto, legalmente igual, ao passo que qualquer abordagem realística ao estudo das suas relações deve levar em conta sua desigualdade em poder e riqueza.

O desenvolvimento do Estado na sua forma moderna está intimamente associado à evolução do nacionalismo, tanto assim que freqüentemente “Estado” e “nação” são emprega­dos como têrmos intercambiáveis, muitas vêzes conducentes a confusão de pensamento e significado. Como já ficou de­monstrado, o Estado compõe-se de território e povo imidos pela organização numa base política. A condição de Estado

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sòmente é alcançada quando os habitantes de um território se acham reunidos sob um só Governo. A nacionalidade, por outro lado, pode existir, e de fato existe, independente­mente de uma forma de organização política, podendo ir além dos limites territoriais de um dado Estado. Enquanto a característica diferenciadora dos membros de um Estado é que devem obediência a um poder soberano, os membros de uma nação estão unidos por um sentimento de ‘pertence­rem juntos’, embora possam estar separados por fronteiras políticas. Em suma, o Estado é uma comunidade política, ao passo que a nação se caracteriza por laços culturais, com mais freqüência expressos pela posse de uma língua comum.

Onde há identidade de nação e Estado, diz-se aí haver o Estado Nacional, mas um rápido exame das condições existentes mostrará que os Estados multinacionais de forma alguma são incomuns. Mesmo em pequenos territórios como a Grã-Bretanha e a Bélgica, se não há nações distintas, en­contram-se elementos nacionais característicos enquanto em Estados maiores, como por exemplo a U . R . S . S ., pode haver muitas nacionalidades. Feliz o Estado, portanto, que não tem “problemas de nacionalidade”, porém ainda mais afor­tunado é o Estado que, em virtude do sábio funcionamento do seu sistema político, superou com êxito as tendências de- sagregadoras de divergências nacionais que em certa época existiram no âmbito dos seus atuais limites.

O Estado territorial e onicompetente pode ser o rebento das lutas religiosas do século XVI, como argumenta o Pro­fessor Laski, ’’ mas o seu caráter dos dias atuais é em grande medida o resultado de esforços humanos conscientes para estabelecer entidades políticas. As nações, por outro lado, se desenvolvem a partir de longos períodos de crescimento vegetativo durante os quais os liames dos costumes, da língua e da religião são forjados. O grupo nacional por certo está ligado a um território mais ou menos definido, mas que não possui limites nítidos, visto que a movimentação humana foi irrestrita até o estabelecimento dos limites do Estado mo-

’’ H. J . Laski, A G ram m ar of Politics, Londres, 1925, p. 45.

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derno. Uma vez que se aceitou o conceito do Estado todo- -poderoso, surgiu a necessidade de reconciliar o Estado e a nação e, em geral, áreas ocupadas por pessoas de uma na­cionalidade tornaram-se co-extensivas a territórios de Estados. Em muitos casos, contudo, o povo que se considerava per­tencente a uma nação não ocupou áreas contínuas. Quando se formaram os Estados, houve com freqüência “estranhos” de nacionalidade que não puderam fácilmente ser incluídos em seu Estado nacional sem flagrante injustiça aos outros nacionais entre os quais viviam. Dificuldades semelhantes, porém mais complexas, surgiram em regiões de nacionalida­des mistas, onde o estabelecimento de fronteiras políticas inevitàvelmente enfureceu os sentimentos nacionais, dando lugar ao descontentamento e atrito que constituem as bases dos “Problemas das Minorias”.

Poucos Estados são inteiramente uninacionais e, nessa medida, a expressão Estado Nacional é uma designação in­correta, mas visto considerar-se o nacionalismo um fator po­deroso nos processos unificadores do Estado, tem sido deli­beradamente estimulado em muitos casos, até a ponto de uma tentativa de imposição da chamada uniformidade nacional. Mas os hábitos de pensamento e língua, costumes e credos, por serem resultantes de muitas gerações de desenvolvimento, não são fácilmente erradicados, quer pelo emprêgo da fôrça, quer por propaganda intensiva.

Não há nada de inerentemente errado no nacionalismo. Como diz o Professor Chadwick; *

O nacionalismo é sem dúvida uma fôrça vivificante e inspiradora. Contribui para a unidade nacional e — quando genuíno e não apenas um manto para ambições políticas — atua como um freio sôbre os instintos egoís­tas dos indivíduos, classes e profissões. O seu lado mau surge sòmente quando se acha ligado à agressão contra Estados vizinhos, ou à coerção de elementos estranhos ou dissidentes no âmbito nacional.

8 H. M. Chadwick, T he Naticnalities of Europe and the Growth of National Ideologies, Cambridge, 1945, p. 7.

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, ^ - u —

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Se as configurações mundiais de Estados e nações fôssem totalmente idênticas, haveria menor número de problemas na administração dos negocios mundiais, mas, a não ser grandes transferências de populações em tal escala que os Estados e nações existentes se tomassem identificados por tóda parte, é possível reduzir pelo menos algumas das difi­culdades de urna ou duas formas. Na Europa, onde o pro­blema das nacionalidades é mais agudo, fizeram-se tentativas no período de entreguerras para fortalecer o principio de autodeterminação, pelo qual novos Estados eram criados à base de nacionalidade.

Dessa forma a Tcheco-Eslováquia e a Iugoslávia vieram à existência, a Polônia foi revivida, procedendo-se a grande número de ajustamentos entre territórios e áreas de Estados em grande parte habitados por pessoas de nacionalidade comum. Grande dose de cuidadosa consideração e esfôrço foi introduzida nas novas providências. Somente transferências territoriais acarretaram enorme volume de investigação e organização, como o demonstrou Miss Sophia Saucerman. “ Em particular, a Zona Média da Europa foi completamente reorganizada, mas ainda ficaram algumas minorias nacionais. O resultado líquido foi um aumento do número de Estados politicamente independentes, nem todos com número sufi­ciente de habitantes dotados de adequada sabedoria e expe­riência políticas para conduzir seus negócios externos ou internos satisfatoriamente. No final das contas, os novos Estados mostraram-se demasiadamente fracos para suportar a agressão de vizinhos mais poderosos e, por algum tempo, perderam sua independência.

Além disso, afigura-se que, tendo recuperado sua condi­ção política anterior, ainda lhes faltam os recursos que lhes permitiriam sobreviver sem a assistência de uma ou mais Grandes Potências. Isso poderá acarretar violações dos seus direitos soberanos. De modo geral, parece que a multipli-

» Saucerman, International Transfers of Territory in Europe, Washington, 1937.

10 O Professor E . H. C arr vai além quando afirm a; "O pe­queno país pode sobreviver apenas quando procura ligação perm a-

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cação de Estados, quer sob o fundamento de nacionalidade, quer de quaisquer outros interesses comuns, é imprudente, mormente em um continente como a Europa, onde o espaço não é ilimitado, e onde os recursos materiais podem ser melhor utilizados sob a égide de um número menor de organizações políticas. Um meio mais satisfatório de aliviar as dificuldades das nacionalidades pode ser encontrado no agrupá-las como Estados com suficientes recursos econômi­cos, mas dentro dos quais cada nacionalidade possa manter considerável grau de, no mínimo, uma autonomia cultural. Êsse método tem sido aplicado na U.R.S .S . com êxito con­siderável, até onde se possa julgar, embora seja apenas justo frisar que os antecedentes dos problemas de nacionalidade naquele Estado são diferentes dos da Europa central.

Os expoentes da autodeterminação nacional, mais parti­cularmente nos anos que se seguiram imediatamente ao fim da Primeira Grande Guerra, sem dúvida estavam possuídos de elevados ideais, e pelo menos os que não estavam inti­mamente familiarizados com tais áreas como a Europa cen­tral e oriental mostraram considerável grau de altruísmo. Mas parecem ter desprezado o fato de que os chamados direitos de nacionalidade implicam obrigações no seu rastro. Em parte alguma isso é mais evidente do que no campo dos assuntos econômicos. Ao passo que o sinal de legitimidade do Estado político seja seu poder soberano e conseqüente independência, e a experiência demonstre que qualquer vio­lação dessa soberania encontrará resistência, seja aberta, seja

nente com uma Grande Potência”. Cf. Conditions of P eace, Lon­dres, 1944, p. 55.

11 Sôbre êsse ponto, o Professor Azcárate, que tem tido ampla experiência prática na investigação de problemas das minorias, es­creve: “A crise da fórmula clássica, “Tôda nação um Estado e todo Estado uma nação”, é agora perceptível; há indicações mul- tifárias de que a Europa se movimenta no sentido do estabeleci­mento de novas formas políticas baseadas em concentrações (Esta­dos) políticas mais amplas, no âmbito das quais as “nações” encon­trarão condições adequadas para a preservação e desenvolvimento dos valores nacionais.” Cf. Leag'ue of Nations and National Mino- rities, Washington, 1945, p. ?.. viii.

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clandestina, o mundo como um todo vem-se tornando cada vez mais interdependente no sentido económico. Aqui reside um dilema que encerra as raízes de muitos obstáculos à consecução da paz e prosperidade mundiais.

Em virtude da sua completa autonomia, o Estado tem o direito, nas condições atuais, de formular e executar sua própria política econômica, não havendo nenhum método conhecido, nem mesmo o da guerra, para coagi-lo a cooperar com outros Estados em assuntos econômicos. Contudo, tal cooperação é uma das necessidades relevantes do mundo no atual momento e provàvelmente continuará assim por mui­tos anos a fio.

Mais uma vez pode-se argumentar que isso não é do interesse do geógrafo político, devendo-se, contudo, reco­nhecer essa posição se se quiser alcançar qualquer apreciação racional das relações entre os Estados. A necessidade é ainda mais urgente em vista do desenvolvimento do que se de­nomina nacionalismo econômico, que visa tornar o Estado tão independente económicamente como o é politicamente. Levado a limites extremos, seu objetivo é a autarquia eco­nômica ou auto-suficiência, que só pode ser plenamente atingida divorciando-se o Estado de todos os recursos ex­ternos.

Visto que nenhuma unidade política encerra materiais suficientes de todos os ingredientes necessários de bem-estar material para o seu povo, e considerando que os métodos sintéticos de produção são, via de regra, mais custosos do que poderia ser denominado métodos “naturais”, o naciona­lismo econômico total tende a resultar na redução dos pa­drões de vida. É, portanto, um sistema de retrocesso, mais cedo ou mais tarde vindo a exercer efeito adverso sôbre os habitantes do suposto Estado auto-suficiente, mas também agindo como freio sôbre o pleno desenvolvimento do co­mércio mundial. Alguma medida da conveniência, se não da absoluta necessidade, de promover a cooperação econô­mica entre os Estados e, por implicação, a necessidade de abandonar a autarquia econômica, é proporcionada pela cria­ção recente do Conselho Econômico e Social da ONU, sendo

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talvez útil recordar que o quarto “princípio” da Carta do Atlântico é:

Êles (o Presidente Roosevelt e o Senhor Winston Churchül) envidarão esforços, com o devido respeito às suas obrigações existentes, para favorecer a fruição, por todos os Estados, grandes ou pequenos, vitoriosos ou vencidos, de acesso, em têrmos iguais, ao comércio e às matérias-primas do mundo necessários à sua prosperida­de econômica.

Nitidamente, a evolução dos Estados atingiu um ponto crítico, e essa crise está, em grau não pequeno, associada ao rápido desenvolvimento do nacionalismo em tôdas as suas formas, porém mais particularmente desde os meados do século XIX. Com igual clareza, êsse rápido crescimento por sua vez tem-se relacionado com o rápido desenvolvimento e difusão da industrialização, não porque todos os Estados sejam altamente industrializados, mas porque o desenvolvi­mento das comunidades inustriais, geralmente sob a forma de elevadas concentrações demográficas, tem fomentado o comércio e as comunicações mundiais a tal ponto que até os Estados essencialmente agrícolas sentem as repercussões da luta por materiais e mercados entre os países industriais competidores. Não há disfarçar o fato de que o conflito está entre a independência política dos Estados, por um lado, e sua interdependência política, por outro. O problema pode ser enunciado na sua forma mais simples como uma pergunta. Pode o Estado soberano, independentemente do seu tamanho e poderio, partilhar plenamente dos recursos mundiais, melhorando assim o bem-estar material do seu povo, e ainda conservar sua independência política? O na­cionalismo econômico por certo não oferece nenhuma res­posta a esta pergunta importantíssima, e parece que o sistema internacional, baseado na diplomacia, tratados e acôrdos, não encontrou um meio de reconciliar as dificuldades de produ­ção, consumo e distribuição numa escala mundial como o indicavam os acontecimentos do período de entreguerras.

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o que se necessita é de um plano universalmente aceito para a organização da produção e consumo, mas tal esquema impliea algum sacrificio de soberania por parte de cada e todo Estado, sendo que as provas disponíveis sugerem que êsse é precisamente o curso que a maioria dos Estados ainda não estão dispostos a seguir. Não quer isso dizer que a posição esteja inteiramente perdida. Seria estultície esperar que todos os Estados abandonassem, da noite para o dia, os princípios em que se fundamentaram. Modificações na perspectiva, tanto nos negócios internos como externos do Estado, devem levar tempo, e com razão, se se quiser que conflitos sejam evitados. Contudo, já e.xistem sinais de que os povos do mundo vêm sendo convertidos à necessidade de maior cooperação entre os Estados. A Liga das Nações não foi um fracasso completo. Algumas das suas realizações, mormente no tocante à Organização Internacional do Tra­balho, e talvez de forma menos criadora nas Pendências das Minorias, foram de benefício duradouro e a sua sucessora, a Organização das Nações Unidas, enquanto anteriormente preocupada com os efeitos imediatos da guerra nessa fase, dispõe de consideráveis podêres para tratar dos problemas econômicos e sociais.

O próprio título do agrupamento mais recente sugere que seus patrocinadores estão cônscios da premente neces­sidade de organizar as relações mundiais, e essa ênfase sôbre organização pode constituir feliz augurio para o futuro. Não obstante, parece ainda haver grande ênfase sôbre a soberania dos Estados. As Conversações de Dumbarton Oaks sôbre a Organização Mundial, das quais surgiu a ONU, formularam como o primeiro dos seis princípios que “a Organização se baseia no princípio da igualdade soberana de todos os Es­tados amantes da paz”. Êsse pode ter sido o resultado de um esfôrço no sentido de encontrar um modus vivendi e um reconhecimento das coisas como existem. Como tal, po­derá vir a ser o meio de superar dificuldades imediatas em consonância com a prática internacional aceita, mas parece

12 Cmmd. 6560.

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que um passo avante tornar-se-á necessário antes que urna ordem mundial mais satisfatória possa ser estabelecida. O de que se precisa é de um órgão supranacional que tenha podéres para impor linhas de conduta acertadas em certos casos. A constituição e os poderes de tal autoridade ultra­passam o âmbito da Geografía Política, embora o seu esta­belecimento pudesse exercer influência de tal magnitude sôbre os negócios mundiais que se afigura ser o próximo estágio da maior importância nessa evolução dos Estados aqui analisada em linhas gerais.

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III

GEOGRAFIA POLiTIGA INTERNA

A, s BELAÇÕES internas e externas dos Estados modernos não são, em nenhum sentido rigoroso, capazes de separa­ção. Acham-se por demais entrelaçadas para serem consi­deradas como elementos distintos. O tipo de economia, o grau de organização e a forma de Govêrno desenvolvidos em qualquer Estado por certo afetarão suas relações com os outros, tanto os que se encontram próximos como os mais distantes. Contudo, para fins de análise, é útil examinar as condições político-geográficas do Estado partindo de cada um dos dois aspectos.

Dentro dos seus limites territoriais, cada Estado possui uma base ou ambiente físico, mas não existem dois Estados que sejam idênticos nesse cenário. Em grande parte devido a essas diferenças nas condições físicas internas, as adapta­ções humanas variam de Estado para Estado. O mesmo princípio geral de reação é discemível em tôda parte, porque a humanidade é compelida a conquistar os meios de sobre­vivência utilizando os recursos que o ambiente proporciona, mas uma vez se admita êsse requisito básico de vida e atividade humanas, as formas e detalhes da reação variam amplamente. De igual modo, verifica-se grande diversidade nos níveis de organização alcançados pelos vários Estados, tanto em ambientes comparáveis como em épocas diversas.

Em geral, afigura-se que, quanto mais elevado o nível de organização e de eficiência técnica atingido num Estado,

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tanto menos eficaz se toma a influencia determinística do ambiente físico, mas deve-se admitir que nenhum dos atuais Estados conseguiu eliminar inteiramente os efeitos das condi­ções “naturais”. Isso indica a conveniência de tentar-se urna apreciação dos elementos físicos mais importantes na estra- tura do Estado, com a ressalva de que um conjunto parti­cular de condições físicas necessàriamente não produzirá uma dada reação. As atividades humanas raramente — se é que isso alguma vez ocorre — são previsíveis.

Para muitas pessoas, a Geografia consiste, em grande parte, nas respostas à pergunta “Onde está?”, quer com refe­rência a um Estado, quer a qualquer outra parte da super­fície terrestre. Embora se recusem a aceitar a validade dêsse ponto de vista inadequado, os geógrafos admitirão que o fator de localização no estudo de um Estado é de grande importância, mas também concordarão que o valor da posi­ção se altera com as condições mutáveis em muitas formas. Na sua história bem primitiva, um Estado pode muito bem auferir vantagens do isolamento, particularmente se, durante seu período formativo, estiver cercado de zonas protetoras tais como o mar, ou o deserto ou as florestas. Porém mais cedo ou mais tarde as barreiras circundantes são superadas, estabelecendo-se contato com outras partes do mundo.

Isso pode levar a uma posição perigosa para o Estado em crescimento se êle fôr insuficientemente dotado de recursos para autodefesa, mas leva também ao acesso aos meios para ulterior desenvolvimento. Acrescentam-se novos itens à alimentação do seu povo, materiais previamente não- -obteníveis tornam-se disponíveis às suas novas indústrias, ampliam-se os mercados para as suas mercadorias excedentes e novas idéias e habilidades tomam-se acessíveis aos seus habitantes. De fato, tôda uma gama de vantagens materiais e culturais é posta a serviço de um Estado uma vez seja utilizada sua localização no tocante a outros Estados, e essa gama ampliar-se-á com o número e proximidade dos contatos, bem como com as tendências receptivas e recíprocas do seu povo e dos seus vizinhos. O contato da terra não é necessário para êsse fim, nem, na realidade, uma íntima contigüidade. Uma vez superadas as dificuldades do transporte marítimo,

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podem-se obter tôdas as vantagens de contato imediato, en­quanto se evitam as desvantagens de estar-se próximo demais dos vizinhos.

A melhor ilustração dêsse tipo de localização encontra-se na Grã-Bretanha, onde a insularidade e o fácil acesso ao Con­tinente da Europa têm sido explorados com resultados no- tadamente coroados de êxito. Da Europa, mas não nela, sintetiza êsse aspecto da localização da Grã-Bretanha, e se se afirmar que os canais marítimos não teriam tido qualquer influência protetora sem a Marinha Real, então a resposta é que êsse ramo de defesa da Grã-Bretanha constitui apenas um resultado dos esforços do povo no adaptar suas atividades a essa condição ambiente particular.

Além disso, a localização decide o tipo ou tipos de clima de um Estado. O argumento de que todos os Estados mo­dernos independentes estão situados na chamada Zona Tem­perada, ou que nela se desenvolveram, é comum. Contan­do-se com as provas disponíveis, essas Terras Temperadas, mesmo se às vêzes estiverem longe de ser “temperadas”, pa­recem proporcionar o ambiente climático ideal para o con­junto de atividades humanas que se resume nas formas mais elevadas de organização política.

Muito pouco se sabe atualmente no tocante às relações entre povo e condições climáticas para se ser dogmático sôbre êsse assunto. Deve-se coligir grande cópia de dados científicos dignos de confiança para que se possa expressar qualquer certeza sôbre o caráter exato de condições climá­ticas ideais para o desenvolvimento humano, porém perma­necem os fatos inegáveis de que nenhum Estado importante pode desenvolver-se em áreas de frio permanente excessivo tais como as regiões circumpolares, e que, até agora, nenhum Estado moderno independente encontrou sua localização nas partes da Terra onde temperaturas médias elevadíssimas pre­dominam durante o ano inteiro. A base climática anterior possui o caráter condicionador mais permanente, em que pêse às realizações russas nas áreas árticas da Eurásia, mas eventos políticos recentes nas antigas índias Orientais Ho­landesas e na índia poderão constituir indicadores para uma reorientação de opiniões concernentes à influência retarda-

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dora de temperaturas continuamente elevadas sôbre o desen­volvimento político. O assunto será ventilado com maior riqueza de detalhes posteriormente; já se disse aqui o sufi­ciente para mostrar que o valor de localização de um Estado é fortalecido pelas condições climáticas que urna situação particular acarreta.

A localização de um Estado tem outro resultado que afeta sua Geografia Política intimamente. Na Europa, que encerra mais Estados independentes do que qualquer outra área de tamanho comparável, o aspecto estratégico da loca­lização recebe grande atenção. Ninguém familiarizado com a Alemanha durante os anos que mediaram entre as duas Grandes Guerras negará os efeicos sôbre os assuntos internos daquele país dos temores que se centralizaram nos perigos do “Envolvimento”. Por meio de mapas e diagramas hábil­mente planejados, por discursos inflamados e artigos e livros aparentemente intermináveis, o povo alemão foi persuadido a aquiescer à política de rearmamento do nacional-socialismo, que teve graves resultados para a economía interna do país.

Ademais, o Governo francês estava obcecado com os perigos da localização do seu país face a face com a Alema­nha. Nenhum francês jamais duvidou da necessidade do serviço militar obrigatório — muitos dêles não podiam com­preender por que o recrutamento para o serviço militar não foi pôsto em prática na Grã-Bretanha — tendo a proporção da receita do Estado destinada a fins de defesa constitnído sério entrave ao progresso econômico daquele país.. Ao mesmo tempo, o derrotismo da “mentalidade Maginot.” exer­ceu efeitos perturbadores sôbre tôda a estrutura da vida francesa.

Além disso, a política industrial francesa foi em grande parte modificada pela presença da Alemanha na sua fron­teira leste. Observe-se o crescimento de indústrias afastadas das únicas grandes reservas de carvão do país em Pas de Calais e Le Nord; o desenvolvimento de usinas eletroquí- micas e eletrometalúrgicas nos Alpes franceses, e particular­mente a montagem de centrais geradoras de hidrele- tricidade nos Alpes, Pirenens e Maciço Central. A ex­

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tração de minério de ferro na Normandia, quando as maio­res reservas européias dêsse produto se encontram em Lor- raine, é outro resultado dos temores franceses de agressão alemã. Mesmo a U. R. S . S . , com o seu vasto território e recursos materiais, sente o impacto do fator de localização siòbre a sua organização interna. O exemplo mais espeta­cular de rápido ajustamento a considerações estratégicas pode ser observado no desenvolvimento de unidades industrais em grande escala na Ásia Soviética, isto é, “por trás dos Urais”, afastadas da ameaça de ataque por fontes européias. É difícil ao observador estrangeiro apreciar plenamente a realidade de tais temores, mas encontra-se a evidência disso nas tendências reveladas pelas políticas internas de muitos Estados, dos quais são apresentados aqui alguns exemplos.

Intimamente ligadas ao fator de localização como ele­mento geográfico nos assuntos internos do Estado vêm con­siderações de tamanho e forma. Cada Estado desenvolveu-se até as suas atuais dimensões, partindo de pontos relativa­mente pequenos sob a forma de uma área-núcleo da qual se verificou a expansão, e que geralmente conserva posição do­minante na organização interna. A França desenvolveu-se de L lle de France, os Estados Unidos das treze colônias originais situadas no litoral atlântico, a U . R . S . S . de Moscou e, para mostrar que os efeitos dêsse princípio não se limitam aos tempos modernos, o Império Romano desenvolveu-se de um pequeno núcleo no Lácio. Tamanho ou espaço inevità­velmente desempenha papel relevante na organização de um Estado pelo menos se não houver outro motivo, pelo fato de que as suas relações com a área nuclear devem ser facili­tadas e organizadas, para que, caso não se consiga unir as partes remotas com o centro, não se deixem as primeiras sujeitas à ameaça de aquisição por Estados rivais. Igualmen­te, na grande maioria dos casos, deseja-se território adicional, sendo algumas vêzes adquirido como meio de ampliar os recursos do Estado ou para fins estratégicos. Somente em anos muito recentes a teoria de administração de território sob mandato das Nações Unidas, pela qual um Estado adian­tado empreende a organização de uma região “atrasada” no interêsse dos seus habitantes, foi esboçada.

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Contanto que os seus recursos sejam plenamente explo­rados numa base organizada, o Estado muito grande dispõe de enorme poderío. Em virtude da diversidade da superficie terrestre, qualquer território muito grande encerra uma va­riedade de ambientes, cada um deles com os seus próprios recursos materiais. Dentro dos seus limites, haverá estruturas geológicas e tipos de rochas diversos, de modo que ó quase certo existir minerais. Outrossim, tal Estado compreenderá grande número de climas, importantes por si mesmos porém de maior valor quando relacionados com as atividades hu­manas através dos tipos de vegetação associados, naturais e cultivados, que tornam possível. A U.R.S.S . e os Estados Unidos destacam-se como exemplos dessa espécie de grande Estado, ambos possuindo enormes riquezas e poder e ambos estrenuamente atarefados em organizar o que a natureza lhes doou. São também semelhantes sob outros aspectos. Cada um ocupa uma vasta área, porém compacta, da terra. Cada um é um Estado de território contínuo numa escala conti­nental, onde não é provável surjam, por largo espaço de tempo, problemas de falta de espaço ou de superpopulação, possuindo cada um dêles acesso a escoadouros marítimos, tanto a leste como a oeste. Em tempo algum jamais exis­tiram capacidades reais e potenciais para a produção de grande variedade de artigos dentro da estmtura de um Es­tado de terras contínuas. Evidentemente, há um âmbito quase inimaginável para a experimentação em organização — agrícola, industrial, comercial e política — em cada um dêsses Estados fenomenais, podendo-se esperar grandes de­senvolvimentos em futuro previsível. Sua atual influência nos assuntos mundiais constitui um índice do grau ao qual sua organização interna já se adaptou aos problemas de espaço.

Deve-se reconhecer que sòmente o tamanho nem sempre constitui fator decisivo na grandeza dos Estados. A China, o Brasil, o Canadá e a Austrália, todos possuem enormes ter­ritórios, mas em cada um há elementos que, até agora, têm restringido a organização interna até o ponto em que nenhum dêsses quatro Estados mais ou menos independentes é con­siderado como Grande Potência. A China parece possuir

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os recursos essenciais de área e população, mas não tem sido feliz em utilizar sua fôrça latente, em grande parte, ao que parece, por motivos psicológicos. O Brasil, o Canadá e a Austrália todos sofrem de recursos populacionais insuficientes em grandes partes do seu território. O mapa demográfico de cada um dêsses três países indica que as áreas ocupadas mais densamente povoadas são marginais em localização e que grandes áreas são, por motivos climáticos, quase desabi­tadas. O calor excessivo, geralmente acompanhado por gran­de pluviosidade e densas florestas, no Brasil, o frió excessivo no Canadá e a aridez na Austrália explicam por que êsses Estados encerram áreas desabitadas e, portanto, não-desen- volvidas, mas seria imprudente ressaltar que essas condições climáticas, que têm constituído fator determinista até o mo­mento, continuarão a restringir os desenvolvimentos econô­micos e políticos. Os Estados Unidos e a U.R.S .S . também possuem grandes áreas hostis à colonização e organização humanas, mas sua extensão de latitude mais favorável pro- porciona-lhes maior proporção de território no qual os es­forços humanos auferem maiores recompensas.

Embora os exemplos dos Estados Unidos e da U.R.S .S . indiquem as vantagens de continuidade de área num Estado de grandes dimensões, o território de algumas outras grandes unidades políticas é descontinuo e, em certos casos, ampia- mente disperso sôbre a superficie da Terra. Estão nesse caso as grandes Potências Coloniais que não são rigorosamente comparáveis aos Estados no sentido em que o têrmo vem sendo empregado nestas páginas. Os Impérios Coloniais inglês, francês, holandês, belga e outros semelhantes são Estados na medida em que são administrados e devem obe­diência a uma autoridade central, no qual está investido o poder soberano, mas qne permanece na “mãe-pátria” ou “país natal”, que é um Estado no seu próprio direito. Na prática, as colônias são consideradas como apêndices do Estado mater. Sòmente pela secessão, como no caso das primeiras colônias norte-americanas, ou adquirindo o “Status de Domínio”, como o exemplifica a Comunidade Britânica, podem as colônias elevar-se à categoria de Estados independentes, mas no se­gundo dêsses dois processos permanecem certos laços, mais

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particularmente quanto à relação ao Trono Inglês, e também laços de sentimento. A relação jurídica entre a metrópole e as colônias, com as quais as dependências, protetorados e territórios sob mandato podem ser incluídos para os fins atuais, varia nos diferentes Impérios Coloniais, porém com a possível exceção da Argélia, que oficialmente faz parte da França Metropolitana, não há que discutir a igualdade entre os componentes de tais Impérios.

Não obstante, a posse de territórios coloniais, especial­mente quando se acham amplamente espalhados, mas, no todo, formam grandes áreas, exerce importantes efeitos sôbre os negócios internos da Metrópole. Não apenas proporcio­nam postos a administradores como também mercados e ma­teriais para negociantes e fabricantes, tornando também ne­cessárias a manutenção das comunicações e a criação de fôr­ças defensivas que muitas vêzes resultam em pesado ônus para a receita da Potência que os possui.

Nessa altura, talvez seja permissível uma observação final sôbre os possíveis efeitos do tamanho. As grandes dimensões num Estado, quer todo o território seja valioso quer não, traz grande dose de prestígio para os seus habitantes. Isso tanto se aplica às Potências Coloniais como àquelas que não pos­suem colônias. O desejo de tal prestígio, entre outras coisas, tem impelido os Estados a se expandirem, mesmo quando se obtém pouco lucro material. A aquisição da Eritréia e da Líbia pela Itália foi um exemplo onde a expansão em ultra­mar foi levada a cabo com poucas vantagens para a Itália, independente do seu valor em prestígio, resultando num grande custo em homens e dinheiro para o povo italiano. Parece que o próprio fato de estender o poder sôbre maior área oferece um sentimento de satisfação e de realização a povos que se expandem com êxito, tendo em certos casos exer­cido efeito estimulante sôbre pelo menos algumas das rela­ções internas do Estado. É muito difícil julgar até que ponto o fator prestígio foi benéfico ou prejudicial à organização interna do Estado, mas que êle atuou como fôrça motivadora no desenvolvimento dos Estados dificilmente pode ser negado.

Sejam quais forem a localização e o tamanho de um Es­tado, seu território possui características físicas que o geó­

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grafo político não se pode dar ao luxo de desprezar porque, à parte as relações externas do Estado, essa base física é a fonte do sustento material dos seus habitantes, devendo haver, portanto, estreitas relações entre a terra e o povo. Além disso, essas relações não são suscetíveis de uma análise completa a não ser e até que as contribuições de cada um dêsses elementos do Estado sejam reconhecidas, mas ao exa­minar-se a base física há menos perigo de incorrer-se em êrro do que num exame semelhante da contribuição humana. A terra em que um Estado se desenvolve modifica-se num ritmo muito mais lento do que aquêle que caracteriza as modificações humanas, mormente no nível (organizacional. Ê também mais tangível, menos impoderável, do que o outro elemento e, portanto, presta-se mais prontamente à investi­gação.

De início, deve-se frisar que qualquer estrutura física considerada, quer de um Estado, quer não, é sempre o re­sultado de uma combinação de fatôres com freqüência tra­tados isoladamente a bem da conveniência, mas que, de fato, se combinam numa variedade de formas para produzir uma área superficial que se torna a estrutura territorial de um Estado ou Estados. Dêsse modo, as formas terrestres oriun­das da estrutura geológica, ela própria o resultado dos acon­tecimentos da história geólogica, são modificadas por condi­ções climáticas através de atividades erosivas subaéreas para produzir, aqui, um tipo de ambiente físico e ali outro.

Além disso, os rios constituem em parte uma função do clima ou climas de uma região, mas são intimamente influen­ciados quanto ao volume, taxa e direção de fluxo pelos tipos de rochas que atravessam e cuja ocorrência depende de grande número de fatôres geológicos. Nitidamente, o estudo pormenorizado das formas terrestres, inclusive sua causação, situa-se fora do âmbito da Geografia Política, mas o conheci­mento da sua natureza é valioso no avaliar-se o papel que desempenham nas relações internas do Estado, da mesma forma que o é para o interessado no campo mais vasto da Geografia Humana.

A estrutura geológica merece um lugar no estudo da Geografia Política de um Estado por duas razões. Em pri­

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meiro lugar, os recursos minerais do Estado são o resultado direto da sua estrutura geológica, não havendo necessidade de realçar a importância de recursos minerais acessíveis nos dias atuais quando a industria em larga escala, em grande parte dependente dos minerais, de urna forma ou de outra, é a viga mestra do poder do Estado.

Outrossim, a estrutura geológica é responsável pela dis­tribuição e grau de acessibilidade dos minerais e bem assim pela sua presença ou ausencia. É difícil ressaltar ao máximo a importância dêsse fator, por exemplo, na Geografía Política interna da Grã-Bretanha. Nesse Estado em particular, a Revolução Industrial foi facilitada pela estreita contigüidade de suprimentos acessíveis de carvão-de-pedra, minério de ferro e outros minerais. Mesmo se concedendo uma margem para o gênio inventivo de alguns dos seus habitantes, é difícil com­preender como a aplicação do vapor e os empregos do ferro e aço a processos industriais puderam ser introduzidos na ausência de tais materiais básicos, e ninguém negará que a industrialização re'volucionou os negócios internos da Grã- -Bretanha. De fato, o crescimento das indústrias tem cons­tituído o fator principal no desenvolvimento das relações internas de todos os grandes Estados modernos, e mais par­ticularmente visto que a sua produtividade industrial se tor­nou fator decisivo na guerra.

O segundo motivo para a relevância da estrutura geoló­gica na Geografia Política é que ela determina os principais lineamentos da superfície de um Estado. Essas caracterís­ticas de relêvo, modificadas, como o podem ser, por fôrças outras que não aquelas diretamente ligadas à estrutura, de­sempenham parte importante nas atividades humanas. As planícies, principalmente quando localizadas no litoral, têm proporcionado as terras básicas de muitos Estados, porém as áreas montanhosas com freqüência possuem grandes re­servas de madeiras, minerais e potencial hidráulico, que a engenhosidade humana conseguiu utilizar para ampliar o poderio econômico e político do Estado. Ademais, quando um Estado montanhoso se acha situado entre áreas de densa população e grande produtividade econômica, seus recursos

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internos podem ser fortalecidos pelo contróle de rotas que ligam as áreas isoladas, como o demonstra o caso da Suíça.

Em geral, a unificação política é mais fácilmente alcan­çada em áreas de planicie do que em terreno montanhoso. Grandes partes de regiões verdadeiramente montanhosas são desabitadas, confinando-se as pessoas aos vales, de forma que a população fica distribuída sem uniformidade em gru­pos dispersos, entre os quais as comunicações não se proces­sam com facilidade, de modo que uma unidade social tende a ser o clã, podendo dar lugar a uma organização territorial como o cantão. Somente num estágio avançado de evolução política são essas unidades distintas unificadas num Estado. For outro lado, a movimentação e o contato entre os habi­tantes de áreas maiores deesnvolvem-se mais fácilmente nas planícies, de forma que o comércio e a difusão de idéias se processam mais fácilmente e em maior escala do que entre as montanhas. Mas aquelas mesmas facilidades que estimu­lam o desenvolvimento dos Estados nas planícies também fomentam a expansão dos Estados adjacentes, levando à ri­validade. Torna-se, portanto, necessário maior esfôrço para manter a integridade territorial dos Estados que consistem principalmente em planícies. A facilidade com que a expan­são de um poderoso Estado pode ocorrer em tal terreno explica por que cada uma das grandes planícies do mundo foi incorporada num único Estado ou se tomou uma região de concorrência entre Estados rivais.

Exemplos do primeiro caso podem ser observados na inclusão das Planícies Siberianas na U. R. S . S . , e do Centro- -Oeste nos Estados Unidos. A Planície Européia oferece o exemplo mais claro do local exato de um conflito antiqüís- simo entre grupos rivais, cujo resultado se reflete nitida­mente na configuração atual dos Estados. Em cada uma das unidades políticas daquele campo de batalha permanece o temor de usurpação pelos Estados vizinhos com tôdas as repercussões sôbre a sua organização interna. Inversamente, o terreno montanhoso muitas vêzes oferece facilidades para refúgio, e não apenas contra expansão territorial, podendo exercer influência protetora escudada na qual um Estado

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pode atingir segurança política, embora sofra de isolamento econômico e cultural.

No passado, e em menor grau hoje em dia, os rios têm desempenhado papel dúplice tanto na evolução dos Estados como nas suas atividades internas. Nessas funções aparen­temente contraditórias, o caráter das áreas ribeirinhas tem sido igualmente importante. O valor de um rio no seu sig­nificado para um Estado ou Estados depende em parte da natureza do vale que ocupa, mas também das condições fí­sicas da terra imediatamente adjacente às suas margens. An­tes que o homem pudesse lançar pontes sôbre os rios e drenar as áreas justafluviais, os rios foram com freqüência aceitos como limites dos Estados, parcialmente porque eram fácilmente identificáveis e constituíam características perma­nentes da paisagem, porém com maior freqüência, juntamente com suas planícies de inundação pantanosas, já eram zonas defensivas naturais. Nesse sentido, os rios desempenharam função isoladora, mas não necessàriamente em tôda a sua extensão, como a utilização de trechos do Reno e do Danúbio no sistema de limites do Império Romano o ilustra.

Mesmo nos Estados mais primitivos, e certamente nos modernos, os rios têm sido, com mais freqüência, fatôres de unificação. Êles ou seus vales proporcionam, via de regra, as linhas mais fáceis de movimentação humana, mesmo nas planícies, de modo que a circulação num Estado, que é um componente essencial da sua organização interna, tende a seguir os contornos dos rios, mais particularmente antes da introdução das ferrovias. Quando estas se tomaram um meio de transporte quase universal, seus constmtores utilizaram as rampas mais fáceis proporcionadas pelos vales, realçando novamente dessa forma a influência unificadora dos rios, visto que êstes, juntamente com a estrutura geológica, são responsáveis pelos tipos e configurações dos vales. Nas re­giões de aridez permanente ou estacionai, os rios podem ser o princípio essencial de um Estado, deixando uma marca indelével na sua organização. O Egito moderno, como o seu antigo antecessor, e o Iraque dependem em grande par­te das águas do Nilo e Tigre-Eufrates, respectivamente, para a irrigação das culturas; poderiam ser quase chamados de

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Estados de irrigação. Em outras partes, a utilização de água fluvial para fins de irrigação não é um fator tão dominante na vida do Estado, mas o Indo e o Ganges na India, o Hwang-ho na China, constituem exemplos relevantes dos meios pelos quais os rios contribuem para os recursos efe­tivos do Estado, enquanto se podem citar exemplos em me­nor escala em todos os continentes.

Desde os albores do século XX os rios assumiram outra função nas atividades humanas do Estado. Por muito tempo têm sido fonte de energia mecânica, mas foi sòmente com a descoberta do emprêgo da água corrente como meio de gerar eletricidade que os rios puderam competir com o pe­tróleo e a gasolina como supridores tanto de fôrça industrial como de iluminação. Como a capacidade de um rio para êsse fim depende do seu volume e taxa de fluxo, seu poten­cial energético pode ser considerado como uma função do relêvo e clima conjuntos. Eis por que os Estados que pos­suem áreas montanhosas com forte precipitação são bem do­tados nesse sentido, sendo que êste fator é ainda mais im­portante quando o carvão e o petróleo se encontram ausentes. A Suíça, a Suécia e a Noruega oferecem excelentes exem­plos de Estados que, pobres em outras fontes de energia, puderam superar as dificuldades inerentes ao seu ambiente físico utilizando seus rios para a geração de hidreletricidade.

Os rios, como estradas, como fontes de energia elétrica, como fornecedores de água para economias de irrigação, cons­tituem, nitidamente, importante elemento da Geografia Políti­ca interna dos Estados, e a luta para dominá-los para um ou mais dêsses fins freqüentemente leva a uma porfia entre Po­tências Ribeirinhas vizinhas, de modo que as relações externas também são afetadas por interêsses no contróle de rios. Alguns Estados ribeirinhos consideram essencial ampliar sua soberania sôbre as embocaduras dos rios que correm pelo seu território, alegando que seu desenvolvimento interno se acha na depen­dência do pleno acesso ao mar por êsse meio.

Isso levanta a questão de outro elemento nas bases físicas do Estado, isto é, a posse e utilização dos litorais. A in­terdependência econômica das várias partes da superfície terrestre, ressaltada num capítulo anterior, é, em grande par-

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-.y.

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te, o resultado do crescimento, rapidez e relativo baixo custo do transporte marítimo pelo qual se processa a maior parte da circulação mundial. A fim de partilhar plenamente dêsse comercio mundial e, portanto, poder desenvolver sua econo­mia interna, considera-se altamente conveniente que um Es­tado possua um litoral, de modo que possa manter sua pró­pria marinha mercante. Dêsse ponto de vista, a localização no interior de um continente é, obviamente, urna desvanta­gem, como no caso da antiga Zona Livre em Hamburgo, da Tcheco-Eslováquia.

Admitindo-se que um Estado não possa desenvolver-se plenamente sem acesso aos mercados mundiais e suprimentos de mercadorias, toma-se evidente o valor de um litoral, mas varia de acórdo com a localização da costa e a sua natureza. Nesse sentido, as praias setentrionais do Canadá e da U.R. S . S . são de muito pequena importância, mas as que dão para as grandes rotas marítimas do mundo são de gran­de valor. A França, com um litoral no Atlántico e no Medi­terráneo, tem sabido utilizar essa dupla vantagem para a sua organização interna, enquanto a rivalidade anglo-germâ- nica resulta no apoio dado à Bélgica e à Holanda pela In­glaterra, a fim de impedir que a Alemanha se expanda para o mar do Norte numa frente maior do que a que já possui. Certa medida da importância relacionada com êsse fator costeiro é o princípio geralmente aceito da extensão da so­berania do Estado a urna distância de três ou mais milhas mar adentro, mas, dentro de certos limites, a natureza física do litoral do Estado perdeu algum do seu valor original. Desde que a costa dé acesso às rotas marítimas e ao interior do Estado em causa, a habilidade técnica do homem é tal que se podem construir portos onde as facilidades naturais não sejam grandemente favoráveis à construção de docas.

Não obstante, continua a ser verdade que os grandes portos do mimdo se desenvolveram em situações físicas fa­voráveis, mas o fator dominante tem sido a acessibilidade nos dois sentidos, aos mares e ao interior. Por fim, é digno de menção que a acessibilidade ao mar através da posse de um litoral leva, em alguns casos, ao desenvolvimento de

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uma indústria pesqueira que pode desempenhar papel rele­vante na vida interna do Estado. Nesse sentido, locais de pesca adjacentes ou mesmo remotos podem ser considerados como uma extensão territorial do Estado, até o ponto em que porporcionam recursos adicionais, não apenas no supri­mento de gêneros alimentícios, e artigos de comércio, mas também como fonte de recrutamento para fins navais.

A relação entre as condições climáticas e a atividade humana já foi mencionada noutro contexto (ver págs. 41-42), havendo-se ressaltado a necessidade de uma investigação científica sistemática nesse campo. Sem subestimar o tra­balho de tais investigadores como Ellsworth Huntington e Griffith Taylor, pode-se razoavelmente afirmar que êsse ramo de estudo geográfico ainda se acha no estágio pioneiro, sen­do provável que se acumule valioso conhecimento do seu progresso ulterior, pelo menos das pesquisas microclimato- lógicas que vêm sendo conduzidas em um número crescente de áreas. Mesmo assim, pouca dúvida pode haver de que o clima seja um dos fatôres mais importantes no ambiente físico do Estado. Embora não admitindo a proximidade do seu contróle das atividades humanas sugerida por recente declaração de um jornalista norte-americano,'^® os geográfos concordam que as condições climáticas evocam alto grau de adaptação por parte dos sêres humanos, que se tornam cada vez mais cônscios de qne os desvios dos meios climáticos são, muitas vêzes, mais importantes que as generalizações que as cifras médias sugerem. “Le climat”, escreveu Vidal de la B l a c h e , “est une résultante qui oscille autour dune moyenne, plutôt qu’il ne s’y tient”.

Essa flutuação, que com freqüência não é de grande am­plitude, exige ajustes ainda mais requintados das atividades

13 “Na Dacota do Sul, a pluviosidade média é de dezoito pole­gadas por ano. Quando baixa pai’a dezesseis, todo mundo vai à bancarrota. Quando atinge dezenove, os lavradores acendem cha­rutos com notas de cem dólares”. (P . Gallico, correspondente es­tadunidense do Sunday Graphic, 3 de novembro de 1946.)

18 P. Vidal de la Blache, Principes de Géographie H um aine, Paris, 1921, p. 14.

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humanas do que as ampias condições climáticas caracterís­ticas de um Estado. Sòmente o menor dos Estados experi­menta uniformidade climática através dos seus territorios, ao passo que a grande maioria compreende vários tipos climá­ticos. Mesmo num pequeno Estado como o Reino Unido, não há diferenciação climática suficiente para dar margem a diversidade nos habitats humanos. A mais poderosa de tôdas as influencias do clima para o homem é a exercida através da vegetação sôbre as atividades agrícolas. No seu estado natural, as plantas são mais suscetíveis ao contróle climático do qne a qualquer outro elemento isolado, e, em­bora as realizações humanas no cultivar e aperfeiçoar as plantas sejam notáveis pelo gran de engenhosidade demons­trado, não obstante continua a ser verdade que a agricultura ainda depende em grande escala do clima. As grandes re­giões circumpolares, com suas fimbrias de tundras no Hemis­fério Setentrional, e os grandes desertos, que juntos com­preendem grande proporção da superficie terrestre, ainda não são habitáveis, e por motivos climáticos. Ñas chama­das Terras Temperadas, os tipos de agricultura são ampia- mente determinados por condições climáticas.

Tanto a produção de géneros alimenticios como a de matérias-primas vegetais para outros fins que não o consumo humano estão intimamente relacionadas com condições de temperatura, pluviosidade, etc., não apenas na sua totalidade como também na sua incidencia estacional. Presentemente, a manutenção de um suprimento alimentar suficiente cons­titui objetivo essencial da organização interna de um Estado e, portanto, dado um espaço suficiente no tocante à sua po­pulação, um Estado dotado de urna variedade de climas, mesmo que a variação não seja de grande amplitude, deve ser capaz de prover alimento suficiente para o seu povo e, o que de modo geral se vem observando cada vez mais, urna dieta equilibrada. Nessas condições climáticas favoráveis, a produção de energia potencial dos seus habitantes é mais elevada do que nos países menos favorecidos. Isto significa que as condições climáticas são de primordial importância na Geografía Política dos Estados, visto que seu poder polí­

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tico repousa, em grande parte, no rendimento da produção do seu povo.

Outrossim, se o Estado não possuir espaço suficiente para os fins de produção de alimentos sob os sistemas agrí­colas existentes, deve importar os artigos necessários ou in­tensificar a sua própria produção. A intensificação e a ex­pansão da produção de culturas acham-se intimamente rela­cionadas ao clima. Poucos Estados, por exemplo, podem produzir regularmente mais de urna cultura por ano sem assistência altamente artificial e, portanto, custosa. Isso se aplica especialmente aos países com longos e rigorosos in­vernos, quando a vida das plantas chega a um ponto de estagnação, e Estados densamente povoados, como o Reino Unido, que desfrutam condições hibernáis mais amenas, têm podido aumentar sua produção interna somente mediante meios como subvenções e medidas protetoras, que afetam não apenas sua organização interna como também suas re­lações externas.

Por outro lado, a complexidade climática que atua atra­vés dos seus efeitos sôbre as atividades agrícolas pode ser um fator adverso, mormente nos grandes Estados que abar­cam vários tipos climáticos característicos. Nos Estados Uni­dos, as comunidades agrícolas do Centro-Oeste freqüente­mente divergem do Govêrno federal em Washington, asseve­rando que a administração, ali, não está familiarizada com os problemas da agricultura e comercialização de culturas que constituem os interêsses predominantes dos habitantes daquela região. No Canadá, de modo semelhante, a prin­cipal queixa dos lavradores das Provincias das Planicies pa­rece ser a de que o Govêrno de Ottawa dispensa insuficiente atenção aos seus interêsses. Essas divergências internas sem dúvida se prendem às grandes distâncias entre a capital administrativa e as regiões recalcitrantes, porém o conflito básico é o que se verifica entre as diferentes economias re­lacionadas com as diferenças de clima.

Em épocas de exacerbação, tais querelas constituem uma ameaça à unidade política e econômica do Estado; no caso dos dois Domínios do Canadá e da Austrália, Alberta e a

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Austrália ocidental foram a ponto de sugerir a secessão. Êsses, e outros exemplos, indicam que onde há ampla gama de condições climáticas, estas e seus resultados agrícolas de­vem ser levados em conta se se quiser que o Estado funcione harmónicamente. Em suma, nenhum Estado pode dar-se ao luxo de desprezar as influências do elemento climático no seu ambiente físico, e uma administração sensata pro­curará organizar a utilização dos seus recursos climáticos para o benefício máximo dos seus habitantes.

Nas páginas anteriores dêste capítulo, os elementos inti­mamente relacionados da estrutura física dos Estados foram analisados de forma muito incompleta, mas essas condições não têm sentido para o geógrafo político, independentemente das pessoas que organizam suas atividades e relações em ajustamento com elas e dentro dos limites territoriais das entidades políticas. Êsse elemento humano no Estado é ainda mais complexo do que os elementos físicos do milieu que êle habita. A diversidade é ainda a tônica na reação humana ao ambiente, em que pêse à “difusão cultural”, faci­litada por meios de comunicações grandemente aperfeiçoa­dos. Nenhum Estado pode com justiça alegar possuir um conteúdo humano completamente homogêneo. A única uni­formidade que êle tem é a que decorre da sua organização política pela qual, no mínimo em teoria, seus membros de­vem obediência à soberania que êle exerce. Mesmo neste último sentido vale a pena recordar que, em vastas partes da superfície terrestre, como na África central, índia e China, e em partes da América do Sul, a obediência política é apenas uma coisa tênue, e as relações humanas internas dos Estados nem sempre devem ser medidas pelos padrões alcan­çados na Europa ocidental e na América do Norte.

A população total, seu padrão de distribuição e as taxas de reprodução constituem elementos essenciais da estrutura do Estado. Sem conhecimento quantitativo, tal como aquêle que os censos realizados regularmente proporcionam, a or­ganização das atividades internas é grandemente entravada. Não quer isso dizer que o simples tamanho da população seja o determinante final da grandeza dos Estados. A qua­

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lidade deve também ser considerada, mas permanece o fato de que um Estado com insuficiente potencial humano para utilizar seus recursos é incapaz de manter padrões de vida convenientes, sendo improvável que leve a cabo o funcio­namento harmônico dos seus assuntos internos. Não pode haver dúvida de que a aplicação de processos mecânicos na indústria, agricnltura e comércio tem grandemente au­mentado a produção por homem-hora, havendo também con­tribuído para reduzir as horas necessárias de emprêgo nos países mais adiantados, embora o elemento humano seja ainda de vital importância, sendo improvável que desen­volvimentos previsíveis modifiquem a validade dessa alega­ção. A estrutura demográfica do Estado é, portanto, de sig­nificado fundamental para o geógrafo político, quer êle esteja imediatamente interessado em relações internas, quer exter­nas. (Ver capítulo VII.)

A qualidade dêsse conteúdo humano repousa nos efeitos combinados de grande número de fatôres, cada um dos quais presta a sua contribuição, porém em grau variado, em con­sonância com as circunstâncias particulares que existem em qualquer dada época. A mudança na extensão territorial, no tamanho da população ou no sistema de Govêmo dá lugar a modificações da influência dêsses fatôres. A forma e con­teúdo atuais de um Estado representam um estágio na sua evolução, de modo que os elementos históricos desempe­nham papel relevante na sua organização presente. Em nenhum caso podem ser apagados a história e os feitos liga­dos a um Estado. A experiência ganha no passado é utili­zada, direta ou indiretamente, como orientação no presente. Demasiada tradição ou demasiados precedentes podem atuar como barreiras ao progresso, mas num Estado bem equili­brado recebe sua devida cota de consideração. A fimção educativa de uma evolução firme, não interrompida por mu­danças abruptas, é de inestimável vantagem para o desen­volvimento de boas relações internas. A “revolução pela evolução” significa que o povo de um Estado pode adaptar suas atividades a condições mutáveis sem grandes atos de violência.

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Em segundo lugar, a estrutura étnica do Estado deve ser considerada como um fator humano na sua Geografia Po­lítica interna. Aqui o estudioso se defronta com um volume de dificuldades e problemas que podem parecer insuperá­veis, e cuja análise exige muito mais espaço do que dispomos neste livro.

Não obstante, certos fatos são evidentes. Nenhum Es­tado possui uma estrutura étnica homogênea, e a pureza racial, no sentido biológico exato, não existe. Migrações per­sistentes e amplamente difundidas, juntamente com conti­nuados casamentos entre diferentes castas, têm resultado em tal mistura de povos que, embora os etnólogos sugiram vários agrupamentos amplos à base de certas características físicas, não há nenhuma possibilidade de definir êsses grupos por limites lineares aceitáveis. Porém o Estado, por sua na­tureza, deve ser claramente definido, isto é, o território sô­bre o qual êle exerce poder soberano deve ser delimitado precisa e exatamente. Como resultado, os Estados devem incluir áreas habitadas por pessoas de diferentes origens étni­cas, daí todos os Estados serem étnicamente heterogêneos.

A Europa é particularmente afetada dessa forma, em parte em virtude dos seus estreitos contatos com a Ásia, de onde muitos imigrantes provieram por longo período da his­tória, e em parte porque é o mais complexamente fragmen­tado de todos os continentes. Ao mesmo tempo, as Américas, a Ásia das monções e a África, tôdas têm seus problemas étnicos. Considerando-se boa vontade e razoabilidade, as diferenças étnicas não devem tolher a unidade interna de um Estado, porém parece que na maioria dos casos faltam essas qualidades desejáveis, visto que uma mescla de mitos e ideo­logias, sintetizados na expressão “consciência da raça”, foi erigida e agora constitui formidável barreira à bem suce­dida integração dos elementos humanos. O preconceito e o tratamento diferencial decorrentes de diferenças étnicas são contrários à boa administração. Onde minorias étnicas e enclaves existem e se acham despojados de igualdade de status, constituem fontes de fraqueza e atrito na estrutura do Estado. Em alguns casos, como no antigo Império Aus­tro-Húngaro, podem levar à dissolução.

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Embora haja alguma relação entre os grupos étnicos atuais e suas origens raciais no passado remoto, as caracte­rísticas físicas que assinalam as raças não mais se aplicam como fatôres diferenciáveis na determinação das distribui­ções étnicas, daí procurar-se outra característica que geral­mente se encontra na linguagem. Via de regra, êsse pro­cesso é justificável, visto que a posse e o uso de uma língua comum são a prova mais fácilmente reconhecível de uma origem étnica comum e de uma cultura comum. Realmente, a extensão em que os grupos étnicos persistem em conservar sua língua é notável. Após séculos de dominação pela Áus­tria, os eslovenos da Iugoslávia mantiveram seu idioma, em­bora não fôsse reconhecido pelos seus conquistadores. A prova indica ser impossível eliminar uma língua pela fôrça ou por outros meios, exceto, talvez, por lenta deterioração, e a importância ligada à língua como elemento na estrutura do Estado é ilustrada pelos esforços para revivê-la, como no caso da Irlanda. Visto que os Estados são étnicamente he­terogêneos e como os grupos étnicos mostram a acentuada característica de retenção do idioma, depreende-se que pou­quíssimos Estados são unilíngües. Essa falta de unidade lin­güística pode ser outro fator antagônico à solidariedade e unicidade do Estado, mais particularmente quando as difi­culdades de língua representam diversidade étnica e cultural numa forma ativa.

À parte os empregos lamentáveis das diferenças lingüís­ticas por motivos políticos injustificáveis, tal como a propa­gação de ideologias malsãs, o papel do idioma na Geografia Política interna dos Estados depende da sua função como o meio de intercâmbio social. A língua é o veículo do pen­samento e, como o demonstra Rundle, o emprêgo de uma determinada língua tende a impor certas restrições à capa­cidade de pensamento e desenvolvimento do mesmo. Além disso, “os que falam diferentes línguas possuem uma estru­tura mental algo diferente e seus processos de pensamento

15 S. Rundle, Language as a Social and PoUtical Factor in E u ­ropa, Londres, 1946, Capítulo III.

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não seguem exatamente as mesmas linhas”. Eis por que num Estado onde tôdas as pessoas, ou mesmo uma grande maioria, falam a mesma língua, é provável que a unidade seja mais fácilmente alcançada, e as relações internas serão, portanto, passíveis de mais íntima integração. Inversamente, onde mais de uma língua se encontra em uso comum, ocor­rerão barreiras ao intercâmbio, experimentando-se maior di­ficuldade no organizar as atividades do Estado.

Isso explica por que o uso da língua “oficial” foi impôsto a territórios conquistados ou anexados, pelo menos para os fins do Estado, tais como os relacionados à lei, administra­ção, e assim por diante, mas, apesar dêsses esforços, o em­prêgo de diferentes línguas estimula uma estratificação da sociedade em “camadas” lingüísticas, cada uma delas divor­ciada da plena associação com seus semelhantes, muito em­bora possam ser iguais perante a lei. Aqui se encontra uma fraqueza óbvia na estrutura do Estado multilíngüe e que não pode ser retificada pela imposição de um idioma esco­lhido. A solução está na “liberdade de palavra”, e no de­senvolvimento do bilingüismo de preferência à aceitação for­çada de uma monótona uniformidade lingüística.

A religião, ou mais exatamente, a adesão a uma Igreja organizada, é ontro elemento hnmano que se relaciona coin a Geografia Política interna dos Estados. Estados madura­mente desenvolvidos via de regra praticam a tolerância em assuntos religiosos e, em conseqüência, as diferenças de credo exercem pouco efeito em sua organização, porém Estados menos adiantados podem ser influenciados de uma ou duas formas. Onde a maioria do povo adere a uma fé comum, tal crença exerce poderosa fôrça unificadora até o ponto em que as experiências partilhadas dos seus integrantes dão margem a um sentimento de “se pertencerem juntos”, o que pode ser levado a assuntos mais mundanos. Mesmo assim, as áreas ocupadas por grupos religiosos, isto é, de pessoas que pertençam a uma só fé, jamais coincidem exatamente com o território de um único Estado. Tôdas as grandes

rs Ibid., p. 28.

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religiões do inundo foram propagadas antes que os Estados assumissem suas configurações atuais, antes que seus limites fôssem claramente definidos e demarcados, de modo que não é incomum encontrar adesão a mais de uma religião dentro de um Estado e, onde a tolerância não é praticada, tais dife­renças podem dar lugar a conflito interno e dissensão externa.

Não constitui tarefa do geógrafo político aprepiar os méritos ou deméritos de crenças religiosas, mas êle é for­çado a reconhecer que êsse elemento humano é tão desin­tegrador em alguns casos como unificador em outros. Ao passo que no Estado iugoslavo o choque entre o Catolicismo Romano e a Igreja Ortodoxa Sérvia gerou divergências de perspectivas entre os eslovenos e croatas, de um lado, e os sérvios, do outro, o povo polonês se unificou por uma parti­cipação generalizada da Igreja Católica Romana em seu país. Outrossim, a aparente incapacidade dos grandes grupos religiosos da índia em trabalharem juntos prova ser um dos mais sérios obstáculos à consecução da unidade política na­quela área subcontinental.

Todos êsses elementos no conteúdo humano de um Es­tado dão colorido e variedade, diversidade e complexidade, ao seu organismo político. Os antecedentes históricos, os números e densidades de população, as origens étnicas e tra­dições culturais associadas, a língua e a religião, tudo con­tribui com sua parcela para o variegado padrão que todo Estado, grande ou pequeno, apresenta, e uma prova segura do seu grau de maturidade pode ser encontrada na extensão em que êsses elementos são construtivamente utilizados para aprimorar o bem-estar material e espiritual dos seus habi­tantes. Tôdas as provas, desde o passado até o momento, indicam que a perseguição e a repressão são antagônicas ao bem-estar humano, ao passo que a tolerância e até o estímulo a interêsses divergentes enriquecem a vida do Es­tado, dão-lhe maior virilidade e tornam possível aquela busca da felicidade que pode ser considerada como o objetivo final. Mas essas considerações sociais e étnicas não constituem preo­cupação precipua do geógrafo político. Seu campo de estudo encontra-se nas relações entre êsses elementos humanos e seu ambiente físico com especial referência à sua distribuição

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espacial, e ao investigar essas relações internas êle se de­fronta com um paradoxo que é evidente em cada um e em todos os Estados.

Já se frisou que o ponto alto do Estado é o seu poder soberano, com o corolário de fidelidade por parte dos seus habitantes. Na prática, essa soberania é exercida por um Govérno central, de alguma forma ou de outra, que colhe para si maiores podêres com o decurso do tempo e com o desenvolvimento da organização. Sem alguma autoridade central, responsável pela política geral em assuntos sociais, econômicos e políticos, o Estado não pode proporcionar as condições ideais para a adaptação satisfatória das atividades do seu povo à sua base física. Isso foi bastante verdadeiro nos dias da economia do laissez foire, porém é mais ponde­rável nos Estados que vêm envidando esforços no sentido de fazer evoluir economias planejadas, sendo levado a limi­tes extremos nos Estados totalitários.

A conclusão é inelutável. O desenvolvimento da orga­nização coincide com um aumento na centralização do poder, até que a autoridade central se torna de tal modo sobrecar­regada com as tarefas de administração que há sério perigo de colapso no mecanismo estatal. Isso se aplica particular­mente aos Estados hoje em dia, em vista da grande comple­xidade da administração e da crescente amplitude dos pro­blemas que os administradores são convocados a tratar. Não se pode esperar que os integrantes de um Govêmo central estejam suficientemente familiarizados com as diferentes pe­ças do Estado, especialmente quando o território é vasto, daí avolumar-se a prática de delegar podêres a “autoridades lo­cais”, através de legislação, quer de caráter compulsório, quer facultativo.

Essas autoridades locais variam amplamente quanto aos podêres de que dispõem, nas áreas que administram e de acôrdo com a estrutura do Estado do qual façam parte. Não obstante, propendem a adquirir podêres crescentes à medida que o Estado se torna mais altamente organizado, dando, portanto, lugar à situação paradoxal em que a centralização aumenta com a evolução do Estado e, concomitantemente,

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torna necessário certo grau de alienação dêsses podêres. Êsse paralelismo é evidente em todos os Estados modernos, mas o padrão administrativo que dêle resulta varia grandemente. Nos grandes Estados federativos do mundo, por exemplo os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, os estados ou províncias administrativos contam com Considerável auto­nomia, porém nos Estados menores e mais compactos, tais como a maioria dêles na Europa, as divisões internas, con­dados, départements, etc., não são autônomos, porém possuem considerável autoridade administrativa no âmbito da estrutura geral.

Em alguns casos, as divisões internas representam a soma de filiações regionais num longo período de tempo; em ou­tros, foram impostas pelo Govêrno central principalmente para facilidade da administração, tendo pouca relação com os antecedentes sociais, econômicos e históricos dos seus ha­bitantes. Mas com a substitnição do laissez faire por um sistema baseado na economia planejada, vem-se tornando cada vez mais necessário imaginar um padrão de divisões internas que não sòmente serão mais adequadas às exigências do Estado, como um todo, como também oferecerão maiores facilidades para a coordenação e planejamento de atividades humanas regionais até agora disponíveis. Isso não constitui fácil tarefa. Todo o mecanismo do Govêrno fundamenta-se na existência de áreas nitidamente definidas, sendo que mo­dificações nos seus limites levam a anomalias e dificuldades, e a menor de tôdas não é, do ponto de vista do geógrafo, aquela em que as mudanças de limites ocorrem, tornando-se muito difícil efetuar confrontos estatísticos sôbre qualquer período considerável de tempo.

Uma fraqueza mais grave encontra-se na maioria dos Estados porque as divisões internas foram feitas para har­monizar-se com as condições num passado mais ou menos remoto, não se tendo feito o ajustamento suficiente a con­dições modificadas. A mais grave debilidade, contudo, é que as necessidades administrativas, pelo menos no que con­cerne à delimitação de limites, são antes consideradas como um fim em si mesmas do que como um meio para o fim de unificação regional e “inteireza”. Êsse é um motivo por

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que se sugeriram ou aplicaram tantas divisões regionais na Grã-Bretanha. Que a compreensão do caráter anacrônico das divisões administrativas mais antigas se vem difundindo é indicado pelas recentes modificações na U. R. S . S . , Ale­manha e Iugoslávia, bem como pelo desenvolvimento de forte movimento “Regionalista’ na França. Uma vez se perceba que o regionalismo não precisa reduzir o poder uni­ficador no centro, mas que pode ser urna fôrça criadora, tanto na coordenação de atividades humanas dentro da re­gião como na integração dos negocios regionais no ámbito do Estado, então compreender-se-á que vale a pena o esfôrço para superar as dificuldades ligadas às modificações dos li­mites administrativos existentes.

iT Cf. a série de 25 mapas que ilustram “Practical Regionalism in England and W ales”, de E . W. Gilbert, Geographical Journal, Londres, Vol. XCIV , julho de 1939.

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IV

RELAÇÕES ENTRE OS ESTADOS

A s BELAÇÕES internas e externas dos Estados são comple­mentares umas às outras. Embora sejam examinadas neste livro em capítulos separados para fins de análise e descrição, não são separáveis na prática. Crescem e se desenvolvem lado a lado e simultáneamente, e quanto mais puderem ser mantidas em harmonia umas com as outras, é provável que maiores benefícios possam ser conferidos aos habitantes dos vários países. Na realidade, não é exagero alegar que a con­secução da harmonia entre as relações internas e externas de todos os Estados constitui requisito básico e necessário ao desenvolvimento do bem-estar humano no mundo como um todo.

Dois fatôres ilustram claramente êsse ponto. Um é a interdependência econômica sempre crescente dos Estados, jamais tão claramente evidenciada como na atual posição de carências de âmbito mundial quanto à grande maioria das mercadorias. O segundo é o gradual desmoronamento de barreiras entre os Estados com o crescimento e divulga­ção de conhecimentos através da rápida expansão dos meios de comunicação. No segundo caso, as duas guerras mun­diais do século XX desempenharam seu papel, pelo menos não fôra o fato de milhões de homens e mulheres terem viajado além dos limites dos seus países e, pelo menos, se terem capacitado da existência de outros povos.

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Acrescente-se a isso o conhecimento de que considera­ções estratégicas foram modificadas pelas mudanças acar­retadas pela guerra moderna, não sendo difícil apreciar o fato de que as relações externas dos Estados não mais cons­tituem a inteira responsabilidade de um punhado de esta­distas, mas são a preocupação íntima e direta de todos os cidadãos de todos os Estados. Nesse sentido, é legítimo falar de urna opinião mundial que emerge lentamente, até agora não formada e, de muitas maneiras, inibida por temores e suspeitas baseados em atividades passadas, mas capaz de exercer pressões sôbre os assuntos mundiais e já dotada de plataformas e porta-vozes nas várias organizações interna­cionais estabelecidas.

Dadas essas premissas, o geógrafo político poderá muito bem pedir uma definição do campo dos seus estudos nesse labirinto de problemas difíceis e muitas vêzes intratáveis ge­ralmente conhecido como assuntos internacionais. A primeira resposta a essa pergunta é que não pode haver nenhuma linha rígida separando os aspectos puramente geográficos das relações entre os Estados a partir de outros aspectos. Pensar nas relações entre os Estados como confinadas a comparti­mentos estanques seria negar tôdas as provas oferecidas pela observação e dedução inteligente. Na realidade, essas rela­ções, juntamente com os seus problemas e dissensões, como tôdas as relações humanas, têm um caráter variegado em que muitos fatôres se mesclam em tal medida que são incapazes de nítida separação.

Não obstante, a política externa de um Estado é, via de regra, dominada por um ou mais aspectos das suas relações com outros Estados. A União Soviética, por exemplo, pa­rece obcecada pelo desejo de segurança militar, por trás da qual nutre a esperança de realizar a reconstrução econô­mica e social em harmonia com suas teorias políticas parti­culares. Outrossim, as relações externas da França, bem como os seus assuntos internos, estão ainda em grande parte dominados pelo temor de uma possível agressão alemã.

Por outro lado, os países do Extremo Oriente, inclusive a Índia, a China e a Indonésia, ainda se preocupam com a consolidação da sua independência do domínio político e

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econômico de Potências não-asiáticas e com pronunciado in­cremento de tendências nacionalistas, estando, em cojnse- qüência, as suas relações externas fundamentadas em pre­conceitos por essas considerações. Êsses, e muitos outros exemp’os, podem ser apresentados como ilustrações da com­plexidade e diversidade das relações externas dos Estados, e indicam que, enquanto não houver uma linha nítida de de­marcação, muitos dos componentes das relações externas acham-se além do âmbito da investigação geográfica.

Tendo-se admitido essa limitação da Geografia Política nesse campo particular de estudo, agora é possível dar a segunda e mais importante resposta à questão acima for­mulada. Qualquer que seja a forma que a configuração global dos Estados possa assumir e qualquer o estágio que as relações interestatais possam alcançar, permanece o fato de que cada Estado deve ocupar território, devendo as ati­vidades dos seus habitantes ser mais ou menos condicionadas pelas características físicas daquele território.

Êsse ambiente físico constitui apenas parte de uma base maior e mundial em que as considerações de espaço, dis­tância e localização desempenham papel vital, não só em assuntos de estratégia militar como também na produção agrícola e industrial e bem assim na distribuição de tôdas as espécies de mercadorias. Daí existir o que se pode deno­minar ambiente físico planetário que oferece uma estrutura para as atividades entre os Estados da mesma forma, porém em escala mais ampla, quando o fundamento físico de um Estado prepara o ambiente para as atividades internas dessa organização.

Dessa forma, o campo de estudo que o geógrafo polí­tico com razão reivindica nesse sentido é a relação entre as atividades externas dos Estados e o palco físico planetário em que são montadas. Concomitantemente, é êle compelido a reconhecer e admitir uma distinção fundamental entre as atividades internas e externas. No caso das primeiras, o Estado exerce o seu poder soberano, fixa o ritmo e orienta as atividades dos seus habitantes; no das segundas, não existe êsse poder dominador. Até agora não existe nenhuma auto­ridade mundial que possa dirigir e integrar os assuntos entre

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os Estados. De fato, o grande problema político dos nossos tempos é encontrar um meio de reconciliar a necessidade de urna ação concertada por parte de todos ou mesmo de alguns Estados com o exercício da soberania em cada um e em todos os Estados. Outrossim, poder-se-á argumentar que isso não constitui preocupação do geógrafo. Nesse caso, a resposta deve ser que o exercício do poder soberano tem com tanta freqüência modificado tanto as políticas interna como externa que o geógrafo deve tomar conhecimento dos seus efeitos se quiser chegar àquele ponto de vista equili­brado das atividades humanas que deve constituir seu ob­jetivo.

O aspecto das relações entre os Estados pelo qual se interessa primordialmente a Geografía Política, então, é o que decorre da relação entre as condições físicas e as ativi­dades humanas numa escala global e que encontram expres­são nas políticas externas dos Estados constitutivos. Essas relações enquadram-se num padrão global suscetível de mu­dança, mas que revela condições subjacentes dignas de aná­lise. O falecido Sir Halford Mackinder foi um dentre os primeiros geógrafos a postular tal padrão mundial. Res­saltou êle a necessidade de reconhecer-sq as “realidades geográficas”, e concluiu que “o crescimento desigual das nações” é a causa, direta ou indireta, das grandes guerras da história, sendo, “em grande medida... o resultado da distribuição não-uniforme da fertilidade e oportunidade estra­tégica sobre a face do nosso Globo”.

Mais recentemente, o Professor Fawcett^® reexaminou os pontos de vista de Mackinder, demonstrando que éste tinha razão quando afirmou que “Quem dominar a Europa oriental controlará a Area Terrestre Gentral”, mas que a segunda famosa expressão de Mackinder, “Quem dominar a Área Terrestre Central controlará a Ilha Mundial”, é “muito menos certa”, porque o interior do Velho Mundo é, atual-

28 H. Mackinder, op. cit., p. 11.1» C. B . Faw cett, “The Herbertson M emorial L ectu re”, publi­

cado em Geography, Vol. X X X II , m arço de 1947.20 Ibid., p. 10.

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mente, insuficientemente povoado e desenvolvido para pro­porcionar o potencial humano e os recursos materiais com os quais superar as terras marginais mais densamente povoadas. Finalmente, conclui o Professor Fawcett:

Mas, se a potência Interior fôsse estender o seu do­minio sôbre o restante da Europa, então o conjunto da Europa e da Área Terrestre Central, isto é ; um pro>- longamentc até a mais ampia Área Terrestre Central, proporcionaria recursos suficientes para controlar as ou­tras regiões marginais do Continente, e assim dominar a Ilha Mundial.

A validez dêsse conceito de um padrão mundial é indis­cutível, e o contraste entre as terras interiores e marginais poderá tornar-se mais acentuado quando a União Soviética tiver tido tempo de recuperar-se dos efeitos da guerra. O atual alinhamento dos grandes Estados também parece refle­tir êsse padrão geográfico. A Comunidade e o Império Bri­tânico, os Estados Unidos e a França, todos se enquadrando no esquema de Mackinder de Potências marginais, se acham claramente unidos em oposição à União Soviética no tocante aos assuntos mundiais. Considerada estratégicamente, a União Soviética possui muitas vantagens nesse arranjo: linhas in­ternas de comunicação, território compacto e contínuo, enor­mes recursos reais e potenciais e um sistema político mais ou menos unificado. Os Estados situados na orla dessa grande Area Terrestre Central estão longe de ser unidos politica­mente, e sua unidade em ação, na paz ou na guerra, é pre­judicada também pelo fato de que as suas linhas de comu­nicação são circunferenciais em relação a essa Area Terrestre Central. Em virtude da disposição mundial das massas ter­restres e marítimas, essas rotas terrestres são rotas marítimas, sendo que as mais importantes utilizam o Atlântico Norte, o Mediterrâneo, o mar Vermelho e o oceano Indico.

Num mundo pacífico, êsses elos de águas azuis são de grande vantagem para os Estados a que servem porque o

21 Ibid., p. 11.

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transporte marítimo é ainda o mais barato e o mais fácil­mente mantido para a movimentação de grandes quantidades dos artigos de comercio e, portanto, as relações entre os Es­tados acham-se intimamente ligadas com a sua liberdade de uso. Mas em vista dêsse seu caráter geográfico, especialmen­te no caso da rota do Mediterráneo—mar Vermelho, que se estreita com freqüência, estão sujeitos à interferência. Daí a ameaça de isolamento acarretar a necessidade de manutenção de fôrças defensivas em regiões de perigo po­tencial, devendo-se construir bases e guarnecê-las, exigindo-se despesas de capital em larga escala que poderão exercer gra­ves repercussões sôbre as políticas fiscais internas dos Es­tados individuais.

A situação é bem ilustrada pelo fato da Rússia nunca ter sido uma grande potência naval, ao passo que, em pas­sado recente, o Reino Unido, os Estados Unidos, a França, a Alemanha e o Japão, todos potências marginais no sentido em que a expressão é aqui empregada, construíram e manti­veram grandes frotas de navios de gnerra. A Grã-Bretanha, em particular, há mais de cem anos depositou fé na Ma­rinha Real como um meio de manter abertas rotas marítimas importantíssimas. Ao proceder dessa forma e ao despender vastas somas em equipamento de capital, êsse importante Estado marítimo alcançou êxito em estimular a idéia da Liberdade dos Mares, em benefício dos seus próprios cida­dãos, mas igualmente, e por certo, para a vantagem de todos os outros Estados cujos interêsses são servidos pela manu­tenção do comércio feito pelos mares. Ao empreender e assumir assim responsabilidade e compromisso de âmbito mundial, a Grã-Bretanha ganhou grande prestígio além de vantagens econômicas, para inveja de outros Estados que pro­curaram, portanto, tentar igualar ou superar seu exemplo, dando assim margem a rivalidades e conflitos potenciais que foram apenas temporariamente refreados por acôrdos sôbre as limitações de armamentos navais.

Portanto, ao passo que o padrão global indica a exis­tência de uma comunidade de interêsses econômicos entre os Estados marginais, muito embora apresentem diferentes níveis de desenvolvimento econômico e cultural, suas rela­

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ções mais antigas revelaram o não-reconhecimento dessa “realidade geográfica” fundamental. Decerto, não houve provas de um esfôrço conjunto consciencioso para explorar as facilidades proporcionadas pelos fatôres da posição mun­dial, disponibilidade de vias aquáticas e diversidade de re­cursos, com vista à implementação dos interesses dessas terras marginais como um todo, Essa fraqueza foi em grande parte erradicada pela criação da Organização do Tratado do Atlân­tico Norte, que representa um esfôrço político deliberado para ensejar a unidade do que são, em outros sentidos, qua­torze entidades políticas díspares.

As relações externas da União Soviética têm-se carac­terizado, desde o início, por uma apreciação da realidade da sua posição geográfica na configuração mundial. Com a única exceção da sua participação na Segunda Grande Guer­ra, que, pode-se frisar, foi-lhe imposta pela invasão alemã de 1941, a administração soviética tem firmemente procurado desenvolver sua economia interna, ao mesmo tempo que salvaguarda seus contatos com as potências periféricas. Por meio de aquisições territoriais, como nos casos da Lituânia, Letônia, Estônia e a expensas da Finlândia, Polônia e Romê­nia, ou através do poderoso apoio político e econômico dado a Estados tais como a Polônia, Tcheco-Eslováquia e Bulgária, tem conseguido fortalecer sua importância como Potência mundial. Pela primeira vez na sua história, a União Sovié­tica conta com algo mais do que “uma janela sôbre o Bál­tico”. É improvável venha a obter uma posição mais favo­rável no tocante aos Estreitos de uma revisão da Convenção de Montreux, sendo que as relações entre a União, por um lado, e a Turquia e o Irã, por outro, indicam ter ocorrido uma deterioração na posição estratégica soviética naqueles países. Não obstante, nos seus flancos ocidental e sul-orien- tal a U.R.S .S . tem expandido sua soberania ou desenvol­vido “esferas de interêsse” numa extensão maior do que nunca.

A situação geral não é mesmo favorável à União Sovié­tica nas margens oriental e meridional da Área Terrestre Central. Primeiro que tudo, a ascensão da China comunista e o colapso do Japão afastaram séria ameaça à segurança

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soviética. Em segundo lugar, e possivelmente de maior importância numa perspectiva ampia, está a mudança nas relações entre partes da Asia sul-oriental e as Potências eu­ropéias ocidentais. A índia deixou de ser controlada de Londres, a Indonésia adquiriu independência política e as colônias francesas da Asia sul-oriental modificaram seu status. Resta ver se os laços econômicos entre as potências imperiais da Europa ocidental e suas antigas dependências na Asia sul-oriental serão enfraquecidos ou fortalecidos por essas mo­dificações, mas o crescimento rumo à independência política das segundas áreas é favorável à Política Exterior soviética.

Quanto maior a unidade — econômica, política, militar e cultural — entre as terras marginais, tanto maior perigo potencial existe, aos olhos soviéticos, à segurança da Area Terrestre Central. Mas a desunião — e a disposição geográ­fica dessas terras favorece a desunião — é vantajosa à União Soviética, porque traz na sua esteira menos possibilidade de ação conjunta contra a política soviética. Difícilmente pode duvidar-se que essa política externa é motivada pela compreensão dêsse nôvo alinhamento dos seus Estados vizi­nhos, e isso explica a poderosa posição que os representantes da União Soviética ocupam às mesas das várias conferências mundiais.

Esta análise elementar da estrutura geográfica dos assun­tos internacionais não deve ser lida como prova da inevita­bilidade do conflito, político ou militar, entre o grande Es­tado Terrestre Central e os seus vizinhos. A U.R.S .S . de forma alguma atingiu um estado de invulnerabilidade para lançar um ataque e provocar destruição parcial. Sua econo­mia interna longe está de ser suficientemente desenvolvida, havendo a Segunda Grande Guerra destruído muitas das realizações dos anteriores vinte e quatro anos de esfôrço intensivo. Talvez mais importante do que isso é que rela­tivamente pouco se fêz até agora para explorar sua única maior vantagem geográfica, a saber, suas linhas internas de comunicações. À falta de vias navegáveis leste-oeste e em vista do fato do avião não ser ainda um meio adequado de transporte para a movimentação em larga escala de merca­dorias e artigos pesados, as partes européia e asiática da

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União Soviética não podem ser consideradas como desfru­tando comunicações suficientes.

Além disso, a elevada taxa de urbanização da popula­ção soviética torna a U.R.S .S . mais vulnerável ao ataque aéreo do que em qualquer outra época. Eis por que seria mero fatalismo interpretar o padrão global dos Estados como um prelúdio a ainda outra guerra mundial. Antes êle indica uma estrutura dentro da qual o deleite pacífico dos frutos da terra poderá concretizar-se. Em que pêse à sua vasta extensão, apesar dos sens grandes recursos e até maior ri­queza potencial, a U.R.S .S . e os seus habitantes podem alcançar um padrão de vida mais elevado pela íntima coope­ração, comercial e culturalmente, com os seus vizinhos.

A tarefa de desenvolver tais relações positivas e cons­trutivas deve caber aos estadistas responsáveis; o geógrafo político pode apenas indicar, pela análise e descrição, a es­trutura geográfica na qual devem ajustar-se essas inter-re- lações. A existência dessa estrutura sugere a possibilidade de uma futura unidade mundial; os andaimes e esqueleto estrutural dêsse edifício mundial já se encontram em exis­tência. Contudo, após um quarto de século da Liga das Nações e apesar da promessa demonstrada pela sua suces­sora, a Organização das NaçÕes Unidas, a unidade mundial não se concretizou. As relações entre os Estados ainda não se acham plenamente dedicadas à consecução da unificação global; ainda se preocupam com interêsses secionais e regio­nais que podem representar urn estágio necessário e expe­rimental antes qne se alcance o ideal maior, mas cada um dos quais, por sua vez, revela a influência de condições geo­gráficas.

Até o fim do século XIX, os assuntos interestatais eram dominados grandemente por considerações “Imperiais”. Po­vos dinâmicos e expansionistas procuravam escoadouros para seu comércio e vazão para suas ambições territoriais na aqui­sição de terras além dos limites dos seus próprios países. No final, formaram-se vastos Impérios, geralmente por mé­todos fortuitos e muitas vêzes porque os representantes de um Estado foram os primeiros no setor da construção de Impérios. Nos fins daquele século, pelo menos uma reivin­

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dicação nominal fôra estabelecida para quase tôda a super­fície terrestre do globo pelas várias Potências. Qualquer expansão territorial ulterior sòmente podia ser feita a expen­sas de outro Estado organizado e inevitàvelmente levava à resistência. O imperialismo territorial foi, portanto, subs­tituído pelo imperialismo econômico mediante o qual os Estados poderosos, impedidos de adquirir novas terras pela ameaça de guerra, procuraram auferir vantagens econômicas pela penetração pacífica e pela manipulação de tôda uma gama de medidas comerciais e de moeda.

O rápido incremento do industrialismo, com o conco­mitante incremento do comércio mundial, levou à evolução do que veio a ser conhecido por “esferas de interêsses”, que eram vagamente, se não arbitràriamente, definidas pelas Po­tências interessadas em grande parte de acôrdo com a dose de pressão que podiam exercer. A Grã-Bretanha, a França, a Holanda, a Bélgica, a Alemanha, a Itália e, mais recente­mente, os Estados Unidos, descobriram que possuíam “inte­rêsses vitais” em várias partes do mundo. Tratados, muitas vêzes incorporando cláusulas, acôrdos comerciais e vasta rêde de representantes consulares das “nações mais favore­cidas”, constituíam os meios pelos quais as relações econô­micas entre os Estados eram definidas e implementadas.

Na prática, o sistema dependia de extensivas negociações que necessitavam de grande dose de negociação e compre­ensão, mas não poderia ter funcionado em condições outras senão as que existiram no decorrer dos últimos cem anos. Primeiramente, as complicadas relações comerciais dêsse pe­ríodo dependiam do rápido desenvolvimento dos meios de transporte, sem os quais o volume do comércio mundial teria permanecido no seu nível anterior ou perto dêle. O incre­mento das ferrovias, a introdução de navios a vapor e a invenção de maquinaria para cargas foram requisitos básicos à ampliação do comércio internacional. Em segundo lugar, o sistema mercantil do século XIX estava na dependência da existência de Estados em níveis diversos de desenvolvi­mento econômico, social e político. Do ponto de vista do comércio entre os Estados e das suas relações afins e intei­ramente independentes de meras permutas internas de mer-

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cadorias, os Estados do século X IX enquadravam-se em uma ou duas categorias. Havia os países “ativos” que se achavam na vanguarda e organizavam o comércio mundial, e os paí­ses “passivos” que proporcionavam o grosso das matérias- -primas e eram, em certo sentido, dependências econômicas dos seus números opostos. A Grã-Bretanha, a França, a Holanda e a Bélgica foram as pioneiras entre o primeiro grupo, mas posteriormente a elas se juntaram a Alemanha e os Estados Unidos. As possessões européias na África, Ásia, América e Australásia eram, na maioria, “passivas”, enquanto a China e a América do Sul exerciam função semelhante sem serem tão intimamente ligadas politicamente.

Essa sociedade desigual, diretamente baseada na dispo­nibilidade de rotas marítimas entre os elementos associados, foi altamente lucrativa para os Estados “ativos”, mais parti­cularmente depois de ter a Revolução Industrial avançado a passos largos, mas sua continuidade bem sucedida basea­va-se no fato das regiões “passivas” permanecerem contentes em ser “radiadoras de lenha e carregadoras de água” e em aceitarem sua posição económicamente inferior. Nessa altura, necessário se torna traçar mais uma distinção. No Velho Mundo, a índia, a China e a Ásia sul-oriental eram não apenas supridoras de mercadorias para consumo da Eu­ropa ocidental, mas também, em geral, áreas densamente povoadas não sòmente proporcionando mercados para ar­tigos manufaturados europeus, mas também investimentos “seguros” para o capital excedente que os países “ativos” vinham acumulando. Eis por que havia pouco esfôrço, afora as Índias Ocidentais Holandesas, para colonizar êsses terri­tórios. No Nôvo Mundo, no sentido mais lato, isto é, inclusive a Australásia e a África, as regiões “passivas” eram escassa­mente povoadas no início do século XIX. Podiam tomar-se participantes do comércio mundial sòmente quando suas “ter­ras vazias” tivessem sido ocupadas por recém-chegados, cuja maioria tivera sua origem na Europa ocidental e central.

Essa diferença de antecedentes geográficos, como entre os países de densa população e economias e tradições cente­nárias, de países tanto de baixa densidade como de popu­lações totais reduzidas, porém logo povoados por imigrantes

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imbuídos de idéias européias, deu lugar a diferenças básicas de perspectiva política e econômica e, portanto, preparou o caminho para diferentes relações com os Estados “ativos”.

Os Estados Unidos foi o primeiro país a desligar-se da hegemonia européia. Essa atitude foi seguida pelas repú­blicas sul-americanas, sendo que a aquisição do status de domínio pelo Canadá, Austrália, Nova Zelândia e a União Sul-Africana constituí, com efeito, um meio-têrmo entre com­pleta independência e sua continuada existência como co­lônias. Em suma, os países originàriamente “passivos” do Nôvo Mundo alcançaram a condição de Estados, e isso numa forma “ativa”. Em vários casos e em acentuada extensão, fecharam suas portas à ulterior imigração européia, havendo todos cessado de ser inferiores, política ou económicamente.

No Velho Mundo, o processo de desenvolvimento até al­cançar a condição de Estados, entre os países “passivos”, foi inevitàvelmente mais lento. As áreas agrícolas disponíveis de há muito vêm sendo ocupadas plenamente e as economias in­ternas eram antagônicas a transformações rápidas. Essas terras não apresentavam vastos “espaços abertos” onde a iniciativa de europeus recém-chegados pudesse aplicar novos métodos de agricultura e produção mineral em larga escala. Suas estruturas políticas, econômicas e culturais, tais como eram, ofereceram resistência passiva à infiltração de idéias e modos de vida da Europa ocidental. A grande maioria de indianos, chineses e indonésios, alcançando no seu conjunto metade da população mundial, era e continua a ser uma barreira maior à extensão das influências européias do que jamais foram as grandes áreas do Nôvo Mundo.

Dessa forma, mesmo concedendo-se uma margem para o progresso da agricultura de plantação na África e nas índias Orientais, os países do Nôvo Mundo têm exibido uma qua­lidade dinâmica na sua evolução durante o último século e meio, ao passo que as regiões densamente povoadas da Ásia das Monções, excluindo-se o Japão, têm sido característica­mente estáticas. Somente em épocas muito recentes algo que se aproxima de um esfôrço real e difundido foi feito para lançar por terra o jugo à hegemonia política e econô-

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mica da Europa ocidental. Pela primeira vez na historia, em abril de 1947, urna “Conferencia de Relações Asiáticas” foi realizada em Nova Deli e, de acôrdo com um correspon­dente de The Times, ela “ . . .pode ser considerada como um resultado do declínio da influência política européia no Oriente, mais particularmente na Asia sul-oriental, e o con­comitante aumento da consciência nacional entre os povos asiáticos”.

Afigurar-se-ia, portanto, que o padrão anterior de rela­ções entre Estados “ativos”, progressistas, e comunidades “passivas” que evoluem menos rápidamente, vem cedendo lugar a um nóvo conjunto de relações entre os Estados. O conceito de Imperialismo, do século XIX, juntamente com a exploração econômica de terras menos altamente organiza­das, não se ajusta ao atual esquema de coisas. Se se quiser que o século XX seja “a Era do Homem Comum”, como os publicistas freqüentemente afirmam, então os milhões de indivíduos politicamente desorganizados e subnutridos da Asia e da Africa igualmente têm direito, com seus semelhantes emancipados da Europa, América e Australásia, aos beneficios de tal era.

Essa revolução nas relações interestatais talvez seja mais convincentemente ilustrada pelo fato de que a Índia, o Bra­sil, o Egito e a Argentina são agora países “credores”, ao passo que até o fim do último século, e em alguns casos até mesmo mais recentemente, dependiam em grande parte da disponibilidade de capital da Europa ocidental, principal­mente inglês, para o seu desenvolvimento interno. Com efeito, a primeira metade do século XX é assinalada pela rápida difusão de similitude na organização política de Es­tados numa extensão anteriormente desconhecida. No pas­sado, a maturidade num ou mais Estados sempre coincidia com a imaturidade e falta de organização no resto do mun­do, de modo que os caminhos da expansão territorial eram seguidos com relativa facilidade. O Estado dotado de poder, associado com uma organização política, militar e econômica,

22 T he Tim es, 15 de abril de 1947.

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quando se baseava em recursos humanos e materiais suficien­tes, os segundos incluindo território, podia impor sua von­tade aos Estados menos organizados.

Durante e após a Era dos Descobrimentos, a evolução de vários Estados dominantes ou Potências Mundiais levou a rivalidades até que suas relações foram orientadas pelo sistema que veio a ser conhecido como Equilíbrio de Fôrças. Ainda existem Potências Mundiais e potências menores, po­rém o equilíbrio é muito mais delicado porque as segundas vêm defendendo suas reivindicações à participação nos assun­tos mundiais numa extensão não-sonhada até há cinqüenta anos. Com freqüência os jornais noticiam que cinqüenta ou mais nações se acham representadas numa conferência inter­nacional e o ressentimento expresso quando foi concedido às Grandes Potências o direito de vetar decisões da Assem­bléia da Organização das Nações Unidas constitui ponto significativo do crescente deseje das potências menores rea­lizarem o que consideram ser suas funções nas relações in­ternacionais.

Para o géografo político, o significado e valor dêsse fenômeno do século XX reside na possibilidade de um nôvo alinhamento dos Estados. No passado, os agrupamentos de unidades territoriais eram impostos por Estados mais pode­rosos, tendo assumido a forma de impérios ou alianças para fins militares, quer ofensivos, quer defensivos. Com a única exceção do Império Britânico, e isto somente em anos re­centes, não se verificava livre asosciação de Estados. Até o Império Brtânico, por ter sido organizado antes da apro­vação do Estatuto de Westminster, foi o resultado de con­quistas combinadas com as recompensas de descobrimentos e explorações. Caso idêntico se deu com os Impérios da França, Bélgica, Plolanda e Alemanha. Os Estados Unidos julgaram necessário travar sua Guerra Civil a fim de impor unidade, e pelo menos pressão econômica e política foi uti­lizada para consolidar a União Soviética.

Nos dias que correm, o mundo se acha dividido em Estados que se podem associar livremente em suas relações uns com os outros no nível político, embora suas relações econômicas continuem a ser orientadas pela necessidade de

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alimentar, vestir e alojar seus povos, e, portanto, pelo in­tercâmbio de mercadorias de muitas especies. Num mundo ideal, as relações entre essas unidades politicamente inde­pendentes seriam integradas num padrão global destinado a facilitar o desenvolvimento de urna Comunidade Mundial, mas tal unificação, por mais conveniente que possa ser, não deve ser esperada para um prazo muito curto. Existem ainda demasiados óbices no caminho da unidade completa. Dife­renças de ideologias políticas, na perspectiva e cultura tra­dicionais, para não mencionarmos a diversidade de língua e religião, tudo isso tendo-se desenvolvido em longos períodos de tempo, não podem ser eliminadas da noite para o dia. Antes, seria preferível avançar por meio de um estágio in­termediário qne pode ser sucintamente descrito como coo­peração funcional numa base regional.

As “realidades geográficas” de Mackinder sugerem a estrutura dentro da qual tal agrupamento de Estados pode ocorrer e atuar como um prelúdio ao desenvolvimento ulte­rior da unidade mundial, sempre e contanto que cada um dos agrupamentos regionais compreenda qne seus interêsses serão servidos da melhor forma pela cooperação intergrupal. A U.R.S.S . já está unida e, o que é mais, estruturou um grupamento regional que abrange o que o Professor Fawcett denominou Região de Transição Ocidental. A Europa oci­dental, isto é, a Europa a oeste de uma linha que vai de Stettin a Trieste, inclusive as penínsulas ibérica e itálica, juntamente, talvez com as Terras do Atlas da África do norte, possuem muito em comum. O Oriente Médio, em grande parte coincidente com o Mundo árabe, inclusive a Síria, o Líbano, Iraque, Jordânia, Egito e, possivelmente, um Paquis­tão reorganizado, indica um segundo agrupamento entre os Estados marginais com laços vigorosos e maior poder eco­nômico do qne em qnalquer outra época, em virtude das suas reservas de petróleo. No Extremo Oriente, amplas simili­tudes de condições climáticas, associadas com produção agrí­cola e densas populações agrárias, indicam estreitas intercor- relações que poderão muito bem ser facilitadas pela aquisi­

C. B . Faw cett, op. cit., Fig. 4, p. 4.

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ção de independência mais ou menos completa pela Índia, Birmânia e Indonésia. Cada um dêstes três últimos grupos possui elevado grau de contigüidade, com a vantagem acres­cida de rotas marítimas, em virtude de suas configurações e disposição. A Comunidade e o Império Britânicos pode­riam formar uma quinta associação, visto já serem politica­mente unidos, deixando as Américas como o sexto e último grupo, porém de modo algum o menos importante.

Cada um dos sugeridos grupos-unidades possui vastos recursos materiais e humanos, encerrando cada um dêles em si suficiente comunidade de interêsses para tornar possível uma base satisfatória para cooperação funcional, porém ni­tidamente cada um sofreria de quaisquer tentativas para alcançar auto-suficiência em assuntos econômicos, visto que seria do interêsse de cada grupo promover o bem-estar das associações restantes. Em outras palavras, um agrupamento estanque seria indesejável, e por dois motivos relevantes. Pri­meiro, o comércio mundial, do qual, em última análise, depen­de o bem-estar da humanidade, não pode ser satisfatoriamente efetuado se existirem barreiras econômicas, quer entre os Esta­dos, quer entre agrupamentos dêstes. Em segundo lugar, há la­ços entre os Estados em diferentes grupos que contrabalança­rão qualquer tendência a um desenvolvimento econômico re­gional restritivo. Será demais esperar que os Estados constitu­tivos sacrifiquem sua soberania, mais particularmente nos casos em que os podêres soberanos tenham sido adquiridos apenas recentemente. A sugestão aqui é que cada associa­ção devia desenvolver-se como uma federação política e econômica que proporcionasse um ambiente tanto para rela­ções estatais intra-regionais e para relações mundiais como entre os grupos.

Seria imprudente minimizar as dificuldades a serem su­peradas e os perigos a serem evitados, sendo o maior dêstes últimos o risco de um Estado estabelecer hegemonia sôbre os outros no seu grupo. Mas êsses problemas já se acham presentes no padrão existente em que muitos Estados pe­quenos não podem nutrir a esperança de resistir com êxito ao intentado domínio de uma Grande Potência sem a assis­tência de outra. Por outro lado, o poderio mundial seria

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distribuído mais uniformemente entre ésses grupos que su­gerimos, e uma vez que uma ação comum se tornasse pos­sível dentro de cada região, o perigo de agressão em assun­tos militares ou econômicos provàvelmente seria reduzido. Nitidamente, o estabelecimento e implementação de tal es­quema de regiões federais ultrapassam o âmbito da Geo­grafia Política — que deve permanecer a cargo dos estadis­tas. Tudo o que o geógrafo político pode fazer é indicar a base geográfica na qual se deve colocar qualquer esquema de relações entre os Estados. Cada vez maior dose de conhecimentos dessa base vem sendo obtida, quase que se poderia dizer diàriamente, e o resultado dessa percepção, que se avoluma rápidamente, da configuração da superfície terrestre, é uma compreensão de que o ambiente físico global tem a qualidade de sistematização de que parece ressentir-se a atual disposição dos Estados.

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V

FRONTEIRAS E LIMITES

O ESTUDO das fronteiras e limites é tido como importante ramo da Geografia Política, daí ser aconselhável explicar, logo de início, as conotações geográficas contidas nos dois têrmos. Em sentido geral, são sinônimos; “fronteira interna­cional’ significa, muitas vêzes, na linguagem dos políticos, historiadores e outros, “limite internacional”. A explicação dessa intercambialidade de terminologia talvez esteja no fato de que comparativamente até há bem pouco tempo os limi­tes dos Estados, com algumas exceções, os dois grandes Im­périos do passado, eram mal definidos em virtude da falta de conhecimento pormenorizado do terreno e da ausência de sua exata representação cartográfica. Mas em virtude do adiantamento dos métodos de investigação e cartografia e com a evolução do Estado em sua forma presente, a grande maioria dos limites acha-se, hoje, não sòmente claramente definida como também precisamente demarcada no solo.

Igualmente, antes do mundo todo ter sido retalhado en­tre os muitos Estados, extensas áreas de sua superfície, até então inadequadas à ocupação humana em virtude das con­dições físicas, tais como os pântanos ou as florestas, eram quase sempre aproveitadas como barreiras protetoras a cuja sombra a organização incipiente podia desenvolver-se( em relativa segurança. Gradativamente, essas barreiras foram sendo ultrapassadas, de uma maneira ou de outra, e as suas áreas incorporadas ao território dos Estados; mesmo nos gran-

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des desertos, o contróle estatal tem-se expandido até ferir a soberania de outros Estados quando, então, as linhas divi­sorias se tornam necessárias. Dessa forma, fronteiras são zonas ou faixas de território como demonstram as expressões “Fronteiras de Colonização”, “Fimbrias do Colonizador”, etc. Encerram área, grande ou pequena, e estão sujeitas à mu­dança contínua sempre que a ação humana lhes altera a natu­reza e serventia. Já passou o tempo da expansão territorial em larga escala nessas regiões fronteiriças; o que resta agora é o período de intensificação da colonização e da utilização da terra e da integração mais acentuada da área fronteiriça na órbita do Estado. Não quer isso dizer que as fronteiras do mundo tenham desaparecido. Ao contrário, continuam como zonas marginais e, em alguns casos, constituem ainda regiões de discórdia entre países vizinhos, e sob êsse aspecto tomam-se elementos demolidores das relações interestatais que o geógrafo político não pode ignorar.

Embora reconhecendo a contínua existência das frontei­ras, na acepção em que o têrmo é aqui empregado, é tam­bém necessário reconhecer que a natureza do Estado moderno necessita do estabelecimento de limites bem definidos para sua área de soberania e organização. Para tôdas as suas multifírias atividades de administração, de tributação, de defesa, de comércio, etc., etc., o seu território precisa ser claramente limitado, não por áreas fronteiriças, mas por li­nhas inconfundíveis. Essas linhas são os limites interestatais. Sem elas, o presente sistema de Estados ficaria reduzido ao caos, pois seria impossível saber-se onde terminaria a soberania de um Estado e onde começaria a do outro. Já não há muito espaço para as “zonas neutras” ou “terras de ninguém”. Com exceção das ilhas-Estados como a Austrália, a Nova Zelândia e a Islândia, todos os países possuem liga­ções territoriais com um ou mais Estados, podendo-se fazer uma idéia da extensão dessas ligações e da fragmentação da superfície da Terra pelos cálculos de Boggs®* que mostram

28 s. w. Boggs, International Boundaries — A Study of Boundary Functlons and Problem s, Nova York, 1940, Apêndice A, pp. 207-218.

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que a extensão total dos limites interestatais (as regiões li­torâneas exclusive) é de 102.534 milhas (165.013 quilômetros.)

Não se pode fazer uma avaliação idêntica das fronteiras do mundo pela simples razão de que não se chegou ainda a acôrdo sôbre sua extensão. São mais transitórias pelas re­giões geográficas do que pelos Estados, embora os limites internacionais sejam quase sempre traçados nesse âmbito. É aconselhável e conveniente, portanto, restringir-se o uso dessas duas expressões para evitar confusão de pensamento e de interpretação. As fronteiras relacionam-se com as áreas, enquanto os limites são lineares pela sua natiueza. Aquelas podem ser, corretamente, denominadas “naturais” porque fa­zem parte da superfície da Terra: em muitos casos, assumem a categoria de regiões geográficas na medida em que pos­suam a característica de individualidade baseada nas respec­tivas funções como zonas transitórias. Êstes são artificiais desde que são selecionados, definidos e demarcados pelo homem, aqui, em conformidade com as características fí­sicas do terreno, ali, em completo descaso por êsses fatôres geográficos.

Em virtude dessa diferença, é muito justo considerar, por exemplo, o solo do vale do Reno como “fronteira na­tural” entre a Alemanha e a França, porém a escolha e o uso do rio Reno como parte do limite franco-alemão empres­tam a essa linha caráter artificial; embora o rio seja “natural”, isto é, característica física, seu uso como limite político é artificial. Análogamente, justifica-se, em parte, tomar os Alpes como fronteira natural entre a Itália e a França, mas o limite entre os dois países representa o resultado de alguns séculos de reajustamentos entre os italianos e os franceses. Talvez essa diferença seja mais enfáticamente ilustrada pelo fato de que a fronteira, seja o seu caráter físico, lingüístico, religioso ou étnico, não pode ser alterada; pode mudar de caráter, pode perder muito da sua função fronteiriça, mas

25 V er S. B . Jones, Boundary M aking, Washington, 1945, para o exam e pormenorizado dos têrmos técnicos usados em relação aos limites.

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deve permanecer in situ. Por contraste, os limites não são de modo algum permanentes, como demonstrado pelos es­tudos de Miss S. Saucerman, a qual calcula que as mu­danças de limite que surgiram por efeito da Primeira Guerra Mundial deram em resultado, sòmente na Europa, a cessão de muitos milhares de milhas quadradas de território.

Esta diferenciação no significado das palavras “fronteira” e “limite” ajuda a esclarecer muitas das dificuldades ligadas à relação que surge da justaposição dos Estados. Sempre existiram as fronteiras e sòmente quando tentam definir as regiões é que os geógrafos entram no pleno conhecimento dos problemas decorrentes de sua existência. Sempre pos­suíram extensão espacial, sempre ocuparam partes da super­fície do globo, mas em virtude de sua natureza transitória vêm exigindo definição correta.

Os mares, as grandes florestas, as áreas montanhosas, os grandes pântanos, os desertos, tanto quentes como frios, têm servido de barreiras à expansão e ao intercâmbio hu­manos, mas, em conseqüência da iniciativa e do empreendi­mento do homem, suas funções divisórias vêm sendo gran­demente modificadas e em grau não maior do qne pelos esforços empregados para organizar as atividades e utiliza­ção humanas dos recursos que são apresentados pelo Estado moderno. Dessa maneira, as Montanhas Apalaches serviam de fronteira ocidental das Treze Colônias primitivas da Amé­rica do Norte. Desde, porém, que as estradas dos vales que cortam essa barreira começaram a ser positivamente utiliza­das, sua função como fronteira transferiu-se para as prada­rias do Centro-Oeste que, por sua vez, foram substituídas pela cadeia de montanhas do Extremo Oeste até que, final­mente, o movimento expansionista nesta direção atingiu o Pacífico. Essa expansão de âmbito continental da influência dos Estados, análogamente bem ilustrada no movimento gra­dativo em direção ao leste, do contróle russo na Ásia, não é possível. Nos casos em que as fronteiras não foram in­corporadas aos Estados, o problema do século XX é de rea-

28 S. Saucerman, International Transfers of Territory in Europe, Washington, 1937.

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juste territorial, claramente esboçado nos esforços para o estabelecimento dos limites das áreas disputadas.

Três exemplos bastarão para demonstrar isso. Na Zona Central da Europa, situada entre os mares Báltico e Adriá­tico, muito apropriadamente chamada “Terras Fronteiriças do Leste da Europa”, existe um territorio que contém atualmente cêrca de um milhão de pessoas de tipo étnico e cultural muito mesclado. Há séculos que vem servindo de fronteira entre o Leste e o Oeste, sujeito às influências cul­tural e econômica dessas duas regiões, suscetível à conquista militar e insistentemente invadida, tanto por exércitos como por mercadores, em virtude de sua posição geográfica. Seu solo não se constituiu de modo algum em barreiras intrans­poníveis, apesar da sua tendência natural para guiar e diri­gir os movimentos humanos por certas linhas. Essa região jamais serviu de barreira fronteiriça como sua história am­plamente demonstra; pelo contrário, tem exercido sempre a função de ponte, e os esforços para convertê-la em cordon sanitcdre alcançaram êxito incomum. O processo moderno de reajuste das situações limítrofes tem-se demonstrado ali pelo estabelecimento de uma série de Estados independentes e fracos, de função até agora um pouco superior a de equi­valentes modernos dos caracteres carolíngios do século IX. Por mais independentes que politicamente venham sendo, nada mais, entretanto, têm sido económicamente, senão vas­salos das Potências dominantes do Leste e Oeste.

Um reajustamento diferente faz-se necessário no nor­deste do Adriático, onde a comunidade mediterrânica se apro.xima mais intimamente das regiões do Danúbio. Essas duas regiões, largamente diferentes, são aí separadas por uma faixa de terreno que mede cêrca de vinte milhas de largura, contendo uma das passagens mais fácilmente acessíveis na aba montanhosa nordestina do Mar Central Mundial. O nordeste dessa Região Juliana®® é tipicamente alpino, en-

2í V er H. G. Wanklyn, T he Eastern M archlands of E urope, Londres, 1941.

28 Para melhor explicação dessa região, ver A. E . Moodie, Tha Italo-Yugoslav Boundary, Londres, 1945.

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quanto o sudeste é o Carso. Tôda essa região, de modo geral, é pouco habitada, possui parcos recursos materiais relativamente à agricultura e à indústria e, com relação à importância de sua posição, pequena contribuição poderia oferecer à história européia. Exatamente pelo fato de ficar entre duas regiões opostas importantes, qualquer expansão de uma, em face à outra, teria de passar por ali, de modo que, desde a era romana, vem servindo de fronteira, zona de discórdia mantida pelas Potências do Mediterrâneo, da Europa central e do Danúbio. Cada um dos possuidores da Região Juliana já tentou concretizar ali a sua hegemonia territorial com o estabelecimento de limites, sendo que al­guns dos índices das dificuldades do reajuste encontram-se no número de limites apresentado em 1919-20 e também em 1946-47.

A Europa ocidental constitui o terceiro exemplo de re­gião fronteiriça no caso em que Ancel chamou “Les Confins occidentaux” de “U Europe Germanique” e que define como:

. . . toute la zone-frontière qui s’étend de la Suisse aux Pays-Bas.

Êle descreve êsse território como:

Enchevêtrement des paysages, opposition des gen- res de vie, traditions différents dans le labeur-. voilà, à première vua, les raisons d'étre des contrastes, que la géographie accuse, mais que Vhistoire amenuise.

O reajustamento humano dessas características limítrofes tem dado lugar ao estabelecimento de entidades políticas inde­pendentes no nordeste e sudeste dessa região fronteiriça, sen­do que em sua parte centro-sul a França e a Alemanha têm

29 Figs. 1 e 2.>0 J . Ancel, M anuel G éographique de Pc-litique E uropéene, P a ­

ris, 1940. Tomo II, L ’E urope G erm anique et ses bom es.SI Op. cit., p. 9.

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VILLACH Umo linho íimple* é utilizado no» lugares orvda o masmo limite loi adotado em o*r'odot diferente». Éste» sóo indicode» por letra» como relerénelo-

= S EX IG ÊN C IA ITA LIA N A DA A U STRIA , 1915■. OTERECIM En TO a u s t r í a c o a IT A L IA , 1915

LIN H A DE LONDRES, 1915 LIM ITE O C IDEN TA L DAS REIV IN D ICA ÇÕ ES

IU G O SLA V A S , 1919— LIN HA DE W ILSON, 1919

f L IN H A O RIEN TAL DA T R A N S IG ÊN C IA 06TAROIEU, 1919

G M O O lflC A Ç Õ ES DA LIN H A DE W ILSON , 1990H 1 _ LIN HA 06 R APALLO , 1920 I PAC TO DA LIN H A DE ROM A, 1994

LJUBLJANA

Frc. 1 — Urna Década de Esfôrço — Tentativas para E sta­belecer o Lim ite Juliano, 1914-24

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— — • LIMITES INTERNACIONAIS DE 1939 • LINHA AMERICANA. ABRIL DE 194Ó• • « • • • a LINHA MORGAN PARA FINS OCUPACIONAIS TEMPORÁRIOS, 21-6-45

■« LINHA FRANCESA, ABRIL DE 1946. ADOTADA NA CONFERÊNCIA DE PAZ, SET. DE 1964 COM BASE NOS NOVOS LIMITES, CONFIRMADA PELA NOVA RATIFICAÇÃO

DO TRATADO ITALIANO, SET. DE 1947 LINHA BRITANICA, ABRIL DE 1946 (N. 8.: No norte do Tnesfe, comcid.om

os linhos nofle-omericona, Ironcoso e brllónico)• LINHA RUSSA, ABRIL DE 1946. REPRESENTANDO AS REINVIDICAÇÔES DA IUGOSLÁVIA

^ LIMITE ENTRE A ITÁLIA E O ESTADO LIVRE DE TRIESTE g^TERRITÓRIO DO ESTADO LIVRE DE TRIESTE

F ig. 2 — Limites Sugeridos na M archa Juliana, 1946-47

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contato direto, havendo essa rivalidade provocado repetidas mudanças no local do limite comum.

Obviamente, não se chegou ainda aí a um acôrdo satisfa­tório, como bem mostra a história da Alsácia. Os nomes de lugares e a língua falada pela maioria dos alsacianos reve­lam íntimas ligações com a Alemanha, reforçadas pelos laços econômicos com êste país através das estradas de rodagem do Reno e do vale do mesmo nome, porém, como indicado por Ancel, suas “afinidades espirituais” são com a civili­zação francesa. Lingüística, econômica e culturalmente é, portanto, uma zona marginal sujeita às influências do Leste e Oeste e, necessàriamente, seu povo acha-se dividido por compromissos de fidelidade que se entrechocam.

As condições para a existência humana não são muito favoráveis nessas e em terras fronteiriças semelhantes. A possibilidade constante de mudanças de limites, com as suas convulsões sociais correlatas de obediência política, é con­trária tanto à segurança como ao desenvolvimento pacífico e, só raramente, era consultada a vontade dos habitantes quando se tomavam resoluções para a fixação do seu terri­tório. Com efeito, de modo geral, os limites nessas terras fronteiriças eram impostos de acôrdo com o êxito ou fra­casso dos Estados circunvizinhos nos seus esforços expan- sionistas, e, como essas “colonizações” raramente são aceitas por acôrdo mútuo, tendem a agravar a situação já por si difícil. Isso se verifica, em particular, sempre que se desen­volve intensa propaganda a fim de convencer as populações fronteiriças estarem os seus interêsses vitais relaeionados com os do Estado que conseguiu, temporàriamente, incorporar- -Ihes a terra, visto como estimulam reivindicações “revisio­nistas” pelo Estado que, certa ou erradamente, considera o território em litígio como terra irredenta.

Nenhum aspecto dos assuntos internacionais demonstra de maneira mais clara as limitações do gênero humano do que os esforços para fixar o destino dessas fronteiras. Até agora, as resoluções têm sido quase sempre adotadas com o

2= Op. cif.j p. 51.

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I. F c . H. - U. F R. Q. s iWFÇTDAnrt n - C i ê n c i a , .-odalaM c STOADO Oc SOCIOLOGIA Ê C .ífC iA POLÍTICA

_________ ® ' B í- I O T E C A

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emprêgo da fôrça e servindo apenas para plantar a semente de novas discórdias que mais se arraigam com as fantásticas reivindicações apresentadas, às vêzes, pelas partes contrá­rias. “Direitos históricos”, “fronteiras naturais”, “terta irre- denta” são expressões freqüentemente utilizadas como des­culpas para a exaltação. A Geografia Política pode forne­cer valiosa contribuição ao conhecimento humano, nesse se­tor, pelo estudo cuidadoso, em têrmos geográficos, dessas fronteiras. A análise dos casos individuais, tal como feita por Goblet e Ancel, serve de base para a avaliação de todos os elementos que entram na composição dêsses dis­putados territórios.

Há, presumivelmente, grande trabalho a ser feito — o campo é muito vasto — mas que o diagnóstico objetivo e detalhado é essencial vê-se pela triste incapacidade demons­trada quando se tenta decidir o destino das fronteiras sem atentar para a sua natureza geográfica. Eis por que Goblet chama a Geografia Política a “ciência da paz”. No calor da guerra ou mesmo nas mesas das conferências internacionais, o isolamento e a objetividade são coisas difíceis de conse­guir-se. Em tempo de paz, a investigação do terreno, apoia­da em estudos acadêmicos, constitui os requisitos essenciais para a acumulação da evidência dos fatos. Não há sequer duas regiões fronteiriças idênticas. Sua única semelhança é que vêm servindo e podem tornar-se zonas de conflito, de tensão e de disputa entre os Estados interessados. Não se enquadram em categorias distintas, cada uma precisa ser estudada individualmente. É claro que o investigador precisa estar livre de preconceitos nacionalistas; deve ter completo acesso a todos os documentos pertinentes, inclusive mapas, e os resultados postos à disposição do público. Provàvelmen- te, o meio ideal seria organizar essas pesquisas sob a égide da Organização das Nações Unidas de modo que, no devido tempo, os fatos relativos a tôdas as fronteiras importantes do mundo fôssem postos livremente à disposição para consulta.

83 Y . Goblet, L e Crépuscule des Traités, Paris, 1934, tradu­zido sob o título de The TwiUght of Treaties, Londres, 1936.

82 J . Ancel, op. cit.

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Grande parte do que vai acima dito aplica-se, com igual ênfase, aos limites, visto que éstes ficam quase sempre dentro das fronteiras, mas há urna diferença fundamental inerente às suas diversas naturezas e funções. Sendo uma linha, sem área significativa, o limite interestatal não poderia conter recursos materiais; não pode ser habitado nem pode ser transitorio. Representa urna qiiebra abrupta entre países adjacentes. Ê especificamente destinado a separar e, como tal, não tem semelhante na natureza onde quer que defini­tivamente não existam os limites estritamente lineares. O seu objetivo não é o da fronteira geográfica que serve para facilitar a fusão de urna e outra serie de situações físicas, isto é, a passagem de um para outro ambiente físico, mas assinalar, de maneira irrefutável, o limite do territorio no qual o Estado exerce sua fôrça soberana. Em outras palavras, o limite define a área dentro da qual se desenvolve a organização interna do Estado e ao longo do qual entram em contato diferentes siste­mas de organização estatal. É, portanto, mais urna carac­terística política do que geográfica e sua função divisoria depende, grandemente, do grau de diferença ou de seme­lhança entre as organizações em meio às quais fica.

O local do limite, portanto, determina, para milhões de pessoas, a língua 0 as idéias que serão ensinadas, às crianças, nas escolas; os livros e jornais que 0 povo po­derá comprar e ler; 'a espécie de dinheiro que usará; os mercados em que terá de comprar e vender e tdv0z meSmo os tipos de alimentos que lhes serão permitido ingerir; determina a ciãtura nacional com a qucà se identificará; o exército no qual será obrigado a servir; o solo que poderá ser chamado a defender com a pró­pria vida, tenha ou não decidido defendê-lo.

Nada há intrínsecamente de mau ou prejudicial nos li­mites. Enquanto a população do mundo persistir em gru­par-se em certo número de Estados, cada um exigindo independência política, porém com área, recursos e poder desiguais e possuindo economias e métodos de organização

83 S . W. Boggs, op. cit., p. 5.

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diferentes, os limites continuarão a ser necessários como li­nhas divisorias entre as áreas de jurisdição. Como, de outro modo, podem os componentes de um Estado, principalmente os que vivem em distritos periféricos próximos às margens, conhecer o código legal sob o qual têm de viver, pagar os tributos à repartição competente e exigir proteção da res­pectiva autoridade? É por isso que os limites internos são também necessários, mesmo em um Estado altamente orga­nizado e de perfeito funcionamento como o Reino Unido, em que a Comissão de Limites do Govérno Local se tem defron­tado com dificuldades gravíssimas sempre que tenciona reco­mendar mudanças essenciais. Por que então, pode-se pergun­tar, as discórdias sôbre limites ocorrem com tanta freqüência e em tantas partes do mundo? A resposta a essa pergunta relaciona-se com duas séries de circunstâncias geográficas.

Primeiro, o limite interestatal claramente demarcado constitui adendo recente ao “panorama cultural” e sintetiza o desenvolvimento da centralização da autoridade e do poder no Estado como organismo normal para a organização das atividades humanas; quanto mais estejam essas atividades intimamente integradas, tanto maior a necessidade de serem estabelecidos os limites de maneira claramente identificável. A necessidade dessas linhas só se fêz sentir quando os Es­tados se tomaram suficientemente organizados e capazes de garantir a definição de snas áteas de jurisdição. De modo geral, isso só foi conseguido no século XIX, embora os atlas históricos dêem a errônea impressão de que, anteriormente, algumas partes da superfície da Terra eram divididas por limites políticos tão precisamente como o são hoje. É pos­sível que existissem locais de inspeção onde as mercadorias podiam ser examinadas para efeito de tarifas, porém a grande escassez dos negócios constituía uma das razões principais por que os limites não foram levantados como o são atual­mente. Logo que os Estados tomaram a forma presente e logo que aumentou o comércio mundial, fêz-se cada vez mais necessário ajustar suas relações, e isso implicou a definição exata dos seus territórios.

O processo não está ainda completo e as discórdias sô­bre limites entram em perspectiva sempre que são aprecia-

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das como “o ponto doloroso” de um sistema mundial em crescimento, estando ainda muito longe de atingir a matu­ridade. Seria irracional, portanto, esperar que essas disputas desaparecessem imediatamente, mas pelo reconhecimento das mesmas como o resultado dos esforços para reajustar tanto as atividades internas como as externas, dos Estados conti­guos, tem-se melhor oportunidade de encontrar a solução para os problemas que até agora parecem insolúveis.

Em segundo lugar, limites políticos não são simples mites territoriais. Já ficou bem claro em capítulo anterior que todo Estado é um amálgama de térra e povo, de modo que os seus limites incluem também sua população e suas atividades internas, sendo que êstes dois elementos variam, na estrutura, em escala muito grande mesmo em países vizi­nhos. Sempre que os sistemas e níveis de organização di­ferem muito em ambos os lados do limite, exerce-se pres­são sôbre a linha divisoria que se transforma em pomo de discordia. Inversamente, a existência, lado a lado, de sis­temas análogos, reduz a tensão na periferia de cada um.

Êsses dois casos extremos indicam que a presença ou ausência de discordias é o resultado da função do limite e que essa deriva não tanto da natureza e local da linha propriamente dita, mas da natureza das comunidades que separa. Sendo essas incompatíveis, podem advir conflitos; se possuírem muitos interêsses comuns e mostrarem boa vontade umas para com as outras, a discórdia pode ser evi­tada. O papel dos limites políticos nos assimtos internacio­nais depende, portanto, do grau de acomodação conseguida pelos vários Estados face ao padrão distributivo sob o qual existam, bem como do nível de desenvolvimento organiza­cional dentro de cada um.

De acôrdo com êsse ponto de vista, todo problema de limites representa uma tentativa, por parte de um ou mais Estados, para encontrar o modus operandi no prolongado processo de chegar-se a essa comunhão de interêsses inti­mamente entrelaçados que tornará as linhas divisórias obso­letas e desnecessárias. Não há ainda indícios da existência de tal Estado utópico, tanto de relação externa como interna, de modo que as contendas sôbre limites devem ser espe-

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radas sempre que se verifique incompatibilidade entre paí­ses adjacentes, mas deve-se ver com otimismo os casos em que a imposição unilateral dos limites interestatais vai sendo substituida pelo acórdo bilateral e até multilateral. Tra- ta-se de um passo acertado para a eliminação da prevenção e do ressentimento entre Estados relativamente aos limites comuns, porquanto isso indica que se está dando mais im­portância à natureza, necessidades e potencialidades do Es­tado do que ao exato caráter e localização dos seus limites.

Em outras palavras, a atitude mental dos políticos com referência ao Estado e seus limites vai-se tomando mais com­parável à do geógrafo quanto às regiões. Êste último pensa primeiro em têrmos da individualidade, área, forma e con­teúdo de uma região, quando, então, procura definir-lhe os limites. Durante todo o século XIX, os estadistas procuraram estabelecer, primeiramente, os limites territoriais, concentran­do-se, então, no desenvolvimento do Estado dentro dêsses limites, resultando daí o atrito principalmente nas áreas mar­ginais, se mais não fôsse, pelo menos pelo fato de que uma vez assentadas as linhas divisórias, a tendência era serem as mesmas consideradas como fixações rígidas que sòmente poderiam ser modificadas pelo irrompimento da guerra. Es­sa falha em reconhecer a mutabilidade dos limites, ou, pos­sivelmente, os receios que tal reconhecimento poderia acar­retar, deu lugar às tentativas para reforçar a sua função separadora. Levantaram-se muralhas tarifárias e assenta­ram-se fortificações no esfôrço vão de conseguir-se a exclu­sividade mútua das entidades políticas, enquanto o aumento rápido da população, ampliando o comércio interestatal e o desenvolvimento dos meios de comunicação que tomava possível êsse comércio, exigia a remoção dos obstáculos. É significativo o fato de que até o fim do século X IX não se conhecia o passaporte e as pessoas podiam locomover-se li­vremente de um país a outro sem tôdas essas penosas for­malidades necessárias atualmente.

Dessa forma, os limites internacionais transformaram-se na demonstração externa e manifesta do desajuste das rela­ções políticas e econômicas entre Estados. Segue-se que quanto maior fôr o número de Estados em certa parte da

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superfície da Terra, tanto maiores devem ser as extensões combinadas dos limites e, portanto, tanto maior a possibili­dade do atrito interestatal, etc.; por sua vez, a esperança de criar-se tanto a integração política como econômica fica pro­porcionalmente reduzida. Como o número de entidades po­líticas independentes é desigualmente dividido, são as áreas mais prováveis de produzir discórdias de limites.

Os geógrafos políticos devem agradecer a S. W. Boggs por ter êste reduzido tal generalidade a têrmos mais preci­sos com os seus cálculos sôbre as extensões totais dos limites internacionais, não somente para o mundo como um todo, mas também para os continentes individualmente. Cônscio da insignificância da simples extensão, relacionou êle suas medidas lineares com a área e a população. Multiplicando o número de milhas de limite de mil milhas quadradas pela população por milha quadrada, chega êle ao índice presu­mível “do fator interruptor — o efeito prejudicial — dos limites”, e expressa em forma númerica as variações, em graus, da divisão dos continentes que o mapa político do mundo mostra com muito menos clareza pelo fato de que os continentes propriamente ditos variam muito de área. Ciente também da invalidade da tradicional convenção da linha dos Montes Urais como limite entre a Ásia e a Europa, deixa uma margem de tolerância para o caráter euro-asiático da U. R.S .S . , de modo que os números do seu índice obe­decem à ordem seguinte:

Europa (exclusive a U.R.S .S . e a Islândia) . . 1.400Ásia (exclusive as Filipinas) .............................. 190América do S u l.......................................................... 33África (exclusive Madagascar e os limites da

União Sul-Africana com outros territóriosbritânicos) .......................................................... 30

América do Norte (inclusive a América Central e as Índias Ocidentais, porém, exclusive a Groenlândia e o limite do Canadá-Labra- dor) .................................................................... 23

S6 S. w. Boggs. ap. cit., p. 16.37 Ihid., Quadro I, p. 13.

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Desta classificação, ressaltam dois pontos de interêsse para o geógrafo político. Primeiro, o extremo contraste entre o centro e as terras “marginais” indicadas no capítulo IV torna possível o desenvolvimento econômico e político da União Soviética sem obstrução pelos limites internacionais. O Centro, até onde representado pelo território russo, ocupa a maior extensão da superfície contínua de terra do mundo e não existe qualquer outra área semelhante em qualquer sistema político unificado. Ê êsse o motivo por que essa União conseguiu pôr em prática métodos de desenvolvi­mento econômico em grande estala mais rapidamente do que em qualquer outra parte. Oferece também uma e.xplicação parcial do vasto potencial da influência russa no mundo.

Segundo, o oeste europeu continental do limite soviético é mais diminutamente fracionado do que qualquer outro con­tinente, grande ou pequeno. Mesmo no total da milhagem dos limites, excede o total da América do Norte, inclusive as índias Ocidentais, mas tomando-se a extensão em con­junto com a área e a população, a Europa sobressai aos continentes na proporção em que sua superfície é dividida entre Estados independentes.

São muitas e complexas as razões dessa fragmentação incomum e se relacionam mais com os fatôres históricos do que com os geográficos, porém alguns dentre os últimos já produziram os seus efeitos. O caráter peninsular do con­tinente tomou-o acessível, pelo lado oriental, isto é, pelo flanco em direção à terra, às infiltrações dos povos oriundos da massa terrestre asiática. Os motivos exatos das migra­ções dos povos do Leste são ainda confusos, mas não há discordância sôbre a relativa facilidade com que podiam mover-se na Europa para o oeste. Assim foi que a planície européia e as terras danubianas proporcionavam corredores pelos quais podiam passar.

Além disso, as diferenças na estrutura geológica e no terreno resultante provocam grande variedade dos ambien-

38 Europa a oeste da U . E . S . S . , 14.846 milhas. África, 28.113 milhas. Asia, 26.113 milhas; América do Sul, 18.961 milhas; Amé­rica do Norte, 11.433 milhas.

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tes físicos da Europa, enquanto as condições climáticas, sem impedir as atividades humanas em virtude de muito calor ou de frió excessivo, são suficientemente diferentes para es­timular grande variedade de plantas e, conseqüentemente, da produção agrícola. A profunda penetração de braços de mar, mais acentuada aqui do que em qualquer outro con­tinente e que dá lugar a que seja chamada “a península das penínsulas”, em combinação com a diversidade das formas de térra e dos efeitos climáticos para prover a Europa pri­mitiva de um mosaico de habitats sem igual em parte al­guma, e a falta de uniformidade física, constituíram o ca­minho para a variedade de Estados que surgiram gradativa- mente. Dentro dos diferentes habitats, as comunidades es- tabeleceram-se e transformaram gradativamente a térra em propriedade sua através de e.sforços persistentes no cultivo do solo, desbravamento das florestas e drenagem dos pân­tanos. No todo, os esforços empregados foram satisfatoria­mente recompensados e ficaram elas ligadas às suas terras de tal modo a implantarem ali a semente de uma espécie nova de patriotismo.

Embora essa relação não ficasse de modo algum confinada à Europa, foi nesse continente que as liga­ções diretas com o solo e um modo de vida comum em cada habitat deram lugar ao fenômeno denominado nacio­nalismo que, durante os últimos dois séculos, constituiu fato decisivo na formação dos Estados europeus que não se com­param, em número, com os primitivos habitats regionais, visto que a invasão e o amálgama eram fatos característicos do tempo em que as fronteiras entre as comunidades pri­mitivas iam sendo superadas. Não obstante, os esboços do padrão da ocupação, conforme indicamos pela Geografia Física da Europa primitiva, ainda se refletem na plétora de Estados de hoje e não é menor, entre as contribuições dêsse continente para o progresso humano, a idéia do Estado na­cionalista com o seu corolário de limites internacionais.

Em tôda parte do mundo habitado o modêlo europeu está sendo imitado com certas modificações que surgem das diferenças do ambiente físico. No Nôvo Mundo, o sistema foi introduzido e desenvolvido por imigrantes provenientes

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da Europa. Na Asia das Monções, o nacionalismo enrai- zou-se tanto nos países conquistados como nos independen- tes, enquanto na África, ao sul do Saara, os povos nativos estão começando a prever o tempo em que poderão gozar os beneficios, em conjunto, da independencia nacional. Essa difusão planetária do que é, com efeito, um modo de vida, bem pode levar a nôvo desenvolvimento dos conflitos de limites do que a Europa já possui um número comensurável com o respectivo grau de partilha. Essa ameaça à paz e ao bem-estar do mundo pode ser reduzida pelo reconheci­mento do fato de que os problemas controversos de limites são sintomas de desajustes internos ou externos.

Logo que os Estados europeus modernos tomaram o for­mato e configuração que têm hoje, tomou-se evidente a necessidade das linhas divisorias e, na ausência de conheci­mento detalhado e de registros cartográficos precisos da superficie do continente, os homens tomaram, por limites, as características físicas distintamente reconhecíveis. Linhas costeiras, rios, cristas de montanhas, principalmente nos lo­cais onde exerciam função divisória, eram de caráter rela­tivamente permanente e já em existência, de modo a não constituir surprêsa que logo fôssem apropriados como li­mites “naturais”. Ali ficavam para que todos os vissem e, enquanto o Estado estivesse mal consolidado e ainda muito afastado do palco dos acontecimentos no momento em que todos os seus recursos tinham que ser explorados em detalhe e tôdas as atividades do seu povo organizadas em nível elevado, não há dúvida de que alguns dêsses limites satisfa­ziam apenas temporàriamente.

A escolha dêsses pontos para uso como limites era, en­tretanto, infeliz pelo menos por duas razões: em primeiro lu­gar, uma vez estabelecidos, os limites não podem ser fácil­mente mudados, como provam as infrutíferas lutas de re­visão durante os anos da gueria; uma vez tivesse o Estado logrado êxito em conseguir o que o seu povo julgasse ser um bom limite, por mais que pudesse êsse desagradar a outros povos, a resistência, então, a mudanças substanciais seria feita, por todos os meios possíveis, pela comunidade já bene­ficiada. Segundo, e de maior importância para o geógrafo

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político, as áreas de ocupação humana, sejam ou não Es­tados, não são, em parte alguma, precisamente definidas por características físicas, com a possível exceção das linhas costeiras. Qualquer que seja a base da diferenciação entre as sociedades humanas, a origem étnica, a religião, a língua, as atividades econômicas, os sistemas políticos ou a combina­ção de dois ou mais dêsses elementos, êsses agentes ligadores não terminam abruptamente num rio, cadeia de montanha, lago ou pântano; menos ainda perdem a função em qualquer linha que possa ser traçada com relação às características físicas, e devemos lembrar que a qualidade essencial do limite é o seu caráter linear.

Em virtude dessa sobreposição e mistura das atividades humanas, a fixação de limites deve ser acompanhada de certo grau de arbitrariedade, mas é menos provável ser esta aceita mutuamente quando ligada a características físicas que não tenham função separadora. O tradicional método europeu de usar os chamados limites físicos já está obsoleto; o seu caráter inconveniente é demonstrado pelo seu refôrço através das barreiras tarifárias e trabalhos militares. De modo geral, nem separam eficientemente os Estados nem oferecem meios livres de intercâmbio; pormenorizadamente, constituem causa de atrito, visto como, muito freqüentemen­te, desprezam as atividades e interêsses humanos.

Vistos pelos mapas de alto relêvo de escala reduzida, os ríos e as cadeias de montanhas dão a impressão de utili­dade como linhas divisorias, mas o exame mais acurado mos­tra que quase sempre as áreas em que se encontram mantêm certa unidade que o mapa físico não revela. Nem sempre as regiões montanhosas exercem a função de barreira que muito freqüentemente se lhes atribui. Uma vez que haja necessidade do contato transmontano para as comunidades adjacentes, os meios e modos de levá-lo a efeito são logo descobertos e realizados e não, necessàriamente, pela ação complicada de engenharia tais como as estradas e os túneis

8» De qualquer modo, essas são limites nacionais, não interna­cionais.

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B S C S H / UFHGS

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das vias férreas que ligam a Alemanha e a Itália ou a França e a Espanha, nem pelas rotas aéreas como a que ligaram a India e a China, com longo e difícil percurso, durante a Segunda Guerra Mundial. Por exemplo, a morfología do terreno de montanha restringe as atividades agrícolas pela impropriedade da térra destinada à cultura arável, de modo que os seus habitantes utilizam as pastagens das montanhas como elemento de sua economia agrária. Atualmente, êsses pastos não se limitam a um ou a outro lado da crista. Fre­qüentemente, sempre que a elevação não se torne proibitiva, brotam na própria crista e, com o decorrer dos séculos, os moradores do vale incorporam-lhes o uso no sistema deno­minado transumância. Quando um limite interestatal é esta­belecido numa dessas áreas, os pastos podem ser separados do solo do vale permanentemente habitado, com grande prejuízo para os lavradores. O limite polonês-tcheco-eslovaco em Tatra e o ítalo-iugoslavo nos Alpes Julianos, ambos os quais entraram em existência depois da Primeira Guerja Mundial, fornecem muitos exemplos dessa separação dos elementos da economia rural das regiões montanhosas.

Igualmente, as áreas montanhosas não impedem, neces- sàriamente, a difusão da língua, da religião ou dos costumes, como está abundantemente demonstrado na Enropa e em tôda parte. A Suíça é trilingüe, o alemão é a língua da Áustria, o romeno é falado na parte magiar dos alpes transil- vanos, enquanto a divulgação do basco através dos Pireneus ocidentais constitui exemplo de incapacidade de tudo, menos das montanhas mais altas, de separar os povos de origem étnica semelhante. Parece que o uso das cadeias de monta­nhas para o estabelecimento de limites é uma relíquia que vem do tempo em que essas áreas eram fronteiras geográ­ficas, escassamente povoadas e relativamente sem importân­cia, isto é, antes da transumância ter-se desenvolvido, antes do turismo e da geração da eletricidade hidráulica torna- rem-se fontes importantes de riqueza dos povos montanheses. Uma vez que se transfira a importância do marco para a linha divisória, surgem as complicações, e o conjunto de

V er Figs. 3 e 4.

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UN1\«RSI0A0E F E O W A U ».rxTcrâ ctFTORIAL DE CIENCIAS SCCIA:- - -

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F ig. 3 — Aldeias Permanentes e Colônias de Veraneio numa P arte da Tatra Polonesa. Os aldeãos de Jurgow íoram forçados a participar do uso dos prados alpinos que eram, tradi­cionalmente, de propriedade do povo de Burcóvina e de Brzegi e, em conseqüência, vieram a sofrer com isso

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F io . 4 — Lim ites Comunais em Certa P arte da T atra P o­lonesa. O limite polonés-tcheco-eslovaco de 1919 foi traçado de modo que a Comuna de Jurgow se dividiu em duas partes desiguais, ficando os aldeãos privados dos seus direitos de pas­toreio na parte montanhosa do sul da comuna

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ressentimentos locais pode provocar graves conflitos entre os Estados interessados.

Ademais, a localização da verdadeira linha não é, de modo algum, coisa fácil, exigindo constantemente complica­das negociações. Terá de ser uma linha irregular, ligando os mais altos cumes, ou terá que ser uma bacia hidrográfica? Raramente os dois coincidem exatamente. Em todo caso, a bacia fluvial é apenas uma linha no mapa. No campo, é zona de largura variável, dependendo da altura, declive e tipo da rocha do distrito interessado. Particularmente, em tôda a extensão dos vales há, geralmente, uma área de escoa­mento indeterminado, onde não existe bacia fluvial, ou tam­bém nas montanhas calcárias grande parte do escoamento é subterrâneo e a divisão indeterminada.

Nos casos em que os limites são estabelecidos em país montanhoso, os fatôres estratégicos são também importantes. Se essa linha fôr imposta a um Estado por outro mais pode­roso, êste tentará conseguir um local que lhe assegure van­tagem militar independente dos tradicionais direitos e dis­tribuição dos povos. O limite ítalo-iugoslavo, como defi­nido no Tratado de Rapallo de 1921, constitui excelente exemplo do modo pelo qual a linha divisória foi delimitada em benefício militar do Estado mais poderoso.

Os limites fluviais são, mesmo, menos convenientes do que os entre montanhas. As bacias de escoamento tendem a exercer mais influência unificadora do que separadora, visto como os rios e seus vales provêem linha de movimento que alimenta o intercâmbio social e comercial. As bacias como as do baixo Tâmisa, do Sena e a Bacia de Viena vêm, com efeito, servindo de áreas nucleares de alguns Estados modernos. Ademais, as vizinhanças da maioria dos rios, pelo menos nas partes média e baixa dos respectivos cursos, são baixadas geralmente mais capazes de suportar densas popu­lações do que as regiões montanhosas, de modo que quando uma bacia de escoamento se transforma em fronteira, como

u V er F ig . 5.

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F ig . 5 — Seção PiedicoUe da Linha de Rapallo

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no caso da do Reno, a demarcação de limite internacional, ai dentro, apresenta muitas dificuldades.

Ê verdade que os grandes rios, principalmente nos lo­cais onde são confinados pelos pântanos, têm servido tanto de barreiras protetoras como de zonas separadoras, mas as obras de engenharia disciplinaram as possibilidades de inun­dação, drenaram mnitas áreas pantanosas e aperfeiçoaram os meios de navegação nos respectivos canais. De modo geral, resultou isso no aumento da população, na expansão da produtividade agrícola e industrial e na intensificação do tráfego, tanto nos rios propriamente ditos como nas estradas de rodagem e vias férreas que lhes cruzam os vales. Hoje, entretanto, mais do que nos tempos primitivos, as bacias fluviais tendem a transformar-se em unidades integrantes de­mográfica ou economicamente, e o estabelecimento de limi­tes internacionais aí dentro equivale à criação de barreiras obstrutoras. O fato de terem o Reno, o Danúbio e o Elba sido submetidos ao controle de comissões internacionais em várias ocasiões é, por si mesmo, a demonstração da incon­veniência da divisão política de suas bacias. Os limites pa­ralelos ao rio e os que o cruzam são igualmente obstrutivos nos lugares onde não há ação conjunta pelos Estados ribei­rinhos. O melhoramento da navegação ou o maior consumo da água, isto é, para fins de irrigação e industriais, em certo Estado, pode exercer sérias repercussões em regiões locali­zadas em outras partes da bacia ou diminuir de valor pela falta de controle do rio em outro local.

O interêsse do Egito pelo Sudão relaciona-se claramente com a utilização da água do Nilo nessa área. Um dos meios possíveis de melhorar a produção e elevar o padrão de vida na bacia do Danúbio é a intensificação e diversificação das culturas com o auxílio de sistemas de irrigação utilizando a água do Danúbio. A retirada excessiva desta água pela Hun­gria poderia, entretanto, despertar fortes protestos por parte da Iugoslávia e da Romênia.

Outrossim, o controle fluvial por um Estado pode pro­vocar, facilmente, maior inundação nos Estados ribeirinhos pela aceleração da média de escoamento do rio. Não é difícil, por exemplo, imaginar-se o atrito que poderia ser

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l.FC.H.Departamento da C.êr.cia* • rc - ^

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provocado se um limite interno cruzasse o Mississippi na latitude de Memphis e o amplo sistema de irrigação de Sind viesse a ser sèriamente interrompido, não fôra a existência de um contróle político unificado em quase tôda a bacia do Indo. A não ser a inclusão de cada uma das bacias importantes em um único Estado e na falta de cooperação legítima interestatal, a única solução para essas dificuldades é o contróle internacional, porém, mesmo êsse meio-têrmo não pode afastar todos os obstáculos que os limites fluviais apresentam.

Há outro importante aspecto geográfico do uso dos rios como limites e, com êste fim, os lagos, estuários e pequenos braços de mar podem ser considerados como prolongamen­tos dos rios. Quando se resolve que um rio deve servir de limite, surge o problema da definição do local da linha divi­sória, que, claramente, não pode ser todo o curso d’água. Deve ser definido em relação a alguma parte ou partes do rio. Geralmente, é adotada uma das três linhas: a linha média, o meio do canal navegável ou uma das linhas da margem. No primeiro caso (o têrmo é pouco usado nos acôrdos sôbre limites), a linha relaciona-se com o plano horizontal do rio e pode ser descrita como a linha de ligação de todos os pontos eqüidistantes aos pontos mais próximos das margens opostas, exigindo sua localização cuidadoso cál­culo matemático. Sua adoção redunda em divisão igual da superfície da água, porém não em divisão igual do seu vo­lume.

No segundo caso, o canal navegável, isto é, geralmente a camada de água continuamente mais funda, toma curso sinuoso, ora aproximando-se de uma das margens, ora da outra e, assim, cruzando e tornando a cruzar a linha média. Ademais, o canal navegável pode mudar de posição no rio da mesma forma que êste pode mudar de curso. A adoção

22 A partilha do Punjab entre o Indostão e o Paquistão poderia redundar em desastrosos efeitos nessa parte da índia, que depende do sistema do Indo para a sua irrigação, a menos que medidas de precaução constassem do plano para a divisão política da índia.

23 Sôbre rios como limites, ver Boggs, op. cií., capítulo X .

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de qualquer uma dessas linhas gera, necessàriamente, com­plicações no que se refere ao uso do rio, ao acesso às suas margens e, quando necessário, à manutenção das obras de prevenção de inundações e dos serviços referentes à nave­gação.

A linha marginal é menos freqüentemente usada como limite do que o canal navegável. É também suscetível de mudança, porém, é, geralmente, mais distintamente assina­lada do que as duas linhas anteriores. Um único caso con­creto bastará para mostrar as dificuldades inerentes a tal tipo de escolha. O Pacto de Roma de 1924^* definiu o limite ítalo-iugoslavo nas vizinhanças de Fiúme e estabeleceu que a linha deveria seguir a margem ocidental do canal Fiumara do rio Eneo, de modo que a soberania sôbre o baixo canal navegável ficasse com a Iugoslávia, mas, “ . . . essa soberania não se estende à margem esquerda, desde a base à borda extrema do tôpo, visto como esta margem constitui o limite fronteiriço do território italiano”. Significava isso que a manutenção da margem, do que era para todos os fins e propósitos um rio iugoslavo, ficava nas mãos italianas e a margem direita não podia, legalmente, ser utilizada para a construção de cais por qualquer das partes. O efeito visa­do era forçar a Iugoslávia a utilizar-se dos serviços de docas de Fiúme, de propriedade italiana, porém o resultado concreto foi forçar os iugoslavos a estenderem suas docas de Split e Metkovic, com todo o equipamento, por uma grande dis­tância mais ao sul da costa adriática.

Surgem também dificuldades na determinação e uso das linhas médias e canais navegáveis dos lagos, mais particular­mente nos casos em que os cursos d’água constituem valiosas rotas de comércio ou são considerados locais úteis de pesca. Os Grandes Lagos da América do Norte são os melhores exemplos disso, em parte porque, no conjunto, cobrem a maior área de água doce do mundo, em parte porque servem

L ea gue of Nations Treaty Series, vol. X X IV , 1924.15 "Esquerda” aqui significava claram ente “direita” e cons­

titui um exemplo do abuso no uso das expressões, coisa muito comum nos tratados.

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de fronteira geográfica entre o Canadá e os Estados Unidos, porém, principalmente, porque as disputas de limites sôbre os mesmos foram resolvidas pacificamente e a contento mutuo de ambas as partes.

Seria êrro pensar que os limites por cursos d’água só dão lugar a discordias quando se trata de linhas divisorias internacionais, embora êsses casos despertem maior atenção e publicidade. Não obstante, os limites internos, isto é, os limites das divisões administrativas internas dos Estados, es­tão freqüentemente ligados aos rios, como poderá ser veri­ficado por um rápido exame dos mapas em grande escala de qualquer serviço hidrográfico nacional. Na Inglaterra, os limites dos condados e paróquias são quase sempre estabe­lecidos dêsse modo e a mudança do curso de um rio é muitas vêzes determinada pelo fato de que, ocasionalmente, um limite qualquer diverge do canal atual para tomar o curso anterior. Análogamente, em outros países, rios e lagos são usados e os riscos dêsse uso, quando não se tomam as devi­das precauções, acham-se descritos no estudo de Lawrence Martin sôbre o limite Wisconsin-Michigan na parte que passa pelo lago Michigan. No caso em foco, foram precisos quatro anos de litígio do mais alto nível nacional para retifi­car a decisão legal anterior.

São êstes, apenas, alguns dos problemas inerentes ao uso de características físicas como limites políticos. Em parte alguma constituem elas linhas divisórias completas e contínuas. A única vantagem aparente no seu uso é que podem ser distinguidas na paisagem, sendo geralmente muito conhecidas pelos habitantes da fronteira. Êsse resultado, porém, pode muito bem ser igualmente conseguido pelos métodos modernos de demarcação de limites. Começaram a ser usados para fins de limites quando o Estado tinha fun­ção diferente da de hoje e quando era falho o conhecimento relativamente à delimitação e demarcação dos limites. Infe­lizmente, sua adoção transformou-se em tradição, principal­

es “The Second Wisconsin-Michigan Boundary Case in the Su- preme Court of the United States, 1932-1936”. Annals of the A m e­rican Association of Ceoçfraphers, junho de 1938, Vol. X X V III, n.® 2.

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mente na Europa. A fragmentação excessiva dêsse conti­nente, o resultado de longa e complicada evolução histórica, já não podem servir de justificativa para o seu uso nesse particular. Se, então, as características físicas são inadequa­das e inconvenientes como limites políticos, que outras alter­nativas restam? A resposta é dúplice, cada urna das quais, porém, relaciona-se intimamente com o caráter das entidades políticas e suas bases territoriais que, ñas presentes circuns­tâncias, exigem delimitação.

Tanto os geógrafos como os estudiosos da Ciência Polí­tica muito pouco parecem compreender que o padrão mun­dial dos Estados e, em conseqüência, os seus limites foram impostos no terreno físico preexistente e que essa imposição tomou o caráter de arbitrariedade. A procura dos “limites naturais ’ não deu resultado porque os limites lineares não existem na natureza, embora em muitos casos o desejo ex­presso de consegui-los tenha servido de disfarce para as ativi­dades expansionistas, principalmente nos lugares em que as características físicas parecem oferecer vantagens estratégicas ou econômicas.

Refere-se isso, principalmente, à Europa com os seus agrupamentos de Estados que possuem grande variedade de áreas e população e onde se relembram muito os casos de reivindicações sôbre limites baseadas no padrão primitivo de organização em dissonância com a presente situação. No “Nôvo Mundo”, inclusive nas Américas, África e Austrália, a vacuidade relativa da terra, a ausência do nacionalismo e a falta quase completa de conhecimento geográfico resul­taram no estabelecimento de limites geográficos que serviam bem no estágio colonial, desde que havia ali abundante es­paço para expansão e não se fazia pressão em tôdas essas linhas divisórias arbitrárias. No todo, êsses limites, inter­nacionais ou internos, permaneceram como divisões satisfa­tórias, não em virtude de possuírem quaisquer méritos intrín­secos. Pelo fato de terem feito ou não parte de meridianos, de outros grandes círculos, de paralelos ou por terem sido tra­çados paralelamente à costa, como no caso do limite Alasca- -Colúmbia Britânica, seu bom funcionamento representou a e.xpressão da natureza e das relações dos Estados que divi­

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dem, e êstes, de modo geral, têm-se interessado primordial­mente pela sua própria organização e consolidação internas.

Resta ver se êsses limites continuarão a ser aceitos mu­tuamente à proporção que os vários Estados se forem tor­nando mais altamente desenvolvidos, mais fortemente povoa­dos e tiverem maior participação nos assuntos mundiais. O limite Canadá-Estados Unidos continua a funcionar harmó­nicamente, mas na América do Sul, onde se faz necessário que a maioria dos limites dos Estados corresponda às carac­terísticas físicas, têm-se verificado numerosos litígios de li­mites, alguns dos quais ainda não solucionados. Como al­ternativas para os rios, cristas de montanhas e outros, as linhas geométricas constituem, então, limites convenientes, desde que as relações entre Estados adjacentes sejam de tal ordem que evitem forte pressão nas suas periferias. Não podem ser consideradas como alternativas satisfatórias em regiões como a Europa, onde o conturbado equilíbrio entre os países é, em parte, o resultado de sua evolução histórica e, em parte, o resultado do seu confinamento em área rela­tivamente pequena.

Ali, mais do que em qualquer outro continente, necessá­rio se torna levar em conta o conteúdo e a natureza dos Estados no momento de estabelecerem seus limites, princi­palmente do ponto de vista de facilitar o bom funcionamento das relações interestatais. O problema da delimitação terri­torial poderia, sem dúvida, ser mais fácil com a conveniente criação dos Estados Unidos da Europa, desde que reduziria a condição dos limites do nível internacional para interno, mas, ao que parece, pouca esperança há nessa mudança, mesmo nas partes não-eslávicas do continente. Entrementes, um modus operandi qualquer faz-se necessário. As linhas geométricas e as características físicas não constituem limites apropriados ali, porquanto não correspondem às exigências dos vários Estados.

A maioria dos limites da Europa é o que Boggs vem denominando “antropogeográfico” pelo caráter, visto como representa tentativas para reunir grupos de pessoas e seu território, de acôrdo com um ou mais aspectos de homoge­neidade dentro de cada grupo. O fato chocante acêrca dessas

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linhas é que, conquanto sejam as mais acuradamente delimi­tadas e demarcadas e as mais preciosamente protegidas de todos os limites, a unidade das entidades que definem é, pelos menos, passível de dúvida e sempre difícil de apreciar. Ademais, o grau de unidade tende a enfraquecer na direção da periferia do Estado, mesmo se apenas pelos contatos com outros Estados. Ainda assim, é nessas áreas transitórias, muitas vêzes impossíveis de delimitar-se exatamente, que os objetivos políticos, inclusive os administrativos, exigem sejam estabelecidos limites rigorosamente demarcados.

Trata-se de notável paradoxo com que depara o estu­dioso da Geografia Política e ajuda a explicar a natureza intratável de muitos litígios sôbre limites. Explica também por que tôdas as linhas divisórias internacionais, exceto as impostas por fôrça militar, constituem elementos de transi- gê.vcia entre as reivindicações em choque e, ainda mais, por que as comissões de recomendações de peritos, constituídas para orientar as conferências de paz e semelhantes, são rara­mente aceitas e atuantes em tôda a sua plenitude.

Os limites antropogeográficos vêm-se tornando crescen­temente importantes como alternativa ao limite “natural” e à linha geométrica, não sòmente na Europa como em outras partes do mundo, notadamente no Oriente Médio e na Índia. Sua aceitação tornou-se implícita no estabelecimento do prin­cípio de autodeterminação, pôsto em prática a primeira vez, como doutrina universal, na Conferência de Paz realizada logo após a Primeira Guerra Mundial. Essa teoria, por mais revolucionária que possa ser e por maiores dificuldades que possa causar nas relações interestatais, é a fôrça motriz da continuação dos Estados existentes e da criação das novas unidades políticas. Sua importância para o geógrafo político repousa no reconhecimento das bases geográficas, tanto fí­sicas como humanas, do Estado soberano e, por implicação, da delimitação dessas bases pelos limites políticos, o que não é, de modo algum, fácil tarefa.

O estabelecimento físico do Estado raramente possui uni­dade geográfica, sendo o seu conteúdo humano ainda mais diverso, e os fatôres que diferenciam os habitantes de um país dos de outro são quase sempre abstratos e sòmente

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diretamente observados nas suas manifestações externas, e isso por pertencerem com maior freqüência ao domínio das idéias, não podendo confinar-se a uma única área terri­torial escolhida. Gauld" expressa claramente êsse ponto quando escreve: “O que prende um povo a um Estado-nação é um conjunto de sentimento e tradição e proximidade geo­gráfica”. “O sentimento” acha-se expresso na língua, reli­gião, patriotismo e idéias políticas; a “tradição” é a resul­tante, consciente ou não, dos fatôres e condições históricas, porém, raramente, são as pessoas, se é que o são, que par­tilham dêsses sentimentos e tradições existentes em íntima proximidade geográfica em área naturalmente bem definida.

As cessões em larga escala de território e população talvez possam ser um dos meios de lançar mais luz à presente e confusa forma de distribuição de “nacionalidade”, mas o preço a pagar é pesado em vista dos reveses impostos ao povo em causa e, em qualquer caso, as organizadas migra­ções em massa, sejam estas voluntárias ou compulsórias, não constituem garantia de que serão solucionados todos os pro­blemas de limites pela simples razão indicada acima, isto é, não há indícios ainda de que se venha a estabelecer o padrão para a exata aferição dos fatôres psicológicos da estrutura de um Estado.

Por outro lado, no caso de que se venham a descobrir os critérios para a delimitação da distribuição dêsses fenô­menos piscológicos, nem por isso a situação geral ficaria gran­demente atenuada na medida em que as áreas ocupadas por povos de línguas, religiões e meios de vida etc. diferentes não coincidam, de modo que pelo menos os problemas das mi­norias permaneceriam. Como demonstra Azcárate: “Ne­nhum traçado de fronteiras poderia eliminar a existência das minorias nacionais e assegurar a homogeneidade dos povos de cada um dos Estados”.

A homogeneidade, inatingível como é, não deve ser tida como ideal para a organização das sociedades humanas.

22 W. A. Gauld, M an, N ature and Tim e, Londres, 1946, p. 204. 28 p . de Azcárate, op. c it , pág. 7.

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Assim como a heterogeneidade das condições do terreno e dos recursos materiais constitui fator cooperante para a pros­peridade de um país, a diversidade humana, desde que es­timulada pela tolerância e pela liberdade, pode ser correta­mente considerada como fonte de bem-estar material e mo­ral. Segue-se daí que o uso da religião, idioma, tradição e “raça” como base para a delimitação dos Estados já é coisa obsoleta; com efeito, nunca serviram para outra coisa senão como disfarces para o engrandecimento territorial. Mas os limites são ainda necessários num mundo como o nosso e continuarão a ser traçados nas zonas fronteiriças; enquanto os Estados permanecerem hostis em suas relações, existirão as discordias de limites.

Sómente quando os habitantes de todos os Estados de­rem valor e puserem em prática o ponto de vista de que os seus interêsses culturais e econômicos serão melhor atendidos pela íntima interdependência, deixarão os limites de exercer funções separadoras. Dir-se-á abertamente ser antiquado êste ponto de vista, mas a sua execução é o único meio de evitar-se as disputas contínuas e dispendiosas. Quando chegar êsse dia feliz, os geógrafos políticos não mais terão necessi­dade de discutir o mérito dos respectivos limites físicos, geométricos e antropogeográficos.

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C O M U N I C A Ç Õ E S

VI

1 oucos setores do esfôrço humano, se os há, têm regis­trado maior progresso do que o relacionado com o estabe­lecimento e manutenção dos meios de comunicação. Meios para a movimentação de pessoas, mercadorias e idéias estão, em grande número, à disposição do gênero humano nos tempos modernos e tomam parte importantíssima nas ativi­dades humanas de todos os níveis; municipal, regional, na­cional e internacional. Têm grande importância para o geó­grafo político porque são os canais pelos e através dos quais se desenvolve a organização tanto dos Estados como dos assuntos internacionais; sem êles, as atividades internas dos Estados nunca poderiam ter atingido os estágios presentes de sua evolução e as relações internacionais ficariam tolhi­das. A própria civilização é em grande parte o produto da circulação.

O valor das comunicações é demonstrado pela série glo­bal de serviços abrangidos pelo têrmo “circulação”. Com­preendem êles não somente as formas normais de transporte, tais como terrestre, marítimo e aéreo, como também as telecomunicações, linhas de abastecimento através de enca­namentos que estão sendo grandemente utilizados para a distribuição de produtos como água, petróleo e gás natural e o sistema de cabos para a transmissão de eletricidade.

Nesse amplíssimo sentido, as comunicações modernas fa­cilitam o movimento das utilidades, pessoas e idéias, dentro

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e entre os Estados. Exercem influência unificadora que varia na proporção direta da densidade da capacidade transpor­tadora dos vários sistemas. São poucos os obstáculos físicos que resta vencer, porém, paradoxalmente, são ainda comuns as barreiras artificiais que constituem o maior entrave ao livre curso, sem o qual a circulação não pode exercer sua máxima influência benéfica. Eis por que o estudo das co­municações constitui importante aspecto da Geografia Po­lítica. O seu estabelecimento e desenvolvimento estão inti­mamente relacionados às políticas interna e externa dos Es­tados. Todos os fatôres políticos, estratégicos, econômicos e culturais estão aí compreendidos, e a crescente complexi­dade das relações nacionais e internacionais exige o bom funcionamento das comunicações de todos os tipos.

A idéia da importância básica da circulação no desen­volvimento das atividades humanas não é nova. Desde os primordios da história, as comunidades que possuíam fôrça de mobilidade ficavam em posição superior em relação a ou­tros povos. O Egito, os Impérios mesopotâmicos e a China uti­lizavam os rios como vias de comunicação para fins comerciais e militares. As cidades-Estados do mar Egeu tinham a pri­mazia no uso do transporte marítimo; Roma segmu-lhes o exemplo. Contràriamente aos seus antecessores, entretanto, Roma estabeleceu um nôvo padrão na construção e adminis­tração dos impérios pela combinação dos transportes ter­restres e marítimos em grande escala. Destruindo Cartago, os romanos ficaram de posse do Mediterrâneo e de suas vias de comimicação, e consolidaram suas conquistas estabele­cendo um sistema de estradas como nunca se vira antes e que permaneceu insuperado por muitos séculos à frente.

Nesse particular, os romanos contribuíram de forma ini­gualável para o conhecimento e experiência humanos, mais particularmente em relação à organização territorial. A afir­mativa de que “Todos os caminhos vão à Roma” era lite­ralmente verdadeira pelo fato de que, em primeiro lugar, não havia estrada alguma comparável com as que ligavam as partes componentes do império à região nuclear da Pla­nície do Lácio e, em segxmdo lugar, porque “todos os ca­minhos” abrangiam tanto as rotas terrestres como maríti-

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mas que eram os únicos meios de comunicação conhecidos naquele tempo. A Fax Romana desapareceu por muitos mo­tivos, sendo o mais importante dentre todos a substituição do sistema romano de organização imperial pelas muitas comunidades separadas de imigrantes “bárbaros”. Originá­rias dessas colonias e conquistas surgiram inúmeras peque­nas sociedades por processos penosos e difíceis.

Essa substituição da ordem pela anarquia no mundo conhecido é talvez o melhor exemplo do papel vital desem­penhado pelas comunicações organizadas na vida dos ho­mens. Por muitos séculos ainda depois da queda de Roma, o uso da mobilidade organizada ao longo de rotas bem de­finidas permaneceu quase que completamente extinta. Havia ainda algum movimento mais ou menos esporádico nos mares limítrofes, principalmente nos lugares onde a freqüência das ilhas e a articulação das linhas costeiras auxiliavam os na­vegadores, mas era muito moroso o progresso da pericia técnica da construção d<? navios e da navegação.

Nessas circunstâncias, a lei e a ordem não podiam ser mantidas, a não ser no raio de ação do braço forte de algum magnata local, de modo que a sociedade, onde orga­nizada, caía no dominio do sistema feudal caracterizado pela excessiva fragmentação territorial e pela falta, quase com­pleta, de contato mesmo entre comunidades adjacentes. Essa Idade de Obscurantismo só pôde ser aclarada e finalmente substituida pela reinstituição das comunicações largamente difundidas, porém isso implicava tanto urna revolução nos meios de transporte como a reorientação das mentes e da visão dos homens. É éste o padrão de aferição das realiza­ções de pioneiros como D. Henrique, o Navegador, e de Vasco da Gama, cujas viagens oceânicas proclamaram a Era dos Descobrimentos e o inicio de urna nova fase do desenvol­vimento das comunicações, fase essa que tinha de culminar na circunavegação da térra.

Os descobrimentos dos séculos XV e XVI, acompanha­dos pelo lento desbravamento de novas terras, estabeleceram, em seqüência, uma série de desenvolvimentos que não atingi­ram ainda sua completa realização. Além de oferecerem

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vasta e nova linha de possibilidades comerciais e enorme campo à emigração e aos que buscam moradia, conseguiram, finalmente, derrubar o que era, até então, tido como a maior e a única barreira física à circulação, os oceanos. Pela pri­meira vez os mares costeiros e os oceanos bravios uniram-se eficientemente de modo a poderem ser utilizados para ligar as massas de térra adjacentes, e os Estados que começaram a desenvolver-se ñas praias não tardaram a compreender-lhes os benefícios políticos. Como disse Vidal de la Blache; "

Avec la fusión des domaines maritimes en un ensem- ble illimité de mers et d’océans de nouvelles perspecti­ves poUtiques apparaissaient des Vaurore des temps modernes. Les réves d'hégémonie mondia'e, dont la réor lisation s’était toufours heurtée a Vexiguité des conti- nents et aux limites imposées par leur configurations géographiques, ne semblent plus une chimére.

Os pioneiros da Era dos Descobrimentos lançaram os fundamentos dos sistemas políticos que mal Ihes foi possível prever. À parte os desenvolvimentos comercial e naval que se sucederam às suas viagens e descobertas, abriram êles o caminho para o estabelecimento dos grandes imperios maríti­mos, cujos chefes logo começaram a estimar o valor do pode­río marítimo como meio de manter e expandir os seus terri­torios. Pela primeira vez na historia, os oceanos transforma- ram-se em vias de comunicação do mundo. Fundaram-se colônias, o comércio aumentou rápidamente e os navios das Potências marítimas do oeste europeu puseram em contato territorios anteriormente tidos como inacessíveis entre si. Êsse desenvolvimento revolucionário provocou uma reorientação nas mentes dos homens responsáveis pela formulação das políticas que teriam de orientar a criação de novas relações mundiais. A visão dessa gente transferiu-se, temporàriamente, da terra para os oceanos, onde os mais esclarecidos compre­enderam estar a grandeza futura dos seus respectivos países.

<9 P . V. de la Blache, Principes de Géographie H um aine, P a ­ris, 1922, p. 269.

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Mas uma vez descobertas as novas terras, uma vez fun­dadas as colonias, tomou-se claro que as futuras expansões territoriais e econômicas precisavam de um desenvolvimento paralelo de comunicações terrestres, se é que se pretendia tirar o máximo proveito das atividades humanas nos oceanos e das terras litorâneas adjacentes. Os esforços nesse sentido concentraram-se primeiramente nas estradas não-pavimenta- das, nm pouco mais do que simples trilhas, e foi sòmente depois que as invenções do século X IX determinaram a aplicação, primeiro, do ferro e, em em seguida, do aço, que a via férrea e o navio a vapor transformaram-se em fatôres integrantes de uma vasta e nova rêde global de comunicações que deu lugar a um progresso sem rival no terreno da pro­dução e à prosperidade material, criando também inúmeros problemas na constrnção e organização dos novos meios de circulação.

O corolário de todo êsse progresso foi o acentuado ace- leramento do ritmo da concorrência internacional, tanto na aquisição de território como de mercados, e também para a supremacia do comércio mundial através do contróle das rotas marítimas e terrestres. Com a simples exceção da China, e assim mesmo por motivos especiais, todos os Es­tados importantes do século XX tentaram, com êxito variá­vel, formar poderosas marinhas mercantes e criar frotas na­vais para defesa das mesmas, e esboçaram seus próprios sis­temas de estradas de ferro em correspondência com as co­municações ultramarinas. Essa desbragada corrida das Po­tências importantes, em alguns casos, diretamente sob a égide dos próprios Governos, em outros setores sendo o resultado, em grande parte, da iniciativa privada, trouxe, de modo geral, benefícios à humanidade no que concerne ao estímulo à produção e distribuição de tôda espécie de utilidades, porém, desde que a fôrça motriz assumia caráter unila­teral, resultou no estabelecimento de numerosas barreiras artificiais à circulação.

O século XX demonstrou, concretamente, o caráter sui­cida dêsse esfôrço internacional e, em conseqüência, a ne­cessidade dominante de remover barreiras a bem da livre circulação de mercadorias e pessoas. O injusto sistema dis-

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tributivo da produção no mundo, as diferenças de nível da organização econômica e política dos vários Estados, exigem a maior, e não menor, intercomunicação. Os meios estão à mão e aumentarão logo que os obstáculos surgidos com a Segunda Guerra Mundial sejam superados. O que se pre­cisa para isso é de maior colaboração internacional a fim de utilizar-se, ao máximo, os recursos já existentes.

Por êste breve esbôço histórico do desenvolvimento das comunicações verificar-se-á que o grau de organização eco­nômica, política e cultural dos assuntos internos de um Es­tado depende muito dos meios de circulação existentes. Afora os efeitos das comunicações internacionais que serão estuda­dos mais adiante, a função da circulação interna é ligar as partes do Estado de maneira não-incerta. A validade do conceito geopolítico do Estado como organismo está sujeita à grave crítica pelas muitas deduções que os seus prota­gonistas vêm fazendo, porém justifica-se ainda mais a ana­logia biológica no que o sistema de comunicações do Es­tado possa ser comparado com o sistema circulatório, sem o qual a vida não pode ser mantida em qualquer organismo. Tão comuns são os meios de circulação nos Estados adian­tados que até poderia parecer coisa banal qualquer tentativa destinada a chamar a atenção para a sua importância; mesmo assim, o estudioso da Geografia Política deve saber que o seu estabelecimento, manutenção e aperfeiçoamento são es­senciais à atividade e bem-estar do Estado. Não há dúvida de que as sociedades poderiam existir sem os sistemas bem organizados de rodovias, vias férreas, etc., como sucedia no passado, sendo que essas comunidades não podiam chamar-se Estados na acepção presente do têrmo, enquanto os seus povos mal podiam ultrapassar o simples nível de subsistência.

Ademais, não pode haver sistema de Govêrno eficiente sem meios de comunicação adequados, qualquer que possa ser o regime político em particular. A centralização do poder político, que em grande proporção é característica de todos os Estados, jamais poderia ter sido conseguida sem a circula­ção organizada. É difícil, aqui, separar a causa do efeito. As tentativas para concentrar o poder político na sede do Govêrno precederam a construção de estradas e vias férreas,

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mas uma vez aceita esta política interna e logo que a estru­turação de comunicações excedeu a fase inicial das exigencias locais e regionais, foi impossível evitar que, quando as linhas de movimento atingissem padrão “nacional”, reforçassem a influência diretiva tanto do Estado como das sedes provin­ciais. Tendo em vista a função unificadora das comunicações, as autoridades governamentais criaram, então, planos para a extensão e aprimoramento das comunicações com o objetivo de centralizar, ainda mais, tôda a ação das atividades da circulação, de modo que os pontos focais das rotas impor­tantes receberam nôvo acesso de atividade.

Não se quer com isso sugerir que os sistemas de comu­nicações internos foram estabelecidos inteiramente para fins administrativos. As considerações de ordem estratégica e comercial tinham, provàvelmente, a princípio, maior impor­tância. No caso das vias férreas e canais, os primeiros estágios do desenvolvimento lelacionavam-se, quase que inteiramente, com as necessidades locais, comerciais e indus­triais, e somente quando o século XIX havia já avançado bastante foi que surgiu algo semelhante a um sistema nacio­nal, completo, de comunicações terrestres. Mesmo assim, a primeira década do século XX encontrou todos os Estados bem organizados na posse de pelo menos os elementos de uma rêde nacional de estradas de rodagem e vias férreas, quase sempre completada pelas rotas aquáticas interiores. Os serviços prestados por todos êsses meios de comunicação aumentaram consideràvelmente; o volume do tráfego e a quilometragem das rotas excederam de muito os níveis exis­tentes. Em resumo, atingiu agora uma situação de impor­tância sem precedente na organização estatal.

O seu papel é de tal natureza vital, atualmente, nos as­suntos nacionais que já há indícios de tendência crescente ao contróle “nacional”. Mesmo nos casos em que as comu­nicações não sejam diretamente administradas por departa­mentos governamentais, contam essas quase sempre com subvenções e outras vantagens, de maneira que a circulação

»o Constitui exceção o sistema de “Routes nacionales” da França.

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interna reflete, cada vez mais diretamente, a política nacio­nal. Nenhum outro fator contribuiu, individualmente, de modo mais positivo, para a unificação dos Estados do que esta rápida expansão da circulação. Rarissimamente se há pensado que o nacionalismo, juntamente com a implemen­tação da soberania nacional, jamais poderia ter atingido seu estágio presente sem a criação concomitante dos meios de comunicação. É esta uma das razões principais da inclusão do estudo de circulação na Geografia Política. Não se infere daí que o progresso tecnológico dos meios de transporte deva ser investigado detalhadamente, porém significa que a capa­cidade transportadora, o objetivo dos serviços, os padrões da distribuição e a boa marcha dos meios de comunicação constituem elemento essencial da base político-geográfica de todo Estado.

Embora o planejamento e construção das linhas de comu­nicação reflitam, de maneira não-incerta, a habilidade e a perícia da humanidade, duas séries de requisitos, mesmo assim, exercem ainda influência diretiva nos padrões inter­nos de movimento. Primeiro, os fatôres físicos do terreno e do clima, conquanto de menor importância do que dantes, não se pode dizer que tenham perdido completamente os seus efeitos sôbre o desenvolvimento das comunicações. “Le climat est peut-être le seul adversaire qui ne soit pas de notre taiUe, le seul qui dépasse notre mesure humaine”, diz Capot-Rey; mesmo assim, a densidade e o uso das comu­nicações são ainda muito maiores nas baixadas do que nas regiões montanhosas do mundc. Pântanos, rios, florestas, desertos e montanhas já foram conquistados no que se refere à construção de rotas cruzando-os ou através dos mesmos, mas ainda exercem efeito canalizador na parte em que os construtores de estradas de rodagem, vias férreas e canais procuram os meios mais fáceis de vencer êsses obstáculos. A facilidade de movimento por terra é questão puramente de declive; daí a utilização dos vales e gargantas nas áreas montanhosas.

G éographie de la Circulation sur les Continents, 1946, p. 273.

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Apesar disso, as obras de engenharia de países como a Suíça, onde as estradas e vias férreas foram construídas para fins especiais, as principais artérias de movimento seguem os aclives mais acessíveis e, mesmo nas regiões de elevação mais baixa, é viável idêntica adaptação do terreno, enquanto, nas baixadas, as interrupções muito atenuadas da saliência são suficientes para provocar desvios nas linhas de movi­mento.

Ainda mais, como bem sabem os geógrafos e engenhei­ros, os pontos ligados por pontes sôbre os rios servem para focalizar rotas em lugares fisicamente convenientes, enquanto os limites de navegação nos rios expressam a profundidade e o volnme de água. Tudo isso e muitas outras situações exprimem a influência que o terreno ainda exerce sôbre o desenvolvimento da circulação e ajudam a explicar a perpe­tuação do uso das linhas primitivas de movimento a que se refere Capot-Rey.

Mas faz-se mister admitir que, uma vez dada a margem de tolerância para a inflnência diretiva dos fatôres físicos sôbre a disposição das comunicações, a segunda série de requisitos assume maior importância. Consiste esta nas exi­gências econômicas e estratégicas do Estado que, conjunta ou isoladamente, tiveram papel mais importante na determi­nação do padrão interno do que qualquer outro grupo de requisitos.

É de somenos debater o caso sôbre se a circulação pre­cedeu à estrada ou esta àquela. O início e o desenvolvi­mento de ambas estão tão intimamente entrelaçados e de­monstram tão alto grau de reprocidade que se tornam inse­paráveis. O que é significativo nisso é que as estradas só se tornam artérias importantes nos lugares em que há trá­fego suficiente, qner presente, quer em potencial, que justi­fique sua manutenção e melhoramento. É claro que as regiões densamente populosas, principalmente quando alta­mente industrializadas, exigem maior densidade de comuni­cações do que as terras esparsamente habitadas que têm menos necessidade de meios de transporte.

Igualmente, a natureza da economia nacional afeta a circulação interna do Estado. O país ocupado principal-

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mente por camponeses que dependem da agricultura de subsistência não precisa de tais comunicações como no caso do Estado em que os métodos agrícolas especializados e a lavoura de resultados imediatos tornaram essencial a troca interna das utilidades. A maior necessidade de circulação faz-se sentir nos Estados altamente organizados, cuja con­tinuação satisfatória repousa na mais perfeita integração das atividades industrial, agrícola e comercial, contribuindo para o sustento de densa população de altos níveis de vida. Dessa forma, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e os Estados Unidos da América ocupam lugares de destaque, no mundo, como possuidores de níveis de circulação que os salientam como entidades políticas unificadas, contribuindo também, grandemente, para o bem-estar dos seus habitantes. Pode-se, portanto, falar da estratégia econômica dos Estados com relação às comunicações internas, e a política, por trás dessa estratégia, visa assegurar a máxima eficiência do mo­vimento.

Ao mesmo tempo, os Estados acham-se também interes­sados nos aspectos militares e políticos dos respectivos sis­temas de comunicação, embora a importância dada a êsses aspectos varié muito de acôrdo com os objetivos dos países em questão e seja determinada mais pelas considerações ex­ternas do que pelas internas. Em resumo, urna das funções principais do Estado é manter a circulação no seu mais alto nivel possível e a plena execução desta função exige plane­jamento. Durante todo o tempo em que o Estado perma­necer como principal unidade política, sua existência como entidade depende, grandemente, do grau em que suas co­municações tomarem possível não somente o movimento das utilidades e de pessoas, mas também o intercâmbio das idéias. É difícil evitar o exagêro quando se estuda a im­portância do rádio, das telecomunicações e da imprensa nesse particular. São todos meios de comunicações e o seu poder em moldar bem ou mal a opinião pública constitui fator decisivo para a evolução das políticas nacionais no desen-

52 Chamamos a atenção do leitor para “The Civilizing Rails”, Econom ic G eography, Vol. IV, 1928, pp. 217-231, de M. Jefferson.

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volvimento da cultura nacional e na criação do sentimento de pertencer à mesma classe que distingue o povo de um Estado do de todos os outros.

Até aqui, a circulação vem sendo estudada do ponto de vista da Geografia Política interna dos Estados, porém, como lembra Oppenheim: “Os Estados civilizados formam uma comunidade de Estados porque se acham ligados pelos inte­rêsses comuns e pelo múltiplo intercâmbio que serve a tais interêsses”. Êsse “intercâmbio” torna-se possível, é ali­mentado e aumentado por vários meios de comunicações, mas há diferença fundamental entre o mesmo e a circulação interna, ainda mais que esta última está livre de contróle externo ou estrangeiro, exceto nos casos de assistência finan­ceira e técnica, visto que aquela está agora sujeita ao estado das relações internacionais e, com efeito, é parcialmente de­terminada pelos regulamentos internacionais.

Há também outra diferença importante. Com exceção da circulação dentro dos impérios coloniais, a grande maio­ria do movimento interno é feita por meio de rotas terres­tres, inclusive rios, canais e o tráfego de cabotagem. Contra isso. . . “mais de três quartos do comércio internacional mundial, inclusive as matérias-primas da qual tão grande­mente depende a civilização moderna”,®* são transportados em navios que utilizam os oceanos e mares do mundo. A embarcação é uma das mais antigas formas de transporte; os mares e os oceanos que a conduzem são, hoje, os maiores elos da cadeia de circulação de utilidades e passageiros do globo. Provàvelmente, continuarão nessa função essencial das comunicações mundiais apesar da introdução do telégrafo sem fio ou não para a transmissão de notícias e outras in­formações e são, portanto, excelente fator geográfico dos assuntos internacionais. Talvez as melhores provas de sua importância mundial sejam-nos proporcionadas pela forte concorrência que se estabeleceu entre os Estados marítimos, bem como entre as companhias de navegação, individual-

33 L . Oppenheim, International Law, 5.* edição, organizada por H. Lauterpacht, Londres, 1937, p. 262.

58 O. Manee, International Sea Transport, Oxford, 1945, p. 10.

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mente, e pelos esforços apoiados pelos Estados náo-costeiros para conseguirem acesso ao mar. “Urna das principais ques­tões do futuro relaciona-se com o grau em que a concorrên­cia não-econômica subvencionada, que caracterizou o passa­do, pode ser evitada sem qualquer volume de planejamento internacional sob os auspicios do Govérno”.

Além de sua importância como o maior e único meio de comércio e intercâmbio mundiais, a circulação marítima ca- racteriza-se por certos traços que a diferenciam do movi­mento por térra.

Em primeiro lugar, as águas oceánicas, conjuntamente com os respectivos mares marginais, são contínuas; com efei­to, constituem vasta região de circulação que ocupa quase quatro quintos da superfície terrestre. “O oceano sempre foi um”, escreveu Mackinder, “porém o significado prático dessa grande realidade não foi completamente compreendida até há bem poucos anos — talvez sòmente agora esteja sendo assimilada em tôda a sua plenitude”. Em virtude de sua continuidade e da ausência de formidáveis barreiras físicas, exceto nas regiões polares, o oceano é, em tempo de paz, o grande elemento unificador das comunicações mundiais. Pro­vê acessibilidade entre a alta e baixa latitudes e entre regiões de economia e cultura desiguais e é portanto de interêsse vital para todos os Estados, inclusive aquêle cujas fronteiras não confinam nas suas praias. Atrai comércio e passageiros aos seus portos em tal proporção que as linhas de comuni­cação continentais servem, grandemente, de alimentadores para o sistema de circulação oceânica. Nessa acepção, a morfologia dos oceanos e a facilidade de movimento em suas águas determinam os lineamentos do padrão das comunica­ções do globo. O oceano deixou de separar os Estados à base de terra; liga-os de maneira impossível de ser atingida pelas rotas terrestres.

O segundo traço característico das comunicações oceâ­nicas surge do fato de que a navegação tem permanecido

55 O. Manee, op. c i t , p. 11. 58 Mackinder, op. cit., p. 29.

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relativamente livre do proibitivo contróle político que tem impedido o desenvolvimento das comunicações internacio­nais. Não existem limites políticos demarcados nos mares, e à parte os acôrdos para o uso de certas rotas oceânicas, como no Atlântico Norte, não há restrições leais com relação à rota que o navio possa seguir. Uma vez fora das “águas territoriais”, seu comandante transforma-se quase que na lei em si mesma; daí a grande e, às vêzes, aterradora res­ponsabilidade investida nos capitães de navios que singram os mares.

A chamada liberdade dos mares não tem paralelo em terra nem no espaço. Fôssem as possibilidades do tráfego oceânico compreendidas e seria inevitável o aumento da concorrência a ponto de forçar as marinhas mercantes nacio­nais a desenvolverem-se rápidamente e com resultados sem precedente. A troca, de âmbito mundial, das utilidades, com tôdas as suas conseqüências na economia nacional, e nas normas comerciais, seria muito estimulada, enquanto a inter­dependência econômica, em escala mundial, surgiria pela pri­meira vez. Os domínios coloniais teriam nova importância para as respectivas metrópoles e certos Estados pequenos, como a Noruega e a Grécia, que possuem escassos recursos materiais internos, teriam a oportunidade de aumentar muito as respectivas receitas nacionais atuando como transporta­dores marítimos das utilidades e de passageiros de outros Estados. Tôdas as grandes Potências e grande número dos Estados menores tentaram obter participação crescente nessa lucrativa atividade, daí resultando que a tonelagem mun­dial de navios de cem toneladas em diante aumentou 50% entre 1913 e 1938, enquanto se pode verificar pelas demons­trações sôbre a importância da navegação em tempo de guerra, constante do quadro organizado por J. S. Maclay, que a tonelagem bruta mundial aumentou de 56,8 milhões em setembro de 1939 para 69,0 milhões em setembro de 1945, apesar das enormes perdas de guerra. ”

57 J . s. M aclay, “The General Shipping Situation”, International Affaira, Vol. X X II , N.“ 4, outubro cie 1946, p. 489.

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Êsse interêsse geral pelo desenvolvimento das marinhas mercantes repercutiu grandemente nas políticas dos Estados em causa. Vários meios foram postos em prática no esfôrço para despertar interêsse pela navegação nacional, desde as já há muito abandonadas Leis de Navegação dos Tudor e Stuart até às recentes tentativas de discriminação, acompa­nhadas da intervenção estatal sob a forma de subvenções para construção naval e sucata, enquanto alguns Estados chamaram a si o contróle direto das suas frotas mercantes.

A justificativa para essas resoluções tinha por base a segurança nacional e a necessidade econômica, mas o resul­tado foi aumentar as dificuldades nas relações da navegação internacional, dificuldades essas que só podem ser supera­das pela cooperação internacional. É tal a importância das comunicações oceânicas para o mundo como um todo que quaisquer ameaças provenientes das lutas estipendiadas e de outras modalidades de concorrência antieconômica devem ser evitadas. Isso explica o desenvolvimento do Sistema de Conferências e requer a criação de uma organização in­ternacional de âmbito mundial para assegurar que a liberdade dos mares venha a proporcionai à humanidade todos os be­nefícios possíveis.

Até agora, a circulação nos oceanos vem-se desenvol­vendo sob a proteção das bandeiras nacionais (com exceção dos acôrdos temporários de exploração do tempo de guerra) e cada um dos Estados marítimos tem-se esforçado por sal­vaguardar os movimentos dos seus navios, utilizando para isso a fôrça naval. Tal coisa será necessária enquanto existir rivalidade internacional que dê motivo à possibilidade de interferência, embora tenha desaparecido a pirataria. O re­sultado disso tem-se na construção das grandes frotas navais, cuja única função é salvaguardar a utilização das rotas oceâ­nicas. A medida do poderio marítimo é, portanto, o conjimto dos navios mercantes e navais, dois elementos que comple­tam o serviço que prestam ao Estado.

58 Sôbre pormenores relativos às organizações internacionais para o controle da navegação, ver O. Manee, op. cit.

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o terceiro traço que caracteriza o tráfego marítimo é o modêlo peculiar que tomam as suas rotas. Excluindo, para êsse fim, o tráfego de cabotagem e o de barcas, as grandes rotas marítimas obedecem a três séries que podem, corre­tamente, ser denominadas condições geográficas.

Primeiro, ligam as regiões densamente habitadas e de alta produtividade material, ou seja, as baixadas que confinam com o mar, tais como as planícies do Noroeste europeu, as grandes bacias fluviais da China e da índia e as baixadas costeiras das Américas do Norte e do Sul. Estas últimas fa­zem o papel de regiões de atração para os excessos expor­táveis das áreas continentais interiores e de regiões de en­trada para as utilidades destinadas aos mercados interiores. São, portanto, as áreas focais do tráfego mundial. Como são relativamente poucas em número e como a navegação apre­senta tendência muito forte para utilizar os grandes portos com as suas ótimas aparelhagens, maiores oportunidades para a obtenção de carga e, geralmente, taxas de seguro mais con­venientes, a grande extensão da circulação oceânica conden­sa-se em número relativamente pequeno de rotas importantes, de modo qüe os respectivos pontos terminais assumem im­portância crescente.

Trata-se, até agora, de uma questão da Geografia Eco­nômica, mas quando se considera que as baixadas costeiras estão divididas entre os Estados independentes e que a faixa territorial econômica dos grandes portos raramente se res­tringe ao território de um único Estado, verificar-se-á que o problema da circulação oceânica encerra notável aspecto político no que se refere ao papel que desempenha na de­terminação das políticas comercial e naval dos Estados in­teressados. O interêsse da Grã-Bretanha na neutralidade da Bélgica não se pode desassociar do seu desejo de ver An­tuérpia continuar livre do contróle de outra Grande Potência qualquer; os esforços da Itália para conseguir Trieste e Fiúme e depois para conservá-las, relaciona-se intimamente com a política do Estado para aumentar sua cota no comércio mun­dial; os chamados Portos de Tratados mal podiam suster-se desde que à China era facultado proclamar-se entidade polí-

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tica organizada capaz de constituir e implantar urna política comercial por si própria.

Vale a pena dizer, de passagem, que os Estados Unidos são o maior e único possuidor de baixadas costeiras alta­mente produtivas, densamente habitadas, com acesso fácil e bem organizado ao interior. Que ao Govêrno convém êste privilégio nota-se no fato de ter conseguido mais do que a paridade no poderio naval em comparação com a sua mais importante rival naval, a Grã-Bretanha, e de tê-la subs­tituído omo Estado líder na tonelagem bruta da mari­nha mercante.

Segundo, se a situação econômica, demográfica e política das costas oceânicas constitui a fôrça motriz que estimula o desenvolvimento das rotas marítimas, as características físicas dos oceanos propriamente ditos exercem papel decisivo na delineação das rotas que êsses navios seguem. O efeito de barreira que assumem as regiões polares tomadas de gêlo reduz o tráfego, com exceção de casos esporádicos para a zona que fica entre 60° ao Norte e 60° ao Sul e, dentro dessa zona, a circulação oceânica tei-se-ia, provàvelmente, desen­volvido em três sistemas combinados e separados, excetuan­do-se os mares livres que ligam o Atlântico e o Pacífico ao sul da América do Sul, o Atlântico e o oceano Indico no Cabo da Boa Esperança e o Pacífico e o oceano Indico tanto pelos mares da Índia oriental como ao sul da Austrália. A influência dêsses canais livres possibilitou a unificação oceâ­nica da qual depende, mais do que qualquer outro fator, a interdependência econômica do mundo. Durante vários séculos, o seu uso deu lugar à hegemonia da Europa oci­dental no comércio marítimo e, o que é talvez mais impor­tante, facilitou a propagação da civilização ocidental com tôdas as suas conseqüências calculáveis e incalculáveis.

59 1939 1945Reino Unido ............................ 16,5 12,5 milhões de toneladasEstados Unidos 8,5 40,1 ” ” ”

J . S. M aclay, op. cit., p . 489.

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Mais outro traço significativo da morfologia dos oceanos 6 que as grandes unidades tendem umas para as outras em dois pontos da zona da latitude acima mencionada. No Pa­namá, o Atlântico e o Pacífico ficam tão próximos que per­mitiram a construção do canal e, em Suez, o Mediterrâneo, (jue para efeito do comércio mimdial é uma extensão do Atlântico, acha-se separado do braço do mar Velho do oceano Índico por, apenas, o estreito istmo do mesmo nome. A construção dêsses dois canais interoceánicos provocou a reo- rientação das linhas de movimento do comércio marítimo. O Atlântico Norte recebe a parte mais intensa do tráfego e daí saem duas linhas axiais; uma para o oeste, para fazer a circulação do Atlântico e do Pacífico pelo Panamá; outra para o leste, para ligar o comércio do oceano Índico e parte do Pacífico ocidental ao Atlântico Norte.

Essas brechas, abertas pela mão do homem nas barreiras terrestres, em benefício do comércio marítimo, influenciaram imensamente a orientação e o volume do comércio mundial, como mostram as estatísticas do tráfego do canal; de tal modo concentraram a circulação nesses dois pontos que pas­saram a ter expressão mundial, ultrapassando, desde há mui­to, a escala de simples políticas nacionais egípcia ou pana­menha. O seu uso e a liberdade de passagem são importantes para todos os Estados interessados no comércio marítimo e muito bem se faria deixando seu contróle na mão de uma autoridade internacional.

O caráter físico dos oceanos e de suas orlas tem outro aspecto no desenvolvimento e manutenção do movimento marítimo. Para o bom funcionamento da navegação, tanto as marinhas mercantes como as embarcações navais necessi­tam de uma vasta série de serviços auxiliares. Êstes abran­gem desde as bases de combustível e provisões e também os meios de reparos e manutenção, telecomunicações e orga­nizações comerciais até a mais insignificante instalação dos serviços meteorológicos. A precaução contra a interrupção

eo Para pormenores sôbre estatística, ver A. Siegfried, Suez- -Panama et les Routes M aritimes M ondiales, Paris, 1945.

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deve ser mantida, principalmente nos casos em que as rotas mundiais tiverem que entrar em braços de mar e suas vizi­nhanças; daí o anseio pelas bases estratégicas por parte de todos os grandes Estados marítimos.

Nenhum exemplo ilustra melhor a necessidade de im­plantar a política destinada a conseguir a liberdade de pas­sagem do que a adotada pela Grã-Bretanha. Certa autori­dade francesa em assuntos internacionais, muito viajada, es­creveu: “On sait avec quelle intelligence, quelle persistence, quelle minutie, l’Angleterre s’est arrangée à en posséder tout un réseau ’. A concessão à Australia e ao Japão dos man­datos sôbre as i'has do Pacífico, após a Primeira Guerra Mundial; os esforços da U. R.S .S . em obter bases no Báltico e nos Estreitos; o interêsse americano e británico no mar das Antilhas, tudo segue a mesma orientação. Os Estados inte­ressados na manutenção da circulação marítima seguem o que se pode chamar de política das comunicações e, no que se refere às rotas marítimas, essas políticas são orientadas pelas condições físicas das massas de água, suas praias e ilhas, e seu efeito acha-se claramente indicado no mapa po­lítico do mundo.

Terceiro, e em conseqüência da combinação das duas séries de requisitos acima examinadas, a rêde de rotas ma­rítimas ocupa urna fração extremamente pequena da imensa superfície dos oceanos. Há urna concentração muito maior de tráfego nas “linhas principais” do que no tráfego conti­nental, e a rêde oceânica é muito menos densa do que a sua correspondente terrestre. Deve-se isso, em parte, ao fato de que a unidade de transporte por mar, o navio, possui capacidade transportadora muito maior do que o trem, a barcaça ou o veículo carroçávei, mas a causa principal é

61 Ibid., p. 3.

62 É também digno de nota o fato de ter o tamanho dos navios aumentado notávelmente. O. Manee, op. cit., p . 172, dá as seguintes cifras:1913, 30.591 navios no total de 46,97 milhões de toneladas brutas. 1930, 30.990 navios no total de 67,8 milhões de toneladas brutas.

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a natureza dos oceanos desertos, sendo a sua função na circulação mundial ligar, de modo geral, certo número, rela- livamente pequeno, de áreas terrestres inabitadas. Sua ser­ventia é direta, independente das exigências locais. Essa diretriz reflete-se na ausência de limites políticos e é guiada pela disponibilidade de bases e pela distribuição de pontos terminais.

Em vista dessas considerações, nenhum Estado pode ig­norar os efeitos da circulação oceânica na sua estrutura po­lítica e econômica. Até a U.R. S . S . , a menos favoràvelmente situada, geográficamente, das Grandes Potências para a par­ticipação no comércio marítimo internacional, tem feito in­gentes esforços, tanto no presente regime como no anterior, para obter escoadouros marítimos adicionais. Suas políticas no mar Negro, no Báltico, no Ártico e no Pacífico ocidental indicam que não somente está ela em igualdade nas vanta­gens das comunicações oceânicas como também está deter­minada a colocar-se em situação pelo menos comparável com a de suas principais rivais. O choque entre as potências concorrentes dirá o resultado — não deixaram de haver no passado — e os problemas políticos do Oriente Médio, em particular, onde os interêsses europeus ocidentais, soviéticos, e agora os americanos, acham-se em franca rivalidade, forne­cerão interessante material ao geógrafo político.

Igualmente, a luta para acesso ao mar por parte dos Estados não-oceânicos constitui mais outro exemplo da fôrça de atração da circulação marítima. Antes da Conferência de Barcelona, de 1921, os donos de navios dos Estados interio­res eram obrigados a registrar seus barcos num pôrto estran­geiro qualquer sob bandeira estrangeira e sujeito à lei mer­cante estrangeira. O Acôrdo de Barcelona, já subscrito por cêrca de quarenta Estados, reconhece o direito de tais países à posse da bandeira nacional para a navegação; as acomoda­ções nos portos livres ou nas zonas livres de certos portos, juntamente com todos os recursos de tráfego entre seus ter­ritórios e os portos estrangeiros, muito têm feito para recom­pensar os países interiores pela falta de portos marítimos.

Êsses arranjos estão sujeitos a acôrdo interestatal e a sua boa implementação depende da manutenção de relações amis-

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tosas. Na Europa, vários exemplos disso foram-nos dados pelos tratados assinados depois da Primeira Guerra Mundial. Concedeu-se à Tcheco-Eslováquia os recursos de zona livre em Hamburgo. A Iugoslávia recebeu tratamento igual em Salónica e a sua aquisição de Susak teve em vista compen- sar-lhe o fracasso para a obtenção de Trieste e Fiúme. À Austria e à Hungria — que se tomaram Estados interiores depois de 1918 — foram concedidas condições especiais nas vias férreas que servem êstes dois portos.

Nem todos êsses arranjos políticos funcionaram satisfato­riamente. Praticamente, a Iugoslávia nenhum uso fêz de sua zona livre de Salónica, tendo porém desenvolvido outros por­tos do Adriático em detrimento de Susak e Trieste. A Polônia, com acomodações em Dantzig, preferiu constmir e movimen­tar um nôvo porto em Gdynia. A concessão de independência a Trieste e seu território mais próximo, depois da Segunda Guerra Mundial, mesmo que recursos especiais sejam garanti­dos no pôrto, aos Estados que lhe compõem o interior, não lo­grará êxito, a menos que se estabeleçam boas relações entre o nôvo Estado Livre e a Iugoslávia, visto como esta última controla as comunicações do seu interior.

Êsses exemplos europeus tendem a despertar a atenção em virtude das repercussões políticas e econômicas que pos­sam ocorrer em conseqüência de sua aplicação, mas não se deve esquecer que as tentativas da Bolívia para conseguir acesso ao mar vêm, há muito, servindo de motivo a dis- sensões na América do Sul. A África, como a América do Sul, tem, presentemente, apenas um Estado interior inde­pendente, a Abissínia, que vem procurando saídas para o mar em território estrangeiro. O Govêrno belga entrou em acôrdo com o Govêrno britânico para uso de um local em Dar-es-Salaam como escoadouro para o comércio do Congo belga, e o mesmo foi feito em relação à Rodésia do Norte e à Niassalândia para a utilização do pôrto de Beira, no Moçambique português. A decisiva paíticipação na circula­ção oceânica, seja esta favorecida pela propriedade de bai­xadas costeiras densamente habitadas, fisicamente apropria­das, seja nos casos em que se necessita de complicadas nego­ciações com os Estados vizinhos para a permissão de acesso

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às águas litorâneas pelos países interiores, tem importância capital na Geografia Política de todos e até dos mais insig­nificantes Estados.

Examinando a circulação dos continentes, o estudioso de Geografia Política defronta-se com uma série de exi­gências muito diferentes. “A liberdade dos mares” vem sen­do, de há muito, debatida em relação às comunicações marí­timas internacionais e a “liberdade do espaço” vem sendo quase que igual e eufemisticamente usada nos últimos anos, porém os estudos dos vários aspectos dos assuntos interna­cionais, inclusive circulação, raramente relacionam-se, se é que o fazem, com a “liberdade das terras”. A razão é pa­tente. As comunicações terrestres desenvolveram-se funda­mentalmente para fazer face às necessidades da organização interna do Estado e formaram, portanto, íntima relação com a política nacional. Desde que todos, menos os Estados- -ilhas, mantêm contato físico com seus vizinhos, as várias rêdes de rotas nacionais foram gradativamente ligadas, tendo sido estabelecidos serviços completos de todos os tipos, mas o fato essencial é que, em cada país, o objetivo principal é manter o contróle das comunicações dentro do território do Estado, de modo que o tráfego internacional seja possível sòmente em resultado de acôrdo mútuo por parte das en­tidades políticas interessadas.

Cada uma e tôdas as rêdes nacionais, potencialmente, formam um íntimo sistema, e o desenvolvimento do nacio­nalismo econômico do século XX serviu para reforçar êsse cunho pela criação de barreiras artificiais nos limites polí­ticos. Ademais, essa condição nacionalista das comunica­ções terrestres deu lugar a diferenças de ordem técnica. A U.R. S . S . e os dois países ibéricos adotaram bitolas de linhas férreas diferentes das de outros Estados europeus. As estru­turas tarifárias e os sistemas de administração são quase tão numerosos e tão variados como os países que os possuem. Há, em alguns Estados, o contróle direto das vias férreas pelo Govêrno, enquanto, em outros, êsse meio de transporte pertence e é dirigido pela iniciativa privada. Quando ne­cessários, por motivos estratégicos ou de segurança econô-

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B S C S H / UFRG9

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mica, os serviços de transporte são subvencionados, direta ou indiretamente, por tarifas de frete vantajosas.

O tráfego terrestre internacional é, portanto, dificultado com a sua submissão às leis do Estado que o regem e pelos obstáculos relativos a diferenças do equipamento téc­nico e de administração. Em vista dessa situação obstru­cionista, é de admirar que a circulação terrestre internacio­nal tenha atingido, presentemente, o seu mais alto nivel que indica os esforços feitos pelos organizadores dos acôrdos in­ternacionais nesse sentido. Êsse trabalho está sujeito a mo­dificação sempre que haja mudança de limites e da orienta­ção das ideologias políticas dos Estados.

A coordenação da circulação continental é ainda obs­truída pela existência de enorme variedade de formas de transporte terrestre. Enquanto todo tráfego nos oceanos é feito por navios, em terra as vias férreas, as estradas e as vias aquáticas interiores estão sempre fazendo concorrência umas às outras. Tôdas receberam grande estímulo da Re­volução Industrial e do seu concomitante desenvolvimento pela circulação, tendo cada uma progredido independente­mente das outras, tornando, assim, a coordenação interna bastante difícil, como demonstra a luta entre os interêsses da ferrovia e da rodovia na Grã-Bretanha.

Outrossim, todos os três tipos de transporte terrestre es­tão ligados a rotas fixas cuja construção requer enorme dis- pêndio de trabalho, de material e de capital. Não obedecem aos objetivos da circulação internacional. Raramente seguem as mais retas linhas internacionais; caracterizam-se muitas vêzes pelos afastamentos a bem dos interêsses nacionais. As rotas terrestres são, portanto, menos flexíveis do que as ma­rítimas; são menos sujeitas a mudanças, embora o volume

<53 Muitos Estados circunvizinhos já fizeram acôrdos para a pas­sagem de mercadorias “em trânsito”, o que comumente é feito em furgões lacrados. Geralmente, essas mercadorias não estão sujeitas à inspeção aduaneira, mas devem figurar numa lista de utilidades preestabelecida. Essas facilidades não se aplicam ao tráfego rodo­viário e raram ente às mercadorias transportadas por vias fluviais internas.

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do tráfego possa flutuar consideràvelmente. O resultado disso nota-se na maior densidade dos meios de circulação dos continentes, mais particularmente nas regiões industria­lizadas dos Estados mais adiantados, onde o intercâmbio in­ternacional fica restrito a certos pontos em que foram adap­tados meios para cruzar os limites políticos.

A Europa constitui notável exemplo do continente onde o conflito entre a circulação nacional e a internacional não foi ainda solucionado. Suas atividades econômicas alta­mente organizadas e a dependência das fontes externas para as matérias-primas e os mercados demonstram ser aconse­lhável a circulação continental mais livre possível; mesmo assim, em virtude de sua fragmentação política, essa circula­ção é dificultada pelas restrições impostas por motivos polí­ticos, ao longo de tôdas as quinze mil milhas de limites es­tatais. O perigo de tal sistema está nas oportunidades que cria para que o Estado forte domine países menores através do comércio internacional.

No passado, a política da Alemanha, resumida na frase; “D rm g nach osten”, foi posta em prática por acôrdos comer­ciais que redundaram depois na hegemonia econômica danu­biana e do Suleste europeu, como demonstrado por Basch. No período entre as guerras, a Itália tentou idêntica expansão econômica com menores motivos e muito menos êxito. A U. R.S .S . vem agora implantando uma política análoga na Europa oriental e já reorienta as relações comerciais da re­gião conturbada; a Polônia, a Tcheco-Eslováquia, a Hungria, a Romênia e a Bulgária vêm sendo cada vez mais fortemente atreladas ao sistema econômico soviético. Inevitàvelmente, êsse contróle econômico nos assuntos de outros Estados está ligado às crescentes influências políticas de modo a dividir a Europa em dois campos opostos.

O geógrafo político compreenderá que um dos fatôres mais importantes do desenvolvimento dessas políticas é a

68 A. Basch, T h e D anuhe Basin and the G erm án Economic S p here, Londres, 1944.

65 P a ra mais detalhes, ver capítulos III e VIII de T he Changing W orld, organizado por W. G. E ast e A. E . Mioody, Londres, 1956.

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existência da circulação internacional, a qual, estando su­jeita ao contróle nacional, pode ser utilizada como arma para fins econômicos e políticos pelos Estados que assim desejem. Num mundo perfeito, as comunicações continentais estariam livres de tôdas as obstruções artificiais de modo que pudessem exercer influência unificadora comparável à exer­cida, em tempo de paz, pelas grandes rotas marítimas, porém isso não pode ser conseguido enquanto os Estados sobe­ranos tiverem o poder de restringir o movimento internacio­nal com objetivos nacionais.

Todos os indícios existentes demonstram a conveniência de rápida providência para a unificação da circulação mun­dial. Os transportes terrestres e marítimos não são compe­tidores; representam elementos complementares do sistema mundial. Logo depois da Primeira Guerra Mundial, Vidal de la Blache escreveu: ®® “La dernière phase de Ihistoire des comunications est caractèrisée par 1’intense collaboration du rail et de la navigation à vapeur”. Daí em diante aumen­taram muito a construção e o tráfego de estradas devido, em grande parte, ao uso do motor de combustão interna, mesmo assim com pequeno efeito na circulação internacional. Na sua maioria, o transporte de mercadorias por estradas de rodagem é limitado a cargas relativamente pequenas e a tendência dêsse tráfego é proteger as vias férreas que ainda são os principais meios para o transporte de mercadorias em escala continental.

O objetivo mais importante para maior unificação do transporte mundial, portanto, repousa na integração mais completa do tráfego por ferrovias e pelo mar, mas isso de­pende da eliminação, ou, pelo menos, da redução das tarifas que são, indubitàvelmente, o entrave principal no cammho do desenvolvimento do comércio internacional. Para que fim foi conquistado o espaço e reduzido o tempo de viagem se as vantagens obtidas pelo engenho e perícia humanos não podem ser utilizadas completamente? Trata-se de uma ques-

«8 A. Basch, T he D anube Basin and the G erm án Econom ic S p here, Londres, 1944, p. 258.

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tão mais que nacional. Sem a distribuição adequada, a pro­dução mundial das utilidades fica manietada, enquanto os níveis de consumo manter-se-ão baixos. Quem quer que quisesse argumentar não interessar isso ao geógrafo político obscurece o fato de que a estrutura política do Estado reflete o êxito ou fracasso das atividades econômicas do seu povo.

Inversamente, nada detém mais o desenvolvimento eco­nômico do que a instabilidade política e o desconfôrto.

Plus la civilization prend um caractère économique, plus la politique et Véconomique sont entremêleés-, plus aussi les moyens de circulation sont multiplés et perfec- tionnés, plus les faits de transplantation humaine liés à toute exploitation intensive de la terre deviennent d ’abord nombreux et ensuvte variés,

escreveu Jean Brunhes. ®7 Por fim, a circulação é um dos meios mais importantes pelos quais a soeiedade mundial fun­ciona como uma emprêsa em atividade, de modo que todo obstáculo ao seu bom funcionamento deve ser removido.

A via férrea e o automóvel podem ser considerados como elementos relativamente novos para a circulação continental, ao passo que os rios vêm servindo de rotas de transporte desde priscas eras. O sistema hidrográfieo do Sudeste da Inglaterra foi explorado pelos invasores saxônicos dêsse ter­ritório; a Rússia dependeu, por muito tempo, dos seus rios para fins de transporte, enquanto as grandes correntes do Nôvo Mundo guiavam o caminho para a penetração, nesse continente, dos emigrantes europeus. Mas os rios navegá­veis diferem de suas concorrentes, as estradas, enquanto as linhas de movimento dos seus canais precederem a evolução dos Estados em sua forma moderna. Tudo o que o homem pode fazer é aperfeiçoar a navegabilidade do rio, impulsionar sua capacidade transportadora e ampliar sua esfera de utili­dade ligando-a a outros rios ou à costa por meio de canais.

67 La Géographie H um aine, Vol. I, p. 281, 4» edição. Paris, 1934.

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Nos casos em que o territorio de um simples Estado abranja todo o sistema de transporte de um grande rio, pode éste ajudar muito a circulação interna, mas nos casos em que o curso navegável seja dividido com dois ou mais Es­tados, o tráfego fica sujeito a interferencia desde que não existam sistemas de contróle internacional. Dessa forma, o rio poderá contribuir muito pouco para o comercio externo, a menos que baja ação conjunta das Potencias ribeirinhas a fim de introduzir melhoramentos nos regulamentos de navegação e uniformidade da mesma. Ademais, o tráfego ai interessa não sòmente aos Estados banhados pelo rio, de modo que, muito provàvelmente, só se poderá tirar todo proveito dos seus recursos de navegação quando fôr o mesmo “internacionalizado”, isto é, quando o seu contróle fôr en­tregue a uma comissão a ser estabelecida pelos Estados in­teressados. Indubitàvelmente, êsse processo concorre, até certo ponto, para a quebra da soberania das Potências ribei­rinhas, mas justifica-se o sacrifício pelos benefícios materiais oriundos do aumento do tráfego no rio.

A Europa, em virtude mais uma vez de sua fragmentação política, possui vários rios dessa espécie, sendo o Danúbio o primeiro a ser internacionalizado. Depois da Primeira Guerra Mundial, fêz-se o mesmo com o Reno e o Elba, porém o bom trabalho das comissões criadas para promover a cir­culação internacional foi interrompido por considerações po­líticas, sendo a Alemanha a maior transgressora nesse par­ticular.

No futuro, como no passado, a Europa precisará dos ser­viços de todos os meios possíveis de transporte continental e os rios internacionais terão seu papel. A grande vantagem disso são as baixas taxas de frete; Capot-Rey cita as observa­ções de um perito francês de navegação interna sôbre o custo relativo do transporte interno que, por água, é três vêzes mais barato do que por estrada de ferro e cinco vêzes mais barato do que por estrada de rodagem. Em compensação, deve- -se levar em consideração a velocidade muito menor do

«s Capot-Rey, op. cit, p. 211.

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transporte aquático interno. Por outro lado, as barcaças fluviais são muito adequadas au transporte de cargas volu­mosas não-deterioráveis como carvão, minério de ferro, óleo, cereais e madeira, que são precisamente as utilidades de maior procura na Europa.

Interessam também ao geógrafo político outros sistemas de circulação internacional desde que facilitem o bom fun­cionamento dos Estados e concorram para a distribuição mais ampia de recursos de todos os tipos. A União Postal Interna­cional constitui notável exemplo da cooperação internacional. Fundada em 1874, sua Convenção Postal estabeleceu que todos os países da União, e sòmente alguns pequenos países a ela não pertencentes, constituem territorio postal único para a troca de correspondência. A União Internacional de Telecomunicações logrou menos êxito no trabalho para desen­volver a cooperação internacional em vista do conflito dos in­terêsses políticos, mas particularmente no que conceme à telegrafía sem fio. Todos os Estados mais importantes pos­suem seus próprios sistemas internos de rádio que exercem influência política, principalmente depois do aparecimento de aparelhos receptores ao alcance de todos. Embora não seja ainda possível apreciar devidamente os efeitos da tele­grafía sem fio, não há dúvida de que esta já se tornou fator importante nas relações internacionais. A difusão das no­tícias, da propaganda e do chamado material cultural pode muito bem servir, com o auxílio dêsse nôvo recurso, para dissipar o mal-entendido internacional. Por outro lado, tem sido usada para estimular o nacionalismo, e todos os Estados estão ávidos por conseguir canais que atendam aos seus objetivos. Sem um acôrdo internacional para a fixação dos canais, seria fatal a confusão “no ar” e, para evitar isso, a União Internacional de Telecomunicações faz conferências regulares com o fim de assentar o estabelecimento dos canais bem como a solução de outros casos de ordem técnica. De­ve-se também ter em mente que a telecomunicação muito concorre para a permuta, de âmbito mundial, das utilidades, tendo assim o seu papel na produção e distribuição mundiais.

Um dos fatôres determinantes da economia de todos os Estados é a viabilidade da energia mecânica. As fontes dessa

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energia, o carvão, o petróleo, a água corrente e agora as subs­tâncias de onde se deriva a energia atômica, são notáveis pela falta de uniformidade em sua distribuição, de maneira que a prosperidade material e o poder político, a ela asso­ciado, dependem grandemente da posse ou dos meios de aeesso às fontes adequadas de uma ou mais utilidades. Até agora, os Estados deficientes têm eonseguido resolver o caso com a importação de carvão ou de petróleo pelos meios comerciais regulares, mas com o fim de garantir êsses for­necimentos tornou-se comum, de maneira crescente, a inter­ferência do Estado em terreno até então tido como de natu­reza puramente comercial. Desde 1918 que o número de acôrdos comerciais entre os Estados aumentou considerà­velmente. As vêzes, assumem a forma de tratados; quando não, geralmente, são apoiados e negociados pelas agências governamentais e isso significa estar o comércio internacional sendo orientado, em escala crescente, para atender às polí­ticas nacionais. Isso ocorre com a maioria das utilidades transportadas por vias internacionais de comunicações terres­tres e marítimas, sendo, porém, de suma importância no caso dos combustíveis, por serem êstes, e a energia que geram, fatôres básicos para o desenvolvimento da indústria e do transporte e, em proporção crescente, da agricultura. Tanto o carvão como o petróleo são utilidades volumosas e de transporte dispendioso a longas distâncias, mesmo quando a fonte de origem e o mercado consumidor ficam em pontos vantajosamente localizados com relação às vias de comunica­ção, por água, de baixo custo.

Dois desenvolvimentos do século XX são capazes de reparar grandemente as desvantagens da distribuição mun­dial desigual dos recursos de energia. A produção de ele­tricidade em larga escala com o uso do carvão, do petróleo ou da água corrente e os aperfeiçoamentos da técnica para a transmissão à longa distância redundaram na criação dos sis­temas nacionais de grade. Enormes áreas nos Estados Unidos já são servidas por vastos sistemas de grade e, na Europa, as únicas barreiras aparentes ao sistema internacional de distribuição, em áreas igualmente grandes, são as referentes aos limites nacionais. A energia elétrica já é exportada por

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vários países para as nações vizinhas que dela necessitam e, antes de 1939, havia três planos regionais em funcionamento — a Noruega e a Suécia transmitiam eletricidade à Dina­marca, a corrente necessária à Baviera provinha, em parte, das estações hidrelétricas da Áustria, enquanto, de acôrdo com o Tratado de Versalhes, foi dado início ao plano franco- -alemão para a utilização da hidreletricidade produzida pelo Reno.

Técnicamente, não há obstáculos sérios à expansão do sistema de grade em escala internacional. A transmissão trifásica é o método mais comum usado na Europa, enquanto as variações das voltagens podem ser resolvidas pelas esta­ções transformadoras. As vantagens disso são certamente grandes. Manee®® mostra os benefícios daí oriundos:

. . .equilibrando as fontes de energia hidráulica que atin­gem o máximo durante o verão com as que o atingem no inverno, combinando os suprimentos d e carvão e de energia hidráulica da melhor forma e, possivelmente, fa­zendo vacilar, até certo ponto, a carga máxima como resultado da variação, no tempo, em área de grande prolongamento.

Peritos alemães organizaram esquemas internacionais pa­ra a Europa central durante a guerra, e um geógrafo polonês mostrou como os Estados da Europa centro-oriental pode­riam ser eletrificados pela combinação da energia térmica dos campos carboníferos silesianos com a hidreletricidade proveniente do Danúbio, circulando com o auxílio do sistema de grade internacional. Êsses esquemas e a sua extensão a áreas maiores não podem atingir tôda a sua capacidade en­quanto os Estados apropriados não estiverem dispostos a criar, para isso, um organismo internacional.

Coisa semelhante à transmissão de eletricidade é a cir­culação de líquidos e gases através de encanações. Já os

68 O. Manee, International Road Transport, Postal, Electricity and M iscellaneous Questiovs, Londres, 1947, p. 140.

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Estados Unios estabeleceram uma rêde dessas encanações para a distribuição de petróleo e gás natural. Na Europa, conseguiu-se valiosa experiência, durante a Segunda Guerra Mundial, com a instalação, na Inglaterra, e entre êste país e a França, de longas tubulações. O primeiro experimento no terreno dos oleodutos internacionais foi a ligação do campo petrolífero de Kirkuk, no Iraque, à margem oriental do Me­diterrâneo. Com o fim de atender às necessidades políticas e estratégicas, resolveu-se bifurcar a linha em Haditha, indo terminar o ramo que seguia para o norte em Trípoli, e o do sul em Haifa, tendo a Irac Petroleum Company e as autori­dades francesas e britânicas, como Potências Mandatárias dos territórios interessados, concluído os necessários acôrdos para a travessia da Síria e do Líbano, bem como da Transjordânia e da Palestina.

Apesar da conturbada situação política do Oriente Mé­dio desde a instalação dêsses oleodutos em 1934, a experiên­cia logrou êxito suficiente para justificar o preparo de outro esquema ligando o campo petiolífero do Gôlfo Pérsico ao Mediterrâneo, a despeito de estar êste campo localizado já próximo à costa marítima. Tais projetos são, indubitàvel­mente, vantajosos para a distribuição de petróleo e gás, e a instalação de oleodutos internacionais, juntamente com os sistemas de grade continentais de eletricidade, facilitaria muito mais a circulação da energia mecânica para melhor distribuição às indústrias, maior mecanização da agricultura e, conseqüentemente, maior produtividade, sem o que é im­provável conseguir-se a estabilidade política nas áreas menos favorecidas do mundo.

Resta agora examinarmos o papel do transporte aéreo na circulação internacional. Êste, o último e o mais rápido meio de comunicação, é produto do século XX e trouxe para as relações externas do Estado um nôvo elemento que, apesar de ainda muito jovem, cresceu tão rápidamente que é im­possível calcular, com precisão, os seus efeitos a curto e longo prazos. Muitas previsões foram tentadas; nem tôdas sofreram grandes exageros.

O aeroplano, dessa ou daquela forma, deve ser, certa­mente, reconhecido como meio de comunicação tanto interno

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como externo, porém parece improvável que possa competir, vantajosamente, com outros meios de transporte para a con­dução de mercadorias em virtude do seu enorme custo ope­rativo. J. S. Maclay apresenta outro perito em navegação, o Sr. Leslie Runciman, cuja autoridade afirma que;

. . . um navio cargueiro de tamanho regular transportou num único ano, em tempo de paz, três vêzes mais fre­te, calculado em toneladas-milha, do que tôdas as linhas aéreas internas, altamente organizadas, dos Estados Uni­dos; em segundo lugar, que o custo, por tonelada-milha, aéreo, foi de cérea de 30d., enquanto o mesmo custo por navio, antes da guerra, foi de cérea de um trinta ovos do p én f’.

O transporte aéreo, certamente, poderá ser aproveitado para utilidades especiais, de pequeno volume e valor elevado, e já provou sua importancia na condução de cargas para locais inacessíveis por outros meios. O seu principal raio de ação em tempo de paz é o transporte de passageiros, para o que é muito conveniente pela velocidade, se não pelo preço.

Um dos aspectos geográficos importantes da comunica­ção aérea é que movimenta, na térra, o elemento de direção característico das rota.*" de navegação. É perigoso sobrevoar regiões montanhosas e, freqüentemente, as perturbações amosféricas forçam os aeroplanos a desviar-se do curso nor­mal, quer em posição vertical, quer horizontal. Além disso, ao tráfego aéreo é possível estabelecer caminho mais curto para os seus campos de pouso, cuja localização determina o sistema das vias aéreas. Mesmo assim, os aeródromos não são distribuídos em Grandes Círculos ainda quando atendem ao tráfego internacional a grande distância, e isso por duas razões.

Como acontece a tôdas as demais formas de transporte, os serviços aéreos desenvolvem-se, na sua maior parte, em razão da procura, real ou em potencial, e a exigência para

70 J . s. M aclay, op. cit., p. 490.

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o fornecimento regular dêsse dispendioso meio de condução restringe-se, geralmente, às rotas entre as regiões densamente habitadas e altamente produtivas.

Segundo, o tráfego aéreo internacional abrange o so­brevôo do território de Estados que não aquêles a que per­tence a aeronave, a menos que seja necessário utilizar rotas antieconômicas. Êsse fato deixa margem à possibilidade de violação dos direitos de soberania dos Estados sobrevoados e já provocou longos debates sôbre a “Liberdade do Espaço”.

“Após quarenta anos de discussões, as naçÕes do mundo não chegaram ainda a acôrdo com relação a normas univer­sais sôbre os privilégios que a aviação de uma nação deve gozar quando voa ou aterrissa para abastecimento ou para fins comerciais, em território estrangeiro”.

Na prática, e juridicamente, é geralmente reconhecido o direito de todos os Estados controlarem o espaço aéreo, usque ad coelum, e estendê-lo aos limites das águas territoriais. Assim, transforma-se o Estado numa entidade tridimensional e, no que se refere à avaliação, as rotas internacionais só podem ser utilizadas com o consentimento dos Estados so­brevoados por aviões comerciais. Portanto, poderosa arma fica em poder dos Estados, mais particularmente dos loca­lizados nas regiões mais prováveis da criação de comunica­ções aéreas, pois ficam, dêsse modo, em condições de obrigar a aviação a utilizar rotas não muito convenientes.

Por alguns anos foi proibido às rotas aéreas britânicas que faziam o serviço entre a metrópole, a índia e a Austrália, cruzarem o território italiano ou persa. Antes da Segunda Guerra Mundial, os serviços aéreos entre Londres e a Nigéria eram feitos via Cairo e Cartum em vista do monopólio da Air France no Saara francês, o que prolongava a viagem em mais de 2.800 quilômetros. Em conseqüência, a criação e o uso das rotas aéreas eram grandemente determinados

21 J . c . Cooper, “Some Historie Phases of British International Civil Aviation P olicy”, International Affairs, Vol. X X III, n.® 2, abril de 1947, p. 189.

22 V er Capot-Rey, op. c i t , p. 272.

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por acôrdos recíprocos entre os Estados ou, como diz Cooper: “negociações políticas diretas eram aceitas como norma” durante o período da guerra. Aqui também há evidencia de choque entre os interêsses políticos, inerentes à vida de grande número de Estados soberanos, e o completo desen­volvimento da circulação aérea como demonstrado pela aná­lise das condições geográficas.

Envidaram-se esforços, recentemente, para eliminar al­gumas das dificuldades ligadas ao caso. A Conferência de Chicago sôbre Aviação Civil Internacional, realizada em fins de 1944, sugeriu um acôrdo internacional baseado nas “Cinco Liberdades” : liberdade de vôo sem aterrissagem nos territo­rios dos Estados signatários, liberdade de pouso sem efeitos de tráfego como o abastecimento, liberdade de aterrissar e decolar, liberdade de pouso com efeitos de tráfego entre um Estado que mantenha serviço aéreo e outro Estado signatário do pacto, respectivamente, e liberdade para estabelecer trá­fego entre os Estados abrangidos pela rota de qualquer ser­viço aéreo internacional. Devido, principalmente, à oposição às políticas do Reino Unido e dos Estados Unidos (a U.R.S .S . não se fêz representar na Conferência), fracassa­ram as negociações e o primitivo sistema bilateral continuou a vigorar. Em 1946, o Reino Unido e os Estados Unidos, os dois Estados mais importantes interessados no tráfego aéreo internacional, firmaram o Acôrdo das Bermudas, documento bilateral, e embora possa éste desbravar o caminho para um acôrdo internacional mais ampio, suas disposições restrin- gem-se, presentemente, à aviação civil anglo-americana.

Em vista da natureza terrivelmente destruidora da guerra aérea em combinação com a possibilidade da aviação levar a guerra ao ámago do territorio inimigo, o problema funda­mental do tráfego aéreo internacional é o da segurança na­cional versus a aviação livre. A política estatal nesse par­ticular deve ser orientada pelos julgamentos dos peritos mi­litares e aeronáuticos. O geógrafo político vê nesse, como em muitos outros aspectos da circulação mundial, a natureza

23 J . C. Cooper, op. c it , p. 196.

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obstrucionista das políticas nacionais quando destinadas a fazer face às exigências da guerra em potencial.

Em resumo, a natureza física da superfície terrestre, a distribuição das massas de terra e mar, a natureza envolvente da atmosfera, juntamente com a distribuição desigual das massas de população e da produtividade econômica, indicam o caminho que leva à meta da circulação integral da terra. Paradoxalmente, o particularismo individual dos Estados sem­pre se opôs e ainda se opõe a êsse universalismo. O prin­cipal problema político do século XX é reconciliar êsses ele­mentos opostos, e o grande número de conferências interna­cionais que se vêm realizando desde o início do século de­monstra o conhecimento, por parte da maioria dos Estados, de pelo menos sua existência.

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VII

ASPECTOS DEMOGRÁFICOS

^ ALiENTOu-sE DOS capítulos I 6 II a naturcza tríplice de to­dos os Estados que constituem um amálgama de territorio, povo e mecanismo organizacional estabelecido para orientar as relações entre as pessoas e o respectivo ambiente físico. Destina-se o presente capítulo à análise de certos aspectos geográficos do elemento demográfico dentro do Estado em suas relações externas. Faz-se simplesmente necessário ela­borar aqui a importância dêsse elemento nas atividades es­tatais e interestatais, mas deve o estudioso da Geografia Demográfica ser advertido sôbre a grande complexidade do assunto.

Nas presentes condições do conhecimento, não se dispõe de informações estatísticas adequadas para mais da metade da população do mundo, enquanto o material para recen- seamento, mesmo da maioria dos países adiantados, não cor­responde perfeitamente às exigências dos demógrafos. Ade­mais, os problemas sôbre população relacionam-se com larga série de ¿ansas contributivas, biológicas, sociais, econômicas, políticas e psicológicas, nenhuma das quais é estritamente geográfica, mas tôdas devem ser tomadas em consideração para a avaliação da estrutura demográfica do Estado. É esta, naturalmente, apenas outra forma de expressar o fato bem conhecido de que as relações humanas são mais com­plexas do que as de quaisquer outros organismos e que o

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homem constitui a única forma de vida que já tentou realizar a organização política.

Em combinação com o das regiões e dos desenvolvi­mentos econômico e político dos Estados, o modelo distri­butivo da população do mundo é caracterizado por notável desigualdade, tanto nos números totais como na densidade. Esta irregularidade não é uma expressão direta de simples área em que os continentes ou Estados sejam ou não consi­derados como unidades territoriais. Embora o Professor Fawcett tenha demonstrado em suas representações dia- gramáticas simplificadas das áreas da terra e suas populações que existe grande correlação entre êsses dois elementos geo­gráficos, o fato positivo é que as populações continentais estão, por si próprias, distribuídas muito desigualmente em conseqüência, principalmente, da existência de capacidades diferenciais para apoiarem as pessoas. Não obstante, existe chocante concentração de população na Ásia e na Europa que vem sendo conservada continuadamente nos últimos 300 anos. De acôrdo com os cálculos de Sir Alexander Carr- -Saunders, 7® a Ásia e a Europa juntas possuíam 78,9% da população do mundo, do total de 545 milhões em 1650, e 79,7% dos 2.057 milhões de 1933. Somente a Europa, apesar de sua área relativamente pequena, aumentou sua propor­ção sôbre a população mundial de 18,3%, em 1650, para 25,2%, em 1933, embora se registrasse positiva redução nos números devido à emigração durante o século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX.

Há também grande disparidade entre os Estados em área e população. Mesmo as Grandes Potências são muito diferentes nesse particular, como demonstrou o Professor East, 76 e, por vários motivos a serem estudados posterior­mente, é improvável existir, de futuro, qualquer igualdade

7* C. B . Faw cett, T he Bases of a W orld Commonwealth, Lon­dres, 1941, Figs. 5 e 6, pp. 28-29.

75 A. M. Carr-Saunders, W orld Population, Oxford, 1936, Fig. 8, p. 42.

76 W. G. East, “The Nature of Political Georgraphy”, Vol. II, n.® 7, m arço de 1937. p. 273.

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que seja nos índices de população entre os Estados. Assim é que o geógrafo político defronta-se com urna serie de situações demográficas cuja importância pode forçá-lo a me­ditar sèriamente, se bem que não pode haver dúvida que essas situações têm grande significação, tanto nos assuntos in­ternos dos Estados como nos externos.

Nem um grande total de população nem urna alta den­sidade de ocupação humana, por si sós, são suficientes para dar ao Estado mais importância política. As pessoas são necessárias para cultivar os campos, servir as indústrias e assim por diante. Constituem, por muitas modalidades, o principal recurso de todos os Estados, se bem que um alto nivel de produtividade econômica não perfaz, necessària­mente, o corolário de população densa. Veja-se o exemplo da China que é tida como possuindo as maiores reservas de carvão do mundo e não há dúvida que possui a maior das populações, e nem por isso chegou a ser um importante país industrial.

Para conseguir, no mundo, poder político, a quantidade da população tem menos importância que a qualidade, en­contrando, esta última, expressão na vontade de vencer e conservar uma posição de destaque nos assuntos internacio­nais. Presumivelmente, um Estado fracamente povoado e de total pequeno de população conta com pouca ou nenhuma oportunidade de chegar a ser uma Grande Potência. Pode haver uma população otimista em relação ao grau de desen­volvimento e aos recursos totais do Estado, mas não parece existir qualquer otimismo semelhante pelo êxito na luta pela hegemonia nos assuntos mundiais. Os principais Estados do presente, a U .R .S .S ., os E .U .A ., a Grã-Bretanha e a França, apresentam notáveis divergências em número e densidade. Nenhum país exerceu mais influência no mundo e por mais tempo do que a Grã-Bretanha; mesmo assim, sua população total nunca ultrapassou a casa dos cinqüenta milhões. Esta cifra não daria sequer para ocupar um território do tamanho do da U .R .S .S . ou dos E .U .A .

É claro que do ponto de vista da luta para conseguir um lugar entre as Potências de primeira grandeza, todo Es­

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tado é inigualável na posse do seu terreno, pelos recursos materiais, pela posição geográfica e pela população. A sua mais notável caracterítsica humana é a vontade em conjunto com a competência, isto é, a qualidade do seu povo, e isso representa a combinação dos atributos biológicos e psicoló­gicos a respeito dos quais não há, pràticamente, dados esta­tísticos. Nossos pontos de vista sôbre a qualidade, tanto dos nossos patrícios como de outros povos, são muitas vêzes in­fluenciados pelos preconceitos. Essa atitude emocional, ge­ralmente tanto mais poderosa quanto menos plenamente cons­ciente, é, sem dúvida, infensa à solução racional e pacífica dos problemas internacionais sôbre população. O geógrafo político precisa reconhecer a existência dêsses problemas nem que seja apenas pelo fato de que, ao menos, explica, em parte, os meios pelos quais os governantes de certos Estados conseguiriam angariar o apoio do seu povo para as suas ati­vidades expansionistas.

Outra característica relevante das condições demográfi­cas é que os índices de população flutuam por motivos que nem sempre são claros ou determináveis. Apreciando-se o mundo primeiro como um todo, nota-se que os seus habitan­tes humanos conseguiram “expansão sem precedente” 22 nos tempos modernos ou, para sermos mais precisos, entre 1650 e 1933, enquanto o término dêste processo nem sequer está ainda à vista. A proporção do aumento não foi constante, nem em relação ao mundo nem com referência aos seus com­ponentes, mas o aumento positivo de 545 milhões, em 1650, para 2.057 milhões, em 1933, representa o maior e único problema internacional da atualidade, visto existir relação direta entre as necessidades dêsses milhões de pessoas e a capacidade produtiva da superfície terrestre. Essa relação reflete-se mais claramente na enorme lacuna existente, pre­sentemente, entre a produção alimentícia atual e as quanti­dades necessárias para elevar os níveis do consumo de uma grande porcentagem dos habitantes do mundo a padrões acei­táveis. Essa lacuna já não pode ser coberta, se é que já

22 Carr-Saunders, op. cit., p. 42.

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pôde, pela organização nacional. “Está-se longe de conseguir a verdadeira suficiência mundial de qualquer material bio­logicamente produzido, quer para fins de alimentação, quer para fins industriais, se adotarmos o critério da necessidade total”. 76

Positivamente, o planejamento internacional é necessário para disciplinar essa deficiência urgente e colossal de gê­neros alimentícios e não, necessàriamente, por qualquer mo­tivo altruístico. Os próprios interêsses materiais de todos os Estados são diretamente atingidos, desde que mesmo as mais ricas Potências, E .U .A . e U .R .S .S ., não possam atender convenientemente tôdas as necessidades dos seus povos, en­quanto os países menos favorecidos dependem ainda mais da produção de fora dos seus próprios territórios.

Ademais, a base do comércio internacional repousa na grande procura de gêneros alimentícios e outras utilidades. Se essa procura tem que ser atendida, mesmo com os baixos padrões atuais do custo de vida predominantes em grandes áreas, é mister expandir a economia mundial conjuntamente com o melhoramento colateral da distribuição. A Organiza­ção de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, que resultou da conferência internacional de Hot Springs em 1 ^ , é um passo dado na devida direção e já apresentou valiosas sugestões para solucionar o problema, sendo que os seus pla­nos não lograrão pleno êxito enquanto e até quando todos os Estados produtores e consumidores não se conformarem em estabelecer uma política alimentar comum. “A liberdade de necessidade” deve servir de eufemismo para a maior parte da população em crescimento no mundo até que a produção e a distribuição de alimentos sejam radicalmente reorgani­zadas. Enquanto não se processar essa mudança, a pressão da população sôbre o território dos Estados, individualmente, <! contra os limites nacionais, continuará como poderosa fôrça motriz influenciando os assuntos mundiais. Enquanto os seus efeitos, inclusive as políticas a que dão lugar, tiverem

78 G . c . L . Bertram , “Population Trends and the W orld’s Resour­ces”, Geographical Journal, Vol. CVII, n.os 5 e 6, maio e junho de 1046 , p . 1 93 .

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sentido unilateral, o problema mais importante permanecerá insolúvel.

Outro complicado fator dos múltiplos problemas provo­cados pelo aumento rápido da população mundial é a distri­buição desigual dos índices de reprodução, excluindo, no momento, os efeitos das migrações. O aumento natural da população é o resultado do excesso da natalidade sôbre a mortalidade e, nessa base, a população do mundo está ainda aumentando, em virtude, em grande parte, do aperfeiçoa­mento da Ciencia Médica, das condições sociais e da elimi­nação da fome em grandes áreas onde esta era endémica anteriormente. O fato predominante nisso é a diferença entre a Europa, os descendentes europeus e o resto do mundo.

“O rápido crescimento da população da Europa", es­creveu Notestein, “está no fim. Demográficamente fdando, a Europa astingiu a m aturidade.. . Durante dois séculos, a Europa e o ultramar europeu registraram di­nâmico crescimento das populações para um mundo que se modificou de maneira relativamente lenta; as popu­lações européias já se aproximam da estabilidade num mundo em rápida expansão”.

O período de notável aumento da população européia começou logo depois de 1700, porém o século XIX assinalou a sua fase de expansão mais rápida. Presentemente, o ex­cesso de natalidide sôbre a mortalidade é ainda suficiente para mostrar aumento absoluto dos números, sendo que os “planejamentos” da população prevêem considerável queda em futuro próximo. Mais importante ainda do ponto de vista demográfico é a mudança da estrutura etária da população nos países europeus ocidentais onde, em resultado da com­binação da reprodução decrescente, registra-se, temporària- mente, grande proporção de pessoas dos grupos etários mais

2» F . W. Notestein e outros, T he F u tu re Population o f E urope and the Soviet Union, Genebra, 1944, p. 69. Cbama-se a atenção do leitor para os diagramas e mapas dessa vaUosa obra.

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altos. Com a morte dêsses grupos mais velhos, experimen- tar-se-ão todos os efeitos da fertilidade decrescente desde que a taxa de reprodução líquida não é bastante alta para assegurar a substituição da população. A Holanda e a Ir­landa são os dois únicos países do Noroeste europeu que apresentam taxa líquida de reprodução acima da unidade. Por contraste, os Estados da Europa mediterránica (exclusive a França) e da Europa oriental (exclusive a Tcheco-Eslová­quia, mas inclusive a União Soviética) apresentam todos taxas acima da unidade, embora haja indícios de que a fer­tilidade já começa a decrescer mesmo ali. Em resumo, a população de quase tôda a Europa ocidental e da maioria da Europa central não está sendo substituida, enquanto a do resto do continente o vai fazendo em proporção decres­cente.

A conseqüência dessas tendências da população na Eu­ropa é que os países do Noroeste europeu possuem popula­ções que estão envelhecendo e que não vão sendo substi­tuídas, enquanto os Estados do Leste e do Sul estão preo­cupados ainda em aumentar as populações com maior ferti­lidade e maior proporção de gente jovem. São múltiplas as conseqüências políticas dessa diferenciação e que deram lu­gar à adoção das políticas do povoamento por parte de cer­tos países. Essas políticas foram orientadas no sentido do aumento da fertilidade em caráter experimental e foram le­vadas a cabo muito recentemente para permitir o julgamento do seu êxito ou fracasso. “Devemos também compreender que as questões políticas podem tomar parte muito mais importante no influir nas resoluções (nas políticas do povoa­mento) “ do que as questões econômicas”, escreveu D. V. Glass, e o seu ponto de vista estava certo em relação aos casos da Alemanha, Itália e da França. Os geógrafos polí­ticos gostarão da relação entre as estruturas demográficas e os assuntos europeus indicados no mapa de Notestein sôbre

80 Sôbre os pormenores dos métodos de calcular as taxas da reprodução, ver D. V. Glass, Population Policies and M ovem ents in E urope, Oxford, 1940, pp. 383-7.

81 D. V. Glass, op. cit., p. 360.

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a distribuição das taxas líquidas de reprodução para essa parte do mundo.

Em qualquer parte da térra, com exceção dos países que foram colonizados e desenvolvidos por povos de origem eu­ropéia, as áreas possuidoras de grandes e densas populações, como a China, o Japão, a índia, Java e o Egito defrontam-se com as dificuldades próprias das quantidades em excesso. Os seus respectivos períodos de expansão demográfica veri- ficaram-se depois dos períodos correspondentes da Europa ocidental e têm, provàvelmente, relação com a difusão do conhecimento desta última área. Não se dispõe de dados precisos para o cálculo da proporção de sua reprodução, mas a proporção da mortalidade foi reduzida com a introdução do conhecimento médico europeu, tendo havido também certa redução nos efeitos da fome, não por ter a produção total de alimentos aumentado suficientemente, porém por terem os meios modernos de comunicações facilitado o trans­porte de alimentos para distritos que, de outra forma, seriam assolados pela fome.

No decurso dos vinte anos que vão de 1921 a 1941, a população da índia aumentou cêrca de cem milhões, ou seja, à proporção fenomenal de cinco milhões por ano, mesmo em relação à população de 1921 de cêrca de 320 milhões. Só se dispõe de estimativas para o caso da China que, de modo geral, colocam o total da população dêsse país acima do da índia. É possível que a mortalidade chinesa atinja maior proporção do que nos países onde a influência euro­péia se vem fazendo sentir mais fortemente, como demonstra a falta de sistemas de irrigação e de plantio do tipo europeu, de modo que a proporção de pessoas que vivem quase à margem da subsistência pode ser maior do que em qualquer outra parte. Quaisquer que sejam os índices atuais de po­voamento, pelo menos as partes da China densamente povoa­das devem sofrer os efeitos do congestionamento. “É possí­vel, se não provável, que a população da China esteja no

*2 F . w . Notestein, op. cit., Fig. I, p. 18. Reproduzido com pequenas modificações na Fig. 6, página oposta.

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ou quase no limite “malthusiano”. Ademais, em quase tôdas essas regiões não-européias e deixando-se margem para a falta de informações, a proporção da fertilidade é alta; de outro modo, a proporção da mortalidade relativa à breve perspectiva de vida redundaria em grande decréscimo das cifras totais.

Há, portanto, contraste fundamental tanto nas cifras como nas proporções da reprodução da população entre as regiões européias, inclusive as de descendência européia e os países não-europeus. Aquelas ou já atingiram estabilidade ou estão entrando agora na primeira fase do declínio da população: os últimos, excluindo o Japão, não dão sinais de decréscimo da fertilidade, pelo contrário apresentam todos os sintomas de congestionamento.

Nessa altura, o geógrafo político acha-se diante de um dilema de primeira grandeza que preocupa também todos os estudiosos dos assuntos internacionais. No campo huma­nitário, os milhões de indianos, chineses etc. subnutridos fa­zem jus às dietas adequadas e aos benefícios dos serviços aperfeiçoados de saúde; no terreno econômico, as populações predominantemente agrícolas, dos países congestionados, po­dem muito bem justificar o aumento geral dos respectivos padrões de vida, servindo de mercados, ampliados, para os países altamente industrializados.

Estabelecidas essas três vantagens, as proporções de mortalidade infantil e de adultos teriam, com tôda a certeza, que decrescer rápidamente; a reprodução e a perspectiva de vida aumentariam, enquanto tôdas as demais populações expandir-se-iam enormemente. Foi o qne sucedeu na Europa ocidental no século XIX, mas note-se a diferença. Naquele tempo a Europa não estava congestionada, as indústrias em desenvolvimento absorviam quantidades cada vez maiores de pessoas e havia escoadouros, no outro lado do Atlântico, para o excesso da população. Hoje, no meado do século XX, pel menos o Sudeste da Ásia já está pesadamente povoado com a emigração quase que impedida completamente; de

88 C arr-Saunders, cp. c it , p. 290.

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qualquer modo, os meios de transporte existentes para fins de emigração são completamente inapropriados para o vo­lume de tráfego que seria preciso para que se pudesse dar ao problema solução mais perfeita.

Já começou a industrialização no Japão, na India e, em menor grau, na China, mas os mercados internos ali estão limitados pela pequena capacidade aquisitiva predominante que caracteriza êsses países. Simultáneamente, o nacionalis­mo começou a avançar a passos largos, de modo que, dentro em breve, haverá procura do equivalente asiático do “lebens- raum” e com maior justificativa do que os anseios da Ale­manha nacional-socialista.

A solução a longo prazo dêsse complexo problema pode surgir por métodos semelhantes aos empregados na Europa ocidental, pela limitação voluntária do tamanho das famílias em combinação com a ampliação do contróle da natalidade, embora permanecendo a mesma conjuntura presente. Ainda que a teoría otimista, que prevé solução a ser encontrada por processo de ajustamento mais ou menos rápido, pareça mais aceitável em sua previsão do que a teoria pessimista que apresentava o mundo como em face do “Perígo Ama­relo”, não há dúvida de que uma nova fôrça já apareceu no terreno dos assuntos mundiais.

Owen Lattimore, que passou muitos anos na Asia, e é um abalizado observador, escreveu:

Ê a importância da Ásia que faz esta guerra servir de linha divisória das águas. A Asia foi, durante muitos séculos, uma região em que a história política e o des­tino econômico de centenas de milhões de pessoas eram determinados por acontecimentos verificados fora dêsse continente. Passamos agora ao período em que as coi­sas que ocorrem na Asia, as opiniões formadas na Asia e decisões tomadas na Asia, influenciarão largamente o curso dos fatos em qualquer parte do mundo.

sí O. Lattim ore. Solution in Asia, Londres, 1945, p. I.

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Um dos pontos importantes para o geógrafo político é que a pressão sôbre a população, na Ásia, se tornou um caso crônico no momento em que grandes áreas da supe,rfície da Terra, especialmente as que estão sob o domínio europeu, embora fora dêsse continente, não são desenvolvidas ou, me­lhor, subdesenvolvidas. Além disso, as organizações internas da Índia, da China, da Indonésia, do Japão, da Birmânia, do Sião e da Indochina estão passancfo, simultáneamente, por uma fase de mudança crítica. Como lembra o Professor Fleure:

. . . a vida tradicionalista necessita de um mínimo de organização em grande eScala, enquanto os povos dessas regiões têm sido muito desamparados face a outros po­vos estranhos mais altamente organizados, mesmo quan­do, embora indiretamente, as considerações versam sô­bre armas. Os chineses do século XIX eram tidos como o povo menos civilizado e governado do mundo.

As devastadoras guerras civis da China, a exigência da Indonésia de independência política, a resistência encontrada pelas autoridades francesas nos territórios asiáticos e a po­sição do domínio recém-adquirido da Índia e do Paquistão são provas evidentes dos desejos dos povos asiáticos em conseguir sua própria salvação política. Essas mudanças, relacionadas como são com mais da metade da população mundial, podem resultar nas transformações das estruturas nacionais econômica e política, porém o problema da pres­são da população permanecerá como elemento formidável dos assuntos mimdiais.

Antes dos Estados tomarem a presente forma, cada um circunscrito a limites rigorosos, o excesso de população não tinha repercussões políticas imediatas. Nos casos em que não se conseguiu ajustar bem os índices do povoamento com os recursos materiais, através da proporção da natalidade e

85 H. J . Fleure, Som e Problem s of Society and Erw ironm ent, Londres, 1947, p. 9.

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da mortalidade, a migração era o processo normal, quer em áreas restritas, quer em escala continental, sendo a emigração dos povos da Asia central que redundou nas Invasões da Europa pelos Bárbaros, nos primeiros séculos da era cristã, o melhor exemplo desta última espécie. Sòmente dois tipos do movimento migratório são possíveis no século XX. Dentro dos Estados, a migração é politicamente irrestrita — pode ser estimulada oficialmente — porém, entre os Estados, a imigração está sujeita às leis do país receptor e, em certos casos, a emigração é expressamente proibida ou desestimu- lada oficialmente. Nenhum volume de migração alterará, em qualquer tempo, o total da população mundial, mas foi a própria existência dos Estados que estabeleceu barreiras ao livre movimento humano e eliminou, portanto, a possi­bilidade de amenizar a pressão, mesmo que se pudesse con­tar com meios adequados de transporte.

Essa imposição de restrições à migração é coisa muito recente. Avalia-se que, no período de 1846 a 1932, mais de cinqüenta milhões de migrantes europeus cruzaram o Atlân­tico em direção ao oeste. A torrente migratória chegou ao auge na década anterior à da eclosão da Primeira Guerra Mundial, enquanto o movimento caiu rápidamente depois da guerra, principalmente em virtude da introdução, pelos Es­tados Unidos, do sistema de cotas. No mesmo período, foi relativamente pequeno o movimento intercontinental dos po­vos não-europeus; em parte, por falta de meios de transporte para essas massas atingidas pela miséria, mas principalmente, pelo temor dos efeitos, reais ou imaginários, da aceitação de grandes números de pessoas de descendência asiática e outras raças sôbre a organização econômica, política e cul­tural dos Estados para os quais pudessem emigrar. O mo­vimento das populações intercontinentais atingiu, portanto, nível muito baixo. As regiões superlotadas não podem espe­rar ajuda em sua luta contra o congestionamento nem mesmo por parte dos países mais escassamente povoados. Em con­seqüência, teremos, mais cedo ou mais tarde, a repetição da rivalidade entre os Estados “do ter” e “do não-ter” e, possl-

86 Carr-Saunders, op. cit., p. 49.

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velmente, a intensificação do nacionalismo, a menos que os Estados, individualmente, encontrem outra solução para o problema do povoamento.

Tendo-se estudado resumidamente algumas das caracte­rísticas principais da população mundial, chama-se a atenção para os problemas internos relacionados com os índices, den­sidades e tendencias da população. Positivamente, o tama­nho e a composição de população têm muita importância para o Estado, porém, sómente nos últimos anos é que se passou a dar a devida consideração à estrutura demográfica nacional; em conseqüência, o desenvolvimento das políticas de povoamento está ainda em estágio muito primitivo. Os Estados mais adiantados organizaram o recenseamento esta­tístico por tempo relativamente curto, enquanto grande por­centagem da população do mundo jamais foi recenseada. Na falta de dados que mereçam confiança, é completamente impossível organizar-se um quadro demográfico, mas é in­teressante notar que, quando se conseguiram essas informações para a Europa ocidental, foram utilizadas em primeiro lugar com relação às mudanças sociais e econômicas, como mostra a interpretação de Malthus sôbre as condições demográficas.

Sómente no princípio do século XX é que se começou a notar a importância política da população a ponto de ser utilizada na formulação das políticas de povoamento, e os primeiros Estados a tomarem essa medida não foram os que estavam a braços com a expansão das respectivas popu­lações, mas os que lutavam com o declínio real ou iminente dos índices. O problema fundamental, então, é a manutenção do equilíbrio entre a população, por um lado, e os recursos e as necessidades do Estado, tanto internos como externos, por outro, e isso se verifica quando as considerações filosó­ficas subjacentes à política governamental relacionam-se, pri­mordialmente, com os interêsses do indivíduo ou com os do Estado como um todo. Em outras palavras, existe ótimo grau de povoamento para cada país, porém em virtude da

87 P ara o exam e detalhado sôbre o grau do povoamento, verA. Landry, Traité de D ém cgraphie, Paris, 1945, pp. 567-588.

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grande diferença entre os Estados, êste grau toma-se peculiar a cada Estado e em caso algum conserva-se benéfico por muito tempo em vista das mudanças que inevitàvelmente se processam na própria população, bem como nos recursos na­cionais, ficando o uso dêstes últimos particularmente sujeito à influência dos desenvolvimentos tecnológicos.

Por essas lazões e por falta de conhecimento demográ­fico suficientemente detalhado, é difícil, se não impossível, calcular os índices exatos do grau da população de um Es­tado, porém, são obviamente necessários esforços para con­seguir o estado de equilíbrio ali implícito, se é que se devem evitar os maus efeitos do congestionamento ou da proporção da substituição inadequada. Não se alcançou ainda o está­gio em que se possam estabelecer as exatas “metas” da po­pulação, nem as autoridades demográficas chegaram a uma conclusão sensata com referência aos melhores métodos de conseguir-se o grau conveniente. Intensa pesquisa terá de ser levada a efeito para que as políticas nacionais possam evoluir e ser aplicadas com êxito por longo período de tempo. A França, a Alemanha, a Itália e os países escandinavos fo­ram os primeiros a empregar esforços para ajustar seus ín­dices humanos às necessidades estatais, mas os motivos, bem como os métodos, variam consideràvelmente. O salário- -família, as reduções do imposto de renda para pessoas ca­sadas, cujos montantes aumentam, às vêzes, de acôrdo com o número de filhos menores, a lei contra abortos, o deses­tímulo oficial ao contróle da natalidade, o estímulo aos casa­mentos em idade mais precoce e o apêlo aos pais para que aumentem as respectivas famílias a bem do patriotismo são alguns dos métodos que vêm sendo empregados para pôr têrmo ao declínio da população, sem que se tenha observado qual­quer inversão considerável da tendência; com efeito, a maio­ria das providências até agora tomadas não passam de meros paliativos. Podem ser resumidas nas palavras de bem co­nhecida autoridade demográfica britânica; “Na medida em

88 D. V. Glass, Population Policies and M ovem ents, Caps. III a VII, dá completa descrição sôbre as políticas demográficas dêsses países.

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que urgentemente possam os Governos ter demonstrado o seu desejo de aumentar o fornecimento de berços, têm, não obstante, procurado, persistentemente, comprar bebés a pre­ços de liquidação ’.

Se, até agora, as políticas nacionais de população não conseguiram lograr êxito notável, serviram para chamar a atenção para o valor do conhecimento demográfico em face do Estado. A organização interna depende da disponibili­dade de potencial humano para atender às muitas necessi­dades do Estado, representando êsse elemento humano algo mais do que o número total resultante do excesso da nata­lidade sôbre a mortalidade. Não há, nos países que contam com o aumento rápido de população, inquietação pela defi­ciência de potencial humano; o problema consiste em prover empregos aos seus habitantes. Mas nos países em que a taxa líquida da reprodução é igual ou menor que a unidade, há sempre escassez real ou em potencial de mão-de-obra, o que pode muito bem cansar espanto. É essa a situação presente do Reino Unido, bem como de outros Estados euro­peus ocidentais. Certo desafogo temporário pode ocorrer com maior emprêgo do elemento feminino e com a elevação da produção por homem-hora, mas êsses paliativos não são de eficácia ilimitada; dessa forma, essa “diretriz” do trabalho pode transformar-se em parte importante do planejamento econômico.

Isso dá ensejo a numerosos problemas políticos e sociais, com maior particularidade nos países altamente industriali­zados, onde as flutuações dos mercados internos e externos mostram ser aconselhável maior mobilidade de mão-de-obra. A Alemanha foi forçada, durante a Segunda Guerra Mundial, a fazer transferências de populações em larga escala e pro­curou conservar o seu nível de produção pela “direção” obri­gatória de milhões de “trabalhadores escravos” por métodos inaceitáveis em tempo de paz. Para recuperar a situação econômica, a Grã-Bretanha vem aplicando novamente o pro­cesso de “direção” de tempo de guerra, enquanto a França,

89 D. V. Glass, op. cit., p. 371.

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apesar de ter mantido uma política demográfica por mais tempo que qualquer outro Estado, foi forçada a estimular por alguns anos a imigração como meio de ativar sua fôrça de trabalho nacional em declínio.

Tais modificações do contróle governamental da distri­buição ocupacional da população são demonstrações do afas­tamento da organização estatal das condições casuais ligadas ao laissez faire do século XIX. Na Europa, inclusive a U .R.S .S . , as economias planificadas estão envolvendo, gra- dativamente, a distribuição planejada da população, bem como tentam controlar sua estrutura demográfica. Constituem o meio pelo qual alguns Estados estão adaptando suas institui­ções sociais, econômicas e políticas às mudanças das condi­ções da população. Encontram-se entre os fenômenos que os geógrafos políticos estão prestes a incluir na análise dos assuntos internos do Estado.

Além das relações entre a situação econômica e social e a população, há também a ser considerado o efeito das necessidades militares estatais. A ameaça de guerra, desta ou daquela forma, nunca desapareceu do mundo e não pa­rece provável que o faça em futuro próximo. Partindo dêsse ponto de vista, os Estados são classificados em duas cate­gorias: os que são verdadeira ou potencialmente agressores e os que estão ou podem estar sujeitos à agressão por parte de outros, mas, de qualquer modo, certa proporção dos re­cursos nacionais, inclusive a população, é destinada às fôr­ças armadas; deve-se notar que o prestígio do Estado é, quase sempre, medido nos têrmos do poderio militar. Sig­nifica isso que uma porcentagem variável do potencial hu­mano de todo Estado é retirada do trabalho puramente produtivo, mais particularmente nos momentos de tensões internacionais. Nos casos em que o Estado, como a Grã- -Bretanha ou a França, tenha compromissos ultramarinos a cumprir e esteja, ao mesmo tempo, deixando de renovar sua população interna, o choque entre as necessidades econômi­cas e militares de potencial humano torna-se iminente. Con­segue-se desafogar um pouco a situação com o emprêgo de tropas “nativas”, quando existem, porém o grosso das fôrças é recrutado dentre a população do próprio país. Afora a

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verdadeira situação de guerra cujos efeitos peculiares se re­fletem nas tendências da população, a manutenção dos exér­citos, marinhas e fôrças aéreas em tempo de paz representa um pesado esvaziamento da população, justamente nos gru­pos etários que menos convenientemente podem ser poupa­dos. Ademais, a mão-de-obra empregada nas indústrias de armamentos de todos os tipos não se utiliza diretamente na ocupação produtiva no sentido estritamente econômico, a menos que os produtos sejam exportados para venda. No momento em que êste livro está sendo escrito, a Grã-Bretanha atravessa grave crise econômica devido, em parte, à escassez de mão-de-obra; entretanto, continua mantendo as fôrças armadas e serviços anxiliares que absorvem mais de um mi­lhão de pessoas. O quadro a seguir, compilado com o au­xílio de publicações oficiais, mostra a situação dêsse país, que dificilmente pode ser considerado um Estado agressor:

Distribuição do Potencial Humano Total na Grã-Bretanha

1939 1945 1946 1946 1947Junho Junho Junho Dez. Dez.

Mil. Mil. Mil. Mil. Mil.

Total no Serviço Público . . 18.000 16.416 17.415 18.122 18.400Fôrças Armadas e Serviços

Auxiliares .............................. 480 5.090 2.032 1.427 1.170Total em Empregos ............... 18.480 21.506 19.447 19.549 19.570Homens e Mulheres Desmo­

bilizados ainda Desempre­gados ......................................... — 40 700 300 100

Desempregados Segurados .. 1.270 103 376 398 400Total da População útil , 19.750 21.649 20.523 20.247 20.070

O potencial humano, nesse quadro, é representado por homens entre 14 e 64 anos e mulheres entre 14 e 59 anos de idade, podendo notar-se que, em dezembro de 1947, mais de 5% dêsse potencial humano destinou-se a serviços improdu-

90 Econom ic Survey for 1947. Command 7046. H . M . S . O ., fevereiro de 1947, Quadro A, p. 33.

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tivos. É bom salientar que a presente situação da Grã-Bre­tanha constitui um caso especial, uma vez que os seus com­promissos, em grande escala, partem de sua posição de Po­tência Mundial e a sua vitoriosa participação na Segunda Guerra Mundial, mas êsse fato não simplifica a tarefa dos estadistas responsáveis pela distribuição de mão-de-obra.

A França oferece outro e.xemplo dos efeitos das necessi­dades militares. Desde sua derrota na Guerra Franco-Prus- siana de 1870-71 que o temor de outra invasão alemã passou a dominar-lhe a política de povoamento. Em conseqüência, êsse país vem recrutando, livremente, tropas de côr para as fôrças armadas e transformou-se na principal nação de imi­gração da Europa. Entre 1851 e 1931, as quantidades e por­centagens de alienígenas na França elevaram-se de modo seguro de 375.289 (1,06%) para 2.891.168 ( 6,91%). Mesmo essas cifras, porém, não dão a idéia exata do número de imi­grantes, visto que muitos alienígenas se naturalizaram. Carr-Saunders apresenta os resultados da investigação feita em 1928-29, mostrando que 47% de todos os operários das minas e pedreiras da França eram forasteiros e que mais de 40% dos operários das fábricas de cimento, obras públicas, empreiteiros e refinarias de açúcar eram estrangeiros. “Os franceses estão, de fato, abandonando os trabalhos pesados aos estrangeiros, servindo isso de base às reclamações que freqüentemente se ouvem nos países estrangeiros de que a França está criando nova forma de Estado escravo”. ®®

Em contradição a tal crítica, pode-se apresentar os tra­tados e acôrdos semelhantes feitos pela França com outros países europeus, notadamente a Polônia, pelos quais são res­guardados as condições de trabalho, taxas de pagamento e os contratos dos imigrantes. Por muitos aspectos, pode-se dizer que a França vem tratando seus recém-chegados de maneira que outros Estados deveriam imitar.

Os fatôres econômicos, sociais e militares que influen­ciam a estrutura demográfica do Estado têm, não há dúvida.

91 Carr-Saunders, op. c it , p. 154.92 Ibid., p . 158.93 Ibid., p . 158.

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papel importante nos seus assuntos internos; porém há outro aspecto da população que interessa particularmente ao geó­grafo político e que é a distribuição geográfica dêsse elemen­to humano. Assim como a população do mundo é muito desigualmente distribuida, também o são as de todos os Estados. Em têrmos gerais, a disparidade na densidade da população é função da capacidade da terra em manter os seus ocupantes humanos, mas a relação numérica entre urna dada área e os seus habitantes está sujeita à mudança. As condições físicas da estrutura geológica, o relévo, o clima e a vegetação são determinantes parciais dessa capacidade, como o é o tamanho da unidade política em causa, enquanto a reação humana às oportunidades que se Ihe oferecem é também condicionada aos modos de vida, tais como expres­sos na organização política, social e económica e pelos de­senvolvimentos tecnológicos.

Outrossim, a “manutenção” da população presta-se a vá­rias interpretações que, por seu tumo, se baseiam principal­mente nos padrões de vida predominantes na região. Não pode haver, portanto, ótimas condições permanentes de den­sidade ou da quantidade total, de modo que as expressões “subpopulação” e “superpopulação” só podem ter validade quando relacionadas às circunstâncias em dado tempo. Em conseqüência, a densidade demográfica, expressa em números por unidade de região, pouco significa, a não ser quando combinada com a capacidade, organização e padrões de vida que se obtêm no Estado, sendo essa observação ainda mais concludente no que concerne às “densidades médias” em grandes regiões.

. . . precisamos pesquisar e experimentar os modos da expansão das densidades: as médias são tão ilusórias como sempre, e os esforços empregados para organizar mapas das curvas do nível da população fá demonstra­ram as limitações do processo,

escreveu o Professor Fleure.

9‘ Op. c it , p. 6

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Pode-se conseguir certo aperfeiçoamento na representação cartográfica dos dados sôbre população pelo método pon­tilhado, sendo que a precaridade inerente a êsse sistema, como no que usa isopletas, provém do fato de que as enume­rações do recenseamento são baseadas nas divisões adminis­trativas, e os limites dessas unidades territoriais, mesmo da menor de tôdas, raramente coincidem com os limites de áreas iguais e densamente povoadas. Conquanto se admita, por­tanto, ser a distribuição do mapa demográfico do Estado o me’hor guia para a interpretação dos aspectos demográficos de sua geografia política, é também necessária certa precaução na aceitação de tudo o que ali se pretende demonstrar.

Na prática, a distribuição espacial da população dentro dos limites do Estado é determinada pelas possibilidades de encontrar-se ocupação remuneradora em conjunto com as conveniências sociais recomendáveis. Dêsse ponto de vista, as duas ocupações econômicas principais da humanidade, a agricultura e a indústria, exercem efeitos opostos na distri­buição da população. A primeira conduz à dispersão relati­vamente uniforme do povo que a pratica e dela depende, embora a propinqüidade espacial resultante varie, grande­mente, de acôrdo com o tipo de agricultura e sua economia inerente. A agricultura braçal como existe em algumas par­tes da China, da Índia e da Europa oriental e a agricultura de irrigação, como no Egito e em Punjab, podem dar lugar a altas densidades; a produção de culturas para exportação, principalmente quando mecanizada, via de regra suporta menores densidades, enquanto as áreas de pastagem animal, como em certas partes da Austrália, Nova Zelândia e da América do Norte classificam-se entre as terras escassamente povoadas.

Por outro lado, as ocupações industriais acham-se ca­racterísticamente ligadas às aglomerações humanas. Nos Es­tados altamente industrializados, a grande tendência é con­centrar a popnlação nas áreas de produção de matérias-pri­mas, mais particularmente de fôrça mecânica, e embora êsse fator de localização já esteja perdendo importância em vir­tude do rápido crescimento da circnlação, os campos carbo­níferos em atividade ainda se classificam entre as regiões

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mais densamente povoadas do mundo. O padrão da distri­buição demográfica, portanto, reflete o grau de importância que se atribui a uma ou outra dessas duas atividades hu­manas. Naturalmente, não há Estado algum que se ocupe sòmente com os trabalhos industriais, e mesmo os países em que a agricultura emprega grande proporção de pessoas pos­suem algumas indústrias. Ademais, todos os Estados impor­tantes abrangem áreas que são, por várias razões, inapro- priadas, quer à agricultura, quer ao desenvolvimento indus­trial, mas as regiões densamente povoadas que, de qualquer modo, são as regiões mais importantes dos Estados, possuem seus próprios padrões de população para a ocupação que predomina nos mesmos.

O advento das indústrias em grande escala não consti­tui pura bênção nesse particular, principalmente nos Estados do Noroeste europeu, onde substituíram a agricultura como o principal meio de subsistência. Os referidos Estados ame­nizaram grandemente a pressão da população — muitos ob­servadores advogam o aumento da industrialização como o único meio de suavizar os problemas de congestionamento — sendo êsses responsáveis por um grande aumento da ri­queza material. Provocaram também mudanças na distri­buição do povo através, em grande parte, da concentração das cidades que “ se notabilizaram pela desastrosa eclosão de “cortiços”, doenças, população retardada e pela miséria humana como aconteceu nos meados da era vitoriana e con­tinua, embora e felizmente, em muito menor proporção, hoje em dia”. A rápida urbanização tornou-se um complemento da industrialização em todos os Estados onde foi estabele­cida essa forma de ocupação, tratando-se de fenômeno demo­gráfico que se apresentou, dentre muitos outros, à conside­ração dos estadistas e geógrafos. Os Estados de economias e ideologias políticas tão diversas como a Grã-Bretanha, a U .B .S .S . e os E.U.A. apresentam o mesmo fato comum em que o “Movimento para as Cidades” deu origem a muitas

95 Report of the Royal Commission on the Distribution of the Industrial Population, Command 6153. H .M .S .O ., 1940, p. 8.

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modificações importantes nos padrões distributivos de suas populações.

A Grã-Bretanha desfruta posição incomum por duas ra­zões principais. Como berço da Revolução Industrial, foi o primeiro país a experimentar rápido e incontrolado cresci­mento urbano e êste não foi ainda detido. Em seus sete grandes aglomerados urbanos circunvizinhos, mora quase a metade da população total. Somente a Grande Londres possuía o total de cêrca de 8.655.000 ou 18,8% da população da Grã-Bretanha em 1937. Foi a primeira cidade do mundo a atingir o nível de um milhão; em 1801, ano do primeiro recenseamento britânico, contava com mais de um milhão de habitantes, o que representava 10,6% do povo da Grã- -Bretanha, e esta proporção aumentou fortemente durante os 140 anos seguintes. Os restantes aglomerados, como Lon­dres, aumentaram todos numa média superior à taxa de todo o país, o que significa que deve ter havido movimentação de pessoas nessas grandes aglomerações.

Essa concentração nas grandes cidades, com o resultante espraiamento de prédios, repercute de maneira mais grave na Grã-Bretanha do que em muitos países, em virtude do seu tamanho relativamente pequeno. A estimativa do Re­gistro Geral da população da Grã-Bretanha, em 1937, foi de quarenta e seis milhões para uma área de 88.750 milhas qua­dradas, com a densidade média de 518 por milha quadrada. (Idênticas cifras para a Inglaterra somente deram 38.552.000 em 50.330 milhas quadradas com a densidade média de 766 por milha quadrada.) Nenhuma região nacional do mundo, exceto a da Bélgica, que conta apenas oito milhões e um quarto de habitantes, é tão densamente povoada, sendo que o crescimento continuado de áreas urbanas nada mais foi senão a invasão de terras valiosas, milhões de acres das quais deixavam de ser cultivados.

06 Grande Londres, Grande Manchester, Grande Birmingham, Merseyside, Glascow, W est Yorks e Tyneside; cf. C. B. Faw cett, “The Distribution of the Urban Population in G reat Britain in 1931”, Geographical Journal, Vol. L X X IX , 1932.

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Na época em que alimentos de procedencia estrangeira podiam ser importados, barata e fácilmente, essa esterilização da térra agrícola em beneficio do desenvolvimento residen­cial e industrial não redundava em casos graves, mas desde o fim da Primeira Guerra Mundial que a situação financeira e econômica da Inglaterra deteriorou a ponto de ser preciso produzir no país maiores quantidades de alimentos, fazen- do-se necessário preservar a orla das grandes cidades para fins agrícolas. Foram essas duas razões, dentre outras, que levaram a Inglaterra a criar o Ministério do Planejamento Urbano e Rural, cuja missão é reconciliar as várias reivindi­cações sôbre terras, nesse país relativamente pequeno, porém densamente povoado.

Pela área, tamanho da população e organização econô­mica interna, a U .R .S .S . forma notável contraste com a Grã-Bretanha; mesmo assim, a distribuição de sua população demonstra também notável desenvolvimento de urbanização.

O rápido crescimento das cidades em tôdas as par­tes da U .R .S .S . tem sido o fator notável e controlador da redistribuição da população sob o domínio dos so­vietes. . . Notar-se-á que cidades caracterizadas pelo crescimento extremamente rápido existem tanto nos antigos centros europeus, principcdmente nos arredores de Moscou e na Ucrania, como em regiões novas e subdesenvolvidas até então.

No período intercensitário de 1926-1939, o número de cidades com nível superior a 200.000 habitantes aumentou de 12 para 39, e no fim dêsse período possuíam 13.557.000 habitantes, cifra esta superior a 90% de sua população con­junta em 1926. Algumas dessas aglomerações desenvolve­ram-se com incrível rapidez — verdadeiras cidades-cogumelos. A população de Chelyabinsk, em 1939, expressa em porcenta­gem sôbre o total de seus habitantes em 1926, foi 460,5%, a

92 F . Lorim er, The Populaticn oí the Soviet Union, Genebra, 1946, p . 145.

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de Alma Ata 507,8% e a de Novosibirsk 337,6%, e um índice do desenvolvimento de urbanização ainda melhor tem-se no fato de que havia 174 cidades com população superior a 50.000 habitantes, em 1939, enquanto 49 destas apresenta­ram aumento tríplice ou mais entre 1926 e 1939. A maioria de todos êsses aumentos urbanos foi devida à migração das áreas rurais pelas quais 23 milhões de pessoas deixaram o interior com destino às cidades, representando pelo menos dois quintos da população urbana soviética em 1939. A urba­nização rápida começou mais tarde na União Soviética do que na Grã-Bretanha, embora as causas, entretanto, fôssem idênticas. Com referência ao crescimento das cidades no antigo Estado, diz Lorimer: “É, naturalmente, a expressão da rápida expansão da industria, do comércio e de ser­viços”. ®6

Voltando ao Hemisfério Ocidental, Lorimer calcula que “a área de térra dentro dos limites da U .B .S .S . em janeiro de 1939 ( 8.176.000 milhas quadradas) é pràticamente igual à das Américas Central e do Norte, exclusive as Antilhas e a Groenlândia e que “a população da União Soviética, no comêço de 1939 (170.467.000 pessoas) era igual a 100,5% da população das Américas Central e do Norte (mesma área)”.®* Havia nos Estados Unidos 137 milhões de pessoas vivendo numa área de 3.738.000 milhas quadradas. Du­rante o período que terminou no fim da Primeira Guerra Mundial, o padrão da população dos Estados Unidos foi grandemente determinado por dois fatôres — o grande movi­mento de pessoas para o oeste e o influxo sem igual de imi­grantes da Europa. No principio da terceira década do sé- culo XIX, êsses dois movimentos tinham quase desaparecido, exatamente no momento em que começava o rápido declínio na taxa de natalidade nacional, quando já se encontrava bem definido um terceiro tipo de migração que atingiu o auge entre os anos de 1920 e 1930. Durante aquela década, de

98 m d., p . 145.99 Ibid., P . 1.

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acôrdo com O. E. Baker, “a migração rumo às cidades montou a, aproximadamente, 5.000.000, sendo 86% do au­mento da população da nação de natureza urbana”. Embora essa cifra seja tanto absoluta como relativamente menor do que os 23 milhões de pessoas da União Soviética que foram para as cidades (em período um pouco maior), deve-se lembrar que os Estados Unidos ultrapassaram de muito a U .R .S .S . na industrialização e urbanização, antes de 1920.

Êsses três exemplos demonstram claramente que a urba­nização, como fenômeno demográfico e, portanto, como “rea­lidade” geográfica, com as suas muitas e variadas implica­ções, independe do tamanho do território do Estado e, assim, de qualquer regime político em particular. Que está intima­mente ligado ao rápido desenvolvimento das atividades in­dustriais e ancilares é igualmente fora de dúvida. Prova confirmatória dessa última assertiva é-nos proporcionada pela porcentagem, relativamente pequena, da população urbana nos países densamente povoados, porém, de agricultura pri­mária como a China e a índia, nas quais a aldeia, e não a cidade, constitui a unidade social típica. “Descreveu-se a moderna ascensão de Calcutá, Bombaim e Madrasta como tendo virado a índia pelo avêsso” e “Lançando-se a vista para a China... aqui também temos a prova do “virar pelo avêsso”. 791

A maioria das grandes cidades do Extremo Oriente es­palha o impacto da influência européia através do comércio e da administração. A tradição da vida nas cidades é muito antiga ali, como o é nas margens do Mediterrâneo, sendo que a função urbana tinha que atender às necessidades da defesa, do mercado agrícola regional e da administração dos potentados e, assim, não permitiu a excessiva concentração urbana de pessoas. A conclusão é inevitável; segundo as pa­lavras da Real Comissão já citada “ . . . é na Europa e nos países do Nôvo Mundo colonizados pela Europa que ainda

100 o. E. Baker, “Rural-urban Migration and the National W el- fare”, Annals of the A m erican Association of G eographers, Vol. X X III, N.» 2, junho de 1933, pp. 60-61.

191 H. J . Fleure, op. cit., p. 16.

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se encontram 80% das cidades que possuem um milhão de habitantes e foi na civilização ocidental e, particularmente, na Grã-Bretanha, que o desenvolvimento moderno da urba­nização se enraizou.

Os numerosos efeitos sociais e econômicos da urbaniza­ção que resultam das respectivas modificações da distribuição geográfica da população são muito complexos para serem estudados aqui, mas duas reflexões podem ser feitas. Pri­meiro, o rápido desenvolvimento da guerra aérea, inclusive o uso das bombas atómicas, transforma grandes cidades em alvos dos mais vulneráveis e podem revolucionar as políticas estratégicas dos Estados e suas relações internacionais. Den­tro das possíveis previsões, não há cidade no mundo que esteja fora do alcance das novas armas, cuja capacidade des­truidora é indicada pelos efeitos da bomba lançada em Hi- roxima. Segundo, os problemas resultantes da superconcen- tração da população em áreas urbanas tornaram-se tão graves em muitos países que o único remédio parece ser o planeja­mento da distribuição demográfica. Trata-se de idéia nova na organização dos assmitos internos dos Estados e contará, sem dúvida, com grande oposição. A fôrça de atração das cidades muito grandes é enorme. Maior oportunidade de emprêgo e serviços mais completos educacionais, médicos, bem como diversões, são algumas das muitas possibilidades que as grandes cidades podem oferecer aos seus habitantes.

Tão grande é a “atração”, que a vida em vastos aglo­merados, apesar de suas não pequenas desvantagens, parece ter-se tomado o único modo almejado de vida para a maioria do povo da Europa e dos Estados fundados no exterior. Nenhuma tentativa para redistribuir populações logrará éxito se não levar em conta essas considerações. Provavelmente, a melhor solução será dada pela instituição de planejamento das regiões, pelo menos para os pequenos Estados tais como a Grã-Bretanha.

102 Report of The Royal Comvíission on the Distrihution of the Industrial Population, 1940, p. 12.

103 Nesta altura, chamamos a atenção do leitor para “Discussion of the Geographical Aspects of Regional Planning”, Geographical

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Desde que se chegue a uin entendimento sôbre a deli­mitação dessas regiões, e isso será uma grande realização, surgirão, imdiatamente, os demais problemas relativos à res­ponsabilidade e ao organismo do planejamento. No plano político, isso pode provocar importante revisão da represen­tação eleitoral e forçar o reajustamento da divisão do poder entre as autoridades centrais e regionais e, nesse particular, é bom lembrar que o que pode ser feito com relativa faci­lidade num regime totalitário leva, geralmente, mais tempo e requer maior esfôrço no regime democrático. Contra isso pode-se apresentar o fato de que o maior e exclusivo expe­rimento em matéria de planejamento regional, executado pela Tennessee Valley Authority dos Estados Unidos, foi planejado e satisfatoriamente construído num país cujos habitantes se sentem orgulhosos da sua “rude individualidade”.

Até agora, só se tem tratado da urbanização sob o as­pecto da superconcentração e dos problemas daí oriundos: há, porém, outros aspectos das cidades que a Geografia Po­lítica não poderá olvidar. O hábito de viver em cidades é tão antigo quanto a própria civilização, como bem demons­tram os casos do Egito, Birmânia, China e da índia, e os Estados organizados não podem subsistir indefinidamente, como Estados, sem os seus “centros nervosos”, daí o pesado bombardeio de Londres, Berlim, Varsóvia, Belgrado, etc., du­rante a Segunda Guerra Mundial.

As cidades crescem e funcionam por inúmeras razões. Em seu desenvolvimento, assimilam e expressam as atividades econômicas sociais e políticas das áreas a que servem. Pelo processo de cristalização dos modos de vida, das necessidades e dos desejos do povo das respectivas áreas dependentes, chegam a resumir as diferenças regionais. Há diversidade de interêsses, não sòmente entre a cidade e o interior, porém de cidade para cidade, e, como êsses elementos são partes

Journal, Vol. X C IX , n’ 2, de fevereiro dd 1942; “P ractical Reglona- lism in England and W ales”, por E. W. Gllbert, G eagraphical Journal, Vol. XCIV , n.® 1, julbo de 1939; The Provinces of England, por C.B . Faw cett, Londres, 1919; The Regions of G erm any, por R. E . Dickin- son, Londres, 1945.

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essenciais da urdidura do Estado ao qual pertencem, o ideal de unidade na diversidade só pode ser obtido pela reconcilia­ção dêsses interêsses em bases cqüitativas. Nos Estados alta­mente urbanizados, os citadinos exercem poderosa influência nos assuntos nacionais e regionais, se mais não fôr, pelo me­nos pela superioridade numérica. Conseqüentemente, os Es­tados do chamado Mundo Ocidental bem como os da Europa oriental, inclusive a União Soviética, tendem a ser dominados por interêsses urbanos. Que não se trata, completamente, de um fenômeno moderno, nota-se pela origem filológica da palavra “política”, porém o domínio das comunidades urba­nas nos assuntos das entidades políticas independentes é mais potente hoje do que antigamente — em virtude da existência de meios de circulação em maior esca'a. Essa di­visão de interêsses é, principalmente, observada nos países democráticos, pelo falo, dentre outras razões, de que o poder de voto das cidades e.xcede em muito o das áreas rurais, de modo que há sempre falta de equilíbrio na comunidade como um todo.

As cidades que mais de perto interessam à Geografia Política são aquelas em que se executam atividades organi­zacionais em grande escala. Essas capitais nacionais, regio­nais e locais, únicas na acepção de constituírem sedes dos Governos locais, são pontos-chave na estrutura do Estado. Igualmente a tôdas as cidades, têm caráter funcional, e em­bora êste seja rara e exclusivamente limitado a assuntos ad­ministrativos, serve para e’evá-las à categoria diferente de outras aglomerações urbanas.

Dois fatôres geográficos têm preponderado na escolha do local das cidades-capitais dos Estados unitários, tôdas elas tendo-se desenvolvido a partir de áreas nucleares ou cen­trais. Primeiro, a capital é situada quase que invariàvelmente no núcleo original do Estado. Nos casos onde houve fusão de territórios independentes, o centro da unidade vitoriosa geralmente tornava-se o local da capital do território. Lon­dres, Paris, Moscou, Pequim, são exemplos disso, mas nem sempre a regra, se há. é obedecida. A Itália moderna foi unificada pela Casa de Sabóia, que herdou o seu poder e autoridade do Piemonte, sendo que Roma foi escolhida para

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capital do Estado italiano por motivos históricos e políticos. Segundo, o bom funcionamento da capital depende muito do grau de acessibilidade que possui. Admitindo-se que a acessibilidade pode ser conseguida por meios artificiais, por exemplo, pela construção de vias férreas e estradas de roda­gem e pelo estabelecimento de rotas aéreas, nota-se que a maioria das antigas capitais atingiram sua posição política an­tes que êsses elementos auxiliares da acessibilidade fôssem ple­namente conhecidos. Com efeito, a prática geral entre os Estados era escolher primeiro a capital e depois atribuir-lhe os sistemas de comunicações, isto é, escolhia-se o local que ]á possuísse acessibilidade e, então, as vantagens de sua lo­calização geográfica eram aprimoradas artificialmente.

Acessibilidade, entretanto, não deve confundir-se com centralidade matemática. Poucos são os Estados, se os há, que se expandiram uniformemente em todos os sentidos em face do núcleo original, de modo que as capitais se encon­trem, de modo geral, colocadas nao-centralmente em relação ao territorio como um todo — em algnns casos, essa não- -centralidade é agravada em resultado de um “plano ante­cipado” por parte do Estado no estabelecimento de sua sede visando à e.xpansão. Foi o caso da Rússia czarista quando a antiga capital foi transferida para São Petesburgo, sendo que o Govérno soviético prestigiou mais a Geografia Política e a tradição levando a capital, de volta, a Moscou.

Sempre que a tradição, tida neste caso como a persis­tencia da autoridade da região nuclear, e a acessibilidade máxima atuam em comum, é quase certo as cidades-capitais conservarem sua situação, mesmo quando a capacidade pro­dutiva e a povoação de áreas dentro do Estado tenham sido alteradas. Londres era a capital da Inglaterra muito antes da Revo’ução Industrial ter ocorrido, mas isso não chegou, sequer, a servir de ameaça para alterar-lhe a função. O mesmo sucede com os demais Estados, a menos que altera­ções políticas, provocadas por circunstâncias externas ou in­ternas, sobreponham-se às condições existentes. Assim, pois, a Polônia teve quatro capitais; a India e a China já muda-

204 Cf. V. Cornish, The Great Capitais, Londres, 1923.

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ram as capitais inúmeras vêzes. Ademais, desde que uma cidade é escolhida para servir de foco político do Estado, não se poupam esforços para realçar-lhe o prestígio, em parte, para impressionar os visitantes estrangeiros, porém, também para atender às tendências exibicionistas que o povo de todos os Estados parece possuir. Ern não menor proporção, por­tanto, a capital reflete a riqueza, o poder e a organização política do Estado a que serve de centro administrativo.

No caso dos Estados federativos, a capital “nacional” assume a subcategoria das cidades-capitais. A federação, quer como associação de Estados anteriormente independen­tes e autônomos, como os Estados Unidos, quer como anti­gos dependentes de outro Estado, como nos Domínios do Canadá e da Austrália, vincula a incorporação das sociedades preexistentes, juntamente com as respectivas capitais, à nova entidade que, por si só, deve ser a sede do Govêrno federal. Situar essa capital em qnalquei uma das cidades existentes seria o mesmo que provocar ressentimentos aos elementos componentes da federação. Os Estados Unidos e a Austrália contornaram essa dificuldade conseguindo pequenas áreas nas quais foram construídas as capitais federais. Conhecidos como Distrito de Colúmbia e Território Federal, respectiva­mente, essas áreas têm a mesma autonomia que as então existentes divisões da federação. Em ambos os casos, a ca­pital é uma cidade nova que se destina, acima de tudo, à administração dos assuntos federais e, assim, é diferente das capitais dos Estados unitários.

O Domínio do Canadá escolheu processo diferente para situar sua capital federal. Conquanto Ottawa fique em On- tário, é localizada na margem direita do rio Ottawa que serve de limite entre Ontário e Quebec, as duas províncias mais importantes do alto e baixo Canadá primitivo ao tempo da federação. Está também intimamente ligada ao limite entre o Canadá francês e o de língua inglêsa, de maneira a poder manter posição tão neutra quanto possível. O exame dos mapas demográficos apropriados demonstrará que essas três capitais ficam localizadas na orla das regiões mais den­samente povoadas dêsses Estados. Como a maioria das ca­pitais estatais, portanto, a situação das mesmas não é central,

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mas tomaram-se acessíveis em virtude das estradas de roda­gem, vias aéreas e férreas e pela telecomunicação.

As capitais regionais são os pontos focais das áreas den­tro dos Estados que possuem certa espécie de unidade pró­pria. A confusão que se faz com o significado do têrmo “região” é devida ao hábito dos departamentos governamen­tais em gruparem as áreas administrativas, dando a êsses agrupamentos a denominação de regiões. Exemplo: nos Es­tados Unidos, as regiões de recenseamento são amálgamas arbitrários de Estados para efeito do Bureau de Estatísticas do Govêrno federal. Na Grã-Bretanha, as Regiões de Defesa Civil, instituídas em fevereiro de 1939, destinavam-se a aten­der às exigências da guerra que estava, então, iminente e eram baseadas no sistema de administração por condados. Como no caso dos próprios Estados Unidos, essas “regiões” raramente coincidem com as regiões geográficas, mas, infe­lizmente, os geógrafos não chegaram a acôrdo com relação aos limites exatos dessas últimas divisões.

Outra confusão surge, portanto, da plétora de regiões de vários tipos, mas, sem entrarmos muito na enfadonha questão dos limites regionais, vemos que o consenso geral é que cada Estado contém certo número de áreas, cada uma das quais difere do restante do território nacional por sua natureza unitária que bem pode ser a resultante de um ou mais elementos determinantes. Cada uma dessas regiões, com exceção das que consistem em terra esparsamente povoada, abrange área urbana que serve como metrópole regional. Comumente, essas cidades são as sedes dos Governos locais, embora as dificuldades que freqüentemente surgem sejam conseqüência da não-coincidência administrativa e dos limi­tes regionais. São elas os focos regionais de “serviços” de todos os tipos, educacional, comercial, profissional, de trans­porte; servem quase sempre de centros eclesiástico, judicial e social e, invariàvelmente, ficam aí localizados os escritórios e oficinas da imprensa regional Em resumo, cristalizam e expressam a “\uda” da região. Newcastle, Leeds, Manchester e Birmingham são exernp’os das capitais regionais inglêsas do tipo maior, enquanto Norwich, Exeter, Gloucester e Oxford são do tipo menor; todos os Estados constituem exemplos

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similares que variam apenas pelo tamanho, natureza e fun­ção, de acôrdo com as regiões a que servem. Todos possuem uma característica geográfica comum: são todos pontos no- dais. Suas definidas localizações bem podem ter sido esco­lhidas em face de qualquer consideração local de defesa ou por qualquer conveniência, porém o seu éxito como ca­pitais depende, grandemente, da acessibilidade oriunda de qualquer parte das respectivas regiões.

Na Inglaterra, como em tôda parte, tem-se freqüente­mente admitido ser de bom alvitre a reorganização da admi­nistração governamental em base regional. Na Alemanha nacional-socialista fêz-se uma experiência com a formação do “gaue”; na França, os “départcmenis” substituíram o pri­mitivo sistema das provincias, tendo sido recomendada a instituição de “Provincias” na Inglaterra. As mudanças no padrão da população e ñas atividades econômicas do povo, bem como as modificações políticas e territoriais do Estado propriamente dito, tornaram obsoletos os velhos acôr­dos administrativos. Mas sejam quais forem as regiões es­colhidas para fazer face às exigências atuais, tem-se que levar em conta a existência das capitais regionais. Sua influência integrante já foi estabelecida; são bem aceitas como pontos focais de áreas que podem estar mal definidas, mas cujos limites podem ser determinados através de pesquisas.

Como a palavra final, em tais casos, fica com a autori­dade central, corre-se sempre o risco de que seja dada muita importância à conveniência dos administradores. Isso de­pende, em parte, do grau de acessibilidade da capital esco­lhida, enquanto os geógrafos continuarão a insistir que uma região deve sintetizar todos os seus elementos componentes, físicos e humanos, dentre os quais a acessibilidade é apenas um, embora possa representar muito a interaçãe de todos os outros.

Raramente, as áreas administrativas possuem essa con­dição regional. Na maioria dos casos, foram criadas e deli­mitadas para atender às exigências de uma estrutura política

lOB Ver C. B. Faw cett, Provinces of England, Londres, 1919.

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que já se modificou de maneira quase inconcebível. Na Inglaterra, por exemplo, a população passa e as alterações do sistema eleitoral tomaram anacrônicos os limites dos con­dados, mas, geralmente, os Conselhos dos Condados con­tinuam com as respectivas sedes as antigas “cidades-conda- dos” que mantêm, portanto, sua condição de capitais dos Governos locais, mesmo que possam ter sido superadas no tamanho e importância por outros centros urbanos do mesmo condado. O resultado inevitável disso foi que as cidades mais novas exigiram e conseguiram autonomia em virtude dos seus respectivos Governos locais, com a conseqüente superposição e duplicação de podêres, o que tem dado lugar a grandes dissensões.

Tentou-se, em algumas regiões, a conciliação com a ins­tituição das Autoridades Conjuntas de Planejamento e, em todos os condados, havia a participação, mais ou menos eqüitativa, ñas responsabilidades administrativas do Conselho do Condado do pequeno Distrito Urbano e dos Conselhos Distritais Rurais. Êsse sistema fragmentário, composto de inúmeras espécies de unidades, tôdas variando muito em tamanho, população e economia, é incompatível com qual­quer forma de planejamento nacionalmente concebido, por mais que possa ser justificado com a alegação de adaptação aos interêsses e tradição locais. Se qualquer estrutura equi­librada, tanto do Estado como um todo ou em suas partes, tiver que ser criada, muitas das presentes anomalias rela­tivas aos limites estabelecidos das unidades administrativas terão que desaparecer. Uma das conseqüências mais pro­váveis disso será a importância exagerada das capitais regio­nais em detrimento pelo menos de alguns centros mais antigos de Governos locais.

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VIII

SUMÁRIO E CONCLUSÕES

Le su jet.. . est dangcreux pour un savant, car il est tout pénétré de passions politiqucs, tout encambré d’arriére-pensées. 79®

No contexto original, as palavras acima referem-se à Geo­grafia das Fronteiras, mas aplicam-se também, e com igual substância, a assunto mais vasto como seja a Geografia Polí­tica. Indicam a necessidade de objetividade de todos os seus ramos e não exculpara o geógrafo político que examina, im­parcialmente, os elementos subjetivos que entram na compo­sição de todos os Estados que possam surgir e que surjam de uma ou de tôdas as causas, tais como a ignorância, tradi­ção e as fraquezas inerentes, morais e políticas, da humani­dade. Depois de estudar as idéias básicas da Geopolítica alemã, inclusive o conceito do Estado como organismo, como ser racional, com vida e alma tal como o homem, escreveu outro famoso geógrafo francês;

Cette comparaison déiruit la base même de la géo­graphie politique puisque, par définition, 1’Etat n’est pas un homme, mais une groupement d ’hommes dont les

198 A. Siegfried, no prefácio de La Géographie des Frontières, de J . Ancel. Paris, 1938, p. V II.

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lois d ’existence ne sont pas simples, cor elles se déter- minent à la fois par sa localisation géographique, por son type d ’économie et de civilisation, par des relations pas- sées et présentes avec les groupements voisines.

Essas “leis de existência” dos sêres humanos constituem, por si sós, categoria única. Estão intimamente relacionadas com os ambientes físicos nos quais vive o homem — sôbre isto, não há a menor dúvida — mas há várias espécies de ambientes, e não se segue, necessariamente, que as adapta­ções de grupos de pressão sejam idênticas, mesmo quando as regiões que habitam sejam iguais. Certas leis biológicas têm aplicação universal — se o homem não comer por certo morrerá e se sua alimentação ressentir-se, sèriamente, das quantidades adequadas dos elementos alimentícios essenciais, não terá boa saúde — mas ainda não se descobriram até agora leis claras e precisas que regulem as relações entre os Estados.

Cada Estado é, em grande proporção, uma lei em si própria, pois o povo de cada um vive procurando ajustar seus modos de existência às condições indicadas por Deman­geon. É esta a razão por que o mundo, apesar de sua uni­dade física planetária, é divididb em grande ¡número de entidades políticas e, apesar dos esforços empregados pelos juristas para formular e codificar uma “lei internacional”, os resultados dêsses esforços não são ainda universalmente aceitos. Inúmeros Estados subscrevem acôrdos internacio­nais, mas até que se chegue à aceitação universal da “letra da lei” em bases gerais, as relações internacionais ficarão sujeitas a compromissos que, comumente, só têm expressão na especulação política. É êste o fator principal dos assuntos mundiais da era presente. O geógrafo político é forçado a reconhecer sua existência, pois determina, mais do que qual­quer outro mero fator, tanto as relações entre Estados como, em menor grau, suas organizações internas. A paz pode muito bem ser única e indivisível, mas política e econômica-

102 A. Demangeon, op. cit, p . 24.

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mente o mundo está muito dividido e, pode-se acrescentar, dividido contra si próprio. A fragmentação política de um todo físicamente unido constituí a grande anomalía dos as­suntos mundiais e, ao que parece, não lhe deram importância. Ê, certamente, uma realidade para o geógrafo político que vê suas repercussões influenciando o estabelecimento da po­lítica tanto por meios diretos como indiretos.

São tão complicadas e intangíveis as fôrças em ação que não podem ser reduzidas a leis fixas. Existem certas medidas comuns a certos grupos de Estados, porém, mal definidas, provenientes, como o são, de situações mais subjetivas que objetivas. Qualquer setor de estudo, portanto, que se relacione primordialmente com os Estados e suas relações, não pode ser Ciência Exata. A técnica de investigação dos assuntos internacionais e nacionais não se compara à do laboratório científico; os problemas correlatos não podem ser levados à sala de análise nem estão sujeitos à classificação sistemática. Crande parte da metodologia da Ceografia Política é, por­tanto, de natureza empírica. Nenhum exame científico, por maior que seja, poderá substituir a ordem onde esta não exis­ta, mas a natureza da desordem mundial pode ser demons­trada com o auxílio da análise e da síntese que são elementos típicos dos métodos geográficos modernos, e êste parece ser o primeiro requisito para o estabelecimento da ordem no mundo.

O Estado representa o resultado dos esforços humanos para implantar a ordem no caos de determinada área. Tinha razão Demangeon quando disse que muitos escritores exa­geram a influência das “condições naturais” sôbre as forma­ções políticas e subestimam a contribuição do próprio homem. Os habitats físicos das sociedades permanecem relativamente estáticos; o homem é o elemento dinâmico. Ê essencialmente responsável pelas mudanças a que se deu, repetidamente, tanta importância nos capítulos precedentes, sendo o esfôrço persistente que tem empregado para estabelecer o domínio da ordem uma das suas maiores realizações. Os motivos que o impulsionaram não estão isentos do interêsse próprio; os métodos nem sempre estão livres de censura. Era praxe apelar-se para a fôrça a fim de subjugar povos cuja organiza-

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ção não tinha meios de resistir, vantajosamente, aos supostos administradores. O imperialismo de muitos Estados nunca estêve e não está agora livre da crítica no sentido humani­tário, mas ninguém negará que se tem progredido no estabe­lecimento da ordem, em que pêse aos dois casos catastróficos de retroatividade ao barbarismo que tanto abalaram o mundo no decurso de uma geração.

É altamente significativo o fato de que no século XX, pela primeira vez na história, se tenham feito tentativas para conseguir e estabelecer a ordem no mundo. Duas dessas tentativas podem ser postas de lado por se tratar de esforços mal empregados visando à conquista militar do mundo; sua principal importância relativamente ao bem-estar humano é que se transformou na causa primordial do despertar da consciência da humanidade para o fato de que uma nova ordem mundial, baseada na livre associação dos Estados, não é somente recomendável, mas necessária. Essa consciência é uma nova característica dos assuntos mundiais; implica o fortalecimento da consciência política e justifica a espe­rança de que a harmonia possa surgir como resultado da atual desarmonia.

As razões para o fracasso da Liga das Nações, na pri- *meira tentativa para a criação de um sistema mundial uni- |ficado e por acôrdo comum, não são fácilmente determiná- veis; entretanto, não se deve esquecer que muitas das suas atividades, como o zêlo por certas minorias nacionais, logra­ram êxito em virtude de representarem um passo à frente nas relações internacionais. Sua sucessora, a Organização das Nações Unidas, 79® chamando a si os efeitos dessas valiosas realizações, defronta-se, por si própria, com o mesmo tipo de obstáculos que entravaram a obra da Liga das Nações. Den­tre todos êsses obstáculos, os mais graves, por serem os mais estorvantes, são os que resultam da existência dos Estados independentes que não desejam sacrificar nenhum dos seus

198 A mudança de titulo é significativa. Organização implica sistema mundial baseado em perfeita integração. J á houve muitas Ligas de Estados, sendo que os signatários de tais ligas reservam -se sempre a independência de ação.

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poderes soberanos. A tarefa da O.N.U., reduzida aos seus mais simples elementos essenciais, é encontrar o modus ope- randi para a solução do conflito entre os interêsses nacionais e os do mundo em geral. Os membros da Assembléia Geral e dos respectivos organismos auxiliares levaram a efeito a maior experiência jamais vista em matéria de organização. Suas resoluções afetarão o bem-estar da humanidade em todo o mundo e, em vista disso, é necessário que tenham à mão todo o conhecimento disponível e, de modo algum, as adapta­ções dos povos aos seus ambientes físicos nos territorios dos Estados, juntamente com os elementos correlatos entre éles, não serão o ramo menos importante dêsse conhecimento.

Representa isso a contribuição que a Geografía Política pode fazer à evolução da nova ordem mundial. É claro que essas “paixões políticas” e os “arriére-pensées” estão preci­pitando choques nos debates da O.N.U. característicos das políticas internas bem como das internacionais. A Geografía Política interessa-se pelas realidades geográficas, pelo “lugar da circunstância”, pelo padrão e forma dos Estados e seus modos de vida, sendo todos êsses elementos fatôres profun­damente arraigados na existência humana. O seu objetivo é investigar e determinar essas condições de vida, mas pode-se dizer com tôda a justiça que o conhecimento resultante de suas pesquisas ajuda ñas conclusões sôbre a natureza da or­dem e unidade mundiais.

A expansão, no passado, com ou sem o auxilio da fôrça armada, era o processo normal empregado nas tentativas de corrigir os padrões desarmónicos dos homens e das coisas. O século XX testemunhou os experimentos feitos com o fim de se encontrar um nôvo meio de estabe’ecer a harmonia no mundo. Baseiam-se éstes na substituição da expansão ter­ritorial unilateral pela cooperação universal, mas pode-se ob­jetar não ser possível existir harmonia entre quantidades desconhecidas. Como argumentou o Professor Taylor na as­sembléia de Dundee, da Associação Britânica para o Progres­so da Ciência; “A contribuição exata das Geografías dos Es­tados Unidos e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é tão importante quanto a exata compreensão de suas ideo-

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logias”. O seu argumento é ainda mais convincente por­que os dois Estados citados são indubitàvelmente as Potên­cias mais influentes do mundo, porém o conhecimento da base geográfica da estrutura de todos os Estados conta se também entre os requisitos essenciais à construção da nova ordem.

Essas pretensões por maior conhecimento geográfico prendem-se às seguintes considerações; todos os Estados re­presentam tentativas organizadas dos respectivos povos para adaptar suas múltiplas atividades às condições físicas dos seus ambientes. Varia muito esta última espécie, e os tipos se­melhantes não exigem, necessàriamente, reações iguais nem as relações entre o milieu físico e os seus habitantes perma­necem estáticas, pois mudam de vez em quando. Em con­seqüência, a superfície da Terra é ocupada por larga varie­dade de sociedade, cada uma com as suas próprias carac­terísticas e interêsses, mas completamente à parte de quais­quer teorias rígidas sôbre determinismo geográfico ou de mero possibilismo, havendo íntima correlação entre cada sociedade e seu território. Pelas razões já explicadas atrás, tôdas as partes habitáveis do globo já estão corporificadas em Esta­dos, todos em contato entre si, às vêzes em virtude da conti­güidade direta, outras vêzes por mesclas mútuas de interêsses.

De modo perfeitamente realista, portanto, só existe uma sociedade mundial, porém em virtude da tremenda fôrça centrífuga do separatismo nacional, essa sociedade não con­seguiu tomar a forma de Estado mundial com todos os atri­butos de um sistema comum de Govêrno, de direito e de organização econômica. Cada um dos Estados é uma parte dessa comunidade universal, ainda não de sistema formali­zado, mas como emprêsa em atividade. As exatas determi­nações das Geografias dêsses Estados separados demonstram a estultície de tentar-se impor uniformidade a essas unidades desiguais. A unidade na diversidade constitui o ideal; a ordem sem a rigorosa uniformidade estéril é a catálise do processo sintetizante da integração universal, mas a síntese tem que ser precedida de análise. Nenhum tipo único de investigação pode atender a todos os requisitos que se apre-

20» The Tim es, 29 de agôsto de 1947.

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sentam, porém sua aproximação integralizante e a técnica especializada fazem da contribuição da Geografia Política coisa digna de consideração.

Três exemplos, dentre os muitos existentes, talvez pos­sam explicar o interêsse e os métodos da Geografia Política no estudo dos problemas mundiais. Primeiro, o bom geó­grafo, como o bom soldado, está sempre alerta. Sendo pri­mordialmente um geomorfologista, o seu interêsse manifes­ta-se em função da Terra, mas se é perito na matéria sôbre que versa o presente livro, o seu ponto de vista estende-se a áreas mais amplas e considerará a superfície da Terra como o local dos Estados políticos. Se puder ampliar êsse ponto de vista através de extenso programa de viagens, notará que os “panoramas culturais” são alterados pela ação humana e que, por exemplo, o padrão de uso da terra pode mudar tão abruptamente como quando se infringe o limite russo- -polonês de 1939.

Trata-se de uma dentre as muitas alterações referentes às infrações de limites nacionais em que se resumem as di- renças características entre Estados vizinhos. Onde quer que haja disparidades bem acentuadas na situação de cada um dos lados opostos da linha divisória política, é quase certo surgirem aí aborrecimentos, de modo que as margens contíguas dos Estados dissidentes, embora vizinhos, constituem zonas de conflitos. Tais áreas representam fronteiras no sen­tido geográfico. Podem ser desejadas pelas Potências inte­ressadas, para fins estratégicos, étnicos ou simplesmente por motivos econômicos; essas disposições, no passado, eram con­seguidas por efeito da guerra, enquanto, presentemente, são motivos de debates das conferências internacionais. A Alta Silésia, 77“ a Alsácia, 77i a Região Juliana nas cabeceiras do Adriático, 772 são exemplos típicos dêsses mal-entendidos en-

11“ R. Hartshorne, “Geography and Political Boundaries in Upper Silesia”, Annals of the A m erican Association of G eographers, Vol. X X III, 1933.

111 J . Ancel, M anuel G éographique de Politique Européene, Paris, 1940, Capítulos III e IV.

112 A. E. Moodie, The Italo-Yugoslav Boundary, Londres, 1945.

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tre Estados, e, convencido o geográfo político da existência do mal, procura antever-lhe os sintomas. Examina todos os aspectos do caso, acadêmica e pràticamente, tentando des­cobrir quais as causas de sua existência tal qual chaga móvel no organismo político.

Infelizmente, não foram compilados até agora, em núme­ro suficiente, os históricos de casos dêsse tipo, talvez pelo fato de ser a Geografia Política coisa ainda muito nova e, para serem perfeitos, é preciso que as investigações sejam completas, pormenorizadas e objetivas. Tem-se a justificativa para essa necessidade nas palavras de importante geógrafo americano quando escreveu: “Grande oportunidade para um bom serviço público aguarda 03 que se dedicarem à Geogra­fia Política do mundo. Têm que elaborar profundos estudos práticos em cooperação com os historiadores e economistas de cada uma das zonas de perigo. Uma boa compreensão das causas qne podem provocar perturbações bem servirá para eliminar o perigo dessas mesmas perturbações”.

O segundo exemplo é de tipo diferente. A palavra pa­drão vem sendo empregada com muita freqüência no pre­sente livro e é forçoso admitir que os padrões do geógrafo político são, em inúmeros casos, semelhantes a quebra-cabe­ças de armar aos quais faltam «ilgumas dasi peças. Não obs­tante, estabelece êle, em conformidade com os demais, o emprêgo de métodos cartográficos para reproduzir os seus padrões, por mais incompletos que possam ser, em mapas e diagramas, cuja construção tem dois fins. Os dados apre­sentados em forma cartográfica estão mais fácilmente sujei­tos a ser reconhecidos e assimilados do que por simples exposição numérica ou literária, as áreas podem ser compa­radas mais prontamente, enquanto a distribuição das popula­ções, os meios de circulação e os fatôres de nodalidade são apresentados de modo mais conciso e com maior clareza nos mapas do que de qualquer outra maneira. Por outro lado, a seleção dos dados a serem incluídos em mapas e as expe-

1 1 3 w. w. Atwocd, “The Increasing Significance of Geographi- cal Conditions in the Growth of Nation States", Annals of the A m e­rican Association of G cographers, Nova York, Vol. X X V , 1935, p. 14.

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riências para provar sna importância demonstram, quase sem­pre, correlações que, de outro modo, bem poderiam ser olvi­dadas. O simples dispositivo para adicionar os indícios dos vários aspectos de certa área é bem conhecido e muitas vêzes revela vestígios de correlações que possam ter escapado à observação. Para qualquer dêsses dois objetivos que os ma­pas sejam compilados, trata-se de elementos da Geografia Política muitíssimo valiosos. Queremos chamar a atenção do leitor, de passagem embora, para a produção dos atlas nacionais, sendo de lamentar que a Inglaterra até agora só possua o comêço de lal registro, e para a importância, para estudos pormenorizados, dos mapas dos levantamentos na­cionais oficiais.

Costuma-se dizer repetidamente que se pode fazer esta­tística sôbre qualquer coisa e que se podem levantar mapas para demonstrar qualquer assunto. Certamente algumas das ilustrações cartográficas produzidas pelos Geopolitikers ale­mães, mesmo com o formato de mapas, nada mais eram que grosseiras distorções de fatos conhecidos. A tendência de todos os mapas, exceto os de escalas muito grandes — sendo que êstes quase nenhuma importância têm para a Geografia Política, porquanto representam apenas pequenas áreas — é a generalidade e a supersimplificação e, dessa forma, estão sujeitos a distorções, porém, um vez admitidas essas limita­ções, e sua confecção sendo feita com tôda a precisão possível, constituem excelente material. É bem significativo o fato de já estarem os departamentos governamentais e as autori­dades militares demonstrando interêsse crescente no valor do mapa.

As relações entre os povos “atrasados” e os da Europa ou de descendência européia, influenciados por considera­ções políticas, dão-nos o terceiro exemplo dos interêsses dos geógrafos políticos. Antigamente, as colônias e outros domí­nios eram, de modo geral, tidos como simples complementos das Potências coloniais cujo objetivo principal era explorar os territórios subordinados, os seus povos e recursos em be­nefício da metrópole; as vantagens conseguidas pelos povos dominados eram conseqüência dêsse processo e principal­mente nos casos onde as terras ficavam em latitudes intertro-

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picáis e os habitantes eram geralmente considerados inferio­res e atrasados. Daí a distinção de povos “brancos” e “de cór” predominante ñas primitivas políticas coloniais e que ainda impera nos preconceitos existentes em ambos os gru­pos, preconceitos êsses que são constantemente estimulados para efeitos imperialistas.

Nos casos em que grandes áreas eram dirigidas por número relativamente pequeno de administradores e capa­tazes brancos cuja autoridade baseava-se no conceito tácito de superioridade, havia, provàvelmente, bons motivos de na­tureza social ou não para oposição a qualquer tratamento igualitário dos “nativos”, dando isso motivo a que o antiqüís- simo conceito político do regime autocrático de um grupo minoritário fôsse implantado nas colônias, com a única dife­rença de que a classe reinante era de origem estrangeira. A razão geralmente apresentada eomo justificativa a tal sis­tema era serem os nativos atrasados e incapazes de gover­nar-se por si próprios. Êsse ponto de vista quase ingênuo baseava-se na suposição de que o modo de vida europeu seria a melhor forma de organização ou, para sermos mais preci­sos, que os padrões e os métodos de vida do país dominante seriam os mais apropriados a qualquer parte do mundo onde fôsse aconselhável sua aplicação, obscurecendo, dessa forma, o fato de que as sociedades nativas, por si próprias, já ti­nham estabelecido suas próprias adaptações às condições ambientes de maneira completamente diferente das que pre­dominavam nos países a que pertenciam os seus administra­dores.

Essa observação não nega o valor da contribuição euro­péia para o bem-estar material do gênero humano nem, de modo algum, para a civilização em geral. Conclui André Siegfried, após visitar vários continentes, que o gênio do Ocidente — Europa e a América do Norte — é:

. . .le sens de la grande administration: concevoir, or- ganiser, faire marcher de vastes enterprises, dépassant par leur portée fintérêt particulier et même Vintérêt national, voilá ce dont la plupart des peuples extra-eu- ropéens, et même plusieurs peuples de VEurope êlle-

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même, n’ont pas encore prouvé quHls fussent capa- bles”. “ *

Trata-se de julgamento sadio e talvez essas “vastas em- prêsas”, tais como os canais interoceánicos de Suez e Panamá, não pudessem ter sido realizadas por outros povos, mas não se deduzirá daí que as políticas coloniais e as suas rea­lizações eram aplicadas primordialmente em benefício dos ocupantes nativos dos domínios, por maior que fôsse o bene­fício eventual que possam ter tirado disso. Exemplos da subordinação dos interêsses nativos, tais como a política na­tiva repressiva da União Sul-Africana e a reserva, em outras partes da Africa, das melhores terras para os brancos, são relíquias do antigo conceito de que aos nativos deve ficar reservada a condição de “cortadores de lenha e carrega­dores de água para os administradores brancos”.

Duas das maiores Potências coloniais modificaram essa norma. A Inglaterra introduziu o princípio do Govêrno in­direto em muitas partes do seu império e a França, agindo por meios diferentes, concedeu a cidadania francesa, com todos os seus direitos e deveres, aos povos de suas colônias; mas, no fim da Primeira Gueira Mundial, as relações entre os povos branco e de côr — êste, é bom lembrar, constitui a maioria da população mundial — subordinavam-se ao abis­mo representativo das diferenças implícitas na superioridade do primeiro e na inferioridade do segundo. Com a promul­gação da doutrina wilsoniana da autodeterminação, pellas conferências internacionais realizadas entre 1918 e 1920, a liber­dade política, concedida aos povos subjugados do Império de Habsburgo e outras áreas, estimulou o anseio por direitos análogos entre os povos de côr do Império Britânico e outros.

O Sistema de Mandato que, nominalmente pelo menos, se destinava a evitar a absorção do território sob mandato, o qual deveria ser mantido sob administração até que seu povo demonstrasse capacidade de govemar-se por si próprio, era a indicação da mudança do ponto de vista geral. A efetiva-

111 A. Siegfried, Suez-Panam a, Paris, 1945, p. 283.

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ção dewa idéia de administração produziu resultados di­versos, alguns dos quais de tipo diferente do almejado pelos seus próprios patrocinadores, servindo, entretanto, para as­sentar as bases do nôvo sistema de relações que encontrou, finalmente, expressão na fundação do Conselho de Admi­nistração das Nações Unidas, que consiste em representan­tes dos Estados sob administração e dos Estados não admi­nistrados em proporções iguais. Agora mesmo, no momento em que êste livro está sendo escrito, já conseguiram inde­pendência o Iraque, a Transjordânia, a Síria e o Líbano; a Índia e o Paquistão passaram à condição de Domínio; igual acôrdo está sendo negociado para a Birmânia, tendo sido adotada, recentemente, para Ceilão, uma Constituição mais liberal; a U .R .S .S . , nominalmente, é a união política das chamadas Repúblicas Autônomas que pregam a diversidade cultural regional, sendo que os assuntos econômicos e estra­tégicos são coordenados por uma organização geral que não é sòmente dirigida, mas imposta pelo Govêmo central de Moscou.

Não há dúvida, portanto, de que já se avançou muito no sentido do autogovêrno dos povos atrasados, em razão do que a idéia de inferioridade já está sendo modificada e, principalmente, em virtude do acúmulo de conhecimento sôbre as condições em que vivem. Estudos como o African Survey de Lorde Hailey, os relatórios oficiais governamentais, inclusive os recen seamentos e as pesquisas de geógrafos, an- tropologistas e geólogos mssos, bem como outros de autori­dades da Ásia soviética, forneceram as informações básicas sem as quais os sistemas políticos não podem ser bem esta­belecidos, a não ser, talvez, com o auxílio da fôrça militar. Sòmente uma pequena parte dêsse trabalho foi levada a efeito por profissionais atuando na qualidade de geólogos políticos, mas o assunto em causa, que está sendo rápidamen­te condensado, serve cada vez mais de base para a sua valo­rização dos assuntos mundiais e principalmente das relações entre os povos adiantados e atrasados.

Êsses três exemplos, abrangendo a análise das condições física e humana que subestrutuiam as relações entre grupos de pessoas, o reconhecimento da existência de áreas de perigo

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onde os desajustes não foram ainda corrigidos e em face da representação cartográfica dos resultados dêsses estudos, in­dicam alguns dos principais elementos do campo de inves­tigação do geógrafo político sôbre assuntos internacionais. Muitos dos aspectos dos problemas inerentes ao padrão polí­tico universal fogem à sua competência; assim, por exemplo, os pormenores dos assuntos legais, tecnológicos e ideológicos estão fora do seu campo de ação, nem é o seu objetivo orga­nizar grandiosos planos para efeito de conquista militar. Por outro lado, compreende êle que os assuntos internacionais são necessàriamente conseqüências das relações interestatais desenvolvidas no plano territorial e que assim permanecerão enquanto o mundo continuar dividido em inúmeras entida­des políticas completamente independentes. Daí, mostrar-se também interessado nos assuntos internos, nos recursos e energia já conhecidos e aquêles em potencial, no sistema po­lítico e meios de vida dos Estados, individualmente, sempre que êstes estabelecem suas inter-relações em grande pro­porção.

Por muitos séculos, a maioria das comunidades, indepen­dentemente da forma de organização, era, na maior parte, constituída por unidades auto-suficientes social e económi­camente. O comércio ali consistia principalmente em artigos de luxo, de modo que se, por qualquer motivo, o intercâmbio comercial fôsse interrompido, as comunidades poderiam so­breviver sem grandes provações para a maioria dos seus in­tegrantes. Com o advento da Revolução Industrial e os desenvolvimentos correlatos da produção e circulação, essa fase passou. Desde o comêço do século XIX, portanto, os Estados tornaram-se, não somente mais altamente organiza­dos internamente, como também ficaram mais intimamente dependentes económicamente entre si. Durante todo êsse período, a Inglaterra e a França tiraram grande proveito de sua situação geográfica e também do fato de terem come­çado cedo o processo de consohdação nacional.

Era, portanto, inevitável que outros Estados seguissem mais ou menos as mesmas linhas, dando lugar à rivalidade, e que a concorrência pelo poder, entre os mesmos, destruísse quaisquer esperanças de êxito das políticas isolacionistas,

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visto como os interêsses das Potências concorrentes assumi­ram expressão mundial; mesmo assim, todos os Estados do século XX vêm tentando salvaguardar seus próprios interês­ses através de barreiras impostas aos demais. Os limites internacionais transformaram-se, mais do que nunca, em li­nhas de infração quase sempre pesadamente fortificadas, po­rém, mais importantes ainda, talvez, foram as barreiras tari­fárias que todos os Estados criaram para salvaguardar a sua economia interna. O choque entre os interêsses nacionais e internacionais que vinha aumentando constantemente atin­giu ao auge. As duas guerras mundiais extinguiram essas barreiras temporàriamente, sendo que a reconstrução em cada um dos respectivos períodos do pós-guerra foi difi­cultada pelas políticas tarifárias.

É claro que o principal obstáculo à unidade política universal é a existência dos Estados que continuam a exercer funções de barreira contra os interêsses, a curto prazo, dos seus habitantes. Tem-se a maior prova da existência dessa pedra de tropêço nas inúmeras tentativas feitas para elimi­ná-la. O êrro que a maioria dos autores dessas tentativas comete é a insistência na sua rápida aplicação. Esquecem-se que as diversidades da organização estatal são resultado de longo processo de adaptação, que as tradições custam a de­saparecer e que a “história tem grande influência ’. O es­tabelecimento de uma nova ordem no mundo requer tão grande revolução nos assuntos internos que não pode ser posta em prática imediatamente — eis por que a Li­ga das Nações e a Organização das Nações Unidas são consideradas aqui como experimentos. Não podem operar milagres para a solução rápida dos problemas mundiais: sò­mente o utopista ou o idealista precipitado poderia espe­rar que essas organizações lograssem êxito na primeira ten­tativa. A Geografia Política interna dos Estados mostra-nos que só se poderá obter uma perfeita ordem mundial pelo processo lento do ajuste, sendo para isso necessário sacrificar alguns dos podêres soberanos de cada um e de todos os Estados em conjunto, ao mesmo tempo que se precisa contar com o beneplácito esclarecido da opinião pública, pois não

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sendo a nova ordem aceita livremente, não terá possibilidade de subsistir.

Duas sugestões finais podem ser apresentadas aqui. Pri­meiro, a extinção do temor da guerra poderia, provàvelmente, facilitar a criação de uma nova ordem, visto como muitas das barreiras criadas pelos Estados são conseqüência de políticas que se fundam no mêdo e na suspeita da agressão. Basta um século de paz para que tôda a geração seguinte, sem exceção, possa viver numa sociedade mundial ordenada, livre dos riscos constantes da guerra total. Conquanto seja ver­dade que as duas grandes guerras exerceram, indubitàvel­mente, efeito estinnilanle nas mentes dos homens no tocante aos novos acôrdos políticos mundiais, demonstraram, também, a inutilidade da almejada imposição de orden.s novas pelo emprêgo da fôrça militar. Segundo, talvez se suponha que o objetivo final da livre a.ssociação dos povos, branco e de côr, possa ser obtida mais fácilmente após os agrupamentos regionais dos Estados, como sc procurou fazer pela forma indicada no capítulo IV’.

Mesmo nesses casos são grandes as dificuldades. Não é tarefa fácil modificar as .sociedades e acôrdos comerciais, como demonstrou a Conferência de Genebra, sôbre tarifas, em 1947, enquanto os Sindicatos Aduaneiros necessitam de maiores modificações internas do que geralmente se pensa. Isso depende em alto grau da possibilidade dos Estados, individualmente, amainarem as tempestades econômicas que surgirão nos futuros cinco ou dez anos. Se os efeitos das duas conflagrações mundiais puderem ser superados numa única geração, a existência dos Estados como unidades in­dependentes pode prolongar-se por muito tempo; isso, porém, não alterará o argumento fundamental de que o presente sistema político, se assim podemos chamá-lo, não está em condições de atender às necessidades de uma sociedade mun­dial unida. O palco está montado para a execução do maior drama político da história. Os artistas principais são os es­tadistas de tôdas as nações, sendo que a interação de fôrças do drama condiciona, pela natureza física do palco, se a representação desta ou daquela cena, em particular, será em Londres, Washington ou Moscou.

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