a experiência brasileira de privatização - armando castelar pinheiro

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  • Textos para Discusso

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    A EXPERINCIABRASILEIRA

    DE PRIVATIZAO:O QUE VEM A SEGUIR?

    Armando Castelar Pinheiro

    *Texto apresentado na Segunda Conferncia Anual de Desenvolvimento Global,realizada em Tquio de 10 a 13 de dezembro de 2000.O autor agradece os comentrios de Fabio Giambiagi.

    **Chefe do Departamento de Economia do BNDES, professor do Instituto de Economiada Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) e membro do

    Instituto de Estudos Econmicos, Sociais e Polticos de So Paulo (Idesp).

    Rio de Janeiro, novembro - 2000

    **

    *

  • Sumrio

    Resumo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

    Abstract . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

    1. Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

    2. Estatizao e Privatizao no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

    3. O Estilo Brasileiro de Privatizao: Pragmatismo ou Ideologia? . . . . . . . . 16

    4. As Fronteiras da Privatizao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

    5. Observaes Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

    Referncias Bibliogrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

  • Resumo

    Este artigo discute o processo de expanso e, depois, dedeclnio na participao das empresas estatais na economiabrasileira. Inicia-se argumentando que esses dois movimentosforam motivados, pelo menos no comeo, mais por pragmatismodo que por ideologia. Nacionalismo, falhas regulatrias e desejode aumentar os nveis de investimentos, especialmente na inds-tria e na infra-estrutura, estiveram entre as principais motivaespara a criao de estatais. A privatizao, por seu turno, esteveassociada de perto ao esforo de estabilizao e necessidade deexpandir o investimento. O artigo conclui argumentando que aocorrncia ou no de uma nova mudana de orientao na polticaeconmica ir depender do crescimento do investimento nossetores privatizados, o que, por sua vez, ir depender principal-mente da qualidade da regulao, ainda que outros desenvolvi-mentos, tais como a forma que o Judicirio e o mercado de crditovenham a operar, tambm possam vir a ter influncia.

    Abstract

    This paper discusses the expansion and then decline inthe participation of state-owned enterprises (SOEs) in the Brazi-lian economy. It starts arguing that both movements were moti-vated, at least initially, more by pragmatism than ideology.Nationalism, regulatory failures and the desire to rise investmentlevels, particularly in industry and infrastructure, were amongthe main motivations behind the creation of SOEs. Privatization,in turn, was closely linked to the stabilization effort and to theneed to expand investment. The paper concludes by arguing thatwhether or not a new shift in policy orientation occurs will largelydepend on the growth of investment in sectors that have beenprivatized. This, in turn, will depend mostly on the quality ofregulation, but other developments, such as the way the Judiciaryand credit markets come to operate, will also have a bearing onthis issue.

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  • 1. Introduo

    Para os cientistas polticos, os vrios esforos de privatiza-o que surgiram em todo o mundo nas duas ltimas dcadaspodem ser agrupados em trs categorias: sistmica, ttica epragmtica [ver, por exemplo, Schneider (1990b) e Feigenbaum,Henig e Hamnett (1999)]. As iniciativas do primeiro grupo tmobjetivos profundos e amplos e visam reformar as instituieseconmicas e polticas, como ocorreu no Chile, na Inglaterra e naNova Zelndia. Os casos tticos so aqueles em que a privatizaovisa aos objetivos de curto prazo dos atores polticos de cada pas,como, por exemplo, partidos polticos e grupos de interesses. Aprivatizao pragmtica, por sua vez, tende a sofrer menor in-fluncia da ideologia ou da poltica, sendo apenas uma das vriasalternativas em que a burocracia considera adequada para pro-mover os objetivos sociais.

    difcil afirmar em que categoria a privatizao brasileirase encaixa melhor. Arrastando-se pelos ltimos 20 anos, comreceitas totais de cerca de US$ 83 bilhes e aproximadamente170 empresas estatais transferidas para o setor privado, ineg-vel que a privatizao mudou substancialmente os cenrios po-ltico e econmico do pas. Particularmente no perodo 1996/98,quando portos, ferrovias, estradas, telecomunicaes e energiaeltrica foram transferidos para mos privadas, o Estado dimi-nuiu substancialmente seu peso sobre a economia, permitindo oestabelecimento de novos players nacionais e estrangeiros, comprofundas implicaes sobre o modo de operao dos mercadosde produtos, mo-de-obra e polticos.

    Entretanto, como j mencionado em outro artigo [Pinheiroe Giambiagi (2000)], a privatizao no Brasil foi, acima de tudo,uma resposta pragmtica aos problemas macroeconmicos decurto prazo, causados principalmente pelo estado de desordemdas contas fiscais do pas. Nesse sentido, ela no foi muitodiferente do processo de estatizao da economia no perodo quese seguiu Segunda Guerra Mundial, quando as empresasestatais eram vistas como um meio de fomentar investimentosem setores especficos. A ideologia e a busca de ajuste estruturalforam motivaes adotadas apenas por uma frao daqueles queeram responsveis por levar o processo adiante [Velasco (1997ae 1997b)]. Na prtica, muitas pesquisas de opinio mostraramque, ao longo dessas duas dcadas, uma fatia substancial doeleitorado se opunha privatizao. Em muitos casos, o motivopelo qual ela era tolerada devia-se percepo, correta em nossaopinio, de que a privatizao era til para se obter estabilidademacroeconmica e permitir uma recuperao dos investimentos.

    As privatizaes pragmticas, mesmo quando amplas,como no caso brasileiro, arriscam-se a ser menos durveis do queaquelas que refletem mudanas profundas na opinio da socie-

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  • dade sobre o papel do Estado. Analisando as privatizaes emtodo o mundo, Feigenbaum, Henig e Hamnett (1999, p. 173)concluram que muito do que ocorreu at o momento foi moldadopor motivos pragmticos e tticos, e... pode provar-se autolimita-dor, medida que aumenta a reao negativa do eleitorado. Acoalizo que levou a privatizao adiante muito mais diferentee desunida no que se refere aos motivos e interesses do que reco-nhece a retrica da revoluo da privatizao. Velasco (1997a e1997b) faz uma avaliao similar do caso brasileiro, destacandoas tenses subjacentes na coalizo que gerenciou a privatizaobrasileira. Na mesma direo, Baer e McDonald (1998) observamque, no Brasil, muitos dos setores que esto sendo privatizadosforam estatizados no passado e enfatizam a suscetibilidade dostatus quo ao humor poltico voltil, perguntando se, no futuro,veremos o pndulo oscilar novamente na direo de um modeloeconmico com uma forte presena do Estado na economia.

    O objeto deste artigo esse pndulo oscilante. Em parti-cular, analisamos as foras que o fizeram oscilar no passado,tanto em direo a uma interveno cada vez maior do Estado e,posteriormente, em direo privatizao. Aprofundando essaanlise, discutimos as maneiras como devemos esperar que opndulo oscile no futuro. Na Seo 2, revemos resumidamente asrazes que levaram ao estabelecimento das empresas estatais emvrios setores da economia brasileira e analisamos os primeirosmovimentos em favor da privatizao. Na Seo 3, argumentamosque a privatizao no Brasil atendeu s necessidades imperativasdo esforo de estabilizao, sendo mais do que resultado de umprocesso de converso ideolgica (embora estes no tenham sidoos nicos motivos). A Seo 4 discute a qualidade da regulamen-tao dos servios pblicos aps a privatizao. A seo finalanalisa a questo do quo durvel podemos esperar que a priva-tizao seja no Brasil.

    2. Estatizao e Privatizao no Brasil

    As empresas estatais existem no Brasil desde os temposcoloniais, mas a interveno do Estado na economia, atravs dacriao de estatais ou de outra maneira, foi relativamente peque-na at a chegada ao poder de Getulio Vargas nos anos 30. Como estabelecimento do Estado Novo, o liberalismo da PrimeiraRepblica deu lugar ao nacionalismo econmico, ao protecionis-mo, aos altos investimentos pblicos em infra-estrutura e setoresde insumos bsicos e criao de monoplios pblicos de pro-dutos como acar, caf, ch-mate etc. Nas dcadas seguintes, apresena das estatais na economia teve um crescimento cons-tante como resultado de vrios processos distintos:

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  • a) Desenvolvimentismo, especialmente a deciso de ins-talar um setor industrial diversificado no Brasil, com a criao deestatais em reas nas quais o setor privado no estava interes-sado ou no dispunha dos recursos financeiros para investir. Umcaso tpico foi o ao. O mesmo tipo de motivao estava por trsdos investimentos pblicos em infra-estrutura, como nas es-tradas.

    b) Preocupao com a segurana nacional, cujo mantovago cobria trs reas principais: preocupaes com a escassezde alguns produtos importantes durante a Segunda GuerraMundial, desejo de manter as indstrias consideradas estrat-gicas sob o controle do governo e deciso de limitar a participaode empresas estrangeiras na economia brasileira. Por exemplo, aFbrica Nacional de Motores, a lcalis, o Lloyd, o Servio de Na-vegao da Bacia do Prata e a Embraer foram empresas criadas,ou estatizadas, por esse motivo. O nacionalismo econmico, comorefletido na preocupao em manter a explorao do subsolo emmos brasileiras, determinou a criao tanto da CVRD como daPetrobras, respectivamente as maiores empresas de minerao ede petrleo do pas.

    c) Estatizao de empresas estrangeiras em reas nasquais a regulamentao no conseguiu atrair os nveis de inves-timento necessrios pelo grande crescimento econmico do Bra-sil. Exemplos so os setores de ferrovias, comunicaes e energiaeltrica.1 No entanto, esse movimento tambm atendeu s neces-sidades do argumento de segurana nacional, defendido porgrupos que temiam o controle desses setores por empresasestrangeiras.

    d) Falha regulatria do tipo oposto (isto , proteo exces-siva dos investidores), seguida pela estatizao. Isso ocorreuquando, por fora de contrato, a regulamentao obrigava gran-des transferncias de recursos pblicos para empresas estran-geiras, processo que enfrentou forte oposio poltica, como foi ocaso das ferrovias estatizadas no final do sculo 19 e incio dosculo 20. Nessa poca, o problema consistia na criao deobrigaes fiscais contingentes atravs da concesso de garantiaspblicas de um retorno mnimo para os investidores, com oEstado absorvendo a maior parte dos riscos envolvidos na opera-o de concesso.2

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    1 Para uma recente discusso sobre esse processo no setor de energia eltrica, ver Baer e McDonald(1998).

    2 Para atrair capital estrangeiro no sculo 19, o governo brasileiro fez uso da legislao que garantiauma taxa mnima de retorno, variando entre 6% e 7%, por um perodo de 60 anos. As ferrovias e asusinas de processamento de acar foram os setores que mais se beneficiaram desses incentivos.A garantia da taxa de retorno ... significava que uma das principais dificuldades enfrentadas pelocapital estrangeiro investido em uma economia fora do padro do ouro era parcialmente superada,j que a taxa de retorno efetiva no variava com as flutuaes da taxa de cmbio [Abreu (1996, p.9)]. Por volta do final do sculo, essas garantias se transformaram em uma obrigao poltica eeconmica para o governo, resultando na estatizao gradual das ferrovias [Baer e McDonald (1998,p. 505)].

  • e) Verticalizao e diversificao das atividades das gran-des estatais, motivadas pelo objetivo de ocupar espaos ociosos,elemento central da estratgia de substituio de importaes, epelo aumento de lucratividade das estatais, com a criao desubsidirias em setores com altas taxas de retorno. Esse proces-so, facilitado pela grande capacidade de autofinanciamento dasestatais, levou a um rpido aumento da participao do setorpblico em setores como papel e celulose, petroqumico, alumnioe transporte. A Reforma Administrativa de 1967 (Decreto-Lei 200)e o aumento das tarifas das estatais no final dos anos 60intensificaram esse processo, dando s empresas desses setoresa liberdade e os meios para se expandir.

    f) Estatizao de empresas falidas a maioria delas gran-des devedoras de bancos pblicos que operavam em setorespouco familiares administrao pblica, como hotis, usinas deacar, editoras etc. Subseqentemente, essas empresas exibi-ram uma notvel resistncia em retornar ao setor privado. Das268 estatais federais que existiam em 1979, 76 passaram s mosdo Estado dessa maneira, comparadas a um total de 40 criadaspor lei.

    No h um consenso na literatura sobre o fato de o rpidocrescimento do setor estatal brasileiro ter sido resultado de umaideologia de interveno do Estado ou causado por movimentossuperpostos, apesar de desconexos. Para muitos autores, emboraa poltica econmica tenha comeado a ser mais intervencionistacom o Estado Novo, o rpido crescimento do nmero de estataisno ps-guerra (havia apenas 20 estatais em 1940) no foi umfenmeno planejado nem o resultado de uma ideologia estatizante[Baer, Kerstenetzky e Villela (1973) e Cardoso (1973)].3 ParaMartins (1977, p. 26-27), no entanto:

    sempre houve uma ideologia de interveno do Estado (seja naforma de estatismo, nacionalismo ou desenvolvimentismo), em que oponto de referncia era o conceito da nao Foi por isso que, no planoideolgico, esses trs ismos aparecem com freqncia em uma formaentrelaada, como conceitos intercambiveis Entretanto, inexatodo ponto de vista histrico afirmar, como vem sendo recentemente feito,que as atividades comerciais do Estado surgiram no Brasil quase queacidentalmente e sem qualquer ligao com qualquer projeto polticodefinido.

    Longe dessa controvrsia, no entanto, a rpida expansodo setor estatal no causou qualquer preocupao significativa,pelo menos antes do final do assim chamado milagre econmico,que durou de 1968 a 1973. Em um artigo escrito no incio dos anos70, Baer, Kerstenetzky e Villela (1973, p. 281) afirmaram que:

    O crescimento contnuo da participao do Estado nas atividadeseconmicas no Brasil nas ltimas trs dcadas foi quase que inevitvel.O setor privado brasileiro ainda relativamente pequeno e no tem a

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    3 Cardoso (1973, p. 143), por exemplo, argumenta que aquela orientao poltica [concentrada nofortalecimento do papel do Estado como investidor], como j foi bem documentada, era mais umaresposta de curto prazo aos problemas prticos do que um conjunto coerente de projees baseadasem uma ideologia nacionalista.

  • capacidade para ter um papel importante nas enormes necessidadesde infra-estrutura do pas, ou ainda nas indstrias que utilizamtecnologias mais sofisticadas, que tambm so as mais dinmicas:petroqumica, ao, equipamento de transporte etc. Em breve, o cres-cimento do Estado no ser mais considerado como uma ameaa sempresas privadas brasileiras.

    Mas, como o milagre brasileiro, essa convivncia harm-nica entre os capitais estatal e privado j estava terminandonaquela poca. Com a deteriorao das condies econmicas, ea determinao do governo que assumiu o poder em maro de1974 no sentido de reduzir a influncia do setor privado nadeciso de alocao da poupana nacional, surgiriam em breveas primeiras objees contra a participao excessiva do Estadona economia. Eugnio Gudin, um conhecido liberal, eleito Ho-mem do Ano pela revista Viso em 1974, declarou na cerimniade premiao: Ns vivemos, em princpio, em um sistema ca-pitalista. No entanto, o capitalismo brasileiro mais controladopelo Estado do que em qualquer outro pas, exceto naquelessujeitos aos regimes comunistas. O discurso de Gudin seriaseguido por uma srie de artigos sob o ttulo conjunto de OsCaminhos da Estatizao, publicados no incio de 1975 peloinfluente jornal O Estado de S.Paulo, e pela Campanha contra aEstatizao movida pelos empresrios do setor privado.4

    No entanto, uma interpretao atenta dos argumentos dosempresrios mostra que esse foi, acima de tudo, um movimentocontra a desprivatizao, mesmo que parcial, do Estado. Assim,a excluso dos empresrios dos fruns de tomada de deciso foium elemento particularmente importante por trs de sua insatis-fao comeando pela composio do Conselho de Desenvolvi-mento Econmico (CDE), no qual apenas o presidente e algunsministros teriam assento a partir de 1974. Em particular, osempresrios do setor privado queriam ser ouvidos ao longo detodo o processo de deciso sobre a economia nacional, ajudandoa estabelecer os critrios para a atividade do setor estatal eprivado, orientando a utilizao das estatais e controlando suaexpanso, decidindo as direes para o investimento da suapoupana etc. [Pessanha (1981, p. 154)]. Entre as suas princi-pais sugestes para reverter o processo de estatizao, Pessanha(1981, p. 95-96) menciona a supresso de alguns privilgiosdesfrutados pelas empresas pblicas como a liberdade de investirrecursos e a iseno de alguns impostos, a limitao da suacapacidade de criar subsidirias, atravs do controle de diversi-ficao, a proibio da utilizao dos recursos originados daspoupanas compulsrias e outros incentivos fiscais. A venda das

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    4 Com a lembrana do sucesso da estratgia de interveno iniciada ao final dos anos 30, esperava-seque a continuao desse processo, como imaginado de modo provocativo por Baer, Kerstenetzky eVillela (1973, p. 282), seria um motivo de preocupao para a comunidade empresarial do setorprivado do Brasil: As recentes atividades de empresas gigantescas como Petrobras e CVRD,penetrando em setores relacionados atravs da criao de subsidirias, levantou questes. APetrobras, por exemplo, est se expandindo para vrias reas do setor petroqumico. No seriatotalmente impossvel que a Petrobras, um dia, expandisse suas atividades para hotis de pernoite,restaurantes e/ou estabelecimentos de distribuio de alimentos.

  • estatais, embora mencionada, veio acompanhada de tantasapreenses ou dvidas sobre a sua eficcia e os setores em quepoderia ocorrer que ela terminou por ter um papel apenas sim-blico no texto geral das propostas dos empresrios.5 A privatiza-o no era uma prioridade para eles.6

    A resposta do governo veio na proposta de fortalecer asempresas privadas nacionais atravs de subsdios de impostos ede crdito.7 Sobre a questo da privatizao das estatais, Pessa-nha (1981, p. 133) observou:

    A resposta contida no documento admite que est claro que oretorno ao setor privado deve ocorrer nos casos especficos identifi-cados, para caracterizar uma orientao poltica. No entanto, no aque reside a essncia do problema, j que garantir uma tendncia deestatizao para o pas dar fora e vitalidade s empresas brasileiras,que, acima de tudo, precisam de capitalizao, j que o problema dosespaos ociosos , com freqncia, uma expresso da falta de finan-ciamento de risco nas mos do setor privado nacional. Mas a trans-ferncia para o setor privado de empresas que especialmente aquelasem infra-estrutura (Petrobras, Eletrobrs e seu sistema, Telebrs e seusistema, CVRD, Usiminas, CSN, Cosipa etc.) esto em reas definidaspelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) como sendo deresponsabilidade social do setor pblico nunca foi considerada nempoderia ser considerada.

    Ir alm dessas medidas era visto como contrrio aosmelhores interesses do pas. Em outras palavras, o governocontinuou a perceber que era urgente industrializar o pas,ocupando setores considerados estratgicos e que, enquantoas empresas privadas nacionais no estivessem equipadas parafaz-lo, no era desejvel, do ponto de vista da segurana nacio-nal, que isso fosse feito por empresas estrangeiras. SeveroGomes, ento ministro da Indstria e Comrcio, comentou naocasio sobre o assunto da Campanha contra a Estatizao queprivatizar, hoje, seria desestatizar. Na mesma direo, MrioHenrique Simonsen, ministro da Fazenda e um conhecido liberal,observou, em resposta declarao de Gudin, que qualquerdiscusso sobre a privatizao ser sempre incua, se forem

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    5 Ironicamente, isso se deveu, acima de tudo, s crticas da natureza pr-lucro das estatais. Comoobservado por Pessanha (1981, p. 84), algumas estatais so acusadas de, em oposio s suasmetas (operar em atividades pioneiras e bsicas, mas de baixa lucratividade e com um horizonte detempo mais longo para retorno), buscar operaes na indstria dirigidas especificamente para aobteno de lucros, como no caso da CVRD, que sempre se recusou a participar em projetosdestinados ao fracasso, o que mesmo recentemente ocorreu no caso do projeto de cobre da Carabano Estado da Bahia [O Estado de S.Paulo (22.03.75)].

    6 Na opinio dos empresrios, algumas das razes pelas quais a privatizao no representava umasoluo eram a sua falta de recursos e a concentrao do crdito em bancos pblicos. Em umdocumento produzido pelos lderes empresariais, essa questo expressa da seguinte maneira[Pessanha (1981, p. 105)]: Ou a empresa do setor privado adquire as empresas estatais do governo,com fundos do prprio setor pblico, uma opo que tornar extremamente difcil escolher os novosproprietrios sem cair no paternalismo, ou os recursos j escassos do setor privado sero absorvidospela compra dos empreendimentos existentes, levando o governo a preencher os espaos ociososrecentemente formados com esses fundos. A experincia mostraria mais tarde a importncia de sefornecer financiamento aos compradores nacionais para viabilizar a privatizao. Isso aconteceu nosanos 80 com o financiamento do BNDES e, mais tarde, atravs dos instrumentos financeiros criadosutilizando-se moedas de privatizao e, mais tarde ainda, novamente atravs do financiamento doBNDES e at mesmo do prprio Tesouro.

    7 O fundamento lgico subjacente a essa posio foi apresentado no documento Ao para empresasnacionais do setor privado, preparado pelo CDE e publicado em 15.06.76.

  • deixados espaos ociosos, acrescentando que a origem da em-presa estatal no Brasil estava ligada ao objetivo de preencherespaos ociosos e no a motivos ideolgicos [Pessanha (1981, p.122)].

    No final dos anos 70, a situao macroeconmica do paspiorou novamente, transformando os controles da inflao e dabalana externa nas metas prioritrias, em detrimento do cresci-mento a curto prazo. A rpida expanso do setor comercial estatalera inconsistente com o objetivo da estabilizao, e at mesmo aidia de privatizao comeou a permear o discurso do governo,embora sem conseqncias prticas. Em uma mensagem paraseu gabinete logo aps tomar posse em maro de 1979, o presi-dente Figueiredo recomendou a adoo das medidas necessriaspara a privatizao das estatais e dos servios que no eramestritamente essenciais para corrigir as imperfeies do mercadoou para atender s necessidades da segurana nacional [Palat-nik e Orenstein (1979, p. 52)].

    Ainda em 1979, o governo decidiu refrear o crescimentodas estatais com a criao do Programa Nacional de Desburocra-tizao e da Secretria Especial de Controle das Estatais (Sest).Os motivos por trs dessa deciso eram diferentes daqueles que,posteriormente, levariam venda daquelas empresas, o queexplica a nfase na criao das agncias de controle e a poucaimportncia dada s agncias responsveis pela venda dos ativosestatais. O ponto em questo naquele tempo no era a ineficinciadas estatais, mas sim a necessidade de desacelerar a expansodo setor comercial estatal de maneira a controlar a demandaagregada, uma tarefa difcil em virtude da falta quase total decontrole dessas empresas pelas autoridades federais. O opiniopredominante foi bem refletida por Rezende (1980), que, apsrejeitar a hiptese de que a produo do setor privado intrin-secamente mais eficiente do que a do setor pblico (p. 35),observou (p. 37) que:

    Na prtica, todo debate sobre a necessidade de se limitar ocrescimento das funes do Estado reflete a incapacidade da adminis-trao pblica de controlar as aes das empresas do governo, cujasdecises de expanso fogem ao controle exercido durante a anliseperidica do oramento... Na medida em que as decises das empresasprivadas de investir em determinados setores esto subordinadas aocrdito pblico e/ou esquemas de incentivos fiscais, o controle dasdecises dessas empresas maior que o controle das decises dasempresas pblicas, cuja capacidade de mobilizar recursos lhes d umacerta independncia em relao ao poder central.

    Assim, no ocorreu uma mudana ideolgica radical nopapel desenvolvimentista do Estado, mas sim uma mudana nanfase da poltica econmica, imposta por mudanas que, at umdeterminado ponto, estavam fora do controle do governo. Aprioridade no era mais o crescimento e a substituio de impor-taes, mas o controle da inflao e, principalmente, a superaoda crise cambial. Como as estatais eram responsveis por umaparte considervel do investimento e do consumo internos, seria

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  • quase impossvel estabilizar a economia sem algum tipo decontrole sobre seus gastos e sem eliminar ou pelo menos reduzirseus dficits [Werneck (1987)].

    Os imperativos macroeconmicos em particular, a crisecambial teriam dois efeitos adicionais sobre as estatais. Antesda crise da dvida externa (1982), elas eram estimuladas acontrair emprstimos estrangeiros acima de suas necessidades,como um meio de financiar o crescente dficit em conta corrente.Com o aumento considervel de suas obrigaes externas, taisempresas foram seriamente ameaadas pelo aumento das taxasde juros internacionais a partir de 1979 e pela significativadesvalorizao da moeda aps 1983. Alm disso, desde 1975 ospreos dos bens e servios produzidos pelas estatais haviam sidoreduzidos em termos reais, inicialmente para controlar a inflaoe aps 1982 para subsidiar as exportaes de manufaturados.Assim, a utilizao dessas empresas como instrumentos de pol-tica macroeconmica com limites de seus investimentos, au-mentos de dvida, reduo nos preos reais de sua produo e,na prtica, uma perda de enfoque sobre seus objetivos comerciais levaria a uma deteriorao gradual porm contnua de seudesempenho, com a expanso da demanda reprimida e a perdada qualidade de seus servios.

    No entanto, apenas em 1981 a privatizao seria efetiva-mente includa na agenda da poltica econmica. Em julho domesmo ano, um decreto presidencial criou a Comisso Especialde Desestatizao e definiu as normas para transferncia, trans-formao e alienao das empresas controladas pelo governofederal. Os principais objetivos da Comisso eram fortalecer osetor privado, limitar a criao de novas estatais e fechar outransferir para o setor privado aquelas cujo controle pelo setorpblico no era mais necessrio ou justificvel.

    Uma vez organizada, a Comisso identificou 140 estataisque estavam prontas para ser privatizadas em curto prazo.Destas, 50 foram inicialmente includas na lista para seremvendidas. No entanto, o saldo efetivo dessa primeira tentativa deprivatizao no iria atingir nem mesmo esse nmero: no total,20 foram vendidas para investidores privados, uma foi arrendadae oito foram incorporadas a outras instituies pblicas. Nomesmo perodo, no entanto, seis empresas em situao falimen-tar foram incorporadas pelo BNDES atravs do que foi entochamado de operaes hospitalares. Em geral, as empresasvendidas eram casos de reprivatizao, e a lista no incluanenhuma das grandes estatais. As 20 empresas privatizadas noperodo 1981/84 totalizavam ativos de apenas US$ 274 milhes,empregavam um total de menos de cinco mil trabalhadores etinham uma receita de vendas de apenas US$ 190 milhes. Amaior receita (US$ 77,5 milhes) resultou da venda de um grupode empresas ligadas Riocell (polpa de madeira), enquanto a mais

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  • baixa foi resultante da venda da Fiao e Tecelagem Lutfala(apenas US$ 2 mil).

    A velocidade da privatizao no governo Sarney (maro de1985 a maro de 1990) foi similar de seu predecessor, apesarde uma retrica mais agressiva, como se refletiu na srie dedecretos presidenciais e projetos de lei que reestruturavam eampliavam o programa de privatizao. No geral, 18 empresasavaliadas em US$ 533 milhes foram vendidas, um nmerosimilar foi transferido para os governos estaduais, duas foramincorporadas por outras instituies federais e quatro foramfechadas. A maioria dessas empresas era de pequeno e mdioportes, em segmentos nos quais o setor privado era dominante ecuja privatizao foi decidida como uma maneira de melhorar asade financeira de seu proprietrio, a BNDESPAR, subsidiriado BNDES responsvel pelas operaes de mercado de capital.Seus ativos combinados totalizavam US$ 2,5 bilhes e, juntas,empregavam 27.600 pessoas.

    Ao avaliar a experincia brasileira de privatizao nos anos80, o Banco Mundial concluiu que o primeiro flerte do Brasil coma privatizao foi um clssico exemplo de fiasco [cf. World Bank(1989)]. Na prtica, tanto em termos de velocidade como deescopo, a venda das estatais nos anos 80 esteve muito aqum donvel prometido pelo discurso do governo. Alm disso, a maiorparte das vendas foi feita pelo BNDES, cuja motivao para aprivatizao estava mais relacionada sua necessidade de selivrar de empresas problemticas e deficitrias do que a umapercepo favorvel sobre a privatizao por parte do governo.8 Aprivatizao no era uma prioridade para o setor pblico.

    Assim, poder-se-ia argumentar que a privatizao realiza-da nos anos 80 era aquela possvel dadas as circunstncias, trsdas quais particularmente relevantes para a limitao da ampli-tude e profundidade da privatizao brasileira na sua primeiradcada:

    a) at a metade da dcada, as estatais continuaram amostrar um desempenho operacional relativamente bom, redu-zindo o escopo de ganhos produtivos no caso de sua transfernciapara o setor privado, o que, por um lado, limitou o apoio pblico privatizao e, por outro, reduziu o interesse dos investidoresprivados na compra dessas empresas;

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    8 Mrcio Fortes, presidente do BNDES no final do governo Sarney e uma figura central no avano daprivatizao em uma poca na qual o processo contava com pouco ou nenhum apoio, coloca a questoda seguinte maneira: Na realidade, a privatizao no era uma poltica central. Ela surgiu,primeiramente, pela necessidade do BNDES de gerar recursos de dentro de suas prprias holdingsde participaes e, segundo, obter liquidez para suas atividades normais e, terceiro, porque seuprprio gerenciamento interno foi grandemente enfraquecido pela capacitao da fora adminis-trativa necessria sua rotina diria. Essencialmente, ele era o proprietrio ou acionista majoritriode mais de 25 empresas altamente complexas [cf. Fortes (1994)].

  • b) o manto protetor da segurana nacional continuou acobrir as estatais durante quase toda a dcada, de maneira talque teria sido virtualmente impossvel vender grandes estataisenquanto os militares mantivessem sua influncia sobre o gover-no federal; e

    c) como bem caracterizado pela Constituio de 1988, umgrande segmento da sociedade brasileira, dos militares aos par-tidos de esquerda, continuava a ver, como Severo Gomes 10 anosantes, a privatizao como uma senha para a desestatizao daeconomia, julgando que as empresas multinacionais eram asnicas capazes de comprar as maiores estatais brasileiras, almde considerar o aumento da presena dos investidores estrangeirosna economia uma atitude contrria aos interesses nacionais.

    3. O Estilo Brasileiro de Privatizao: Pragmatismo3. ou Ideologia?

    A seo anterior mostrou que a percepo do papel doEstado na economia brasileira comeou a mudar de meados ato final dos anos 70 e que no foi coincidncia que, nessa poca,o motor de crescimento do Brasil comeou a emperrar, encerran-do o longo ciclo de crescimento iniciado nos anos 40. A deterio-rao contnua da economia em particular, a crise fiscal surgidano incio dos anos 80 ajudou a fornecer suporte privatizaobrasileira nos anos seguintes. Mesmo assim, anos de retrica eesforos de privatizao s produziram resultados muito modes-tos, que tiveram apenas um efeito marginal sobre a presena doEstado na economia. Somente empresas muito pequenas, emsetores nos quais o governo nunca deveria ter entrado, foramprivatizadas. O mais importante talvez seja o fato de que no haviaum firme compromisso poltico com a privatizao. Em 1989, oCongresso rejeitou a Medida Provisria 26, que sujeitaria todasas estatais privatizao, exceto aquelas que no poderiam servendidas por causa de restries constitucionais. Na prtica, aConstituio de 1988 foi claramente estatizante, estabelecendomonoplios pblicos nos setores de telecomunicaes, petrleo edistribuio de gs e impondo barreiras ao controle estrangeirodos setores de minerao e energia eltrica.

    No entanto, menos de dois anos aps a promulgao danova constituio, o governo Collor lanou o Programa Nacionalde Desestatizao (PND), ampliando significativamente o escopoda privatizao. Quais foram as causas dessa mudana radicalna viso oficial do papel do Estado na economia brasileira? Asrespostas a essa pergunta incluem as mudanas nos cenriospolticos nacional e internacional, a reorientao da estratgia de

    16 Texto para Discusso n 87

  • desenvolvimento econmico, a deteriorao do desempenho dasestatais e as necessidades da poltica macroeconmica.

    Dois aspectos notveis da discusso sobre a privatizaoso o fato de como a questo da segurana nacional e, em menorescala e com um ligeiro atraso, o argumento de que a privatizaolevaria desestatizao da economia perderam importncia nodebate pblico. Em vez disso, os oponentes da privatizaocriticaram os preos mnimos de venda das estatais, argumenta-ram que os riscos de se transferir empresas com poder de mercadopara o setor privado eram muito altos e questionaram os benef-cios da privatizao, particularmente no que se referia ao seuimpacto sobre a qualidade dos servios oferecidos. Mas pouco sefalou sobre o risco de desestatizao da economia brasileira eainda menos sobre as ameaas segurana nacional, apesar daalta participao do capital estrangeiro no processo desde 1995.

    Em grande parte, essa mudana pode ser creditada aoprocesso de democratizao, com o avano gradual do regimemilitar para o civil, juntamente com um ambiente internacionalcaracterizado pelo final da Guerra Fria. A importncia das pres-ses dos militares na criao das estatais remonta ao perodoVargas, e no foi por acaso que, em outros pases latino-ameri-canos, a privatizao tambm tenha progredido significativamen-te com a democratizao. O fato de o presidente Collor ter sidoeleito pelo voto popular, em contraste com a transio negociadaque possibilitou a ascenso de Sarney presidncia, tambm foiimportante para legitimar essa mudana de direo. O final doconflito Leste-Oeste tambm ajudou a reduzir as presses pelamanuteno de setores estratgicos, como telecomunicaes,petrleo e energia eltrica, sob o controle nacional e estadual. Omesmo processo foi testemunhado nos pases da OECD, es-pecialmente na Europa Ocidental [Nestor e Mahboodi (2000)]. Aesse respeito, provvel que a Constituio de 1988 apresentasseuma tendncia menos estatizante e contrria ao capital es-trangeiro se tivesse sido elaborada aps a queda do muro deBerlim e em um ambiente com menos influncia militar.

    A principal caracterstica da mudana dos modelos dedesenvolvimento no incio dos anos 90 foi a substituio de umaestratgia focada exclusivamente no processo de acumulao apresentada como uma preocupao de ocupar espaos ociosos para outra mais voltada para o aumento da eficincia e daprodutividade. Conseqentemente, a mera existncia de umaempresa estatal como instrumento de poltica econmica nofazia mais sentido, pois, se ela serve para acumular capital, ela ofaz custa de um alto nus sobre a eficincia. Assim, no foi umasimples coincidncia que o PND tenha sido lanado simultanea-mente liberalizao do comrcio e significativa desregulamen-tao da economia interna, juntamente com o trmino dos mono-plios pblicos em setores como acar, lcool, caf, trigo etc.

    Texto para Discusso n 87 17

  • Alm disso, ficou claro no incio dos anos 90 que o Estadohavia exaurido sua capacidade de liderar o processo de acumu-lao, j que no era capaz de gerar supervit fiscal nem contrairemprstimos externos. O financiamento das estatais desapareceupor outra razo menos bvia: porque virtualmente todo o crditode longo prazo no Brasil era (e ainda ) concedido pelos bancospblicos. Como estes no conseguiam executar as garantiasdadas pelas estatais, por motivos polticos e legais, elas no sepreocupavam em pagar os emprstimos.9 Assim, na metade dosanos 80, os bancos pblicos foram proibidos de conceder emprs-timos s estatais, secando sua ltima fonte de recursos. Nessapoca, a privatizao tornou-se o nico meio atravs do qual osbancos pblicos poderiam financiar os setores em que a presenadas estatais era macia tornando-se privadas, tais empresaspoderiam oferecer confiavelmente seus ativos como garantia.Essa foi a base comum que permitiu uma coalizo ttica entreaqueles que acreditavam que o Estado deveria abandonar perma-nentemente as atividades comerciais e aqueles que viam a priva-tizao como um mal necessrio.

    A deteriorao do desempenho das estatais na dcada de80 tambm contribuiu para aumentar o apoio dado privatiza-o. Na segunda metade da dcada, um grande nmero de cargosde diretoria foi preenchido por nomeados polticos com poucashabilidades administrativas que, em geral, permaneciam nosseus postos apenas por um curto perodo. Raramente, eles eramde facto subordinados ao ministro do setor e, ainda mais rara-mente, eram remunerados com base no desempenho econmico-financeiro das empresas que gerenciavam. Alm disso, com orelaxamento das restries fiscais, vis--vis o incio da dcada, asestatais voltaram a operar com oramentos flexveis, e o governofederal vinha em sua ajuda quando necessrio. O investimentofoi o nico tipo de gasto mantido sob controle. Como resultado,as estatais desenvolveram novos vcios sem recuperar suas anti-gas virtudes, vcios que ficaram ainda mais evidentes com oprocesso de liberalizao do comrcio, que revelou ineficinciaspreviamente ocultas pelas posies de monoplio das estatais.10

    No obstante, a principal fora motriz para superar ainrcia e ampliar o escopo da privatizao foi o fraco desempenhoda economia no final dos anos 80 [Pinheiro e Giambiagi (2000)].

    18 Texto para Discusso n 87

    9 Na verdade, as estatais falharam no apenas em pagar os bancos pblicos, mas tambm seusfornecedores: a siderrgica no pagava seu fornecedor de eletricidade, que no pagava a empresageradora de energia, que, por sua vez, no pagava a empresa que fornecia o combustvel, e assimpor diante. E os credores pouco podiam fazer alm de exercer presso poltica, tambm porquelegalmente no podiam pedir a falncia de uma estatal. Com o aumento das obrigaes, essesmltiplos inadimplementos eram resolvidos com a transferncia das dvidas para o Tesouro, custa dos contribuintes.

    10 A abertura das importaes tambm ajudou a aumentar o apoio do comrcio privatizao. Quandoa economia era fechada, todas as empresas estavam igualmente ameaadas, por exemplo, pela baixaoferta e pela qualidade ruim dos servios de telecomunicaes. Assim, esse no era um diferencialimportante na sua capacidade de competir. Com a liberalizao do comrcio, a baixa qualidade dosservios pblicos tornou-se uma barreira competitividade para o setor privado, dando origem expresso custo Brasil.

  • Primeiro, porque isso limitou o grau de liberdade do governo naconduo de polticas intervencionistas, forando-o a adotarestratgias de desenvolvimento mais voltadas para o mercado.Segundo, porque isso aumentou a necessidade de controlar osgastos das estatais, em uma poca em que essas empresasprecisavam de investimentos macios para expandir e modernizarsua capacidade de produo.

    Em particular, a lgica original do PND estava diretamenteligada ao programa de estabilizao lanado no incio do governoCollor, o que explica a deciso do novo governo de privatizarrapidamente e independentemente da situao macroeconmicainstvel da poca. Por um lado, a receita fiscal aumentou com acriao dos Certificados de Privatizao, um ttulo compulsrioadquirido pelos intermedirios financeiros e que poderia serutilizado apenas para adquirir aes das estatais. Por outro, eainda mais importante, o governo esperava reduzir drasticamentea dvida pblica aceitando os ttulos da dvida pblica comomoedas de privatizao, reduzindo assim o dficit fiscal e conso-lidando a estabilidade de preos. As principais moedas de priva-tizao foram as dezenas de bilhes de dlares da poupanaprivada, denominadas em cruzados novos, a velha moeda, queforam temporariamente congelados no Banco Central como partedo programa de estabilizao lanado simultaneamente com oPND. Esperava-se que essa poupana congelada, prevista paraser devolvida em 12 parcelas, com incio em novembro de 1991,garantisse, por sua vez, uma alta demanda pelas aes dasestatais.11

    A sinergia entre a estabilizao e a privatizao estavafadada ao fracasso por problemas em ambos os programas. Aprivatizao comeou com metas muito otimistas em termos dereceita e cronograma, que se mostraram impossveis de seremcumpridas devido precria situao financeira das estatais e complexidade do acordo de acionistas dessas empresas.12 Asestatais no estavam prontas para a venda, precisando de umlongo processo de preparao antes que pudessem ser privatiza-das. Como notrio, apenas no final de 1991 a primeira empresafoi vendida sob o PND. Como naquela poca os cruzados novoscomearam a ser devolvidos aos investidores privados, recupe-rando liquidez, sua utilizao como moeda de privatizao acabousendo quase nula. Assim, embora as receitas de privatizaocontinuassem a ser utilizadas para reduzir a dvida pblica, algica original do PND tinha de ser modificada, na medida em queas novas moedas de privatizao eram obrigaes com liquidez

    Texto para Discusso n 87 19

    11 Essa questo discutida detalhadamente por Pinheiro e Giambiagi (2000).12 Quando o PND foi lanado na primeira metade de 1990, o governo prometeu resultados muito

    significativos em curto prazo. No incio de maio de 1990, a previso de receitas era de US$ 9 bilhespara todo o ano, a qual caiu para US$ 7 bilhes no final do ms e para US$ 4 bilhes no final dejulho. Por volta do final do semestre, a meta das receitas do programa em seus dois primeiros anose meio era de US$ 17 bilhes, com a venda de uma estatal por ms na segunda metade de 1990[Schneider (1990a, p. 17-18)].

  • relativamente baixa, isto , o impacto da privatizao no perfil dadvida pblica seria muito menos positivo do que inicialmenteprojetado.

    medida que o fracasso do primeiro plano de estabilizaodo governo Collor se tornava cada vez mais evidente, o governocomeou a depender do PND como uma prova do seu compromis-so para com a mudana estrutural. Isso permitiu a continuidadedo programa, mesmo aps o impeachment de Collor e a chegadaao poder de um presidente que anteriormente havia manifestadopublicamente sua oposio privatizao. No entanto, os ndicescada vez mais altos de inflao e o baixo crescimento da economiareduziram os j comprimidos nveis de investimento interno eexterno, limitando severamente o escopo da privatizao. Assim,at 1996 o papel da privatizao na poltica macroeconmicabrasileira foi essencialmente o de sinalizar o compromisso com areduo do tamanho do Estado e a implementao de reformasestruturais. Na prtica, at mesmo a poltica de utilizar as receitasda privatizao exclusivamente para resgatar a dvida pblica foiintensamente questionada pelos prprios setores do governo eparcialmente abandonada em alguns casos.

    No total, 33 empresas foram privatizadas durante os go-vernos Collor e Franco (1990/94), com um total de receitas deUS$ 8,6 bilhes e a transferncia para o setor privado de US$ 3,3bilhes em dvidas (ver tabela a seguir). Quase todas as empresaseram do setor de manufaturados, com receitas concentradas emao, petroqumica e fertilizantes. As empresas escolhidas paraserem vendidas pertenciam a setores relativamente competitivosou nos quais a liberalizao do comrcio criaria um ambientecompetitivo. Includas nesse perfil estavam: a) as pequenas em-presas absorvidas pelo Estado; b) as subsidirias estabelecidasaps a reforma de 1967, com a verticalizao e diversificao dasprincipais estatais; e c) as empresas siderrgicas estatais, emrelao s quais havia um consenso razovel de que a presenado Estado no era mais necessria. A privatizao dos monopliosestatais nem chegou a ser considerada nessa poca.

    No incio de 1995, o escopo da privatizao foi bastanteampliado por dois movimentos simultneos: a determinao deacabar com os monoplios do setor pblico em infra-estrutura ea deciso dos governos estaduais de desenvolver seus prpriosprogramas de privatizao (ver tabela). No total, as 80 privatiza-es no perodo 1995/98 resultaram em um total de receitas deUS$ 60,1 bilhes e na transferncia de dvidas para o setorprivado no valor de US$ 13,3 bilhes. Vrios fatores contriburampara esses dois movimentos:

    a) Os repetidos fracassos dos sucessivos governos emcontrolar a inflao limitou sua habilidade de seguir um progra-ma mais agressivo de privatizao. O sucesso do Plano Real naobteno da estabilizao deu ao governo a alavancagem poltica

    20 Texto para Discusso n 87

  • requerida para obter as emendas constitucionais necessrias noCongresso, de maneira a estender a privatizao aos setores detelecomunicaes e gs e para facilitar seu progresso nos segmen-tos de minerao e energia eltrica.

    b) Para sustentar a estabilidade de preos, o governoprecisava ter disciplina fiscal, e isso limitou sua capacidade derealizar os altos nveis de investimento necessrios para aumen-tar a oferta na velocidade requerida para a recuperao docrescimento econmico. Tambm por questes fiscais, a polticaeconmica limitou o acesso das estatais aos financiamentosinterno e externo.

    c) Os estados viam na privatizao uma importante fontede financiamento, que lhes permitiria reduzir sua dvida (regis-trada e no-registrada) e, em alguns casos, expandir os gastos.Alm disso, nos contratos de reestruturao da dvida dos es-tados, o governo federal incluiu clusulas que os obrigavam aamortizar parte do principal, o que s poderia ser obtido com avenda de seus ativos, isto , com a privatizao [Pinheiro eGiambiagi (2000)]. Um estmulo adicional foi fornecido peloscontratos dos estados com o BNDES, o que possibilitou a tomadade emprstimos conta da receita futura das privatizaes.

    d) A prpria estabilidade e a mudana na percepo dopotencial de risco e de crescimento do mercado brasileiro quese refletiram, por exemplo, no alto crescimento dos fluxos deinvestimento estrangeiro direto ajudaram a aumentar o valordessas empresas, tornando a privatizao mais interessante tan-to para o setor pblico como para os investidores privados.13

    e) O sucesso das privatizaes realizadas no perodo1991/94, evidenciado pelo aumento da eficincia e dos inves-timentos das empresas, ajudou a aumentar o suporte polticopara o programa. Pinheiro (1996) mostra que a privatizaomelhorou substancialmente o desempenho das antigas estatais,com aumentos significativos das vendas efetivas, das vendas porempregado, do lucro lquido, do patrimnio lquido dos acionistas,do investimento, dos ativos fixos e do ndice entre investimentose vendas. A eficincia praticamente dobrou quando medida emtermos de vendas por empregado, aumentando 83% quandoaferida por produtividade da mo-de-obra. A lucratividade passoude negativa para positiva, o patrimnio lquido dos acionistasaumentou quase cinco vezes, enquanto a dvida diminua e aliquidez aumentava. O investimento mdio tambm quase quin-tuplicou, aumentando mais de quatro vezes como proporo dasvendas e mais do que o dobro em relao aos ativos fixos. Asvendas por empregado aumentaram em 92% das empresas, o

    Texto para Discusso n 87 21

    13 A instabilidade econmica tambm foi o principal motivo (embora no o nico) para a falta deinteresse dos investidores estrangeiros no processo de privatizao brasileiro at 1994, perodo emque eles participaram com menos de 1% das receitas totais. Atualmente, essa fatia corresponde a46%.

  • lucro lquido subiu em 78%, os investimentos tiveram incrementoem 93% e a produtividade da mo-de-obra cresceu em todas elas.

    De todos os fatores que contriburam para expandir aprivatizao no primeiro governo Cardoso, o mais importante foio papel desempenhado pela privatizao na sustentao de seuprograma de estabilizao, o Plano Real. Com as grandes vendasde 1997/98, o Brasil atraiu volumes expressivos de investimentoestrangeiro direto, que ajudaram a financiar o alto dficit nascontas correntes do pas na poca: no perodo 1997/2000, ondice entre as entradas desses investimentos associadas pri-vatizao e o dficit nas contas correntes foi em mdia quase 25%.A privatizao tambm foi uma forma de evitar uma exploso da

    Resultados da Privatizao: Receitas e Dvidas Transferidas 1991/2000(US$ Milhes)

    Receitas Anuais Total Geral

    1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000a Receitas DvidaTrans-ferida

    Total

    Total 1.614 2.401 2.627 1.966 1.004 5.486 22.616 30.975 3.202 10.201 82.092 18.076 100.168

    Federal 1.614 2.401 2.627 1.966 1.004 4.080 8.999 23.478 554 7.635 54.358 11.326 65.684

    Ao 1.474 921 2.250 917 5.562 2.626 8.188

    Petroqumica 1.266 172 445 604 212 2.699 1.003 3.702

    Fertilizantes 202 205 11 418 75 493

    Minerao 6 3.299 3.305 3.559 6.864

    Ferrovias 1.477 15 205 1.697 1.697

    Portos 251 149 21 421 421

    Energia Eltrica 400 2.358 270 880 1 3.909 1.670 5.579

    Petrleo e Gs 4.032

    Financeiro 240 3.595 240 240

    Telecomunicaes 4734 21823 421 0 26.978 2.125 29.103

    ParticipaesMinoritrias

    395

    33 190 421 62 8 1.101 1.101

    Outros 140 12 192 49 393 268 661

    Estaduais 1.406 13617 7497 2648 2.566 27.734 6.750 34.484

    Telecomunicaes 1018 1.018 822 1.840

    Financeiro 401 647 147 869 1.195 1.195

    Gs 576 1131 298 1.707 88 1.795

    Energia Eltrica 587 9945 5166 1370 1.293 18.361 5.840 24.201

    gua e Esgoto 106

    Ferrovias 25 240 265 265

    Outras 307 96 403 403

    ParticipaesMinoritrias

    794 2388 330

    3.512 3.512

    Nmero de Estatais 4 14 6 9 8 18 36 18 11 6 130

    Federais 4 14 6 9 8 16 21 7 6 1 92

    Estaduais 2 15 11 5 5 38

    Fonte: BNDES.aAt novembro.

    22 Texto para Discusso n 87

  • dvida pblica, apesar do crescente dficit fiscal divulgado desde1995. Carvalho (2001) mostra que, graas utilizao predomi-nante da privatizao para reduzir a dvida pblica, em dezembrode 1999 ela foi de 8,4% do PIB, abaixo do que teria sido sem aprivatizao.

    Na medida em que a privatizao brasileira (como haviasido o caso no passado com o processo de estatizao) eraresultado mais de pragmatismo do que de uma mudana ideol-gica, duas questes importantes merecem ser consideradas: a)como grande parte das estatais j foi vendida e se espera que asreceitas diminuam nos prximos anos, devemos supor que aprivatizao termine em um futuro prximo?; e b) em que medidacorremos o risco de que o pndulo oscile de volta, dessa vez nadireo de maior interveno do Estado na economia e, pos-sivelmente, na direo de um movimento renovado de estatizaodos setores de infra-estrutura? As duas prximas sees anali-sam essas perguntas.

    4. As Fronteiras da Privatizao

    Nossa anlise da histria da privatizao nas sees ante-riores mostrou como suas fronteiras se expandiram ao longo dotempo: de um simples mecanismo de ajuda s empresas privadas,para o controle do crescimento estatal e, finalmente, para a vendade empresas estatais grandes e tradicionais. Em particular,destacamos a importncia do crculo virtuoso entre a privatizaoe a estabilizao, no qual a ltima criou as condies polticaspara a expanso do processo, enquanto a privatizao foi oinstrumento de sustentao da estabilidade. Esse foi o caso,principalmente, em 1996/98, quando as dinmicas da privatiza-o estiveram intimamente ligadas s necessidades do programade estabilizao de preos.

    Por isso talvez no seja surpreendente que a prioridadeatribuda privatizao diminusse no perodo 1999/2000, quan-do o ajuste fiscal e a desvalorizao da taxa de cmbio colocaramo Plano Real em um terreno mais seguro. O equilbrio fiscalprimrio transformou-se de um dficit de 0,9% do PIB em 1997em um supervit de 3,2% do PIB em 1999 (3,5% do PIB em 2000).Entretanto, o dficit em conta corrente diminuiu, enquanto ofluxo de investimentos estrangeiros diretos no relacionados coma privatizao aumentou, reduzindo a importncia da privatiza-o para o financiamento da dvida externa. Alm disso, com aestagnao do crescimento, o aumento do desemprego e o declnioda renda efetiva em 1998/99, a popularidade do governo caiusubstancialmente, reduzindo seu grau poltico de liberdade. As-sim, aps os resultados recordes de 1997/98, as receitas dimi-nuram substancialmente, com uma reduo acentuada da

    Texto para Discusso n 87 23

  • privatizao dos setores de gerao de energia eltrica e gua esaneamento (ver tabela anterior).

    Essa reduo tambm resultou de uma mudana no enfo-que da privatizao. A disciplina fiscal e a taxa de cmbioflutuante aliviaram o nus carregado pela poltica monetriadesde 1994, permitindo uma reduo das taxas de juros. Comisso, o custo de oportunidade da utilizao da privatizao paraoutros fins que no a maximizao do valor da dvida pblicaresgatada com a venda das estatais tambm diminuiu, estimu-lando uma mudana nas prioridades. Nesse caso, na direo dautilizao da privatizao para fortalecer o mercado acionrio,atravs do uso de grandes flutuaes como um meio de venderas aes das estatais. Essa alternativa, embora no previstaquando do estabelecimento do PND, havia sido utilizada antesapenas em alguns poucos casos e em pequena escala. Em con-traste, na venda das aes da Petrobras, em agosto de 2000, 337mil pessoas fsicas compraram aes, possivelmente um recordena histria do mercado acionrio no Brasil.

    Essa mudana de enfoque pode dar ao governo um novoentusiasmo para prosseguir com a privatizao, para o quetambm deve contribuir um aumento da popularidade resultanteda melhoria das condies econmicas. Embora no se espereque a privatizao repita os resultados recordes de 1997/98,ativos de tamanho considervel, consistindo principalmente emempresas de gerao e distribuio de energia eltrica e emparticipaes minoritrias em empresas j privatizadas, j foramprogramados para venda. Aps serem vendidos, o governo federalainda controlar grandes ativos nos setores de transporte (aero-portos), bancrio e de petrleo, enquanto as unidades subnacio-nais ficaro com o controle quase total do setor de abastecimentode gua e esgotos. Esses ativos sero transferidos para o setorprivado em futuro previsvel?

    A mdio e longo prazos, o futuro da privatizao dependerde fatores polticos e econmicos. Na esfera poltica, ainda noficou claro que opinio prevalecer no futuro sobre o papel doEstado na estimulao do desenvolvimento econmico. Comoobservado anteriormente, a aprovao das reformas nos anos 90refletiu, antes de mais nada, uma aliana ttica, resultante dosexcessos do modelo anterior e da falta de instrumentos fiscaispara o suporte de uma poltica industrial mais intervencionista.Nesse sentido, a urgncia da crise macroeconmica serviu paraunir correntes de opinies com vises muito distintas sobre essaquesto. Assim, a nfase dada neste artigo s motivaes econ-micas da privatizao no significa que achemos que seu futurodepende exclusivamente ou em grande parte dos argumentoseconmicos. Como alertam Feigenbaum, Henig e Hamnett (1999,p. 172):

    Um enfoque exclusivo sobre as foras econmicas obscurece anatureza intensamente poltica do movimento de privatizao. As ini-

    24 Texto para Discusso n 87

  • ciativas de privatizao so polticas porque elas redistribuem os custose benefcios entre grupos diversos e concorrentes. E retratar a privati-zao como uma adaptao necessria s restries fiscais falha emreconhecer a gama considervel de respostas alternativas abertas aosatores do governo e a medida na qual a escolha das polticas dentrodessa gama pode refletir tticas partidrias e presses de grupos deinteresse mobilizados.

    Ainda h muito por fazer no Brasil para aprofundar osprocessos de liberalizao, desregulamentao e privatizao docomrcio. No entanto, com a poltica fiscal novamente em ordem,o governo tambm pode optar por uma estratgia mais inter-vencionista e. g., atravs da ocupao dos espaos ociosos porcampees nacionais , e nesse caso ser improvvel que ele abramo de instrumentos polticos como as estatais restantes. Umaquesto central nesse contexto est ligada forma como ser feitaa canalizao da poupana de longo prazo para o investimento,isto , quem gerar essa poupana (o Estado ou o setor privado)e quem ser o responsvel pela intermediao financeira corres-pondente. Durante o perodo de grande crescimento que se seguiuao final da Segunda Guerra Mundial e que durou at o final dosanos 70, o Estado era responsvel pelas duas atividade que, comovimos, favoreceram a expanso do setor de estatais. Com adeteriorao das contas fiscais durante a maior parte dos anos80 e 90, o Estado foi um despoupador lquido, mas mesmo assimmanteve o quase-monoplio da intermediao do financiamentode longo prazo, atravs dos seus bancos pblicos. E isso lhe deuuma grande alavancagem para influenciar as decises de inves-timento de empresas privadas, que era mais ou menos utilizadadependendo das condies polticas do momento. Como discuti-remos na prxima seo, essa estrutura institucional nos merca-dos de crdito, combinada com um pequeno mercado acionrio,no qual o bancos pblicos e os fundos de penso das estataistambm tm um importante papel, fornece um meio atravs doqual o processo de retraimento do Estado pode ser revertido nofuturo.

    No entanto, esse debate poltico depender em grandeparte do prprio sucesso da privatizao atravs do aumento daoferta e da eficincia e da transferncia dos ganhos de produtivi-dade para os consumidores, na forma de preos mais baixos eaumento da qualidade. Isso ser particularmente importante nosservios pblicos: energia eltrica, telecomunicaes, servios deabastecimento de gua e rede de transportes. Portanto, o futuroda privatizao depender diretamente da eficincia da regula-mentao da infra-estrutura. O sucesso da estruturao do Es-tado como regulador que determinar seu destino nos negcios.

    Todos os setores de infra-estrutura do Brasil j estiveramsujeitos a algum tipo de privatizao, com variao substancialentre eles na qualidade da regulamentao. A venda de ativos foiconcluda agora nos setores de telecomunicaes e ferrovias. Naindstria de energia eltrica, 63% da distribuio esto em mosprivadas. Grande parte da carga que entra e sai do pas

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  • processada em terminais porturios privados. Por outro lado, aatividade do setor privado est apenas comeando no que se referes estradas e aos servios de abastecimento de gua, mesmo quealgumas privatizaes importantes j tenham ocorrido.

    A importncia de uma boa regulamentao para o sucessoda privatizao foi reconhecida por todos os setores. Com variadosgraus de sucesso, foi feito um esforo para decidir as regulamen-taes antes da privatizao, e onde isso no ocorreu os contratosde concesso continham vrias clusulas regulatrias. Em geral,houve tambm a preocupao de introduzir a concorrncia nossetores que estavam sendo privatizados, atravs da criao deuma estrutura industrial no-monoplica, pelo menos em escalanacional, quando vrias estatais foram separadas tanto horizon-tal quanto verticalmente antes da privatizao. Exemplos deseparao horizontal incluem os setores de ferrovias, energiaeltrica e telecomunicaes e exemplos de cises verticais in-cluem os setores de telecomunicaes e energia eltrica. Almdisso, foram impostos limites participao de investidoresindividuais em mercados distintos, regionais e nacionais, e atmesmo estrutura acionria de algumas empresas (como a CVRDe as ferrovias). Tambm, por lei, cada venda de privatizao estsujeita aprovao pelos rgos de defesa da concorrncia.

    Outra caracterstica importante que as mudanas naregulamentao e a criao de agncias regulatrias ocorreramquase que exclusivamente em nvel federal apesar do fato deque as operaes das empresas privatizadas tm implicaesimportantes em nvel local e de que cerca de um tero das receitas(US$ 27,7 bilhes com a venda de 38 empresas) foi obtido nosprogramas de privatizao dos estados. Em geral, a regulamen-tao, tanto em termos tcnicos como econmicos, foi realizadapor setor, em vez de separar os dois tipos de regulamentao eter uma nica agncia que supervisionasse a regulamentaoeconmica e a concorrncia nos vrios setores. No entanto, ospoucos estados que criaram agncias regulatrias at o momentooptaram por reguladores multissetoriais.

    O caso mais bem-sucedido de privatizao com reformaregulatria , sem dvida, o das telecomunicaes.14 O processocomeou com a aprovao da assim chamada Lei Mnima, quepossibilitou o leilo das concesses da telefonia celular de BandaB.15 Isso foi seguido por um reequilbrio significativo das tarifasem 1996 e 1997, pela aprovao da Lei Geral de Telecomunica-es em 1997 e pela criao da Agncia Nacional de Telecomuni-caes (Anatel), o regulador do setor, no mesmo ano, culminandocom a privatizao da Telebrs, a empresa de monoplio pblico,

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    14 Descries detalhadas da privatizao e das regulamentaes para os setores de telecomunicaes,energia eltrica, transportes e servios de abastecimento de gua podem ser encontradas em Pinheiroe Fukasaku (2000). Para mais informaes sobre telecomunicaes, ver tambm Pires (1999).

    15 As empresas da Banda B so as que operam em uma faixa do espectro distinta daquela utilizadapelas antigas operadoras das estatais, chamada de Banda A.

  • em 1998. Assim, quando a privatizao ocorreu, toda a estruturaregulatria j havia sido estabelecida, e a agncia regulatriaresponsvel pelo setor estava funcionando a todo vapor. Efetiva-mente, as empresas de telecomunicaes assinaram contratos deconcesso em que o novo ambiente regulatrio foi includo quan-do elas ainda eram estatais, de maneira que os novos propriet-rios sabiam exatamente que regras estariam em vigor aps aprivatizao.

    Esse tambm o setor com as metas mais ambiciosas parainvestimento e concorrncia. Os contratos de concesso estipu-lam a expanso do nmero de linhas fixas de 15,3 milhes para50 milhes e do nmero de linhas celulares de 4 milhes para26,2 milhes no perodo de 10 anos, um crescimento de 226% e550%, respectivamente. Dois anos aps a privatizao, o nmerode linhas fixas atingiu 35 milhes e o de telefones celulares 21,56milhes, quase o dobro do nmero de linhas. A concorrnciaaumentou gradualmente:

    a) a Telebrs foi dividida em 13 empresas, das quais umaera a operadora de longa distncia, trs eram de linhas fixas enove de telefonia celular, estas ltimas correspondendo essen-cialmente s reas previamente leiloadas para a Banda B, demaneira que, quando a privatizao ocorreu, houve um duop-lio na telefonia celular em cada rea de concesso;

    b) tambm foram aplicadas restries a um nico inves-tidor com participao acionria em mais de uma rea ou maisde um servio;

    c) em 1999, a Anatel leiloou concesses para a operaode linha fixa em cada rea, de maneira que, atualmente, elastambm so duoplios, o mesmo acontecendo no segmento delonga distncia;

    d) as empresas de linha fixa foram autorizadas a concorrercom as empresas de longa distncia dentro de suas prpriasconcesses a partir de 1999; e

    e) a entrada no mercado ser totalmente desregulamenta-da a partir de 2002, mas as operadoras existentes s estaro livrespara entrar em outros mercados se cumprirem as metas de ofertae qualidade determinadas pela Anatel antes dessa data.

    A coordenao entre a regulamentao e a privatizao nosetor de energia eltrica no foi to bem executada quanto nosetor de telecomunicaes. Por exemplo, a Agncia Nacional deEnergia Eltrica (Aneel), rgo regulador do setor, foi criadaapenas em 1997, dois anos aps o incio da privatizao do setor.O Mercado Atacadista de Energia (MAE) e o Operador Nacionaldo Sistema (ONS), dois elementos centrais do novo modelo deregulamentao, foram criados apenas em 30 de setembro de

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  • 1998, quando grande parte da distribuio j estava em mosprivadas.

    Na verdade, devido falta de avanos na definio dasnormas de regulamentao para o setor que, observe-se depassagem, comeou a ser debatida j em 1992 , a simplescontinuidade da venda das estatais transformou-se em um me-canismo para forar as decises sobre a regulamentao. Essaindesejvel ordem com que ocorreram as transformaes do setortambm tendeu a limitar a capacidade de operao da agnciaregulatria e, como resultado, limitou seu prestgio aos olhos damaior parte da populao. Alm disso, a regulamentao do setorde eletricidade continua sem uma clara separao entre asfunes das vrias agncias envolvidas (Aneel, ONS, Ministriodas Minas e Energia e Eletrobrs, empresa holding de energiaeltrica do setor pblico), diminuindo a responsabilidade dasvrias instituies.

    Mesmo assim, a reforma do setor de energia eltrica tam-bm se caracterizou por uma preocupao com a introduo daconcorrncia e com a desregulamentao gradual da contrataoentre diferentes players. O primeiro elemento dessa estratgia foia preocupao com a separao vertical (gerao, transmisso edistribuio) e horizontal das estatais, nos nveis federal e es-tadual. Segundo, foram impostos limites concentrao do mer-cado, nos nveis nacional e regional, para a distribuio, a geraoe a soma dos dois.16 Terceiro, estabeleceu-se um cronogramapermitindo que um nmero crescente de consumidores pudesseescolher livremente a empresa da qual eles comprariam energiaeltrica, com uma reduo gradual do nvel mnimo de demandanecessria para que o consumidor tivesse acesso a essa liberdadede escolha. Uma crescente flexibilidade tambm foi dada aosgeradores e distribuidores para que pudessem contratar entreeles, sendo que uma completa desregulamentao est previstapara o perodo de nove anos aps a privatizao.

    Nos transportes, a qualidade da regulamentao variaentre os diferentes segmentos. A privatizao das estradas ba-seou-se estritamente na licitao de franquias, ou leilo de con-cesso, modelo proposto por Demsetz (1968) e outros como umaalternativa regulamentao econmica. Nos leiles de privati-zao federal, foi definido um conjunto mnimo de investimentos,incluindo a reforma e a expanso da rede existente, sendo que aconcesso foi dada ao proponente que ofereceu o preo mais baixode pedgio. Quando isso foi decidido, a regulamentao limitou-se inspeo do investimento e das atividades operacionais e aosreajustes anuais das tarifas, isto , a regulamentao foi es-sencialmente tcnica. Os estados, que, como um grupo, privati-zaram nove vezes mais que o governo federal, seguiram um

    28 Texto para Discusso n 87

    16 35% do mercado no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, 25% no Sul e Sudeste e 20% no mercadonacional como um todo. Para gerao e distribuio juntos, o limite 30% do mercado nacional.

  • modelo similar, mas alguns deles cobraram pelo direito de explo-rar a concesso.

    Na privatizao dos portos, a nfase recaiu sobre os termi-nais de contineres, visto que os terminais privados j proces-savam a grande maioria da carga a granel e lquida. Os terminaisde contineres em todos os principais portos do Brasil foramprivatizados. A evidncia at o momento de que essas privati-zaes possibilitaram um aumento considervel do investimentoe da produtividade, mas que uma parte mnima desse aumentode produtividade foi repassada para os consumidores na formade preos mais baixos. A explicao para isso parece ser aausncia de concorrncia significativa, que, por sua vez, resultoude dois fatores: altas concentraes de trfego no porto de Santos(acima de 40%) e baixa eficincia das ferrovias.

    A privatizao das ferrovias incluiu a RFFSA (antiga redeferroviria federal), a Fepasa, a Ferroeste e as ferrovias da CVRD(as ltimas foram vendidas com o resto da empresa). Antes davenda da RFFSA, ela foi dividida horizontalmente em seis redes.Essa foi a privatizao em que a maior responsabilidade foi dada concorrncia (nesse caso, concorrncia intermodal), como uminstrumento de auto-regulamentao. Em geral, o resultado foipositivo, devido predominncia do frete de carga rodoviria noBrasil, com grandes aumentos de produtividade, confessada-mente de uma base muito baixa, mas houve alguns casos deabusos de consumidores cativos e discriminao de preos [ver,por exemplo, Estache, Goldstein e Pittman (2000)]. Dessa manei-ra, embora um teto de 20% tenha sido estabelecido para aparticipao acionria de cada investidor em cada rede, as con-cesses de ferrovias foram na maioria para consrcios formadospor grandes compradores, que estavam em posio de ameaarseus concorrentes discriminando-os na oferta de servios fer-rovirios. Adicionalmente, vrias empresas no cumpriram asmetas contratuais relativas produo e reduo do nmero deacidentes sem que sanes tenham sido impostas.

    O setor no qual houve o menor avano, tanto em termosde regulamentao quanto de privatizao, foi o de servios degua e esgoto. Embora tenham ocorrido privatizaes em vriosmunicpios, algumas iniciativas foram abortadas e nenhuma dasgrandes empresas estatais foi vendida. H um enorme imbrglioregulatrio nesse setor, onde tanto os estados como os municpiosreivindicam o direito de fazer (isto , vender) as concesses. Noentanto, provvel que se chegue a algum acordo, j que asnecessidades de investimento e os possveis ganhos em eficincianesse setor so gigantescos.

    Assim, em resumo, a regulamentao dos servios pbli-cos, em geral, progrediu menos que a privatizao nos ltimosanos, e ainda resta muito a ser definido nos setores de transportee de gua e esgoto. Alm disso, embora tenha existido uma

    Texto para Discusso n 87 29

  • preocupao em todos os setores com a introduo da concor-rncia, esta foi uma prioridade apenas no setor de telecomunica-es, fazendo-se necessria uma ao mais intensa nos setoresde energia eltrica, portos e ferrovias. H trs questes adicionaisrelativas regulamentao das empresas de servios pblicos noBrasil que causam preocupaes:

    a) O risco de uma nfase exagerada na regulamentaotcnica, que poderia resultar, por exemplo, na contratao deantigos empregados das estatais para trabalhar nas agnciasregulatrias. Nessas empresas, h uma nfase excessiva nosaspectos tcnicos e pouca preocupao com a satisfao docliente e outros aspectos comerciais do negcios. A experinciaem outros pases da Amrica Latina tambm mostra um interesseexagerado das agncias regulatrias nas questes tcnicas, emdetrimento da regulamentao econmica.

    b) O risco de que as agncias regulatrias sejam desviadaspara a adoo de polticas diferentes daquelas para as quaisforam concebidas. Em particular, deveria ser dada maior nfase concorrncia no mandato dessas agncias, enquanto deveriaficar claro, por outro lado, que esse mandato no inclui a imple-mentao de polticas industriais no setor que est sendo regu-lamentado ou em setores principais ou secundrios.

    c) Ainda no est claro como os tribunais iro se comportarem caso de disputas entre os reguladores, detentores de conces-ses e consumidores. A constituio brasileira, como as de outrospases, concede s partes o direito de recorrer ao tribunal contraas decises dos reguladores. No entanto, como na maior parte domundo, o sistema judicirio brasileiro est mal equipado paralidar com os aspectos econmicos e tcnicos que geralmentesurgem nessas disputas. Alm disso, muitas delas requeremdecises rpidas, com o risco de causarem grandes perdas paraas partes envolvidas. A opo de recorrer aos tribunais no deveser permitida para constituir apenas, ou principalmente, umaoportunidade para atrasar a implementao das decises jtomadas pelos reguladores. Portanto, o Judicirio, mesmo quetenha um papel importante a desempenhar nessa rea, deveprocurar limitar suas intervenes para garantir o respeito snormais processuais.

    5. Observaes Finais

    No perodo 1991/2000, o Brasil privatizou 130 estatais,gerando receitas de US$ 82,1 bilhes e transferindo dvidas deUS$ 18,1 bilhes para o setor privado. Esses nmeros fazem daprivatizao brasileira uma das maiores do mundo por exemplo,at 1997, as privatizaes em todos os pases da OECD totaliza-

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  • vam US$ 153,5 bilhes [Nestor e Mahboodi (2000)]. No entanto,no apenas o tamanho das empresas envolvidas que torna oprograma notvel. Igualmente importante o fato de que, emapenas quatro anos, o Estado reduziu significativamente suaparticipao em setores nos quais, por vrias dcadas, foi o nicoprodutor. Ironicamente, a participao das estatais na economiabrasileira em 2000 no foi muito diferente daquela verificada umsculo antes. Assim, investidores privados controlam agora ossetores de telecomunicaes e ferrovias, os maiores portos dopas, algumas das principais estradas, dois teros da distribuioe um quinto da gerao de energia eltrica, juntamente com umapequena mas crescente fatia dos servios de gua e esgoto. Algunsgrandes bancos pblicos foram privatizados, enquanto os setoresde petrleo e gs foram abertos ao investimento privado. Hapenas 10 anos, poucos teriam previsto uma transformao toimpressionante.

    Neste artigo, argumentamos que a privatizao no Brasilresultou essencialmente de trs fatores: a) mudanas polticas,em que o controle estrangeiro da infra-estrutura e dos setores deinsumos bsicos no era mais visto como uma ameaa segu-rana nacional; b) mudanas no enfoque das polticas de desen-volvimento em direo eficincia e em detrimento da simplesacumulao de capital; e c) uma relao intensa entre a privati-zao e a poltica macroeconmica. Tambm argumentamos quea conexo da poltica macroeconmica foi o fator mais importantedos trs. A esse respeito, o artigo mostrou que no foi por acasoque os primeiros ataques expanso das estatais ocorreram emmeados dos anos 70, quando o ciclo de crescimento iniciado nosanos 40 mostrou os primeiros sinais de exausto. Desde ento eat recentemente, o fracasso do Brasil em estabilizar sua econo-mia e retomar o crescimento sustentado serviu como principalmotivo para a privatizao atingir setores que, alguns anos antes,no eram vistos como privatizveis.

    Quo longe ir esse processo? J esto na linha de priva-tizao as estatais restantes do setor de energia eltrica, algunsbancos estaduais, o monoplio do resseguro e uma grande partedo setor de gua e esgoto. Quando essa fase for concluda, oEstado ainda ser dono de grandes ativos nos setores de petrleoe gs, transportes e bancrio. Alm disso, a privatizao aindatem um longo caminho em direo terceirizao das atividadesdentro do setor pblico: servios de correio, coleta de lixo, ins-peo de veculos etc. Mas a extenso atual e a velocidade daexpanso nas fronteiras da privatizao dependero do papelatribudo ao Estado na estrutura poltica dos futuros governos e,no menos importante, do sucesso das privatizaes realizadascom o aumento da oferta, a reduo dos preos e a melhoria daqualidade dos servios. O Brasil j deu passos importantes paraestabelecer um ambiente regulatrio visando obteno dessesresultados, mas ainda h muito a ser feito.

    Texto para Discusso n 87 31

  • Por outro lado, existe ainda alguma possibilidade concretade que o pndulo oscile na direo contrria, isto , na direo damaior presena do Estado nos negcios? Sim. Consideramos pelomenos trs cenrios (relacionados) possveis nos quais isso pode-ria ocorrer:

    a) A regulamentao falha em estimular os nveis deinvestimento necessrios para um aumento da oferta que sejaconsistente com a demanda, gerando escassez e prejudicando osconsumidores. Nesse caso, o Estado pode se sentir obrigado afazer os investimentos necessrios, aumentando progressiva-mente sua participao na oferta, possivelmente at o ponto dedominar novamente o setor. A regulamentao pode falhar se asagncias regulatrias no tiverem os meios necessrios pararealizar suas obrigaes, particularmente pessoal bem treinado,ou independncia suficiente dos poderes polticos. A falta deresponsabilidade das diferentes partes envolvidas tambm podeser um problema. Nesse caso, uma fonte relevante de preocupa-o que a regulamentao da infra-estrutura venha a enfocar odesenvolvimento da produo interna em setores industriaisespecficos (ocupando espaos ociosos) ou seja utilizada comobjetivos eleitorais, atravs da fixao de tarifas em nveis artifi-cialmente baixos.

    b) A inadimplncia dos emprstimos concedidos pelosbancos pblicos, particularmente em infra-estrutura, coloca asantigas estatais novamente nas mos do Estado. Obviamente,existe o mesmo risco com outros emprstimos de bancos pbli-cos, mas o problema, nesse caso, surge pela dificuldade deliquidar empresas de servios pblicos ou vend-las para tercei-ros. Tipicamente, os projetos privados de investimento em infra-estrutura foram financiados por uma combinao de 30% depatrimnio lquido, 40% de crdito de bancos pblicos e 30% definanciamento de instituies multilaterais (BID, Banco Mundialetc.), o que tambm carrega uma garantia implcita do Estado,sendo ele o regulador das empresas. A exposio dos bancospblicos deve ser refreada, seja pela securitizao e venda dessescrditos ou pela atrao de bancos privados para financiar umaparte substancial desses projetos. Porm, em ambos os casosfaltam os mercados necessrios. Maior participao dos agentesfinanceiros privados ser benfica tambm para aumentar osganhos de produtividade gerados pela privatizao, devido vantagem comparativa dos bancos privados e investidores emaes na seleo e monitoramento dos projetos de investimento.Portanto, a reforma dos mercados de capital atravs do es-tabelecimento de boas normas e agncias regulatrias a chaveno apenas para diminuir o risco de estatizao, mas tambmpara que a privatizao renda todos os seus benefcios.

    c) A excessiva proteo dada aos investidores por exem-plo, contra a desvalorizao cambial faz com que os custospolticos sejam mais altos que aqueles trazidos pela estatizao.

    32 Texto para Discusso n 87

  • Recentemente, o Estado foi processado e condenado a compensarfinanceiramente as companhias areas em bilhes de dlares pelaperda de lucratividade resultante do teto fixado pelo governo, nospreos das passagens, abaixo do que os tribunais consideraramrazovel. Isso destaca a magnitude das obrigaes fiscais contin-gentes que podem ser criadas por clusulas legais ou contratuaisque visam proteger os investidores de riscos excessivos. Deve-mos ter em mente as lies aprendidas com a experincia dasgarantias concedidas s ferrovias e s usinas de acar no finaldo sculo 19, mencionadas na Seo 2.

    Portanto, para aumentar a estabilidade e os benefcios docontrole privado das antigas estatais, particularmente em infra-estrutura, o Brasil deve fortalecer as instituies regulatrias ereformar os mercados de capital. Alm disso, deve-se tentar atraira maior concorrncia possvel em todos os setores de infra-es-trutura, aliviando o nus da regulamentao, no apenas pelosargumentos comuns de informaes assimtricas, mas tambmpara compensar a fraqueza institucional, um problema muitomenor em pases industrializados.

    No entanto, embora um cenrio de reestatizao sejaplausvel, ele no provvel, pelo menos a curto e mdio prazo.Primeiro, porque a poupana pblica deve permanecer baixa porvrios anos, o que faz de uma poltica sustentada de inves-timentos pblicos elevados algo difcil de se criar. Segundo,porque a privatizao, assim como outras reformas realizadas nadcada de 90, cria partes interessadas em manter o novo statusquo. Isto , o pndulo no oscilar de volta automaticamente,como em um relgio. Ele precisa ser empurrado, superando asforas oposicionistas da inrcia e os interesses estabelecidos, algoque a histria mostrou ser um processo lento. Rodrik (1998)ilustra esse ponto com as experincias do Chile e da Bolvia echama a ateno para o fato de que a maior garantia de que asreformas sero sustentadas seu sucesso na garantia da es-tabilidade e do crescimento econmico. Essa tambm a princi-pal lio da experincia brasileira: modelos de desenvolvimentoduram pelo tempo em que forem capazes de produzir crescimentoeconmico e so substitudos quando se torna claro que no somais capazes de faz-lo.

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    Texto para Discusso n 87 35

  • TEXTOS PARA DISCUSSO do BNDES

    71 POLTICAS REGULATRIAS NO SETOR DE TELECOMUNICAES: A EXPERINCIA INTERNACIONALE O CASO BRASILEIRO Jos Claudio Linhares Pires setembro/99

    72 MODELO DE GERAO DE EMPREGO: METODOLOGIA E RESULTADOS Sheila Najberg eMarcelo Ikeda outubro/99

    73 POLTICAS REGULATRIAS NO SETOR DE ENERGIA ELTRICA: A EXPERINCIA DOS ESTADOSUNIDOS E DA UNIO EUROPIA Jos Claudio Linhares Pires outubro/99

    74 PERSPECTIVAS PARA A ECONOMIA BRASILEIRA: 1999/2006 Fabio Giambiagi dezembro/99

    75 EXPERINCIAS DE APOIO S MICRO, PEQUENAS E MDIAS EMPRESAS NOS ESTADOS UNIDOS,NA ITLIA E EM TAIWAN Fernando Puga fevereiro/2000

    76 DESAFIOS DA REESTRUTURAO DO SETOR ELTRICO BRASILEIRO Jos ClaudioLinhares Pires maro/2000

    77 A CRISE BRASILEIRA DE 1998/1999: ORIGENS E CONSEQNCIAS Andr Averbug eFabio Giambiagi maio/2000

    THE BRAZILIAN CRISIS OF 1998-1999: ORIGINS AND CONSEQUENCES Andr Averbugand Fabio Giambiagi May/2000

    78 PREVIDNCIA SOCIAL E SALRIO MNIMO: O QUE SE PODE FAZER, RESPEITANDO A RESTRIOORAMENTRIA? Marcelo Neri e Fabio Giambiagi junho/2000

    79 CRIAO E FECHAMENTO DE FIRMAS NO BRASIL: DEZ. 1995/DEZ. 1997 Sheila Najberg,Fernando Pimentel Puga e Paulo Andr de Souza de Oliveira maio/2000

    80 O PERFIL DOS EXPORTADORES BRASILEIROS DE MANUFATURADOS NOS ANOS 90: QUAIS ASIMPLICAES DE POLTICA? Armando Castelar Pinheiro e Maurcio MesquitaMoreira julho/2000

    THE PROFILE OF BRAZILS MANUFACTURING EXPORTERS IN THE NINETIES: WHAT ARE THE MAINPOLICY ISSUES? Armando Castelar Pinheiro and Maurcio Mesquita Moreira June/2000

    81 RETORNO DOS NOVOS INVESTIMENTOS PRIVADOS EM CONTEXTOS DE INCERTEZA: UMAPROPOSTA DE MUDANA DO MECANISMO DE CONCESSO DE RODOVIAS NO BRASIL JosClaudio Linhares Pires e Fabio Giambiagi julho/2000

    82 REMUNERAO POR GNERO NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL: DIFERENAS E POSSVEISJUSTIFICATIVAS Marcelo Ikeda setembro/2000

    83 FUSES E AQUISIES NO SETOR DE TELECOMUNICAES: CARACTERSTICAS E ENFOQUEREGULATRIO Jos Claudio Linhares Pires e Adely Branquinho das Dores outubro/2000

    84 COMO A INDSTRIA FINANCIA O SEU CRESCIMENTO: UMA ANLISE DO BRASIL PS-PLANOREAL Maurcio Mesquita Moreira e Fernando Pimentel Puga outubro/2000

    85 O CENRIO MACROECONMICO E AS CONDIES DE OFERTA DE ENERGIA ELTRICA NOBRASIL Jos Claudio Linhares Pires, Joana Gostkorzewick e Fabio Giambiagi maro/2001

    86 AS METAS DE INFLAO: SUGESTES PARA UM REGIME PERMANENTE Fabio Giambiagi eJos Carlos Carvalho maro/2001

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