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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV MARIVALDO SOUZA DA CRUZ A ESTRADA DE FERRO DA BAHIA AO SÃO FRANCISCO: TRABALAHADORES E ATOS “DESORDEIROS” EM QUEIMADAS, 1880 1890 Conceição do Coité BA 2010

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Page 1: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

MARIVALDO SOUZA DA CRUZ

A ESTRADA DE FERRO DA BAHIA AO SÃO FRANCISCO:

TRABALAHADORES E ATOS “DESORDEIROS” EM

QUEIMADAS, 1880 – 1890

Conceição do Coité – BA

2010

Page 2: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

MARIVALDO SOUZA DA CRUZ

A ESTRADA DE FERRO DA BAHIA AO SÃO FRANCISCO:

TRABALAHADORES E ATOS “DESORDEIROS” EM

QUEIMADAS, 1880 – 1890

Artigo apresentado ao Curso de História da

Universidade do Estado da Bahia, Departamento

de Educação – Campus XIV – como requisito

parcial à obtenção do título de Licenciatura em

História.

Orientador: Aldo José Morais

Conceição do Coité - Ba

2010

Page 3: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

MARIVALDO SOUZA DA CRUZ

A ESTRADA DE FERRO DA BAHIA AO SÃO FRANCISCO:

TRABALAHADORES E ATOS “DESORDEIROS” EM

QUEIMADAS, 1880 – 1890

Artigo aprovado em ______/_____/_____ para obtenção do título de Licenciatura em

História.

Banca Examinadora:

_________________________________

Aldo José Morais

_________________________________

Convidado

_________________________________

Convidado

Page 4: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

A ESTRADA DE FERRO DA BAHIA AO SÃO FRANCISCO:

TRABALAHADORES E ATOS “DESORDEIROS” EM

QUEIMADAS, 1880 – 1890

Marivaldo Souza da Cruz

1

RESUMO

O trabalho apresentado busca entender como se deu o processo de implantação da Estrada de

Ferro Bahia ao são Francisco, na freguesia de Santo Antonio das Queimadas, analisando a

aceitação da sociedade por ela beneficiada, bem como buscando identificar os motivos que

levaram trabalhadores da ferrovia a provocarem diversos atos de desordem neste município na

década de 1880. Para, além disso, verifica-se se houve ou não semelhança entre os atos de

turbulência da estrada de ferro nordestina e atos semelhantes provocados pelos trabalhadores

das ferrovias do interior paulista. Com relação à ferrovia baiana busca-se identificar também a

nacionalidade dos trabalhadores envolvidos nesses conflitos. Para isso, foram analisados

documentos primários, correspondências enviadas da delegacia de polícia de Queimada, para

a delegacia de Vila Nova da Rainha e de Vila nova da Rainha para o governo da Província,

além de uma bibliografia que nos ajuda a entender os percalços no processo de implantação

da ferrovia em questão.

Palavras-chave: ferrovia, conflitos, trabalhadores, Vila Bela de Santo Antonio das

Queimadas

ABSTRACT

The present study seeks to understand as it was the process of implementation of the Railroad

Bahia ao São Francisco, in the parish of Santo Antonio das Queimadas, analyzing the

acceptance of society for its benefit, and seeking to identify the reasons why employees of the

railroad cause several acts of disorder in this city in the 1880s. To further verify whether or

not there was similarity between the acts of turbulence railroad Northeast and similar acts

caused by employees of the railways of São Paulo. Regarding the railroad Bahia seeks to also

identify the nationality of the workers involved in these conflicts. To this end, we analyzed

primary documents, letters sent to the police station of Queimadas, to the police station in

Vila Nova da Rainha and Vila Nova da Rainha to the provincial government, and revisited the

literature that helps to understand the struggles in the deployment of the railway in question.

1 Estudante de licenciatura em História da UNEB Campus XIV Conceição do Coité Bahia. Correio eletrônico:

[email protected].

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5

INTRODUÇÃO

A partir de 1808, com a chegada da Família Real ao Brasil, intensificam-se as

especulações no sentido de edificar vias de comunicação que interligassem a capital da

Colônia ao interior. A malha ferroviária brasileira foi concebida como suporte ideal para fazer

essas interligações.

Sabemos também, que é nessa conjuntura abrem-se os portos às chamadas nações

amigas, dessa maneira iniciam-se o conhecido processo de “modernização”, bem como o

fraqueamento do comércio brasileiro à maior potência industrial do mundo na época, a

Inglaterra, a maior responsável pela implantação das primeiras ferrovias brasileiras, no

sentido financeiro e tecnológico, pois de lá veio não apenas o capital, tomado em forma de

empréstimos a juros exorbitantes, veio também os projetos técnicos do traçado da estrada

propriamente dita e dos edifícios, a exemplo dos: galpões, depósitos, estações e as casas para

as acomodações dos trabalhadores. Além do mais, as estruturas em ferro pré-fabricadas,

bueiros de cerâmica, vidro, entre outros. Incluindo também o corpo técnico e a massa de

trabalhadores somando-se a mão-de-obra brasileira e italiana.2 Contudo, as primeiras ações

concretas de incentivo à implantação das ferrovias no país só vão acontecer a partir de 1828,

durante o reinado de Dom Pedro I, mediante a elaboração da chamada Lei José Clemente, que

autorizava a construção de estradas, de ferro e rodagem.

A primeira linha férrea só veio a ser concretizada no Brasil a partir de 1852. Essa linha

abrangeu as localidades entre a Praia da Estrela, fundo da Baía de Guanabara e a localidade de

Fragoso, próxima à Raiz da Serra de Petrópolis. Irineu Evangelista de Souza - Barão de Mauá

- recebeu o privilégio do Governo Imperial para ser o responsável pela construção da primeira

linha Férrea brasileira, devido à sua estadia na Inglaterra na década de 1840. Nesse período,

ele fez uma viagem à Inglaterra em busca de recursos, e lá conhece fábricas, fundições de

ferro e o mundo dos capitalistas, convencendo-se de que o Brasil deveria trilhar o caminho da

industrialização, sendo também influenciado pela mentalidade e organização dos ingleses.3

2FERNANDES, Etelvina Rebouças. Do mar da Bahia ao Rio do Sertão: Bahia and San Francisco Railway.

Salvador: Secretaria da cultura e Turismo, 2006. p. 10. 3FERNANDES, Etelvina Rebouças. Op. Cit., p. 45.

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É na efervescência desses acontecimentos que o Brasil importaria produtos e mão-de-

obra estrangeira – especialmente inglesa – dando início, dessa forma, à edificação da chamada

malha ferroviária brasileira, que proporcionaria a ligação e a comunicação da Capital da

Província com o interior como.

Sabe-se que, até a inauguração das primeiras ferrovias, os transportes de mercadorias

no Brasil eram feitos através de centenas de tropas de muares, que transportavam a produção

agrícola até os centros urbanos e portos de onde se faziam as exportações, sempre perfazendo

as antigas trilhas reais. Entre as mercadorias transportadas as que tinham maior destaque eram

o café e o açúcar, sendo que o café tinha lugar de destaque até a segunda metade do século

XIX.

A criação da malha ferroviária brasileira tinha como principais objetivos fazer o

transporte de cargas com mais agilidade e precisão, valendo acrescentar também que o

sistema era visto como tendo grande potencialidade para fazer transporte de pessoas.

Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1865, ampliar ou até mesmo criar novas vias

que interligassem todo um país com dimensões continental às pequenas localidades dispersas,

torna-se uma questão estratégica militar. Além de viabilizar a questão da segurança do país,

prevenindo possíveis ataques, caso acontecesse uma “nova guerra”, as comunicações se

dariam rapidamente com articulações das vias fluviais com as estradas de ferro. Ocorreram

diversas crises sociais decorrentes de grande quantidade de ex-combatentes da Guerra do

Paraguai. Esses combatentes eram escravos que não retornaram à lavoura, trazendo à tona a

necessidade da criação de um novo mercado de trabalho para absorver essa mão de obra

desocupada, que estavam livres, porém sem nenhum aparato profissional e sem renda

alguma.4

As primeiras ferrovias não foram construídas de imediato às suas concessões.

Podemos citar dois fatores preponderantes para esse atraso, compreendidos como sendo de

cunho geográfico e econômico. Primeiro o fator geográfico: esse fator justifica-se por o Brasil

apresentar um relevo ligeiramente acidentado na costa, sem contar com a densidade da Mata

4 Idem, p. 42.

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7

Atlântica.5 Sendo que, os geográficos predominaram até o fim da implantação da malha

ferroviária.

Já o fator econômico pode ser por nós analisado como sendo de duas vertentes

diferentes: a primeira delas refere-se ao custo altíssimo para se construir uma ferrovia,

necessitando assim de investimentos estrangeiros.

A segunda vertente econômica, diz respeito à mentalidade das elites brasileiras. De

fato nesse período em que ocorriam as primeiras especulações no sentido de edificarem-se

essas vias de comunicações, os brasileiros viam as potencialidades agrícolas como principais

fontes de renda, assim sendo, o Brasil era um país agrário, sendo que todos os investimentos

eram direcionados à agricultura, baseada em uma mão-de-obra escravista. Contudo, nos anos

de 1850, é promulgada a Lei Euzébio de Queiroz que proibia o tráfico de escravos, nesse

sentido escreve Fernandes:6

Os brasileiros não se interessavam e se opuseram inicialmente à implantação de

ferrovias. A terra era um negócio certo e a importação de escravos da África, uma

atividade oficial e lucrativa até setembro de 1850, quando foi proibida pela Lei

Eusébio de Queiroz. Além dessas atividades, o transporte de cargas no lombo de

burros era um bom negócio para os donos dos animais e para os fazendeiros

proprietários das terras marginais ao roteiro das tropas, que, embora não

cobrassem nada pelas instalações que ofereciam aos almocreves, seus animais e

suas cargas, obtinham lucros com a venda de milho para os animais da carga.

Verifica-se então que somente após a promulgação da citada Lei e as crises pela qual

passara a lavoura agravada com as secas, constituíram-se fatores decisivos para redirecionar

os investimentos para o setor industrial, manter-se um sistema escravocrata caracterizava-se

como um investimento altíssimo, portanto, já não conferia os mesmos lucros aos investidores.

Esses grandes períodos de seca pelos quais o Brasil passou, ocasionaram perdas bruscas aos

agricultores. É nesse contexto que os grandes e influentes proprietários de terras resolveram

redirecionar os investimentos, aderindo dessa forma, à idéia da construção da malha

ferroviária como suporte para a escoação de toda a produção agrícola e pecuária.

5Idem, p. 31.

6 Idem, p. 44

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8

1 - A FERROVIA NA BAHIA

No caso da Bahia, a primeira ferrovia a ser construída foi a Bahia and San Francisco

Railway, compreendendo o percurso de Salvador até Alagoinhas, inaugurada em 1860.

Depois é construído mais um trecho da ferrovia entre os anos de 1887 e 1896, denominada

Prolongamento da Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco, entre os anos de 1896 e 1911

edifica-se outro trecho, batizado então de Estrada de Ferro do São Francisco, atingia

finalmente a margem esquerda do Rio São Francisco na cidade de Juazeiro da Bahia.

Cabe salientar então que, essa denominação de “Prolongamento” remete ao leitor a

idéia de que essa ferrovia complementaria ou complementava outra. Contudo, o

Prolongamento passou a ser designado por “Estrada de Ferro do São Francisco”, pelo Decreto

N° 2 334 de 31 de agosto de 1896. As Estradas de Bahia ao São Francisco e o Prolongamento

tiveram até 1900, duas concessões de uso, ou seja, duas administrações diferentes, sendo que

apenas compartilhava o tráfego de Alagoinhas a Juazeiro.7

As ferrovias surgem na Bahia, a partir de uma visão expansionista, uma visão

característica do século XIX. Vale ressaltar que os objetivos, no sentido de viabilizar o

transporte de mercadorias do sertão bem como fazer a comunicação e transporte de pessoas

que estavam isoladas da capital, eram objetivos gerais de todas as ferrovias baianas.

Mesmo frente à decadência do antigo sistema de produção, os dirigentes capitalistas

baianos objetivavam retomar o enriquecimento e disputavam maiores parcelas do poder

nacional. Nesse contexto, percebia-se o sistema de transporte ferroviário como subsídio para

sair da imensa crise pela qual a Bahia estava mergulhada no momento. Uma vez que os

antigos sistemas de comunicação e transporte eram considerados ineficazes, a malha

ferroviária era concebida como extensão eficiente no sistema de navegação mercantil,

caminho ideal para interligar as zonas com alto grau de produção do interior com os portos do

litoral. Vejamos como eram vistas as antigas vias de comunicação baianas por Zorzo,8

cabendo ressaltar que as características citadas por ele não são peculiares apenas à Bahia:

7 Idem, p. 142 - 146

8 ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: Doze Cidades Conectadas pela Ferrovia no

Sul do Recôncavo e Sudoeste Baiano (1870 – 1993). Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de

Santana, 2001. p. 54.

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Os documentos históricos disponíveis sobre o sistema viário existente na Bahia, na

primeira metade do s. XIX, revelam esse conjunto disperso de vias terrestres que,

apesar de ser de conhecimento antigo e possuir enorme influencia sobre os fluxos

produtivos, era pouco freqüentado e de lentíssimo trânsito. Visto de um ângulo

puramente técnico o sistema viário se mostraria simplesmente inadequados e

ineficientes.

A partir da década de 1870 a Bahia passa por um momento de depressão econômica,

devido à queda da produção açucareira, principal produto de exportação baiana do período,

conforme citado anteriormente.

Como conseqüência da crise do açúcar busca-se expandir a área pastoril para além dos

limites do litoral, essas áreas serviam para ampliar a criação de gado, plantio de cana, fumo,

etc. Essas atividades culminaram com a povoação paulatina dos sertões baianos. Claro que

essa não era uma característica peculiar dos sertões baianos, mas sim de todo sertão brasileiro.

No caso da Bahia, como decorrência de tudo isso surgiram diversas freguesias, distando até

seis milhas da capital, no caso da Bahia, deixando esses pequenos aglomerados de pessoas

isoladas. Nesse sentido, a malha ferroviária era vista como positiva, tanto para o transporte

das mercadorias aí produzidas como para tirar essas pessoas do isolamento total.9

2 - OS IMPACTOS DA FERROVIA NA BAHIA

A construção da malha ferroviária baiana era visto com tendo potencial por representar

a chegada dos tempos modernos na Bahia oitocentista. Dessa forma, deixou vários legados

tanto culturais como políticos, sociais e econômicos.

2.1 – impactos culturais

Em termos culturais destaca-se, em primeiro lugar, as inovações arquitetônicas

associadas à ferrovia. As estações de Calçada e de Alagoinhas têm lugar privilegiado nesse

sentido, por suas estruturas que representavam fortemente o estilo eclético, construídos a

9 Idem, p. 34.

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partir de estruturas pré-fabricadas. Esse estilo vai pouco a pouco tomando conta de maior

parte das construções baianas do século XIX. A própria estrutura de ferro pré-fabricada,

utilizada nas construções das estações, vai aparecer na construção de casas e hotéis. As

janelas de vidro que proporcionavam a iluminação do ambiente fazem lembrar as clarabóias

que iluminavam as estações já citadas. É importante salientar que, o relógio na fachada de

estação de Jequitaia marcava pontualmente o horário de embarque de cada trem, além do

mais, os moradores do interior deixam de orientar-se pelo sol e passam a orientar-se pelo

apito do trem, denominado de “horário ferroviário”.

Além do mais, faz-se necessário ressaltar o importante repertório de hábitos e

costumes introduzidos pelos ingleses em Salvador, principalmente no período da construção

da ferroviária, principalmente da ferrovia em questão.

Percebe-se que, estava em curso à europeização dos costumes, sendo pouco a pouco

disseminados no país através da penetração das ferrovias. As características ecléticas foram

substituindo o neoclassicismo, ou muita das vezes coexistiu com ele.

2.2 – impactos políticos

A inauguração dos trechos e estações constituiu-se em importantes eventos políticos,

desses eventos participavam as pessoas mais importantes da cidade, todos provavelmente

objetivando cargos políticos ou empregos públicos, os cargos de vereador e deputados, eram

os mais concorridos, segundo a bibliografia estudada.

Os políticos baianos viam na ferrovia a possibilidade de ampliar o campo eleitoral,

utilizando o meio de transporte para deslocarem-se até o interior, esses importantes políticos

incentivaram para que surgissem no setor econômico baiano às primeiras instituições

bancárias e o investimento do capital estrangeiro.

2.3 – impactos sociais

O advento ferroviário contribuiu também para o surgimento de uma rede de cidades

nas terras cortadas pela ferrovia. Sabemos que no período colonial as cidades se organizavam

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no entorno das igrejas. Já com a construção das ferrovias essa lógica é alterada, o entorno das

estações ferroviárias passa então a ser o ponto de referência na construção das novas cidades,

a exemplo de Alagoinhas, que tinha seu núcleo inicial em volta da igreja de Santo Antonio

das Alagoinhas, e foi transferida para o entorno da estação construída pelos ingleses, dando

origem dessa forma à nova Alagoinhas. O mesmo aconteceu com a cidade de Mata de São

João.10

A construção da malha ferroviária baiana contribuiu para o surgimento de uma nova

classe trabalhadora. Essa classe era composta por trabalhadores que se especializaram na

prática, como maquinistas, mecânicos, foguistas, guardas de linha, agentes de estação, chefes

de trem, guarda-chaves, bilheteiros, chefes de estação, telegrafistas e um grande número de

diretores. Nesse mesmo contexto, vão surgir também os subempregos, gerados pelas

companhias ferroviárias, esses subempregos foram criados por uma população sem outras

perspectivas, como os de vendedores dos mais diversos tipos de guloseimas, esses vendedores

se apinhavam nas estações a cada chegada do trem de passageiros.11

A criação da malha ferroviária baiana e a criação dos empregos já citados

contribuíram para a efetivação de uma rede de mutualismo entre os trabalhadores que

reivindicavam melhores condições de trabalho, diminuição na carga horária de trabalho,

aumento salarial entre outros. Frente a tudo isso, o engenheiro chefe da ferrovia

Prolongamento da Estrada de Ferro do São Francisco, Teive e Argollo, resolveu elaborar um

Regulamento publicado em 1893, que tinha uma quantidade imensa de artigos que previam as

punições para os trabalhadores que desrespeitassem as normas de trabalho.

Mesmo após a publicação do referido regulamento os trabalhadores ferroviários

baianos organizaram movimentos que culminaram na greve geral dos ferroviários em 1909.

As mobilizações dos ferroviários tiveram importância marcante na história das lutas sociais da

classe trabalhadora na Bahia.12

Mas, é importante salientar que essa solidariedade e esses movimentos entre

trabalhadores ferroviários não se deu exclusivamente na Bahia, as primeiras experiências com

10

Idem, p. 198 – 199. 11

Idem, p. 200. 12

SOUZA, Robério Santos. Experiência de trabalhadores nos caminhos de ferro da Bahia: Trabalho,

solidariedade e conflitos (1892 – 1909). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2007. p. 85.

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12

grandes levas de trabalhadores aconteceram no Brasil primeiramente com a implantação da

malha ferroviária, dessa forma os movimentos em prol da melhoria das condições de vida e de

trabalho aconteceram em âmbito nacional, a respeito disso escreve Monteiro13

:

Podemos dizer que havia um processo de formação de uma “cultura ferroviária”

constituída por um mecanismo de contrastes, de afirmação de diferenças e de

reconhecimento das igualdades decorrentes de alguns fatores de trabalho. É

importante salientar que frente a esses fatores foi edificado um sentimento

identitário de pertença a um grupo com características próprias, ou seja, o “ser

ferroviário”.

2.4 – impactos econômicos

Os grandes negociantes ingleses obtiveram grandes lucros na Bahia, permitindo que

almejassem uma grande influência entre a alta sociedade baiana. Os que adquiriram altos

status dedicaram-se ao comércio internacional, às indústrias, ao setor financeiro e à

construção e exploração das estradas de ferro desde os meados do século XIX, incentivar a

industrialização brasileira era o grande objetivo dos ingleses dentro desse período.

A pesar de proporcionar lucros a malha ferroviária também contribuiu para grandes

prejuízos aos cofres públicos. Devido a uma má administração dos recursos, uma vez que a

sede da maioria das empresas responsáveis pela construção não estavam localizadas no Brasil

e sim na Inglaterra. As diferentes bitolas também são importantes para o déficit ferroviário,

uma vez que dificultavam as interligações. Essas diferenças ocorriam porque as empresas

inglesas utilizavam materiais obsoletos na Inglaterra no processo de construção da malha

ferroviária brasileira. O resultado das diferentes bitolas foi à prática do transbordo.

Para além disso, na década de 20 do século passado, podemos citar as ações de

incentivo ao transporte rodoviário nacional como fator agravante para grandes percas ao

sistema ferroviário. As perdas também afetaram o país, pois contribuíram para o não

cumprimento dos planos ferroviários em detrimento das rodovias, constituindo-se em um

sistema fragmentário de vias de comunicação gerando uma desorganização sem precedentes,

contudo essa desorganização já era presente desde o início da elaboração dos planos viários.

13

MONTEIRO, Claudia. Ferroviários em greve: relação de dominação e resistência na RVPSC. Revista de

História Regional 12(1): 9 -25, Verão, 2007 9. p. 9.

Page 13: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

13

A desorganização foi presente na construção de toda a malha ferroviária baiana, que

fez a transição da tração animal para as locomotivas de uma forma abrupta. Diferentemente

dos “Países da Europa e Estados Unidos, que antes desenvolveram intensamente a navegação

interior e as redes de estradas de rodagem em leito empedrado até chegar às ferrovias”.14

A ingerência dos investimentos, gastos com desapropriações, saques aos vagões,

períodos de secas entre outros, contribuíram para que as ferrovias em questão apresentassem

receitas deficitárias até início da década de 1890.

3 – A FERROVIA TAMBÉM TRAZ “DESORDENS”

A pesar da associação geralmente feita entre as ferrovias e a modernização do Estado,

estas não foram vistas sempre pela população como tendo apenas pontos positivos. Houve

cidades em que os moradores protestaram contra as desordens provocadas pelos trabalhadores

ferroviários, sendo necessário à intervenção da polícia para conter os atos “turbulentos”.

No decorrer de nossos estudos percebemos que a ferrovia cortou as terras de Vila Bela

de Santo Antonio das Queimadas, apenas por ela estar no percurso traçado pelos engenheiros

idealizadores. A passagem da ferrovia por esse município não foi particularmente motivada

por fatores de cunho político ou econômico. Contudo, sua passagem nessas terras deixou

registros históricos relevantes, que contribuirão para aprofundarmos as discussões a respeito

dos impactos da ferrovia, bem como a aceitação da mesma pelas sociedades por ela

beneficiadas de forma direta ou indireta.

Analisaremos as ocorrências na Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas, conhecida

hoje apenas como Queimadas. Essas ocorrências foram registradas em cartas enviadas pelo

Juiz de Paz de Queimadas para o delegado de polícia da Villa Nova da Rainha (atual Senhor

do Bonfim), e deste para o Governo da Província.

Os trechos seguintes são das correspondências do Juiz de Paz de Vila Bela de Santo

Antonio das Queimadas. Na carta, identificamos a natureza dos atos de “desordens”

14

Idem, p. 43.

Page 14: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

14

provocados por trabalhadores da linha férrea, muitas vezes em companhia de moradores da

Vila:

(...) um grupo de caixeiros desordeiros que por mau comportamento (...) da linha

férrea ali em construção, vivem constantemente armados e perturbam a ordem

pública derrubam portas e dando descargas em horas de silêncio da noite, a ponto

de não se poder com segurança passar de um para outro lado da rua. As famílias e

proprietários são ali obrigados a se fecharem logo ao cair do sol, e todos por uma

vez me reclamam providências. E aquela freguesia uma praça de armas, porque os

moradores temidos da gente da linha férrea nunca se desarmarão15

.

Notamos na citação uma variedade de atos “desordeiros”, porém, no trecho seguinte

podemos perceber outros casos com natureza diferente:

(...) um grande grupo de desordeiros armados de facas, garunchas, revólveres e

cacetes, provocaram em alto e bom som a toda população e deram (...) descargas

que horrorizavam a todos os habitantes desta localidade, e finalmente se dirigiram

a casa (...) Maria da Conceição, (...) lha a porta (...) com fim talvez de a assassinar

(...) é assim (...) desde muito tempo tem continuado até hoje quão ainda esta neste

diversos turbulentos foram em algumas casa de família e de negociantes, (...) José

Profiro de Miranda, (...) entre este grupo de desordeiros, existem muitos criminosos

de morte que (...) aqui com os trabalhadores da estrada de ferro(...).16

Em resposta a estas correspondências escreveu o delegado de polícia de Vila Nova da

Rainha:

(...) fomos informados sobre a representação do juiz de paz da freguesia das

“Queimadas” que por cópia no meio passo a informar. Sobre (...) que temos em

construção e votação por mais de três mil trabalhadores vinte e oito lugares de

linha férrea. Dentro dos limites deste termo, principiando o movimento de terra no

“Morro dos Lopes e terminando nessa Vila”. Como parte da estrada,

estabelecimentos, oficiais, depósitos e etc. (...) requisitei e pedir a (...) arregimento

de força e um oficial que como Subdelegado viesse residir no 1° nestes pontos; visto

que este oficial estando residindo no centro da linha é mais perto das

“Queimadas”, podia (...) conter os turbulentos prender os criminosos e garantir os

proprietários dos assaltos destes desordeiros. (...) de todas as partes do termo me

surgem representações conta a gente da linha férrea (...) tive logo consciência

destes últimos conflitos de “Queimadas”, e dei as providências que cobravam

minhas forças, oficiando aos empreiteiros da linha para fazer desarmar os

turbulentos e despedir de seus serviços aos criminosos17

.

15

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo Juiz de Paz da

Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 1º

de junho de 1882. 16

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo Juiz de Paz da

Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 2

de maio de 1882 17

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo Delegado de

Polícia de Vila Nova da Rainha em resposta a corres pendência do Juiz de Paz da Freguesia de Vila Bela de

Santo Antonio das Queimadas, em 24 de maio de 1882.

Page 15: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

15

Diante das citações observamos a ocorrência de diversos conflitos na freguesia de Vila

Bela de Santo Antonio das Queimadas. O delegado de polícia de Vila Nova da Rainha

reconhece os problemas e toma medidas para combater os atos “desordeiros”.

Não foram encontradas correspondências subseqüentes, de modo que não foi possível

saber quais os desdobramentos do episódio. Mas a partir desses registros foi possível

identificar as “desordens” atribuídas aos ferroviários, tipo: invasão de casas, tiros pelas ruas,

tentativas de estupros, roubos, etc. Portanto, para as autoridades e talvez, para uma parte das

sociedades que tiveram contato como as ferrovias, estas não representaram apenas o

progresso, mas também medo e insegurança.

4 – ANALISANDO AS CAUSAS DAS “DESORDENS”

Toda a bibliografia estudada discute apenas os impactos positivos gerados com a

chegada da ferrovia. Os aspectos negativos, quando abordados, dizem respeito apenas aos

fatores econômicos e estruturais, sendo que um estava sempre interligado ao outro, como já

discutidos anteriormente. De forma bastante geral, Hobsbawn18

via a malha ferrovia como a

construção perfeita do homem de seu tempo. O encanto por essa construção pública fica

explicito no texto seguinte:

(...) Vastas redes de trilhos reluzentes, correndo por aterros, pontes e viadutos,

passando por atalhos, atravessando túneis de mais de quinze quilômetros de

extensão, por passos de montanha da altitude dos mais altos picos alpinos, o

conjunto das ferrovias constituía o esforço de construção pública mais importante

já empreendido pelo homem. Elas empregavam mais homens que qualquer outro

empreendimento industrial. Os trens alcançavam o centro das grandes cidades -

onde suas façanhas triunfais e gigantescas - e às mais remotas áreas de zona rural,

onde não penetravam nenhum outro vestígio da civilização do século XIX.

18

HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875 – 1914. Tradução Siene Maria Campos e Yolanda Steidel de

Toledo; revisão técnica Maria Célia Paoli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 48.

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16

Mas, a partir da interpretação e discussão das cartas citadas associadas a uma

bibliografia do interior paulista, podemos sistematizar que uma parcela da sociedade

beneficiada pelo advento ferroviário não aceitava a forma pela qual os trabalhadores se

comportavam. Esses trabalhadores ficaram conhecidos como baderneiros ou turbulentos,

como se pode observar no trecho de uma dessas correspondências: 19

As famílias e proprietários são ali obrigados a se fecharem logo ao cair do sol, e

todos por uma vez me reclama providências. E aquela freguesia uma praça de

armas, porque os moradores dessa freguesia temidos da gente da linha férrea nunca

se desarmarão.

Segundo o delegado de polícia da Freguesia de Santo Antônio das Queimadas esses

acontecimentos, ocorreram em 1882 e eram praticados por trabalhadores da linha férrea junto

a um grupo de caxeiros desordeiros, que formavam grupos armados com o intuito de

perturbar a ordem pública. Eles derrubavam portas e davam descargas em horas de silêncio à

noite. Além do mais, impediam que as pessoas passassem de um lado para o outro da rua em

segurança.

Diante da situação insustentável o delegado local pediu reforço ao delegado de polícia

de Villa Nova da Rainha, no sentido de adquirir efetivo suficiente para conter esses

desordeiros. O delgado de polícia da cidade de Bonfim, reconhecendo a complexidade do

problema, escreve ao Governo da Província, que de imediato tenta sanar os problemas

enviando mais guardas municipais e um delegado de carreira.

Percebe-se que, os “desastres” provocados por esses trabalhadores, tinham uma

representação muito abrangente, não eram poucas as pessoas que reclamavam por segurança,

assim escreve o delegado de polícia de Villa Nova da Rainha: “De todas as partes do termo

me surgem representações contra a gente da linha férrea”.20

19

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo Juiz de Paz da

Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 1°

de junho de 1882.

20

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo Delegado de

Polícia de Vila Nova da Rainha em resposta a corres pendência do Juiz de Paz da Freguesia de Vila Bela de

Santo Antonio das Queimadas, em 24 de maio de 1882.

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17

A citação a cima comprava que o advento da linha férrea não era visto apenas como

tendo potencialidade e representando a modernização. Para muitos, junto à modernização

vieram também os episódios de violência.

Em resposta ao delegado de polícia de Queimadas o delegado de polícia de Vila Nova

da Rainha nos da a idéia sobre a origem dessas desordens:

(...) temos em construção e votação por mais de três mil trabalhadores vinte e oito

lugares da linha férrea. Dentro dos limites deste termo, principiando o movimento

de terra no “Morro dos Lopes e terminando nessa Villa”. Como parte da estrada,

estabelecimentos, oficinas, depósito e etc.21

As desordens, portanto, eram provocadas por trabalhadores que ocupavam cargos de

menor representação dentro do trabalho ferroviário. Podem-se enumerar diversos motivos

para que esses trabalhadores se envolvessem em atos de desordens, no entanto, as

correspondências não deixam em evidência os reais motivos para os episódios que

perturbavam a ordem pública. Porém, Robério Souza22

faz algumas referências às

reivindicações desses trabalhadores. As desordens foram provocadas provavelmente em

detrimento de melhores salários, melhorias nas condições de trabalho, a distâncias entre eles e

as famílias também se configurava como um agravante.

Além do mais, pode-se, notar o envolvimento desses trabalhadores e ex-trabalhadores

da construção da estrada de ferro, que foram viver nas cidades, aumentando a classe dos

marginalizados, composta por imigrantes, pobres, negros ex-escravos, mestiços, todos

também desempregados e desocupados.23

Com relação aos trabalhadores que faziam os trabalhos mais difíceis de todo o

processo de implantação da malha ferroviária escreve Lamounier:24

A maior parte da literatura a respeito dos trabalhadores das ferrovias no Brasil

encontrou-se nos trabalhadores que operavam as ferrovias, não existindo muitos

estudos sobre os trabalhadores que cuidavam da construção e manutenção dos

21

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo juiz de Paz da

Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 1°

de junho de 1882.

22

SOUZA, Robério Santos. Op. Cit. , p. 41. 23

MONTEIRO, Claudia. Op. Cit. , p. 11. 24

LAMOUNIER, Maria Lúcia. Agricultura e mercado de trabalho: trabalhadores brasileiros livres nas

fazendas de café e na construção de ferrovias em São Paulo, 1850-1890. Estudos Econômicos, 2007, vol.37,

no.2, p.353-372. ISSN 0101-4161

Page 18: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

18

leitos. A principal razão para essa lacuna reside, provavelmente, na grande

dificuldade de rastreá-los nas fontes, documentos.

Mas, não se pode atribuir a culpa das desordens inteiramente aos trabalhadores da

linha férrea, pois os mesmos agiam em consonância a grupos formados por autóctones, como

se pode identificar nas correspondências, muitas das vezes eles, os autóctones, já tinham ficha

registrada na polícia. O delegado de polícia de Queimadas registra a primeiro de maio de

1882, um episódio onde os desordeiros estavam armados de facas, garruchas, revólveres e

cacetes, provocaram vários atos de bagunça na cidade, na mesma noite invadiram também

algumas residências populares, inclusive são citados nas correspondências alguns nomes

pessoais.

(...) mas seja bem sensível julgo (...) que entre este grupo de desordeiros, existem

muitos criminosos de morte que aqui com os trabalhadores da estrada de ferro, e

que não sendo (...) pelos subempreiteiros aliam-se a pessoas que moravam neste

lugar para perturbarem a ordem pública.25

Nesse pequeno trecho podemos reafirmar tanto que, os trabalhadores da linha férrea

não agiram isoladamente (tendo colaboração dos moradores da região), de fato os atos de

vandalismo eram praticados por trabalhadores que faziam os trabalhos mais pesados desse

processo, ou seja, aqueles sem qualificação profissional. Esses trabalhadores eram sempre

terceirizados, trabalhando contratados por empreiteiros ou subempreiteiros. À luz desses

acontecimentos escreveu Karl Monsma:26

Agravando a situação, em geral os empreiteiros das ferrovias também eram

desconhecidos, sem relações pessoais com as elites locais e, portanto, não se

sentiam obrigados a controlar o comportamento de seus trabalhadores fora do

horário de trabalho.

Contudo, esses conflitos não foram exceções da ferrovia em questão, durante o

processo de implantação da malha ferroviária no interior paulista aconteceram, confrontos que

tinham semelhanças com os fatos por nós discutidos. Diferenciavam-se, no entanto, em

algumas características, essas características são visíveis tanto no que diz respeito ao local

25

APEB. Seção Provincial. Série: Correspondência. Caixa 2 554. Correspondência enviada pelo juiz de Paz da

Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 1°

de maio de 1882. 26

MONSMA, Karl Martin. Emergência e Declínio do “Perigo Imigrante” no Interior Paulista, 1880 – 1900.

31º Encontro Anual da ANPOCS, 2007. p. 3.

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19

origem dos desordeiros quanto à intenção deles ao praticarem os atos que perturbavam a

ordem pública. Em relação a esses confrontos escreveu Karl Monsma:27

Em várias partes do interior paulista, a primeira experiência com grandes levas de

imigrantes veio com a construção das ferrovias. Nas suas horas de folga, as turmas

de trabalhadores, geralmente portugueses, transtornavam a vida das pequenas

cidades e sobrecarregavam suas pequenas forças policiais.

Com relação aos tormentos causados por esses trabalhadores em pequenas cidades, são

semelhantes tanto os do interior paulista quanto os da estrada de ferro nordestina. Como é de

nosso conhecimento, no período em que esses fatos ocorreram em Queimadas, essa ainda era

uma freguesia, com uma força policial considerada reduzida. Essa característica confirma-se

quando o Delegado de Polícia dessa freguesia preocupa-se em conseguir mais policiais no

sentido de fortalecer o efetivo. Essas também eram as características inerentes às pequenas

cidades do interior paulista descrita por Karl Monsma,28

nesse sentido as correspondências

policiais desses pequenos municípios faziam também referência ao reduzido destacamento.

Contudo, segundo o próprio Karl Monsma, os episódios de conflito do interior paulista

na maioria das vezes tinham a violência e arbitrariedade policial como protagonista, a força

policial era bastante agressiva com relação ao tratamento dado aos imigrantes. Dessa maneira

eram freqüentes as reclamações dos cônsules italianos ao Chefe de Polícia relatando abuso

contra italianos em vários pontos do estado.29

Era comum a prisão de imigrantes nos conflitos com a polícia ou em conflitos

provocados por eles, imigrantes, entre si e a comunidade local, como já discutimos

anteriormente. Como conseqüência eram freqüentes as tentativas de resgate dos presos por

parte de familiares e compatriotas, e muitas vezes essas tentativas tinham êxito em função da

força policial reduzida.

No caso do interior da Bahia, não foi possível encontrar nas cartas referências a

resgates de compatriotas ou familiares, mas fica evidente a existência de conflitos entre os

trabalhadores ferroviários comunidade local e a “ordem pública”. É bem provável que essas

27

MONSMA, Karl Martin. Op. Cit. , p. 1. 28

Idem 29

Idem, p. 15.

Page 20: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

20

desordens tenham sido motivadas devido às más condições de trabalho, falta de perspectivas,

atrasos salariais, tudo isso concorria para a insatisfação desses trabalhadores.

5 - A ORIGEM DOS “TRABALHADORES DESORDEIROS”

No interior paulista segundo Karl Monsma, a classe constituída pelos

“desordeiros” era composta principalmente por imigrantes italianos e portugueses, sendo que

os italianos envolviam- A pesar da associação geralmente feita entre as ferrovias e a

modernização do Estado, estas não foram vistas sempre pela população como tendo apenas

pontos positivos. Houve cidades em que os moradores protestaram contra as desordens

provocadas pelos trabalhadores ferroviários. Sendo necessário à intervenção da polícia para

conter os atos “turbulentos”.

Analisaremos as ocorrências na Villa Bela de Santo Antonio das Queimadas,

conhecida hoje apenas como Queimadas. Essas ocorrências foram registradas em cartas

enviadas pelo Delegado de Polícia de Queimadas para o Delegado de Polícia da Villa Nova

da Rainha e delegado de Villa Nova da Rainha (atual Senhor do Bonfim) para o Governo da

Província.

No decorrer de nossos estudos percebemos que a ferrovia cortou as terras de Vila Bela de

Santo Antonio das Queimadas, apenas por ela está no percurso traçado pelos engenheiros

idealizadores. A passagem da ferrovia por esse município não foi motivada por fatores

específicos de cunho político ou econômico de forma particular. Contudo, sua passagem

nessas terras deixou registros históricos relevantes, que contribuirão para aprofundarmos as

discussões a respeito dos impactos da ferrovia, bem como a aceitação da mesma pelas

sociedades por ela beneficiadas de forma direta ou indireta se com maior freqüência nesses

acontecimentos.

No caso dos episódios ocorridos na Vila de Queimadas, não foi possível identificar

com precisão a nacionalidade dos trabalhadores desordeiros tanto nas correspondências como

na bibliografia estuda. Porém, é possível notar na bibliografia estudada que, no período em

que essas desordens ocorrem na ferrovia baiana, à maior parte da classe trabalhadora era

formada por ex-escravos e trabalhadores brasileiros. Fernandes nos oferece alguns dados que

Page 21: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

21

nos permite afirmar que a classe trabalhadora da ferrovia em questão tinha uma quantidade

bem maior de trabalhadores nacionais, formada por 2 639 homens, sendo que dentre eles 2

069 eram brasileiros, 446 Italianos, 107 ingleses, 11 alemães, 4 franceses e 2 suíços.30

É de nosso conhecimento que a experiência brasileira na área ferroviária era ainda

qualitativamente diminuta isso nos leva a acreditar que os trabalhadores brasileiros estavam

entre aqueles que ocupavam os cargos de menor expressão, portanto, sendo provável o

envolvimento muitos deles nos acontecimentos “desordeiros”. É bem provável, portanto, que

os trabalhadores ferroviários baianos envolvidos nos casos de desordem contra a paz pública e

a comunidade local fossem predominantemente ex-escravos, além de trabalhadores nacionais,

entre outros. Pode-se afirmar, perante as cartas é que os fatos ocorrem na década de 80 do

século XIX e, portanto, antecedem à assinatura da Lei Áurea. As correspondências deixam

claro o envolvimento de autóctones nesses “atos de turbulências”, mas não fazem alusão

quanto à nacionalidade dos trabalhadores ferroviários desse período. Não obstante a respeito

de como se formava essa classe trabalhadora, escreveu Robério Souza:31

Considera-se que na Bahia, diferente de São Paulo e Rio de Janeiro, o fluxo de

imigrantes durante a Primeira República foi quase insignificante (...) evidencias

importantes da presença afrodescendente. Em nossa ótica, a experiência negra de

ex-escravos ou de seus descendentes surge aqui como fator diacrítico no processo

de formação da classe trabalhadora urbana baiana, especificamente no universo

ferroviário, no período do pósabolição.

Como vimos anteriormente, criaram-se diversos empregos e subempregos a partir da

necessidade da mão-de-obra ferroviária. Essas ocupações foram, em grande medida, ocupadas

por brasileiros e, de fato, com as primeiras concessões de construção brasileiras, foram

aproveitados vários outros trabalhadores que já tinham experiência na área, a ponto mesmo

de, já na década de 1880, até mesmo os engenheiros chefes da ferrovia já serem brasileiros.

É claro que não se exclui totalmente a possibilidade de trabalhadores imigrantes

também terem participado desses eventos, o que afirmamos aqui é que todos os estudos e

analises nos remetem à perspectiva da composição autóctone das “turbas” de “desordeiros”

que tanta preocupação levaram à Vila de Queimadas.

30

Idem, p. 103 31

Idem, p. 66 – 67.

Page 22: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

22

CONSIDERAÇOES FINAIS

À luz de tudo que foi discutido, pode-se concluir que a edificação da malha ferroviária

brasileira foi sem dúvida importantíssima para a comunicação das capitais com áreas isoladas

ou vice versa, dessa forma as mercadorias chegavam com mais eficiência e rapidez às áreas

portuárias brasileiras, sendo que, as embarcações eram o principal meio de transporte daquela

época, dessa forma a malha configurou-se como o elo que ligou capitais ao sertão brasileiro,

para, além disso, através dos movimentos grevistas encabeçado por trabalhadores ferroviários

no início do século XX, foi fator importante para a consolidação da classe trabalhadora

baiana.

A despeito do inegável impacto e da importância que a o advento das ferrovias

ocasionou na economia e para a infra-estrutura nacional, a chegada da malha ferroviária em

algumas comunidades baianas e paulistas não foi vista apenas como tendo potencial para as

comunicações ou como significando a chegada dos tempos modernos. Elas desencadearam

um grande processo de turbulência entre comunidade local, força policial e trabalhadores

ferroviários, que muitas vezes agiram em consonância com autóctones.

Não foi possível afirmar categoricamente o motivo e a nacionalidade desses

ferroviários, haja visto que nem a bibliografia estuda, nem as correspondências analisadas

deixam isso claro.

Com base na experiência relatada no interior paulista, os trabalhadores ferroviários

enfrentaram dificuldades devido à falta de perspectiva, jornada de trabalho elevada, questões

salariais, distancia da família, entre outros. No interior paulista e no interior baiano as cidades

que foram palcos desses conflitos tinham uma força policial reduzida como características

iguais, sempre relatadas nas correspondências policiais. Se os trabalhadores de São Paulo se

envolveram em conflitos por motivos e dificuldades semelhantes às que os trabalhadores

baianos enfrentaram, então é possível afirmar que os conflitos aqui tiveram motivações

também semelhantes aos do interior paulista.

Perante tudo isso, fica claro que, tanto no período de construção da malha ferroviária

baiana quanto paulista, algumas comunidades sofreram as conseqüências dos atos de

desordens provocados por trabalhadores ferroviários, esses atos de baderna deixam moradores

e força policial consternados. Dessa maneira os atos de desordem concorreram para que o

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23

advento ferroviário não fosse aceito de forma abrangente como tendo apenas contribuído para

o desenvolvimento cultural, social e econômico do país.

Page 24: A estrada de ferro da bahia ao são francisco trabalhadores e atos desordeiros em queimadas, 1880 1890

24

FONTES

ARQUIVO PÚBLICO DA BAHIA

Seção Provincial (série correspondência)

Correspondência enviada pelo juiz de Paz da Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das

Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 1° de junho de 1882.

Correspondência enviada pelo Juiz de Paz da Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das

Queimadas ao Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha, em 2 de maio de 1882

Correspondência enviada pelo Delegado de Polícia de Vila Nova da Rainha em resposta a

corres pendência do Juiz de Paz da Freguesia de Vila Bela de Santo Antonio das Queimadas,

em 24 de maio de 1882.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Etelvina Rebouças. Do mar da Bahia ao Rio do Sertão: Bahia and San

Francisco Railway. Salvador: Secretaria da cultura e Turismo, 2006.

HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875 – 1914. Tradução Siene Maria Campos e

Yolanda Steidel de Toledo; revisão técnica Maria Célia Paoli. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1998.

LAMOUNIER, Maria Lúcia. Agricultura e mercado de trabalho: trabalhadores brasileiros

livres nas fazendas de café e na construção de ferrovias em São Paulo, 1850-1890. Estudos

Econômicos, 2007, vol.37, no.2, p.353-372. ISSN 0101-4161

MONSMA, Karl Martin. Emergência e Declínio do “Perigo Imigrante” no Interior

Paulista, 1880 – 1900. 31º Encontro Anual da ANPOCS, 2007.

MONTEIRO, Claudia. Ferroviários em greve: relação de dominação e resistência na

RVPSC. Revista de História Regional 12(1): 9 -25, Verão, 2007 9.

SOUZA, Robério Santos. Experiência de trabalhadores nos caminhos de ferro da Bahia:

Trabalho, solidariedade e conflitos (1892 – 1909). Dissertação de Mestrado apresentada ao

Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Estadual de Campinas, 2007.

ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: Doze Cidades Conectadas

pela Ferrovia no Sul do Recôncavo e Sudoeste Baiano (1870 – 1993). Feira de Santana:

Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001.