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1 Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia A existência lesbiana e o atendimento ginecológico oferecido às lésbicas no discurso de profissionais da saúde do Hospital Regional de Ceilândia Luiza Rocha Rabello Brasília, 2013

Author: domien

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1

Universidade de Braslia

Instituto de Cincias Sociais

Departamento de Antropologia

A existncia lesbiana e o atendimento ginecolgico oferecido s lsbicas no discurso de profissionais da sade do Hospital

Regional de Ceilndia

Luiza Rocha Rabello Braslia, 2013

2

Luiza Rocha Rabello

A existncia lesbiana e o atendimento ginecolgico oferecido s lsbicas no discurso de profissionais da sade do HRC

Monografia apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituo de Cincias Sociais ICS, da Universidade de Braslia UnB, como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Cincias Sociais, com habilitao em Antropologia. Orientadora: Professora Dra. Soraya Resende Fleischer Banca examinadora: Professora Dra. Rosamaria Giatti Carneiro Professor Dr. Wanderson Flor do Nascimento

Braslia 2013

3

Agradecimentos

minha me, Janana, por ser a pessoa incrvel que ela , por ter me ensinado tantas

coisas maravilhosas;

Ao meu pai, Vernon, por ser to presente, por ser o pai que eu escolhi ter;

s minhas irms, Olvia e Jlia, pela amizade sem fim, por terem se tornado um

pedacinho de mim, cada uma ao seu jeito;

A Soraya, pela orientao to dedicada, pelos comentrios que me ajudaram tanto a

aprofundar o meu olhar etnogrfico;

A Amanda, por ser uma companhia consoladora at mesmo no silncio;

A Kika, pelos chs, cafs, bons drink, que trouxeram tantas conversas interessantes;

A Alice, pelos tantos textos enviados, emprestados, pesquisados e pela inspirao;

A Tate, pelas risadas maravilhosas;

A Gretel pelo carinho, por me fazer crescer pela ternura;

A Natlia C. por se negar a me deixar cometer suicdio acadmico;

Ao pessoal do HRC, por receber a mim e ao meu caderninho, pelas entrevistas, pelas

conversas, pelas explicaes;

A Audre Lorde, Alice Walker e Adrienne Rich pelas palavras que me enchem de

coragem.

4

Resumo

Esta monografia tem como objetivo investigar a ateno ginecolgica oferecida

s lsbicas no Hospital Regional de Ceilndia (HRC). O tema da sade de lsbicas ainda

pouco explorado tanto nas Cincias Humanas quanto nas Cincias da Sade e com

este trabalho pretendo contribuir com a produo sobre o assunto. A literatura sobre o

tema revela a ocorrncia de tratamentos inadequados s lsbicas e mulheres

bissexuais e a falta de informao sobre transmisso de DST em relaes sexuais entre

mulheres que fazem sexo com mulheres por parte de profissionais da sade. A

percepo de funcionrias e funcionrios do HRC sobre atendimento ginecolgico e

sexualidade lesbiana investigada a partir da pesquisa etnogrfica nesse hospital. O

discurso que enfatiza a inexistncia de diferenas de atendimento, mas que tem como

parmetro de normalidade a heterossexualidade impossibilita a percepo de possveis

especificidades e apaga a lesbiandade como uma existncia possvel dentro do

hospital. A partir de experincias positivas da diferena e de uma anlise crtica da

literatura questionado o ideal de igualdade como criador de subjetividades marginais.

Palavras-chave: Sade ginecolgica de lsbicas. Existncia lesbiana. Antropologia da

sade.

5

Sumrio

Resumo ............................................................................................................................. 4

Introduo ........................................................................................................................ 6 1 Localizando a pesquisadora ....................................................................................... 7 1.1 Definindo minhas escolhas .................................................................................... 8 1.2 O plural feminino ................................................................................................. 11 1.3 Epistemologia do armrio ................................................................................... 11 2 Questes metodolgicas ......................................................................................... 12 2.1 Submisso da Pesquisa ao CEP ............................................................................ 13 2.2 Entrando em campo e estratgias de trabalho ................................................... 15 2.3 Mudando de estratgia ....................................................................................... 19 2.4 Ferramentas de pesquisa ..................................................................................... 21 Captulo 1 - O trabalho de campo no Hospital Regional de Ceilndia ........................... 23 1 Visitando o HRC ....................................................................................................... 23 2 O atendimento no HRC ............................................................................................ 29 2.1 Os conflitos .......................................................................................................... 29 2.2 (Falta de) Privacidade nas consultas ................................................................... 35 Captulo 2 - Sade e (in)diferena no atendimento ginecolgico para lsbicas ............. 38 1 O que outras pesquisas dizem sobre a sade ginecolgica das lsbicas ................ 38 2 Igualdade e (in)diferena no HRC ............................................................................ 41 3 Religiosidade no HRC e a questo da igualdade ..................................................... 45 4 Equidade: a diferena dentro de uma perspectiva de sade do Estado brasileiro . 46 5 Polticas da Diferena .............................................................................................. 48 Captulo 3 - A existncia lesbiana no HRC ...................................................................... 50 1 A heterossexualidade compulsria ......................................................................... 50 2 A heterossexualidade como norma ......................................................................... 51 3 A invisibilizao da existncia lesbiana ................................................................... 54 4 Consideraes Finais ............................................................................................... 57 Referncias bibliogrficas ............................................................................................... 60

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Introduo

In order to perpetuate itself, every oppression must corrupt or distort those various sources of power within the culture of the oppressed that can provide energy for change. For women, this has meant a suppression of the erotic as a considered source of power and information within our lives

Audre Lorde

Essa monografia, com a temtica da assistncia ginecolgica oferecida s

lsbicas no Hospital Regional de Ceilndia (HRC), teve seu princpio na criao do

projeto de pesquisa sobre o tema no segundo semestre de 2011. A minha pesquisa de

campo se passou durante todo o semestre seguinte a esse, o primeiro de 2012.

Eu tive a oportunidade, em meu trabalho de campo, de conhecer pessoas que

me auxiliaram muito e tornaram mais fceis os meus caminhos pelo HRC. Agradeo

muito a essas pessoas por me receberem e cederem um tempo de seus trabalhos to

corridos para conversar comigo.

Essa monografia dividida em cinco partes: Introduo; Discusses

Metodolgicas; e Captulos 1, 2 e 3. A introduo traz questes pertinentes de minha

temtica e trabalho de campo para a melhor compreenso do contexto geral de minha

pesquisa. Na apresentao dos passos metodolgicos, eu discuto como fiz minhas

primeiras incurses a campo e como procurei e registrei informaes no HRC. No

primeiro captulo, o HRC mais bem situado antes de entrar na minha temtica de

pesquisa. No segundo captulo, eu mostro um panorama geral das pesquisas sobre

sade de lsbicas e mulheres bissexuais no Brasil e discuto conceitos importantes

sobre igualdade e diferena dentro e fora do HRC. Por fim, no terceiro captulo analiso

a forma em que a heterossexualidade posta como lugar de norma no discurso de

profissionais de sade do HRC, trato a questo da existncia lesbiana e fao minhas

consideraes finais sobre esta pesquisa.

7

O tema de minha pesquisa ainda pouco explorado, tanto nas Cincias Sociais e

Humanas quanto nas Cincias da Sade. Espero ento contribuir para o crescimento de

informaes sobre a sade de mulheres lsbicas atentando para a importncia do no

apagamento da existncia e das especificidades lesbianas.

1 Localizando a pesquisadora

Objetividade no diz respeito a des-engajamento (1995, p. 41), nos fala

Donna Haraway sobre os saberes localizados. A imparcialidade um mito e por isso a

nossa parcialidade deve ser anunciada, mostrada da melhor maneira possvel. A

parcialidade no deve ser buscada por si mesma, mas porque atravs dela no

tentamos transcender os limites e as responsabilidades nas Cincias e podemos

apresentar uma viso objetiva (HARAWAY, 1995). Aprendendo a vincular visivelmente o

nosso objetivo aos nossos instrumentos tericos e polticos, assim nomeando onde

estamos e onde no estamos, enfatizando uma escrita que vem de um corpo assim

exercemos uma objetividade feminista de um conhecimento localizado (idem). No

apenas Haraway, mas muitas outras autoras feministas, de maneiras diferentes

propem uma escrita que v por caminhos outros, fora da adorao ao racional e do

esquecimento do corpo (DALLERY, 1997).

Seguindo esse caminho, eu escolho me localizar no de forma perfeita, mas

com categorias polticas e tambm privilgios, que para mim fazem toda a diferena ao

se tratar do meu tema de pesquisa. Por isso me apresento como uma mulher negra-

parda, lsbica, jovem, de classe mdia, cissexual1. importante dizer que se eu fosse

uma pessoa que estivesse dentro dessas categorias em lugares diferentes, ainda assim

seria importante a localizao. Essa no uma questo de problematizar a minha

identidade lesbiana por causa de meu tema, como se ser heterossexual no fosse

1 Julia Serano, ativista transexual e autora do livro Whipping Girl, lanado em 2007, respondeu

perguntas frequentes sobre o termo cissexual em seu blog (http://juliaserano.livejournal.com/14700.html ltimo acesso em 16-02-13). Enquanto o prefixo trans significa atravs ou do lado oposto de, cis significa do mesmo lado. Ou seja, se uma pessoa se identifica com um sexo diferente do que foi atribudo em seu nascimento, essa pessoa transexual (ela atravessa o sexo designado ao nascimento, indo parar em outro lado). Se algum est do mesmo lado do sexo que lhe foi atribudo quando nasceu, essa uma pessoa cissexual. Esse termo muito comum no ativismo de pessoas trans e importante para que a cissexualidade seja considerada apenas uma opo entre outras e no um parmetro de normalidade ou naturalidade, que inferido pelos termos mulher/homem natural, mulher/homem real, entre outros.

8

igualmente uma posio implicada. Mesmo que as categorias no sejam perfeitas (e

como seriam?), abandon-las e escolher pela auto-identificao com um sujeito

universal genrico no me pareceu a escolha apropriada.

A heterossexualidade, nos diz Monique Wittig (1992), naturalizada de tal

forma nas Cincias Sociais que, por mais que certos tericos aceitem que no existe

nada de natural, que tudo cultura, dentro dessa cultura ainda existe uma relao

que excluda da anlise social. Essa relao permanece dentro da cultura e se

assemelha natureza, no considerada uma varivel, essa a relao heterossexual

(WITTIG, 1992). Levando em considerao o que Wittig disse, podemos fazer as

seguintes perguntas: em quantas pesquisas a heterossexualidade vista como um lugar

de fala? E em quantas pesquisas apenas sobre casais ou pessoas heterossexuais se

escreve que a heterossexualidade um recorte de pesquisa? Penso que isso deve ser

questionado antes de falarmos do heterossexismo das Cincias da Sade, de seus

estudantes, docentes e profissionais.

1.1 Definindo minhas escolhas

A densidade do meu trabalho de campo no Hospital Regional de Ceilndia fez

com que eu decidisse delimit-lo ao hospital, portanto no fiz entrevistas com lsbicas

durante minha pesquisa. Ainda assim, eu falo sobre atendimentos ginecolgicos s

lsbicas, em existncia lesbiana, em lesbiandade. A minha definio de lsbica no est

de modo algum relacionada s lsbicas que frequentam esse hospital a procura de

servios ginecolgicos, mas uma categoria de anlise. Essa palavra no foge ao

entendimento das pessoas com quem eu conversei no HRC, no foi um problema us-

la em campo. E essa palavra tambm uma escolha poltica. A palavra lsbica, por ser

especfica, no apaga as diferenas entre lsbicas e gays, como usar o termo gay

indistintamente para as duas experincias ou homossexualidade feminina, que

tornam a lesbiandade uma verso feminina de uma homossexualidade que tem como

padro a masculina, ou seja, os homens gays (RICH, 1986).

9

A definio de lsbicas como mulheres discutvel e outra escolha que precisa

se tornar ntida. Se a definio de mulher, considerando um regime heteropatriarcal2,

a acessibilidade sexual para os homens (FRYE, 1983; LEE & DOWN, 2001;

RADICALESBIANS, 1970) e o seu papel de reprodutora da espcie (RICH, 1986), como se

poderia dizer que lsbicas so mulheres? Para Monique Wittig (1992), mulheres s

tem significado em um sistema de pensamento heterossexual, em um sistema

econmico heterossexual, portanto, para ela, lsbicas no so mulheres (WITTIG,

1992, p.32, traduo minha). Porm eu escolhi neste trabalho utilizar uma definio de

mulher em que cabe a lesbiandade, de forma que a mulheridade seja ampla, mas no

de maneira que se encontre em uma situao negativa em relao ao masculino o

sexo que, segundo Luce Irigaray, um s (GABRIEL, 2009) nunca a ele em situao de

igualdade apagadora de diferenas, como diria a filsofa feminista Alice Gabriel: a

morada do feminino no uma diferena especfica e definvel construda por oposio

a um masculino e sim a prpria casa da diferena (p. 26). A casa da diferena uma

referncia Audre Lorde, autora muito importante na construo do meu feminismo,

que em uma parte de seu livro Zami: A New Spelling of My Name (1982) fala sobre ser

uma mulher negra lsbica encontrando fortalecimento em cada lsbica negra que

encontrava nos brancos bares lesbianos (que muitas vezes eram fechados antes de

completar um ano de funcionamento) dos anos 50 em Nova Iorque.

Sermos mulheres juntas no foi o suficiente. Ns ramos diferentes. Sermos lsbicas juntas no foi o suficiente. Ns ramos diferentes. Sermos negrxs juntxs no foi o suficiente. Ns ramos diferentes. Sermos mulheres negras juntas no foi o suficiente. Ns ramos diferentes. Sermos sapatonas negras juntas no foi o suficiente. Ns ramos diferentes. (...) Passou-se um tempo at percebermos que o nosso lugar no era a segurana de qualquer diferena em particular, mas a prpria

casa da diferena (LORDE, 1982, p.226, traduo minha).3

2 Estou consciente da crtica da Lia Zanotta Machado (2010) sobre o uso do termo patriarcado.

Escolhi manter esse termo por no achar que ele cria uma totalizao vitimizante, mas que nos atenta ao modo estruturante em que a heterossexualidade e o sexismo se encontram na construo do Estado moderno, j apontado por Maria Lugones (2008). 3 No original: Being women together was not enough. We were different. Being gay-girls

together was not enough. We were different. Being Black together was not enough. We were different. Being Black women together was not enough. We were different. Being Black dykes together was not enough, We were different. () It was a while before we came to realize that our place was the very house of difference rather the security of any one particular difference. (LORDE, 1982, p. 226, grifo da autora)

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A lesbiandade a que eu me refiro no diz respeito a uma unidade-de-ser, mas

diferena-que--ser uma pessoa fora do que se espera que algum seja em um

heteropatriarcado branco.

Quando projetei esta monografia, a minha ideia original era, alm de fazer

etnografia dentro do hospital e entrevistar profissionais de sade, entrevistar mulheres

lsbicas e bissexuais sobre suas experincias de serem atendidas em consultrios

ginecolgicos. Durante o trabalho de campo eu persisti em nomear as mulheres

bissexuais juntamente das lsbicas nos meus roteiros de pergunta, mas com base nas

minhas respostas, que se referiam apenas lsbica, homossexual, juntamente

com a minha experincia em grupos feministas autnomos compostos por mulheres

bissexuais e lsbicas e com a minha pesquisa bibliogrfica, decidi que a minha escrita

seria dedicada apenas s mulheres lsbicas.

O motivo pelo qual decidi tirar o meu foco de mulheres bissexuais a minha

percepo de que o que motiva essas mulheres em um primeiro momento a

frequentarem o consultrio ginecolgico a sua vivncia sexual com homens e a esse

pedao de suas vidas sexuais que fazem referncia quando so perguntadas sobre a

sua primeira relao sexual, se fazem uso de anticoncepcionais, se utilizam a

camisinha, o que tambm apontado por Regina Barbosa e Regina Facchini:

Os motivos de busca [por atendimento ginecolgico] mais comuns remetem a problemas/incmodos ou a momentos socialmente valorizados no reconhecimento do sujeito como mulher: a primeira menstruao, a primeira relao (heteros)sexual ou a possibilidade de gravidez. (2009, p. 293)

Facchini em outra pesquisa (2006) explica que a penetrao pnis-vagina dentro

de um contexto heteronormativo se constitui no prprio conceito de relao sexual e,

portanto, diante de uma pergunta sobre a primeira relao sexual, pode ser induzida

uma resposta referente primeira relao sexual heterossexual (FACCHINI, 2006, p.

14). necessrio considerar que o ato de se relacionar frequentemente com homens

provedor de uma posio socialmente privilegiada em relao s mulheres que

recusam completamente essa ligao compulsria (ULMSCHNEIDER, 1973).

Diante de um trabalho que trata de uma dimenso ainda restrita sobre

atendimento ginecolgico, eu devo tambm considerar que estou tratando de

11

problemas que so especficos de mulheres cissexuais, estando as mulheres transexuais

aparentemente excludas do campo da anlise por no ter inserido em minha pesquisa

perguntas sobre especificidades de mulheres lsbicas transexuais.

1.2 O plural feminino

Indo na contramo de uma linguagem em que o sujeito universal masculino,

nesse trabalho o plural e o genrico so vrias vezes escritos no feminino quando

homens tambm esto includos na sentena. Eu preferi no criar uma espcie de novo

sujeito universal simtrico, pois o universal pode tornar a ser lido mentalmente como

masculino, o que pode acontecer com a utilizao da letra x. Ainda assim, em alguns

momentos, eu falo, por exemplo, mdicas e mdicos e mdicos, para tambm no

tirar da anlise a posio de homens como pessoas privilegiadas pelo sexismo e da

masculinidade que o conhecimento distanciado sobre o corpo representa na medicina

(KING, 1997). No caso de outras profissionais da sade de minha pesquisa, da forma

como o HRC estava organizado na poca de minhas visitas, no existiam auxiliares de

enfermagem, enfermeiros ou outros profissionais homens nas reas ginecolgicas do

hospital. Dessa forma tambm foi importante marcar a racialidade de algumas

personagens: no devemos esquecer que estamos em um lugar em que os marcadores

raciais, de gnero e sexuais existem. Todas as pessoas que eu entrevistei estavam no

momento envolvidas em uma relao heterossexual. Sobre as que eu no entrevistei

no possuo informaes quanto a sexualidade. Outra escolha importante a utilizao

de nomes fictcios para a preservao da identidade das pessoas que encontrei em

campo, pois algumas informaes e crticas encontradas neste trabalho poderiam ser

utilizadas para prejudic-las.

1.3 Epistemologia do armrio

Um privilgio heterossexual pouco refletido no necessitar revelar em um

contexto social mais amplo a sua sexualidade, no existe um segredo a ser revelado

(SEDGWICK, 2007). Eve Sedgwick (2007) nos conta que at a pessoa mais

assumidamente lsbica (referidas genericamente em seu texto com a palavra gay) ou

12

gay est no armrio para alguma pessoa importante de sua vida, seja pessoal,

econmica ou institucionalmente.

Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para no falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, mdico, constri novos armrios cujas leis caractersticas de tica e fsica exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos clculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposio. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela no sabe se sabem ou no. igualmente difcil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, considerariam a informao importante (SEDGWICK, 2007, p. 22).

Antes de comear o trabalho de campo eu pensava que, pelo tema da minha

pesquisa, talvez perguntassem sobre a minha sexualidade, se eu sou lsbica. Mas

depois de pouco tempo eu reparei que isso dificilmente aconteceria e realmente nunca

aconteceu. Primeiro, porque no me pareceu que as pessoas que eu encontrava em

campo vinculariam a minha identidade com o tema de minha pesquisa (as pesquisas

deveriam ser desinteressadas, certo?); segundo, como ser mais detalhado durante o

trabalho, nem mesmo para as pacientes essa pergunta feita, ou seja, parece ser um

tipo de informao vista como discursivamente irrelevante nesse ambiente; terceiro,

algumas pessoas com quem conversei consideram esse tipo de pergunta uma ofensa;

quarto, eu tenho um comportamento e um vesturio que no associado comumente

s lsbicas. possvel que pelo tema de minha pesquisa essa possibilidade tenha sido

cogitada, mas isso no apareceu em campo. As perguntas pessoais que faziam a mim

se referiam, no mximo, minha idade. A possibilidade de arrumar algum modo para

contar sobre a minha identidade lesbiana para causar experincias de campo

interessantes me pareceu fora de cogitao, pois a probabilidade de lidar com a

pergunta, ilustrada por Sedgwick como tudo bem, mas o que a fez pensar que eu

queria saber disso? (2007, p.27) me pareceu alta e constrangedora.

Eu trouxe essa situao para mostrar que a localizao da pesquisadora faz a

diferena em questionamentos e vises sobre o trabalho de campo e que essa uma

situao especfica com que dificilmente uma pessoa heterossexual lidaria no mesmo

local onde pesquisei.

2 Questes metodolgicas

13

Ao me localizar como pesquisadora, expondo a especificidade de minhas

parcialidades, eu procuro trazer uma objetividade feminista ao meu trabalho e deixar

os caminhos por onde correm as minhas ideias mais visveis. A apresentao das

questes metodolgicas e mtodos utilizados em minha pesquisa de campo tambm

tenta cumprir com o mesmo objetivo, explicitar os caminhos percorridos para

encontrar e registrar as informaes em campo. Primeiro, apresento a experincia de

submeter o projeto de pesquisa a um Comit de tica em Pesquisa, que cada vez

mais exigido em pesquisas sociais que se realizam em espaos hospitalares. A

apresentao desse tema visa contribuir com outras estudantes e pesquisadoras que

precisam traar esse caminho mas tm dvidas sobre as dificuldades envolvidas.

Depois eu escrevo sobre minhas primeiras incurses a campo, mostrando como foi a

minha entrada nesse lugar desconhecido. A terceira seo desse captulo trata das

mudanas de estratgia durante o trabalho de campo, que trouxeram uma mobilidade

para novos acessos no HRC. Por ltimo, eu trato das ferramentas de pesquisa,

mostrando como eu fiz registro da imensa quantidade de informaes que eu recebia

durante minhas incurses a esse hospital.

2.1 Submisso da Pesquisa ao CEP

A Resoluo n 196/96 do CONEP prev que todas as pesquisas realizadas

dentro de um hospital da rede pblica ou privada de sade precisam antes de tudo

passar pela aprovao de um Comit de tica em Pesquisa (CEP). Embora legalmente

qualquer CEP registrado na Comisso Nacional de tica em Pesquisa (CONEP) possa dar

o aval para a realizao de uma pesquisa em hospital4, os hospitais do Distrito Federal

costumam exigir (LIMA, 2010) que a pesquisa seja avaliada pelo Comit de tica em

Pesquisa da Secretaria de Estado de Sade do Distrito Federal (CEP/SES-DF), situado na

Fundao de Ensino e Pesquisa em Cincias da Sade (FEPECS).

Sabendo das dificuldades relativas incompreenso do ethos de pesquisa das

Cincias Sociais por parte de comits voltados para pesquisas biomdicas em sade

(LIMA, 2010; VIEIRA, 2010), escolhi passar a minha pesquisa pelo Comit de tica em

Pesquisa do Instituto de Cincias Humanas na Universidade de Braslia (CEP/IH). Este

4 Isso mudou um pouco com a implementao da Plataforma Brasil, como explico mais adiante.

14

comit foi criado para lidar com os desafios ticos especficos da pesquisa social

(COMIT, 2007). Depois de reunir todos os 11 documentos exigidos pelo CEP/IH, sendo

que um deles incluiu a necessidade de uma ida ao hospital relatada mais frente,

descobri que precisava submeter o meu projeto Plataforma Brasil.

A Plataforma Brasil uma base online de unificao dos registros de pesquisas

com seres humanos do sistema CEP/CONEP (BRASIL, 2012). Ela foi criada para

centralizar e informatizar a submisso de pesquisas aos CEPs e para o

acompanhamento das fases de campo das pesquisas submetidas. A exigncia da

utilizao da Plataforma Brasil era recente e os CEPs ainda estavam em fase de

transio na poca que iniciei os trmites no CEP/IH. Quando tentei fazer uso da

plataforma, reparei que, apesar da suposta modernizao da burocracia para o envio

de pesquisas aos CEPs, alguns velhos problemas com CEPs (VIEIRA, 2010) continuavam

a existir e apareceram problemas novos. Apesar de poder selecionar a rea de minha

pesquisa, os formulrios que precisei preencher ainda no eram adequados pesquisa

social. Na poca, o item que define a qual CEP a pesquisa ser indicada, que

corresponde a instituio proponente, tinha como nicas opes relacionadas UnB

a Fundao Universidade de Braslia (FUB), a Faculdade de Medicina (FM) e a Faculdade

de Cincias da Sade (FS), ou seja, era necessrio que eu marcasse a opo sem

proponente para que o CONEP tomasse a deciso por qual CEP utilizar. Isso quer dizer

que era impossvel que eu garantisse que o CEP escolhido fosse voltado para pesquisa

social. Embora a escolha pela rea de humanidades fizesse com que se descartasse o

preenchimento de alguns campos considerados desnecessrios para pesquisas sociais

(como, por exemplo, se haver o uso de placebo), a linguagem do formulrio ainda

mais compatvel com pesquisas das cincias duras. Outra dificuldade do site que

no possvel formatar o texto do projeto, dificultando o uso de referncias

bibliogrficas e outros recursos. Aps ter enviado o projeto pela Plataforma Brasil,

mandei um e-mail ao CEP/IH relatando as dificuldades. Pelo fato de ainda estar num

perodo de transio, foi possvel fazer a submisso da pesquisa pelo sistema antigo e

em cerca de quinze dias aps o envio dos documentos ao CEP/IH recebi a carta de

aprovao de meu projeto. No foi necessrio fazer modificaes no meu projeto ou

nos meus documentos, pois estes estavam de acordo com as normas desse CEP.

No tive problemas por no ter passado a minha pesquisa pelo CEP/SES-DF

15

(normalmente referido por CEP da FEPECS). No dia em que fui coletar a assinatura do

diretor do hospital para um documento exigido pelo CEP/IH, a secretaria da diretoria

geral do HRC recomendou que eu passasse pelo Ncleo de Ensino e Pesquisa em Sade

(NEPS) desse hospital, porque l me indicariam que passasse pelo CEP da FEPECS. Eu

respondi que o documento que eu trazia para o diretor do hospital assinar era

justamente para submeter a pesquisa a um CEP e no tive problemas com isso. Preferi

no ir ao NEPS nesse momento, pois eu sabia que no existia a obrigao de passar a

minha pesquisa pelo CEP/SES-DF e talvez no NEPS fizessem essa exigncia. No

momento em que precisei ir ao NEPS, para conseguir um crach aps a aprovao da

minha pesquisa no CEP/IH, a funcionria pegou os documentos da pesquisa que eu lhe

entreguei5, olhou para a folha de rosto da pesquisa e me perguntou: passou pela

FEPECS, n?. Eu falei que passei pelo comit de tica do IH, da UnB. Ela olhou

novamente para os documentos, que estavam bem organizados e bem apresentados, e

isso pareceu ser suficiente.

2.2 Entrando em campo e estratgias de trabalho

O que mais me preocupava no momento de pensar a minha entrada em campo

era a necessidade de superar minha dificuldade de falar com pessoas desconhecidas.

Eu j havia ido at o HRC no ano anterior para fazer a devoluo de uma entrevista6 e

aproveitei para conversar com um obstetra do hospital que havia recm-terminado o

mestrado no Departamento de Antropologia da UnB, indicado pela professora Soraya,

para sondar a possibilidade de fazer minha pesquisa nesse hospital. Nessa mesma

visita, presenciei uma mulher aos prantos por acabar de saber que sua sogra havia

falecido. Sabia que estava me deparando com uma cena que possivelmente se repetiria

no cotidiano das pessoas que trabalham ali e, apesar de j ter ouvido algumas vezes

que trabalhadoras da sade encontram modos de lidar com isso, me parecia impossvel

no ficar comovida. Eu notei que algumas das mulheres que trabalhavam no hospital e

5 Explico melhor sobre esses documentos mais frente, neste mesmo captulo.

6 Em 2011 fiz parte de uma pesquisa de extenso que contou, em sua equipe, com a professora

Soraya Fleischer e as estudantes de graduao Natharry Almeida, Monique Batista, Polliana Esmeralda, Marcos Alvarenga e eu. Realizamos entrevistas com funcionrias de um Centro de Sade da Ceilndia e, durante as fases finais da pesquisa, entregamos para cada pessoa entrevistada a transcrio integral da gravao de sua entrevista.

16

tentavam consolar a mulher me pareciam bastante envolvidas pela expresso em seus

rostos.

Depois da primeira vez que visitei o hospital e antes do meu primeiro dia de

trabalho de campo, fui at o HRC para conseguir que o diretor geral do hospital

assinasse a minha carta de aceite institucional necessria para a submisso do meu

projeto ao CEP. Tendo ligado vrias vezes para o hospital para descobrir em que horrio

eu poderia ser atendida e sendo direcionada vrias vezes a uma linha que no atendia

a chamada, recorri a uma colega feminista que trabalhava como assistente social no

HRC. Ela falou com a secretaria da diretoria do hospital e me passou um dia e horrio

em que o diretor estaria no hospital e disponvel para falar comigo. Assim consegui

facilmente a assinatura. Eu levei o projeto da pesquisa caso o diretor quisesse l-lo,

mas ele foi direto para a folha de aceite institucional, leu rapidamente e assinou.

um aprendizado muito importante para o desenvolvimento de pesquisas

sempre que necessrio utilizar a prpria rede de contatos para conseguir informaes

sobre onde, quando e com quem falar. Em uma instituio altamente burocratizada

essas informaes podem ser muito importantes. Existem diversos ncleos, a maioria

com tarefas bastante especializadas, as funcionrias geralmente esto ocupadas com

elas e em geral no dispem de muito tempo pra falar com pessoas desinformadas

(apesar disso, pude observar certa propenso para se falar com propagandistas de

medicamentos7). Porm, ocasionalmente pode aparecer uma funcionria

especialmente solcita e contatos como esse podem ser muito importantes para a

pesquisadora, ainda mais para quem no possui contatos internos. No meu caso essa

foi a nica ocasio em que precisei me valer da ajuda dessa colega e depois tive ajuda

importante de trs funcionrias s quais sou muito grata.

Estando em uma instituio que valoriza muito os documentos, achei

importante, no momento de apresentar a pesquisa para a chefia de enfermagem do

Pronto Socorro da Ginecologia (ou PS da Gineco, a alcunha utilizada pelas

funcionrias do local, que tomei emprestada), reunir cpias dos documentos utilizados

para a submisso da pesquisa ao CEP, incluindo um com a assinatura do diretor do

7 Propagandistas de medicamentos, ou representantes farmacuticas, so personagens

frequentes em minhas observaes de campo, pois alm de terem uma alta circulao no hospital, passei a utilizar algumas de suas estratgias de aproximao de mdicas e funcionrias do hospital, como explico melhor frente.

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hospital, a carta de aprovao do CEP/IH e o meu projeto de pesquisa. Juntei esses

documentos dentro de uma pasta com a cpia da folha de rosto do projeto na frente.

Esses documentos foram muito importantes tambm na aquisio de um crach para

andar mais livremente pelo hospital. Nas primeiras idas ao HRC, eu sempre parava na

portaria principal para me identificar com um dos vigilantes que fazem a segurana da

entrada, explicando que estava fazendo uma pesquisa no hospital e dizendo aonde

estava indo. Na segunda vez que fiz isso, um vigilante pediu que eu fizesse um crach.

Quando a minha pesquisa foi aprovada pelo CEP/IH, tratei de procurar onde eu

poderia conseguir um crach, fui at o PS da Gineco e conversei com a Cludia, uma

auxiliar de enfermagem, branca, que estava trabalhando no balco de atendimento do

pronto-socorro. Eu falei que estava fazendo uma pesquisa no HRC e que gostaria de

fazer visitas ao PS da Gineco e entrevistar algumas funcionrias. A Cludia me disse que

eu deveria primeiro falar com a Fernanda, a enfermeira-chefe daquele local, e me disse

o horrio em que poderia encontr-la no pronto-socorro. Perguntei tambm onde eu

poderia conseguir um crach para identificao e ela explicou que eu deveria ir at o

Ncleo de Enfermagem. Passei pela situao clssica em uma instituio altamente

burocrtica, que ser encaminhada a um lugar e nesse lugar ser encaminhada a outro

e assim por diante. No ncleo de enfermagem me encaminharam ao NEPS, onde me

encaminharam para a diretoria do hospital, onde me encaminharam novamente ao

NEPS e ocorreu a situao descrita anteriormente em que a funcionria me perguntou

se eu havia passado minha pesquisa pelo CEP/SES-DF. Quando eu disse para a

funcionria do NEPS que na diretoria me disseram que a questo dos crachs servio

do NEPS (segundo essa funcionria da diretoria, os estagirios vo tudo pra l!), ela

comeou a fazer vrias ligaes para saber como ela resolveria isso. Ento me

encaminhou para a Direo Administrativa (DAM), onde fizeram mais ligaes e

falaram que eu deveria ir ao Ncleo de Cadastro Funcional e Financeiro (NUCAFF), que

estava fechado naquele horrio. Na visita seguinte ao HRC, eu fui at o NUCAFF, onde

permaneci pelo menos uma hora esperando para ser atendida. interessante assinalar

que, l, o fato de eu ter levado os documentos foi muito importante, pois era

necessrio que eu possusse provas de que tinha permisso para fazer pesquisa

naquele hospital. Naquele momento, os documentos foram realmente examinados e a

funcionria que me atendeu leu at mesmo o meu projeto de pesquisa, comentando

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posteriormente que achou a minha pesquisa muito interessante e importante. Eles

tambm forneceram as informaes para essa funcionria completar o meu crach. O

crach, que um Carto de Identificao Funcional, foi preenchido a mquina de

escrever, constando o meu nmero de matrcula da UnB (presente no meu projeto de

pesquisa) onde deveria ficar a matrcula na SES-DF, e, no campo Emprego/Cargo, os

dizeres Pesquisadora/Aluna de Antrop. (no havia espao o suficiente para escrever

Antropologia). O crach levou a minha assinatura e uma foto 3/4. interessante notar

que Alice Cidade (2010), que fez pesquisa no mesmo hospital, passou pelos mesmos

caminhos burocrticos que eu, dentro do HRC, com a diferena de que ela recebeu um

crach de estagiria da UnB.

Naquele mesmo dia, compareci ao PS da Gineco no dia e horrio indicados pela

Cludia e fui at a sala da chefia da enfermagem para encontrar a Fernanda (a

enfermeira chefe, branca), me apresentar e falar sobre a pesquisa. Entreguei a pasta

com os documentos e ela olhou um a um, dando uma olhada no meu projeto de

pesquisa e comentando que achou muito interessante, e ento expliquei um pouco

mais sobre o meu tema. Ela pareceu ficar interessada e perguntou quanto tempo eu

levaria pra terminar a minha pesquisa. Eu expliquei que planejava fazer o trabalho de

campo at o final de julho (de 2012) e que deveria terminar a monografia at

dezembro do mesmo ano. Ela pediu que eu lhe apresentasse a minha pesquisa no

incio do prximo ano (2013), quando ela teria voltado das frias, e me disse que

muito importante ter um retorno das pesquisas que se fazem ali, para conhecer melhor

o pronto-socorro8.

Outra estratgia, alm de portar documentos, foi a de usar roupas consideradas

mais srias pelo contexto em questo. Achei que seria mais fcil conseguir

entrevistas se usasse um vesturio um pouco mais formal. Eu normalmente aparento

ter alguns anos a menos do que realmente tenho, ento depois de terem me

perguntado duas vezes se estava fazendo um trabalho para a escola, achei melhor,

por exemplo, usar sapato em vez de tnis e camisa em vez de camiseta. Tenho a

impresso de que assim foi mais fcil o meu contato com as mdicas, at porque eu

comecei a usar roupas mais parecidas com as das propagandistas de empresas

8 Eu planejo preparar um relatrio de minha pesquisa para entregar a Fernanda e outras pessoas do

HRC que colaboraram com meu trabalho.

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farmacuticas, pessoas que percebi terem uma grande aceitao dentro do hospital. O

uso do crach tambm facilitava as coisas, pois alm de no precisar parar na entrada

do hospital para me identificar, quando eu explicava que estava fazendo a pesquisa, a

pessoa logo olhava para o meu crach e percebia que eu possua permisso do hospital

para estar l. O crach era uma autorizao visvel: rapidamente comunicava que eu

possua permisso para acessar e permanecer no HRC.

2.3 Mudando de estratgia

Na fase inicial do meu trabalho de campo, eu me dediquei a observar o espao,

conversando s vezes com algumas funcionrias que me foram receptivas e,

ocasionalmente, comentando algo com alguma paciente que se sentava perto de mim.

Com o passar do tempo, j mais familiarizada com o espao e com as pessoas que l

circulavam, comecei a interagir com as pessoas de maneira mais dinmica.

Na minha primeira visita ao HRC como trabalho de campo (aps a aprovao da

pesquisa no CEP), fui at o guich do Ambulatrio de Ginecologia9 para ter um

primeiro contato com as funcionrias desse setor, explicando o que eu estava fazendo

ali. Eu ainda no tinha uma ideia to ntida de como seriam meus mtodos de

aproximao das pessoas que eu entrevistaria, e expliquei para a funcionria Ftima,

auxiliar de enfermagem, branca, que estava iniciando uma pesquisa no hospital sobre

atendimento ginecolgico s mulheres lsbicas e bissexuais e perguntei se eu poderia

ficar no ambulatrio da ginecologia. Ela me perguntou se eu gostaria de ficar l fora

conversando com as pacientes ou se eu queria ficar l dentro do guich observando.

Ela parecia estar muito ocupada, ento disse que ficaria do lado de fora, experincia

que posteriormente me ensinou muito sobre as dinmicas daquele lugar, mas naquele

momento senti que havia perdido um bom acesso a um lugar do hospital, e demorou

at que eu conseguisse acess-lo novamente. Apenas dois meses depois eu consegui

uma boa entrada no ambulatrio, com a ajuda da Aurora, tcnica de enfermagem do

PS da Gineco, negra.

Outro exemplo de uma situao que me pareceu uma oportunidade perdida

9 O ambulatrio de ginecologia e o PS da Gineco so reas distintas do HRC. No prximo captulo

fao uma descrio desses dois espaos.

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ocorreu quando eu estava no PS da Gineco observando a dinmica de atendimento e

Fabiana, uma tcnica de enfermagem, branca, veio falar comigo: Apareceu uma dessas

que voc pesquisa aqui ontem. Pena que voc no estava. Em seguida, ela logo saiu

para outra rea do hospital. Achei estranho ela falar uma dessas e queria saber

melhor o que ela quis dizer com isso (me pareceu objetificante) e, alm disso, estava

interessada na situao. Fiz uma anotao para de lembrar de falar com ela depois,

mas a postergao dessa conversa durou mais do que eu pensava, pois um tempo

depois procurei por Fabiana e me avisaram que ela estava de frias. Quando eu

finalmente consegui, ela no mais se lembrava direito do caso, nem de que mdica

havia atendido a mulher sobre a qual ela havia se referido. Esse tipo de acontecimento

me fez pensar que em campo as oportunidades devem ser aproveitadas sempre e to

logo seja possvel.

Quando fui me tornando mais familiarizada com os espaos do HRC, mudei

algumas estratgias, como no ambulatrio da ginecologia, por exemplo. Depois de ter

conseguido um bom acesso ao ambulatrio da ginecologia, eu conseguia conversar e

fazer entrevistas formais com essas funcionrias, principalmente quando elas se

sentavam para fazer um intervalo do trabalho. Mas mesmo tendo grande simpatia por

parte de Aurora, que trabalha no guich do ambulatrio, e conhecendo bem o espao,

eu esperava aparecer algum, batia na porta (normalmente no atendiam) e, quando

tinha sorte, entrava. Quando eu no conseguia acesso, eu ia ao PS da Gineco, que com

o tempo passou a parecer um pouco repetitivo para mim. Essa situao mudou quando

uma vez eu estava sentada em um dos banquinhos de espera do ambulatrio, do lado

de fora, esperando algum aparecer e resolvi que eu ia entrar direto para o escritrio.

Eu j havia visto propagandistas de companhias farmacuticas fazerem isso vrias vezes

e havia cogitado a possibilidade, mas sempre achei falta de educao entrar em um

lugar sem ser convidada ou sem pedir permisso. Nesse dia eu vi pelo menos dois

propagandistas farmacuticos entrando direto (so figuras muito frequentes nesse

hospital), ento tomei coragem e entrei. Tive um timo dia de campo e percebi que eu

poderia entrar nesse ambulatrio sem bater, sem que as funcionrias de l achassem

que eu estava sendo invasiva essa era uma forma comum de entrar naquele espao,

apesar de me parecer ser vetada para pessoas desconhecidas e pacientes. Mas, ao no

ser repreendida, percebi que eu j era mais conhecida por estas funcionrias que, com

21

o tempo de pesquisa, se acostumaram a me ver por ali com frequncia.

2.4 Ferramentas de pesquisa

O meu trabalho de campo no HRC se iniciou em maro de 2012 e se encerrou

em julho desse mesmo ano. Foram 29 idas oficiais ao HRC e trs idas exploratrias,

que aconteceram antes da aprovao do Comit de tica em Pesquisa. Durante o

trabalho de campo entrevistei duas enfermeiras, trs tcnicas em enfermagem e cinco

mdicas (trs mulheres e dois homens). As entrevistas foram gravadas, porm metade

das entrevistas, por terem sido feitas em lugares muito barulhentos, no puderam ter

suas gravaes transcritas. Nessas ocasies, no momento da entrevista, percebendo

que a gravao no ficaria muito boa, eu tomava mais notas enquanto a pessoa

entrevistada falava e quando chegava em casa fazia um dirio de campo mais

detalhado, que inclua tudo o que eu podia me lembrar da conversa consultando as

notas e a minha memria. Assim, o gravador no se tornou uma ferramenta de registro

das entrevistas em que eu depositava toda a minha confiana. Durante o trabalho de

campo fiz uso intensivo de anotaes, que eram depois passadas a limpo para meus

dirios de campo. Alm disso, alguns de meus dirios de campo que eu escolhia foram

lidos com os devidos cuidados ticos de salvaguardar as pessoas envolvidas na

pesquisa por um grupo de orientao de estudantes de graduao e pela minha

orientadora. Os comentrios que eu recebi me ajudaram a criar novas perguntas e

buscar diferentes estratgias de aproximao com o campo. Tambm a oportunidade

que tive nesse grupo, de ler dirios de campo de outras estudantes, me mostrou outros

estilos e possibilidades de escrita.

A observao da dinmica de atendimento do hospital foi uma parte

importantssima de minha pesquisa, para captar sentidos que esto alm do discurso,

para ver situaes que, por serem naturalizadas pelas pessoas presentes no hospital,

escapam da fala e para ouvir coisas que eu no imaginava e por isso no poderia

perguntar. As conversas informais com pacientes nos bancos de espera e com

funcionrias do HRC no eram direcionadas e por isso podiam me mostrar novas

questes. Explico o que quero dizer com conversas pouco direcionadas. As

entrevistas formais foram conduzidas por um roteiro de perguntas, preparado um ms

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depois de ter iniciado meu trabalho de campo no HRC. Assim, pude conhecer melhor o

ambiente de pesquisa antes de direcionar questes mais especficas para as

entrevistas. O direcionamento do meu roteiro tambm foi importante nos momentos

de entrevista, mas as minhas perguntas e comentrios no se restringiam ao roteiro,

algumas questes surgiam com o decorrer da fala das pessoas entrevistadas. Para

todas essas entrevistas, eu apliquei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(TCLE), de acordo com as exigncias do CEP. Nenhuma das pessoas que eu entrevistei

pareceu ter problemas com o termo, mas deve-se notar que os cuidados ticos da

pesquisa no se iniciam nem se encerram com ele.

Todas essas foram ferramentas muito teis para pensar melhor o campo, depois

de terminar as minhas visitas, j em um processo mais reflexivo dos acontecimentos.

23

Captulo 1 - O trabalho de campo no Hospital Regional de Ceilndia

O Hospital Regional de Ceilndia fica localizado na Avenida Hlio Prates, uma

das principais avenidas da Ceilndia, uma cidade que fica a aproximadamente 36

quilmetros do Plano Piloto de Braslia, no Distrito Federal. A cidade constitui hoje uma

Regio Administrativa criada em 1971 como parte da poltica excludente da populao

invasora de Braslia pessoas que chegaram cidade sem auxlio do Estado

(RESENDE, 1998). A Pesquisa Distrital por Amostra de Domiclios 2010/2011

(CODEPLAN, 2011) indica que na Ceilndia vivem 398.374 habitantes, a regio

administrativa com a maior populao do DF.

1 Visitando o HRC

Chegando ao HRC, de carro, de nibus ou de metr, possvel reparar nas

diversas clnicas mdicas particulares instaladas nos prdios comerciais em frente ao

HRC e lojas de culos e de enxovais mame e beb. Seguindo a quadra comercial

possvel contar pelo menos cinco funerrias e uma igreja evanglica. Esse esquema

comercial parece estar altamente vinculado existncia de um grande hospital na

regio. Os trabalhos de Diogo Pereira (2008), que trata de itinerrios teraputicos entre

pacientes do Hospital de Base do Distrito Federal, e o de Alice Cidade (2010), que trata

da experincia de pacientes com cncer de mama no prprio HRC, mencionam a

grande frequncia com que pacientes de hospitais pblicos recorrem aos servios

particulares de sade especialmente em caso de realizao de exames como

alternativa s longas filas de espera da rede pblica de sade e at mesmo para realizar

exames que no esto disponveis nos hospitais pblicos de possvel acesso.

Quem avista o HRC apenas de frente no se d conta de seu tamanho, pois sua

construo se estende horizontalmente pelos fundos do terreno, contando com pisos

adicionais construdos para baixo por causa do declive sobre o qual foi construdo.

Pode-se entrar no hospital por lugares diferentes, pois o setor de ambulatrios possui

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uma entrada prpria, assim como os prontos-socorros, que possuem uma entrada para

cada especialidade: clnica mdica, cirurgia, ginecologia e obstetrcia, ortopedia e

pediatria. Cada entrada conta com uma equipe de segurana, que varia em nmero de

funcionrias10. Na entrada principal geralmente ficam duas vigilantes guardando a

portaria. Elas costumam abordar as pessoas que querem entrar e no possuem

identificao (como, por exemplo, um crach, jaleco ou maleta de medicamentos).

Por essa entrada principal, podemos acessar todas as reas do hospital. Se entrarmos

por a e seguirmos pelo corredor principal, logo esquerda vemos o corredor da

diretoria e outros setores administrativos do hospital como a chefia da enfermagem, a

Direo Administrativa (DAM) e o Ncleo de Ensino e Pesquisa em Sade (NEPS), e em

seguida a esse corredor est a porta do Servio de Assistncia Social. Se nos voltamos

direita, possvel ver o corredor do atendimento ambulatorial, o corredor da cirurgia,

onde existem vrias pessoas em macas enfileiradas ao longo do corredor, e logo depois

a porta de entrada ao Centro de Terapia Intensiva (CTI).

A seguir, irei detalhar dois espaos que ganharam importncia para a presente

pesquisa. Esses espaos, por estarem destinados ao atendimento ginecolgico e por

neles ter encontrado algumas pessoas abertas a minha presena e dispostas a

conversar, se tornaram o espao que eu passei a frequentar naquele incio de 2012.

Assim, apresentarei os espaos do Pronto Socorro da Ginecologia e o Ambulatrio da

Ginecologia e Obstetrcia.

Se continuarmos a caminhar pelo corredor principal, vemos direita a Unidade

Neo-natal e, ento, o corredor que leva ao pronto-socorro da ginecologia ou PS da

Gineco. Esse um corredor comprido e estreito, onde possvel ver equipamentos

obsoletos abandonados ao longo do caminho que esto esperando ser descartados. O

PS da Gineco um lugar bem espaoso e aparenta ser bastante organizado. H uma

concentrao de atividades no balco principal, onde ficam o computador com os

pronturios eletrnicos, a lista de chamada das pacientes que vo se registrando no

guich exterior da sala de matrcula e outras informaes. Nesse balco h um

microfone, por onde uma funcionria, geralmente uma auxiliar de enfermagem11,

10

Essa equipe possui uma quantidade parecida de funcionrios homens e funcionrias mulheres. 11

Na SES-DF no existe um quadro funcional para tcnicas de enfermagem, por isso o nome do cargo auxiliar de enfermagem, apesar de todas as profissionais que conheci que ocupam essa posio terem cursos tcnicos de enfermagem e no de auxiliar.

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chama as pacientes que esto na sala de espera seguindo a lista do computador. Atrs

desse balco ficam medicamentos e outros itens usados pelas enfermeiras e auxiliares

de enfermagem, como seringas, gaze, lcool, etc. No espao em frente ao balco ficam

bancos compridos de madeira laqueada branca para as pacientes se sentarem, a porta

para a sala de espera, os dois consultrios comuns, um consultrio relacionado ao

ambulatrio, para gestantes de gravidez de alto risco, a porta para a sala de espera,

uma sala para as pacientes que esto tomando soro ou algum medicamento

intravenoso, sala de exames, a rea de internao (que no possui porta), o centro

obsttrico (CO), a sala da chefia de enfermagem, a sala de apoio do pessoal da limpeza,

as salas de repouso de mdicas, mdicos e da enfermagem, a cantina e uma sala onde

as mdicas do CO assistem TV em seus intervalos. A entrada externa ao PS da Gineco

d direto para a sala de espera, onde as pacientes primeiro se dirigem para ter o

atendimento de emergncia. Essa sala possui um guich de atendimento (ou sala de

matrcula) que tem uma porta para funcionrias na parte interna do PS, um balco das

vigilantes ao lado da porta de entrada ao PS da Gineco e cerca de trinta cadeiras, onde

as pacientes conversam entre si enquanto no so chamadas pelo sistema de udio

interno do setor. A primeira espera das pacientes ocorre nessa sala. Quando elas so

chamadas para dentro do PS da Gineco, ainda precisam esperar para serem chamadas

pela mdica ou o mdico.

Quando uma paciente chamada e entra no espao interno do PS da Gineco,

sua presso medida por uma auxiliar de enfermagem e ento ela deve esperar at

uma mdica a chamar. Como infelizmente de praxe em hospitais pblicos, a espera

grande e muitas pacientes chegam cedo para serem atendidas, a no ser que esteja em

uma situao considerada altamente emergencial. Ainda assim, chegar cedo nem

sempre garante atendimento rpido. O pronto-socorro da ginecologia agitado

principalmente pela manh e especialmente s segundas e teras-feiras, segundo

algumas funcionrias por acumular pacientes que tiveram um problema e deixaram

para ir ao hospital depois do fim de semana. Todos os dias da semana o PS da Gineco

bem esvaziado de pacientes aps as 15h. Mesmo nos horrios menos corridos, sempre

h alguma paciente, e constantemente aparece uma mulher entrando em trabalho de

parto ou com dores de contrao.

Se voltamos ao corredor principal do HRC, podemos ter acesso ao corredor do

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atendimento ambulatorial. um corredor estreito, onde podem ser encontradas

algumas macas com pacientes da internao esperando para ser atendidas em uma

consulta ou exame. Em horrios mais movimentados, os bancos que ficam ao longo do

corredor ficam cheios e algumas pessoas esperam de p. Mais ou menos no meio

desse corredor fica o ambulatrio da Ginecologia/Obstetrcia, que constitudo por

trs consultrios mdicos e de um guich de atendimento que d acesso a um espao

de convivncia das funcionrias, onde se encontra uma TV, e mais atrs ficam

guardados os instrumentos mdicos e a entrada interna para os consultrios. Por todo

esse espao que ao mesmo tempo guich, escritrio e espao para lanche e descanso

nos intervalos, ficam vrios arquivos de metal com pronturios das pacientes. A

sensao que tive ao estar no ambulatrio da ginecologia de aperto. H pouco

espao tanto no corredor de atendimento ambulatorial quanto no escritrio e

consultrios da ginecologia e, principalmente nestes, as pessoas precisam se espremer

para passar entre as outras pessoas e os mveis. S pude observar os consultrios

quando a porta era aberta, j que era possvel ver o movimento a partir das cadeiras de

espera. Apesar disso, nas entrevistas com funcionrias e conversas informais com

pacientes, pude confirmar que estes consultrios esto sempre cheios, pois alm da

mdica e da paciente, mdicas residentes, estagirias e eventualmente auxiliares de

enfermagem ocupam a sala que no muito espaosa. O atendimento do ambulatrio

da ginecologia funciona pela manh e pela tarde, encerrando os atendimentos

geralmente s 15h.

Para uma melhor visualizao dos dois espaos, trago em seguida dois croquis

elaborados em fase de campo com a planta e parte da moblia (representei apenas

alguns mveis, como balces e bancos, estando a maioria da moblia excluda) do PS da

Gineco e do ambulatrio da ginecologia.

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PS da Gineco

28

Ambulatrio da ginecologia

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2 O atendimento no HRC

Nas minhas entrevistas inclu perguntas sobre a relao entre funcionrias e

pacientes e o atendimento ginecolgico no HRC para as pacientes em geral. As

respostas so todas de auto-avaliao positiva: o problema, quando aparece, est nas

colegas, nas pacientes, na Secretaria de Sade ou nas precariedades fsicas do hospital.

O problema est sempre na outra. Diante da situao menos propcia a comunicar

conflitos que uma entrevista formal (ainda mais quando a entrevista gravada),

importante contar com outras informaes para entender os problemas, que so

nesses discursos sempre originados de fora. A narrativa costuma ser, de incio,

dedicada a mostrar as situaes como mais prximas do ideal. Mas, aos poucos e,

sobretudo, em conversas mais informais foi possvel conhecer opinies um pouco mais

crticas. Sem trazer ao meu trabalho uma superexposio dos fatores negativos e de

pouca ateno s dificuldades de se trabalhar em uma instituio de sade, uma

ferramenta importante de compreenso do que se situa fora do ideal so os conflitos,

observados nas conversas informais e nos acontecimentos que pude presenciar, no

ambulatrio da ginecologia e no PS da Gineco.

2.1 Os conflitos

Armelle Giglio-Jacquemot (2005), que pesquisou o setor de Emergncia de um

hospital na cidade de Marlia (SP), nos fala sobre os conflitos causados por um

descompasso entre as expectativas de especialistas profissionais da sade e de

leigos pacientes sobre a urgncia e a emergncia mdica. Assim, ela nos

presenteia com uma rica abordagem desses dois conceitos sob diferentes perspectivas.

Os conflitos, muito presentes em minha pesquisa de campo, aqui sero importantes

ento para visualizar o atendimento no PS da Gineco e no ambulatrio da ginecologia.

Os conflitos relatados aqui no se restringem aos que ocorrem entre pacientes e

profissionais, mas tambm entre profissionais de categorias diferentes.

As pacientes falam frequentemente da espera, da frieza (ou mesmo da

30

violncia) do atendimento, da falta de privacidade nas consultas. As mdicas,

enfermeiras e auxiliares de enfermagem se queixam do estresse das pacientes, que

descontam tudo nas servidoras, do mau uso dos servios por parte das pacientes, da

falta de pessoal, que relacionada ao descaso da Secretaria de Sade, da precariedade

material.

No contato mais informal (em relao ao que tive com as profissionais) com as

pacientes que frequentaram os dois espaos onde estive mais presente no HRC, pude

perceber relaes positivas entre profissionais da sade e pacientes, mas tambm

houve uma forte presena de conflitos. A espera que as pacientes enfrentam para

serem atendidas uma fonte de sofrimento e conflitos em relao s funcionrias.

Principalmente em situaes em que as pacientes sentiam dor a espera era mais

conflitiva, o que era comum no PS da Gineco. Vrias vezes uma paciente era chamada

para dentro do pronto-socorro e ainda precisava esperar para ter sua presso medida

(as gestantes a partir do quinto ms de gravidez) e ser chamada pelo mdico ou

mdica. Por isso comentrios eram feitos entre as pacientes sobre sua situao, muitas

vezes comigo, que frequentemente me sentava nesses bancos de segunda espera, e

pedidos para serem logo atendidas eram feitos s auxiliares de enfermagem,

geralmente com queixas de dor. A falta de socorro diante dessas queixas ou a rispidez

das funcionrias causava frustrao e mais reclamaes.

Mesmo depois da espera as frustraes podem continuar, pois o atendimento

algumas vezes relatado como insatisfatrio. Em uma situao no PS da Gineco, vi uma

paciente ser chamada para o consultrio por uma mdica. Pouco depois que a paciente

entrou na sala, a mdica saiu e s voltou vinte minutos depois, situao que vi ocorrer

algumas vezes nesse pronto-socorro. Quando a consulta acabou, a paciente saiu e

voltou para o banco de espera, pois ainda precisava fazer um exame e conversou

comigo e outra paciente que esperava. Ela disse que a mdica foi rude com ela e que

lhe disse fala ligeiro que eu ainda tenho muita gente pra atender. A outra paciente

que tambm esperava relatou uma situao parecida. A solidariedade entre pacientes,

ali nos bancos de espera, foi muito observada em minhas idas ao HRC.

No ambulatrio da ginecologia no vi situaes onde as pacientes sentiam

muita dor, pois as consultas so marcadas com muita antecedncia ou ento a paciente

est ali para um retorno de consulta, que s vezes acontece sem a necessidade de

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marcao, mas para que assim acontea, necessria muita espera. Ainda que

marcadas, as pacientes chegam muito cedo, em geral s sete da manh, pois se o

horrio de expediente das mdicas, auxiliares de enfermagem e enfermeiras se

encerra, o atendimento acaba, mesmo que nem todas as pacientes tenham sido

atendidas. E caso algum que possusse consulta marcada no aparecesse, era possvel

ter sua consulta adiantada. Alm dessa espera e do atendimento dos mdicos e

mdicas, as pacientes reclamam principalmente da ausncia de pessoas no guich de

atendimento. Vrias vezes eu via pessoas chamarem na frente da porta procura de

informaes e no conseguirem resposta. Como comentado no captulo anterior, isso

aconteceu inclusive comigo e se encerrou quando aprendi que poderia entrar na sala

sem perguntar ou pedir licena.

Ao conversar com as funcionrias e ao observar suas rotinas de trabalho,

percebi que no possvel apenas tax-las de ms ou falar que agiam de m vontade

ao tratar das pacientes. No podemos ignorar a posio de poder que uma profisso da

sade d aos profissionais, que podem, sim, exerc-lo de maneira injusta ou violenta,

mas possvel ver empatia das funcionrias em relao s pacientes. E as condies

precrias de trabalho e a falta de pessoal no hospital esto por trs de vrias atitudes

que acabam por ser personalizadas por problemas de certas funcionrias. Alguns

conflitos mostram uma maior complexidade dos problemas:

Pela manh, depois de passar rapidamente no PS da Gineco para falar com Cludia, eu fui ao ambulatrio da ginecologia. Esperava a oportunidade de fazer uma ltima entrevista antes de encerrar a fase de campo. Ftima se sentou ao meu lado, parecia nervosa e mandava mensagens de celular para saber o que fazer com as pacientes da Dra. Helena e do Dr. Narciso. Ela comeou a comentar com Renata (outra funcionria do ambulatrio, que eu ainda no conhecia) que a Dra. Helena no havia aparecido e no avisou ao pessoal do ambulatrio da ginecologia antes. Ftima disse que a Dra. Helena tirou um dia de abono e avisou apenas a mdica chefe da ginecologia no hospital, no avisando as funcionrias do ambulatrio. O Dr. Narciso tambm no poderia atender como a Dra. Helena, mas estava no hospital, assistindo outro mdico em uma cirurgia, e Ftima descobriu o motivo de sua ausncia pouco depois de minha chegada, por uma funcionria de outra rea do hospital. Por essa falta de avisos internos equipe, ela no pde desmarcar as consultas do dia. Ftima e Renata reclamavam do que teriam que ouvir, que as pacientes ficam xingando e falando que elas ficam l dentro (no guich de atendimento) sem fazer nada. Ftima

32

continuou a queixa e disse: [As pacientes] nem sabem que aqui dentro a gente fica com o estmago remoendo, s a bile!. Ftima contou que as pacientes chegam s sete, no mximo oito horas da manh, olhou para o relgio e disse: Vinte para as dez! Elas vo ficar furiosas. Ftima saiu para fumar e conversei com Renata, que disse que muita sacanagem dos mdicos nem ao menos avisarem quando no puderem comparecer. Perguntei se elas teriam que remarcar as pacientes e a Renata disse que no tinha como, porque no havia mais vagas por um bom tempo. Quando Ftima voltou, disse s outras funcionrias que no queria mandar embora as pacientes sem ter ordens da chefe. Carolina (auxiliar de enfermagem, negra, que estava em seu primeiro dia de trabalho nesse setor) e Renata disseram que elas j teriam mandado as pacientes embora no lugar da Ftima, porque quanto mais demora pior. Carolina reclamava do fato de no serem os mdicos os que precisam mostrar as caras e dizer para as pacientes voltarem pra casa. Ela via essa situao como muito desgastante porque as pacientes descontariam tudo nelas. Apesar disso, logo ouvi as trs comentando que as pacientes tm razo de ficar bravas pela situao de se locomover at o hospital, esperar muito e sair sem a consulta. A chefe da ginecologia ligou para Ftima confirmando que as consultas deveriam ser canceladas. Carolina, Renata e Ftima juntaram todos os pronturios, que deveriam ser devolvidos s pacientes, e se prepararam para dar a notcia. Carolina, percebendo o nervosismo de Ftima, disse para ela: Pode deixar que eu fao isso, vai l fumar, vai. Ftima ouviu Carolina, pensou por alguns segundos e logo saiu porta e comeou a anunciar: Pacientes do Dr. Narciso e tambm as pacientes da Dra. Helena, as consultas de hoje foram canceladas. Ns vamos chamar uma a uma para devolver os pronturios. Ouvi um grande burburinho, vrias pacientes reclamando, e uma paciente disse: O que eu vou fazer agora? Eu trabalho, tive que deixar de ir pra vir pra c!. As trs funcionrias ficaram uns 20 minutos conversando com as pacientes e devolvendo os pronturios (Dirio de campo, 25/07/12).

Apesar do confronto direto ocorrer aqui entre pacientes e as funcionrias

auxiliares de enfermagem do ambulatrio da ginecologia, ntido o conflito entre essas

funcionrias e as mdicas e mdicos. Houve outras situaes em que auxiliares de

enfermagem se queixaram de comportamentos de mdicos e mdicas. Cludia, auxiliar

de enfermagem do PS da Gineco, branca, se queixou para mim em sua entrevista que,

para as pacientes, tudo culpa do auxiliar, que quem est na linha de frente com

elas [as pacientes]. O distanciamento dos mdicos e mdicas em relao s pacientes

parece proteger estas ltimas dos conflitos em relao s outras profissionais do

hospital. Esse distanciamento pode no acontecer apenas pela profisso mdica,

altamente prestigiada, mas tambm pela prpria organizao de espao do HRC e pela

33

diferena de raa e classe entre mdicas e pacientes, que apesar de existir, por

exemplo, em relao s auxiliares de enfermagem, me pareceu ser menos acentuada

entre estas ltimas.

Um conflito desse tipo me foi visvel quando Aurora, auxiliar de enfermagem,

negra, saiu de um consultrio esbravejando. Ela viu a minha expresso de curiosidade e

me disse que odeia mdico preguioso. Ento ela me contou que uma paciente

estava com uma cirurgia de laqueadura j marcada, mas o mdico pediu para que ela

fosse at o seu Centro de Sade para que o mdico da paciente verificasse a

necessidade da cirurgia e pediu para desmarcarem o procedimento, esperando essa

confirmao. Segundo Aurora, isso no era necessrio, pois a cirurgia j estava

marcada e ele prprio poderia fazer um exame, conversar com a paciente, em vez de

fazer a paciente andar de um lado para o outro. Ela reclamou que o mdico s fazia

exceo para paciente bonitinha, que ele deveria trabalhar direito com todas as

pacientes, e me disse que estava com muita raiva. Aurora disse que colocaria o mdico

para trabalhar e deixaria tudo marcado, para no ter como o mdico deixar de atender

essa paciente direito.

Quando perguntei para Daniela, auxiliar de enfermagem do PS da Gineco,

negra, se ela achava que tinha uma boa relao com as pacientes do PS, ela me disse

que muito boa, que nunca houve uma sindicncia contra ela, que ela nunca precisou

ir para a delegacia como j viu acontecer com colegas, que nunca entrou em uma

discusso. Ela me explicou que sindicncia um processo que pacientes fazem contra

as funcionrias pblicas e que isso acontece quando a funcionria agredida

verbalmente por uma paciente e d prosseguimento briga, discutindo com a

paciente. Nesse relato de Daniela, as funcionrias apenas cometeriam o erro de no

conseguir relevar os erros das pacientes, que j esto desde o princpio erradas. Ela fala

como se as agresses pudessem partir inicialmente apenas de pacientes. Esse aspecto

pode ser interpretado como uma tentativa de defender as colegas de maiores

acusaes. Mas, alm disso, o primeiro fato apontado por uma funcionria para

mostrar que a relao entre ela e as pacientes considerada boa a ausncia de um

processo contra ela por parte de pacientes. Isso nos faz perceber a presena constante

de conflitos desse lugar.

Uma explicao para o problema do descompasso entre a demanda e a oferta

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dos servios de sade do pronto-socorro de ginecologia dada por algumas funcionrias

o mau uso do servio por pacientes com problemas que no teriam a urgncia

necessria para um atendimento de PS. Segundo elas, seriam problemas passveis de

resoluo na ateno bsica, isto , nos centros de sade. Um exemplo disso a fala da

entrevista de Daniela:

Luiza: Voc acha que mais difcil atender pacientes que esto com dor? Daniela: Mais difcil? No, no. Eu acho at, assim, eu digo, mais complicado voc ter que fazer a medicao em uma que a gente v que no tem nada. Existem n casos que s vezes vm at aqui por causa de um atestado. E s vezes me atrapalha. Se, por exemplo, eu estou atendendo uma paciente aqui, voc v que ela no t com dor, que ela no t tendo nada, que ela veio aqui, que ela s quer um atestado na mo... Enquanto que tem a segunda depois dela que est ali se torcendo de dor, com sangramento e tudo enquanto eu ainda estou com ela que no tinha nada... Simplesmente veio com uma pequena dor, na barriga, no baixo ventre. E a gente sabe que por isso que tem casos que a gente ignora: "Isso aqui no aqui, minha filha, esse caso seu num centro de sade". Ento quer dizer, termina fazendo ali aquele tumulto. Enquanto eu poderia estar com uma que est bem pior. (Entrevista, 19/04/12).

Essa compreenso de Daniela no isolada e esteve presente na fala de outras

profissionais do HRC que conheci durante a pesquisa. O entendimento por parte de

profissionais da sade de que a demanda das pacientes inadequada foi investigado

na pesquisa de Giglio-Jacquemot (2005). Segundo ela a populao acusada por

profissionais da sade, autoridades sanitrias e pela mdia de ser responsvel pela

sobrecarga dos prontos-socorros, que tem a sua funo desvirtuada com o mau uso de

seus servios (GIGLIO-JACQUEMOT, 2005). A autora explica que o povo (designao

feita por profissionais) tem suas prprias concepes de urgncia, que so entendidas

como ignorncia pelas pessoas peritas. Para Giglio-Jacquemot (2005), o que acontece

um descompasso entre especialistas (que possuem legitimidade institucional) e

leigos (pacientes). Esse processo desemboca em tenses e conflitos entre

profissionais de sade e usurias, em vez de deixarem essas esferas do contato

interpessoal e alarem esferas da gesto da sade.

A presena de conflitos diversos, no apenas entre pacientes e profissionais,

mostra que existem relaes de conflito diversas. A diferena de poder entre as

profisses cria privilgios que so questionados pelas funcionrias que no os

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possuem. A polarizao entre pacientes e profissionais da sade nem sempre til

para a reflexo, pois pode esconder outras dinmicas de poder.

2.2 (Falta de) Privacidade nas consultas

Durante meu trabalho de campo, algo que me chamou a ateno no

atendimento ginecolgico ali do HRC foi a variedade de situaes em que as pacientes

foram expostas. Por exemplo, vi mdicas deixarem o consultrio com uma paciente l

dentro e a porta ter ficado aberta. Notei que mdicas e outras profissionais entravam e

saam dos consultrios de colegas sem bater na porta (deixando, em seguida, a porta

aberta). A sala de internao do PS da Gineco no possua porta, deixando as pacientes

totalmente expostas a quem passava pelos corredores. E, no caso do ambulatrio da

ginecologia, a grande quantidade de pessoas dentro de um mesmo consultrio era

costumeiro. Um trecho do meu dirio de campo que exemplifica um caso desses:

Em uma tarde pouco movimentada no PS da Gineco eu estava sentada no banco de pacientes logo em frente s portas dos consultrios para observar um pouco a dinmica entre funcionrias e pacientes. Um tempo depois um homem branco que parecia ser mdico (logo confirmei a suspeita, ele o Dr. Mateus.), mas que no usava um jaleco, entrava na rea do PS conversando com um vigilante. Esse mdico falou algo como vou buscar os meus exames e foi entrando na sala em que uma paciente estava sozinha esperando a mdica sem nem bater na porta, nem avisar nem nada. E o vigia foi conversando com ele e entrou junto com ele no consultrio. Ento eu vi a Daniela comentando com a Edite, Chato esse vigilante. Ela viu que eu observava a conversa e me disse que ele (o vigilante) fala umas coisas feias pra a gente e comentou que respeito bom!. Esse mdico saiu junto do vigilante e foi para o outro consultrio, tambm sem bater (e nesse consultrio a Dra. Vernica estava atendendo uma paciente), mas o vigilante foi para a porta que d para a sala exterior do PS. Depois esse mdico foi embora, sem falar com nenhuma funcionria (Dirio de campo, 10/04/12).

Essa situao me chamou muito a ateno no dia em que aconteceu, mas com

o tempo percebi que era considerada normal pelas funcionrias do hospital (o que no

me deixou de causar estranhamento). Pelos comentrios que ouvia das pacientes,

apesar de ser comum, no deixava de ser um incmodo tambm para elas, pois

existiam, sim, reclamaes a respeito. A quantidade de estagirias e residentes nos

consultrios tambm era um aspecto que comprometia a privacidade de atendimento,

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como pode ser visto nesse trecho do dirio de uma visita matinal ao PS da Gineco,

dedicada a conhecer melhor as funcionrias dessa rea, ainda no incio de minha

pesquisa:

Sentei-me no banco em frente ao balco, porque os bancos prximos aos consultrios estavam lotados. Logo que me sento, ouo uma mulher falando uma paciente que no dia anterior estava com dores fortes de contrao e agora estava vestindo um avental de internao. Ela falava com outras pacientes que tambm usavam avental e esperavam com ela perto da sala de ecografia (eram umas quatro mulheres) e disse indignada: A gente no obrigada a servir de cobaia!. E depois perguntou para uma delas: Voc gostaria de ser atendida por um estudante? Se voc no quiser, no precisa. Um dia fui atendida e o mdico botava todos os estudantes pra vir ficar botando o dedo em mim, pra ensinar pra eles. Eu falei: Pode parar! (Dirio de campo, 14/03/12).

Essa paciente estava nitidamente enraivecida pela situao de cobaia em que

ela e suas colegas foram colocadas em relao s estagirias do hospital. Esse tipo de

situao tambm mencionada na monografia da Alice Cidade (2010), que em sua

pesquisa visitou o mesmo ambulatrio de ginecologia que eu frequentei durante meu

trabalho de campo. Cidade conta que uma das pacientes que foi perguntada sobre a

presena de estagirias e residentes informou que uma das vezes em que foi se

consultar, em uma situao de exame, quatro pessoas pegaram em seus seios, que

ficaram doloridos no dia seguinte (idem, p.26).

Vera auxiliar de enfermagem, branca, e, entre outras funes, trabalha com

atendimento de pacientes no guich, marcaes de consultas e organizao dos

pronturios no ambulatrio da ginecologia, assim como Ftima e Aurora (cada uma em

seu turno). Eu tive a oportunidade de entrevistar Vera, que mostrou uma viso muito

crtica do hospital e teve opinies divergentes em relao s outras funcionrias com

quem pude conversar. Em um momento de sua entrevista, em que falvamos sobre as

pacientes contarem ou no a sua orientao sexual nas consultas mdicas, Vera me

falou que a presena de muitas mdicas residentes e estagirias dentro dos

consultrios poderia dificultar a revelao da sexualidade de pacientes lsbicas.

Quando perguntei o porqu, ela me disse que para quase todas as pacientes esse

excesso de pessoas na sala j um grande incmodo, ainda mais nos exames. Por isso,

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ela pensa que para algumas pacientes lsbicas essa situao incmoda faria com que a

conversa sobre sexualidade fosse ainda mais difcil.

Alm de prestar ateno s falas de funcionrias sobre atendimento

ginecolgico, outras coisas entraram nas reflexes que possibilitaram o meu trabalho.

Nesse captulo, tentei oferecer uma mirada panormica sobre o atendimento nesses

dois locais do hospital: PS da Gineco e o ambulatrio da ginecologia. Com essa

apresentao do cenrio de pesquisa, no captulo seguinte entro na temtica de minha

pesquisa com um pouco mais de complexidade sobre o atendimento s mulheres

lsbicas no HRC.

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Captulo 2 - Sade e (in)diferena no atendimento ginecolgico para lsbicas

1 O que outras pesquisas dizem sobre a sade ginecolgica das lsbicas

A existncia de tratamentos inadequados, incompletos e discriminatrios

dispensados s lsbicas devido a sua orientao sexual-afetiva em consultrios

ginecolgicos foi revelada em vrias pesquisas, assim como o despreparo de

profissionais da sade para lidar com essas mulheres (BARBOSA & FACCHINNI, 2009;

KNAUTH, 2009; PORTELLA & FERREIRA, 2009). Daniela Riva Knauth aponta para o fato

de, depois de saber que a paciente lsbica, alguns mdicos preferem pular as

questes sobre uso de preservativo (2009, p. 58), afinal, segundo a fala de um mdico

por ela entrevistado, A mulher falou que homossexual, tu j no pensa mais em

DST (idem, p. 58).

Apesar dessa crena entre profissionais de sade, lsbicas no esto imunes s

DST. Pesquisas em sade sobre transmisso de doenas em mulheres que fazem sexo

com mulheres (MSM), mostram que mesmo entre mulheres que no tm relaes

sexuais com homens h muito tempo ou que nunca as tiveram, existem casos de

tricomonase, clamdia, HPV e um ndice alto de vaginoses bacterianas, com evidncia

de transmisso sexual dessas doenas (BAILEY et al, 2004; SKINNER et al, 1996; PINTO,

2004). Existem poucas informaes sobre a transmisso do vrus HIV em relaes

sexuais entre mulheres, consideradas de baixo risco para a infeco desse vrus, mas

existem pesquisas com estudos de caso que mostram que essa possibilidade deve ser

considerada e que os casais lesbianos sorodiscordantes, em especial, devem receber

recomendaes sobre mtodos de preveno da transmisso do HIV (KWAKWA &

GHOBRIAL, 2003). Nesse sentido importante a afirmao da pesquisa de Ana Paula

Portella e Vernica Ferreira, da ONG feminista SOS Corpo:

Para a maior parte dos/as profissionais, as lsbicas estariam menos expostas s DST, seja porque nas relaes entre mulheres haveria menos troca de fludos corporais ou porque as relaes lsbicas seriam mais estveis e monogmicas. Estar menos exposta, porm, no significa estar

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imune e, nesse sentido, as lsbicas se deparam com dois outros problemas importantes: a ausncia de meios adequados de proteo e a menor procura por servios de sade. (PORTELLA & FERREIRA, 2009, p. 25)

As mulheres entrevistadas no trabalho de Portella e Ferreira (2009) e na

pesquisa de Ndia Meinerz relatam sobre a falta de mtodos adequados para a

preveno de DSTs e a dificuldade de acesso a alguns mtodos especficos j existentes

(MEINERZ, 2005; PORTELLA e FERREIRA, 2009), o que cria uma dificuldade especial

sobre essa questo.

Existem questes especficas de sade ginecolgica das lsbicas que esto alm

da transmisso de DST/Aids. A representao e as experincias negativas em relao

aos servios de sade, em especial na Ginecologia, afastam as lsbicas das consultas

(PORTELLA e FERRERA, 2009; BARBOSA & FACCHINI, 2009; KNAUTH, 2009). Nessas

pesquisas, possvel perceber que muito comum entre as mulheres lsbicas o medo

de procedimentos ginecolgicos invasivos e o receio da discriminao por parte de

profissionais da sade. Em duas pesquisas (KNAUTH, 2009; PORTELLA e FERREIRA,

2009) diversas entrevistadas contam que sentiram muita dor durante o uso do

espculo, em especial as que no praticam a penetrao. Nesses casos, a simples

pergunta sobre as prticas sexuais poderia sugerir o uso do espculo de virgem

(KNAUTH, 2009; PORTELLA e FERREIRA, 2009), um equipamento o que pode melhorar

as consultas mdicas no apenas para lsbicas, mas tambm para outras mulheres que

no praticam a penetrao. um exemplo o depoimento dado por uma das

entrevistadas de Portella e Ferreira:

Penetrao, nem mesmo com os dedos, da a dificuldade com o espculo. Os mdicos no deviam usar, a gente tem o direito de recusar fazer esse exame ou fazer de outro jeito, sem espculo. Ou com espculo de virgem ou com um especial para lsbicas, que j existe e no machuca. principalmente por isso que as lsbicas no vo pros servios de sade (PORTELLA e FERREIRA, 2009, p. 29).

Na mesma pesquisa existem dois relatos em que as entrevistadas sentiram que

a ginecologista lhes infligiu propositalmente a dor, por terem revelado ser lsbicas,

numa clara medida punitiva e lesbofbica.

Vrios depoimentos preocupantes sobre atendimentos mdicos dispensados s

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lsbicas esto presentes nas pesquisas. Os exemplos so diversos, como uma lsbica

que revela que foi atendida de porta aberta no consultrio ginecolgico, quando via

todas as pacientes anteriores sendo atendidas de porta fechada (KNAUTH, 2009), e

outra lsbica que sofreu uma tentativa de abuso sexual (idem). Tambm de uma

paciente que revelou sua lesbiandade mdica e esta ltima se assustou e no quis

realizar o exame na paciente (PORTELLA e FERREIRA, 2009). Outra paciente, por ter

revelado sua orientao afetivo-sexual, para conseguir um exame necessitou entrar em

confronto com a ginecologista, que disse que no era necessrio fazer-lhe o exame

preventivo porque ela no possua vida sexual ativa (idem).

Diante desse cenrio, algumas afirmaes da pesquisa de Ndia Meinerz (2009)

se mostram pouco cuidadosas. Analisando o discurso de mulheres lsbicas, sobre a

escolha de algumas de no revelarem sua sexualidade s mdicas e aos mdicos,

Meinerz afirma: Esses dados evidenciam que a atitude de algumas mulheres frente

aos profissionais de sade tambm contribui, de certa forma, para invisibilidade das

relaes homoerticas (2009, p. 3). Apontar para a contribuio das lsbicas para a

invisibilidade de suas prprias relaes ao no revelar sua orientao sexual sem

mostrar que muitas vezes no contar escolher se preservar de violncias possveis,

alm de deixar uma lacuna na compreenso do fenmeno, responsabiliza as mulheres

lsbicas por sua invisibilidade sem levar em considerao o apagamento constante da

existncia lesbiana (RICH, 1986)12.

Ao final de seu artigo, Meinerz faz a seguinte afirmao a respeito da pouca

utilizao de mtodos preventivos de DSTs e da baixa frequncia das lsbicas aos

consultrios ginecolgicos: Dado o exposto acerca da preocupao das mulheres com

a sade sexual e reprodutiva, a despeito da relativa freqncia ao ginecologista, sugiro

que predomina uma tendncia banalizao das doenas sexualmente transmissveis

(2009, p. 5, grifo meu). Considerando a precariedade dos mtodos preventivos

apontada por suas entrevistadas e por outras pesquisas (KNAUTH, 2009; PORTELLA e

FERREIRA, 2009) e os vrios motivos j apresentados para a baixa frequncia s

consultas ginecolgicas, falar de banalizao parece simplificar essas questes. Esses

fatores se somam baixa divulgao de informaes sobre mtodos de preveno de

12

Questes relacionadas ao apagamento da existncia lesbiana sero mais aprofundadas no prximo captulo.

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DST para mulheres que fazem sexo com mulheres, existindo apenas uma cartilha sobre

sade sexual voltada para lsbicas e mulheres bissexuais produzida pelo Estado

brasileiro. Essa cartilha (BRASIL, 2007) possui informaes muito superficiais sobre

sade, nenhuma apresentao de mtodos preventivos de doenas sexualmente

transmissveis e tampouco ilustraes (RABELLO, 2012a; RABELLO, 2012b). Existem

materiais mais completos, produzidos por ONGs, mas devido falta de recursos,

possuem baixa tiragem, ou seja, podem atingir apenas a um pblico limitado (idem).

2 Igualdade e (in)diferena no HRC

Durante o percurso de minha investigao dentro do HRC, a minha surpresa foi

a homogeneidade das falas sobre o atendimento ideal de sade em um hospital.

Pareceu-me que na viso das funcionrias da Ginecologia do HRC, pelo menos no

sentido de princpios, o atendimento realizado por elas o ideal: Aqui tratamos todas

as mulheres da mesma forma. Essa frase foi dita de vrias maneiras e em alguns casos

para invalidar a minha pesquisa como se ela fosse desnecessria, afinal, no existiria

qualquer problema nesse sentido. No haveria motivos para um atendimento

diferenciado porque essa diferena no existe. De acordo com essas funcionrias na

Ginecologia, todas as pacientes so tratadas como mulheres e isso o suficiente para

as lsbicas. A prevalncia da ideia de um atendimento universal e da inexistncia de

uma discusso sobre medidas equitativas na sade mostra que essa no uma noo

individual, ou seja, de certas funcionrias do HRC, mas que esses so provavelmente os

moldes ticos do ensino de sade.

Um exemplo importante o trecho de transcrio de uma entrevista no

PS/Gineco. Antes de entrarmos na sala da enfermagem para a entrevista, Rosa

enfermeira, branca me diz que no concorda com o tema de minha pesquisa, ento

comecei perguntando sobre isso.

Luiza: Mas ento o que voc estava falando antes? Voc acha que o tema no faz sentido pra voc? Rosa: No isso... A pesquisa pode ser feita, somos livres pra pesquisar o que queremos pesquisar. No isso. que no existe diferenciao [...]. Assim, tem gente que chega aqui e a gente tem que lidar de uma maneira tal [...]. Ou seja, [...] so idosas com uma, algum problema de

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idade ou algo que elas sentem uma prioridade. Ou paciente que t com princpio de contraes, t com sangramento forte. Ento h uma prioridade [...].