a experiência na interface do flickr - análise semiótica e de usabilidade

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ANÁLISE SEMIÓTICA DA EXPERIÊNCIA EM INTERFACE VIRTUAL DE COMPARTILHAMENTO E ARMAZENAGEM DE FOTOS FLICKR. GABRIEL RAMALHO DE FARIAS RESUMO: O presente trabalho objetiva identificar e verificar a ocorrência do fenômeno de imediata produção de sentido a partir da significação de símbolos visuais em interfaces interativas percebendo-se as influências das relações semióticas dentro do contexto das experiências de uso. Levar-se-á em conta a criação de hábitos de uso a partir de experiências no novo meio, com a ressignificação intencional de elementos visuais. Foi escolhido como objeto de estudo o Flickr, site de compartilhamento de arquivos gráficos (imagens) na Internet, uma vez que representa virtualmente documentos que, por si, são recortes da realidade, e trabalha com conceitos de organização e categorização com base na associação de termos aos objetos. A estrutura de navegação da sua interface será abordada, tendo como referenciais as discussões da decodificação das imagens em Flusser, da convergência da semiótica e da comunicação na interação em Johnson e Santaella e dos princípios de usabilidade por base na intuição das simples experiências em Maeda, permeando a Teoria Peirceana, sobretudo quanto ao estudo dos signos e seu caráter como elementos representativos de objetos, ações, leis e sensações reais. 1. INTRODUÇÃO Faz-se necessário neste artigo, em um primeiro momento, efetuar um breve preâmbulo sobre as formas de relacionamento dos indivíduos com interfaces digitais, tendo em foco a sua relação com os conteúdos informativos virtuais, o histórico deste relacionamento em oposição às habituais relações de organização no mundo real e o processo de intencionalidade presente na representação destes signos. Ao passo em que se observa na humanidade um aumento da produção de conteúdos informativos, em virtude da crescente facilidade de acesso aos meios de produção intelectual digitais, e percebe-se no mundo real as limitações do espaço físico, verifica-se uma tendência de virtualização deste mesmo mundo original. Neste

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Artigo Análise da Experiência de Uso na Interface do Flickr. Foco no aprendizado a partir de relações de interpretação de signos visuais e mudanças de indexação a partir da web 2.0

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Page 1: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

ANÁLISE SEMIÓTICA DA EXPERIÊNCIA EM INTERFACE VIRTUAL DE

COMPARTILHAMENTO E ARMAZENAGEM DE FOTOS FLICKR.

GABRIEL RAMALHO DE FARIAS

RESUMO:

O presente trabalho objetiva identificar e verificar a ocorrência do fenômeno de imediata produção

de sentido a partir da significação de símbolos visuais em interfaces interativas percebendo-se as

influências das relações semióticas dentro do contexto das experiências de uso. Levar-se-á em conta a

criação de hábitos de uso a partir de experiências no novo meio, com a ressignificação intencional de

elementos visuais. Foi escolhido como objeto de estudo o Flickr, site de compartilhamento de arquivos

gráficos (imagens) na Internet, uma vez que representa virtualmente documentos que, por si, são recortes

da realidade, e trabalha com conceitos de organização e categorização com base na associação de termos

aos objetos. A estrutura de navegação da sua interface será abordada, tendo como referenciais as discussões

da decodificação das imagens em Flusser, da convergência da semiótica e da comunicação na interação em

Johnson e Santaella e dos princípios de usabilidade por base na intuição das simples experiências em

Maeda, permeando a Teoria Peirceana, sobretudo quanto ao estudo dos signos e seu caráter como

elementos representativos de objetos, ações, leis e sensações reais.

1. INTRODUÇÃO

Faz-se necessário neste artigo, em um primeiro momento, efetuar um breve

preâmbulo sobre as formas de relacionamento dos indivíduos com interfaces digitais,

tendo em foco a sua relação com os conteúdos informativos virtuais, o histórico deste

relacionamento em oposição às habituais relações de organização no mundo real e o

processo de intencionalidade presente na representação destes signos.

Ao passo em que se observa na humanidade um aumento da produção de

conteúdos informativos, em virtude da crescente facilidade de acesso aos meios de

produção intelectual digitais, e percebe-se no mundo real as limitações do espaço físico,

verifica-se uma tendência de virtualização deste mesmo mundo original. Neste

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paradigma, ambientes de lojas virtuais exibem milhares de títulos que seriam impossíveis

de ser armazenados em lojas físicas, às vistas do público; bibliotecas podem conter mais

títulos em seus discos-rígidos e servidores do que em suas estantes, em versões

impressas; e até os antigos álbuns de fotos, antes guardados nas residências como

relíquias familiares, ficam disponíveis em servidores virtuais e acessíveis a partir de

qualquer lugar.

A virtualização está presente em tal nível que, mesmo quando em trânsito no

mundo real, aparelhos de geoposicionamento permitem identificar trajetos e rotas em

mapas digitais, apontar melhores caminhos e até mesmo descobrir onde seus amigos se

localizam através de avatares (representações gráficas de indivíduos) na área de

representação do mapa. O ambiente virtual acaba tornando mais rico o ambiente real,

adicionando ao mesmo novas possibilidades e experiências antes inexistentes por conta

de suas próprias limitações.

Dentro deste novo ambiente, a interface assume papel importante por ser, numa

definição simples, uma forma de representação de uma experiência real em um meio

virtual, de forma amigável, estimulando a participação do usuário. Para Lemos (1997, p

111), a interface gráfica é o terreno comum ou o espaço onde se dá a interatividade, a

arena onde sujeitos e objetos desenvolvem tarefas. Conforme o autor, “a ação se dá na

representação, quer dizer, na possibilidade de participação dos agentes”. Para Santaella

(2004), a interface é um meio de diálogo, na qual se processam as interações, e é regida

por processos que demandam reciprocidade, colaboração e partilha, sendo o processo de

interatividade impossível sem a competência semiótica do usuário para interagir com a

interface virtual.

Partindo da premissa da dimensão interativa como estrutura fundamental dos

processos de comunicação, nos atos de emissão e recepção, potencializando e

evidenciando interações com informações virtuais nestes novos meios, o processo de

representação da realidade nas interfaces é uma via dialógica que, ao apresentar

elementos visuais que remetem à objetos existentes, sensibiliza o receptor, permitindo-lhe

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atribuir novos valores sentimentais às imagens (Flusser) e criando novas relações de

experiência a partir do uso e interação. São relações, desta forma, semânticas, cheias de

significado e expressão (Johnson).

Desta forma, a interação se dá a partir da interpretação destas imagens, elementos

visuais dispostos nas interfaces, de forma intencionalmente dirigida a estimular a ação do

receptor, a partir de sua associação com objetos e leis reais e trazendo-lhe conteúdos

informativos como recompensa. No entanto, antes de prosseguirmos para um estudo

aprofundado sobre estas interações, é necessário tratar da mudança nas relações dos

interpretantes com os conteúdos informativos, a partir da virtualização destes.

Se, no passado, a disponibilização e estocagem de informações dependia de

suportes e localizações físicas, como o quadro na parede lateral de um museu, um livro

na quinta estante de uma biblioteca, um compact disc na prateleira de trilhas sonoras ou

uma foto em um álbum na segunda gaveta do gabinete, a virtualização destes conteúdos

informativos, sua multiplicação exponencial pela facilidade de acesso aos meios de

produção dos mesmos, propagados sobretudo na Internet, e a inexistência de espaços

físicos para seu armazenamento impeliu a criação de novas formas de indexação e

categorização.

Uma das primeiras formas de organizar conteúdos nos sistemas informativos,

ainda comumente utilizada nos computadores, deu-se através de uma simulação

representativa do que ocorre no mundo real: o armazenamento dos arquivos em pastas,

devidamente categorizadas e identificadas. O limite de espaço de armazenamento rompe

a barreira física e adota o espaço lógico, sendo o bit (menor unidade de informação que

pode ser armazenada ou transmitida) a sua unidade elementar. Os conteúdos

informativos, mais do que os que caberiam impressos em pastas físicas, ocupam, então,

pastas virtuais limitadas apenas pelo tamanho do disco rígido, identificadas por

representações gráficas que indicam a natureza dos documentos e são demandados a

partir da interação do usuário com estes signos visuais, que findam por exibir a

informação desejada, após a ação esperada pelo emissor.

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Com o tempo, e impulsionada pela facilidade de acesso dos prosumers¹ (termo

orginado da junção das palavras producer e consumer, respectivamente produtor e

consumidor em inglês, e que designa o novo consumidor, representante da terceira onda

econômica mundial) aos meios de produção digitais, esta forma de indexação, que apenas

simulava a organização no mundo real, passou a ser ineficiente dentro do turbilhão de

conteúdos informativos, disponibilizados nas pastas e em servidores na web. Havia, como

no mundo real, a necessidade de saber exatamente em que pasta estava o arquivo e onde a

pasta se encontrava. Uma nova forma de relacionamento com estes conteúdos se fazia

necessária, possibilitando associar, aos mesmos, termos que facilitassem sua localização

dentro do espaço virtual. Nesta nova relação, termos vernaculares e até mesmo abstratos

passam a ser relacionados a estas informações, através de taxonomia, forma de classificar

e etiquetar conteúdos similares através de termos específicos.

Deste modo, em vez de tentar localizar em álbuns espalhados todas as fotos onde

aparece uma determinada pessoa, podemos, em uma busca taxonômica, buscar-lhe o

nome, se o mesmo tiver sido cadastrado como etiqueta e associado aos conteúdos

informativos onde há a ocorrência do mesmo e ter acesso imediato a todas as fotos às

quais foram atribuídas este mesmo termo identificador e classificador. Não mais importa

a localização lógica do conteúdo, mas, sim, o que nos faz, em lembrança, remeter àquela

informação. Se a foto de um pôr do Sol em uma viagem de férias me remete à sensação

de felicidade e recebe tal etiqueta em um álbum virtual, será uma das fotos as quais terei

acesso ao buscar por este termo, junto à todas as fotos que a mim transmitiram o mesmo

sentimento no momento de etiquetamento.

Para este trabalho, contudo, a apresentação de tal mudança nas formas de

organização serve apenas como referência e embasamento para o nosso estudo, não

havendo aqui espaço ou oportunidade para discorrermos mais sobre a questão. Tal

referência nos permitirá situar os objetos virtualizados tais como estão realmente

dispostos nos meios eletrônicos, dissociados de localizações físicas e de organizações

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reducionistas. A estas informações, hoje, associam-se etiquetas que já nascem de 1uma

percepção anterior do intérprete acerca do signo, como veremos a seguir. A experiência

de uso nas interfaces aqui apresentadas advém de uma anterior curva de aprendizado

sugerida pela experiência em outras interfaces e de constante relação de ressignificação

entre o que nos é apresentado e o a que se associa, dentro de uma intencionalidade de

discurso. Tal intencionalidade permite ao emissor criar signos visuais que remetam a

objetos e ações dentro da experiência, dispô-los de forma a facilitar a relação de

significação e identificação e representá-los de forma a incentivar uma reação por parte

do usuário, que irá interagir por meio de comportamentos na interface, e ações através da

ativação de ícones gráficos.

Muito embora Ícone seja um termo associado, no estudo das relações entre os

signos, à primeiridade na teoria perciana, à natureza de algo tal como o é, a partir de suas

qualidades inerentes na representação, este também é o nome dado aos elementos

gráficos presentes nas interfaces, que podem sofrer interação dos usuários. Não se faça aí

uma confusão entre os termos. Enquanto a primeira relação de significado se dê no

campo da explanação e contexto da teoria semiótica, o segundo é tão somente uma forma

usual, vernacular, de denominação destes signos visuais, que intencionam a interação

com o propósito de retornar ao usuário algum resultado à ação de clique sobre os

mesmos. Para melhor diferenciação, utilizarei a partir de agora o termo Ícone, quando sob

a terminologia peirciana e ícone quando dos símbolos visuais com vias de interação com

o usuário.

Dentro do cenário ao qual ateremos este estudo, o Flickr, site de álbuns

fotográficos virtuais e compartilhamento de arquivos visuais na web, iremos desenvolver

esta argumentação, com exemplificações práticas e relacionando-as aos conceitos do

estudo de signos em Peirce, sem desconsiderar o poder imagético das informações visuais

ou sua influência no processo de interação. A escolha do Flickr deve-se ao fato de

armazenar imagens, às quais pela própria natureza são representações de instantes reais e

1 “Os consumidores agora estão participando do processo de produção. De uma forma ou outra, nós recrutamos os consumidores para tornarem-se nossos aliados e, na verdade, co-produtores. Agora os consumidores são o que nós chamamos de prosumer” (Alvin Toffler in A Terceira Onda)

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criam relações de significação em diversos níveis em seus receptores. Tais imagens são

exibidas em estrutura de navegação simples que permite a ressignificação de elementos

como indícios de ações na interface e com possibilidade de organização e categorização

através de termos vernaculares ou sensações pessoais.

2. CENÁRIO

Pela natureza das interfaces, repletas de idiossincrasias típicas e objetivos

diversos de comunicação, assunto tão abrangente que estenderia este trabalho, decidimos

focar nossa discussão na empregabilidade dos signos com vias intencionais de interação

em uma interface específica, a fim de verificarmos nela esta ocorrência, após uma breve

contextualização sobre o conceito de experiência e familiaridade com estas interfaces e

melhor uso destas funcionalidades no processo dialógico de comunicação.

2.1. O FLICKR

O Flickr é uma rede social que permite a seus usuários armazenar e compartilhar

arquivos visuais, tais como fotografias, desenhos e ilustrações. Foi lançado em fevereiro

de 2004, pela canadense Ludicorp, e adquirido um ano depois, em março de 2005, pelo

Yahoo! Inc. O serviço é atualmente o 33º site no ranking mundial de acessos na Internet,

e veículo por onde passam, diariamente, pelo menos 2% dos usuários globais.

Com vistas a melhorar o serviço enquanto rede social, possibilitando maior

interatividade entre os usuários e recursos de melhor categorização dos arquivos

publicados por estes, foi desenvolvido no ano seguinte um projeto de redesenho e

reestruturação do serviço, permitindo aos usuários classificar seus próprios documentos

sob termos vernaculares em taxonomia, organização previamente ilustrada neste trabalho,

sendo um dos primeiros sites a adotar princípios do conceito que se conhece por Web

2.0². 2

2 "Web 2.0 é a mudança para uma internet como plataforma, e um entendimento das regras para obter

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Além de permitir organizar as fotos por critérios semânticos, facilitando as buscas

de imagens no sistema por palavras-chave, a própria estrutura atua como ferramenta de

sociabilização ao divulgar as etiquetas mais populares, permitindo a organização das

imagens em álbuns, o seu agrupamento em coleções e a interação com outros usuários

através de comentários nas fotos e participação em grupos e fóruns de discussão. Tais

ferramentas de sociabilização, apesar de fascinantes, serão desconsideradas na análise

deste trabalho, por se encontrarem fora do escopo do estudo das relações de

ressignificação dos signos visuais presentes na interface do serviço.

sucesso nesta nova plataforma. Entre outras, a regra mais importante é desenvolver aplicativos que aproveitem os efeitos de rede para se tornarem melhores quanto mais são usados pelas pessoas,

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3. DISCUSSÃO

3.1. A INTERAÇÃO ENQUANTO CONVERGÊNCIA DA COMUNICAÇÃO E DA

SEMIÓTICA

Pode-se afirmar, hoje, que, enquanto duas disciplinas particulares, ainda que

debruçadas sobre temas afins, tanto a Semiótica quanto a Comunicação permitem-se

permear e encontrar em muitos pontos, tais como a mídia e os processos

comunicacionais.

Mesmo que a percepção e o questionamento metodológico destes objetos de

estudo ocorram sob perspectivas absolutamente distintas nas duas disciplinas, e sob os

mais variados níveis de análise, a coexistência -- e mesmo a rivalidade -- de inúmeros

modos de abordar semioticamente a questão da Comunicação, permite-nos concluir,

como explicita Landowski, que "não há por um lado a Comunicação e, pelo outro, a

Semiótica" (2008). Ora, se há inúmeras teorias da comunicação sob o olhar da semiótica,

há, por outro lado, também, a aplicação de teorias semióticas e suas metodologias

diretamente nos processos de comunicação, que são, acima de tudo, guiados por relações

constantes de significação.

Dito desta forma, embora disciplinas distintas, a convergência permite-se

observar quando da aplicação direta à questão das linguagens das mídias e seus processos

comunicacionais, sobretudo ao observarmos a relação de interpretação e relacionamento

do receptor com aquilo que a ele se apresenta e que dele espera alguma reação. Assim, a

fenomenologia, enquanto conceito peirciano, desdobra-se nas atribuições de significação

aos elementos percebidos pelo receptor, seja um discurso textual, um código, um

elemento visual ou, como no caso aqui observado, leis de uma experiência de interação.

Mais do que elementos visuais associados a outros elementos, no caso em questão,

espera-se do receptor a sua associação a leis e funcionalidades. Espera-se,

intencionalmente, uma reação. E, neste ponto, permite-se distinguir uma relação de

aproveitando a inteligência coletiva" (Tim O’Reilly, disponível em http://www.cipedya.com/doc/102010)

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convergência entre as disciplinas.

No entanto, não podemos adentrar na dissecação desta relação sem antes

efetuarmos um breve preâmbulo acerca da teoria peirciana, abordando a fenomenologia;

as categorias de experiência, na primeiridade, secundidade e terceiridade; o

desenvolvimento desta experiência com base na constante ressignificação alimentada por

experiências anteriores e, ainda, os objetos integrantes dos signos e as interpretações a

partir destes, tanto intencionadas pelo emissor quando compreendidas e ressignificadas

na recepção. Nossa intenção não é o de um tratado filosófico mas, sim, a de trazer à

disussão alguns conceitos referentes à teoria, contextualizando-os e empregando-os em

nossa análise.

3.2. A EXPERIÊNCIA DE USO EM INTERFACES VIRTUAIS

Em Peirce, o estudo dos fenômenos, quaisquer coisas que se apresentem a um

receptor, se desenvolve em três categorias universais de experiência, a saber: a

primeiridade, a secundidade e a terceiridade.

A primeira categoria ocorre ainda na suspensão do pensamento, sem que este

tenha sido tocado ainda por qualquer relação de associação frente ao fenômeno. É quando

este não é referenciado ainda à qualquer outra coisa e existe, presente e de relance, sem

que sua existência tenha provocado alguma atenção especial por parte do receptor. A

secundidade, por sua vez, ocorre quando se percebe o fenômeno, ainda que este não tenha

recebido uma associação de significação que ultrapasse sua simples corporificação. É a

fase da descoberta do mesmo que ganhará, em seguida, na terceiridade, uma relação de

interpretação com outro fenômeno, anteriormente conhecido por conta de alguma outra

experiência de semiose, portanto, a ação de interpretar um signo em outro signo,

previamente contido na esfera de experiência do receptor.

Uma exemplificação comum e já clássica deste processo é o do universo das

descobertas infantis, onde uma criança tem um contato com algum objeto desconhecido

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(primeiridade), percebe-o (secundidade) e o manuseia, experimentando sensações táteis e

desenvolvendo com um mesmo algum nível de experiência. Numa etapa posterior, algum

outro objeto desconhecido se apresentará ao nosso sujeito e permitirá a associação com o

objeto previamente experimentado (terceiridade). Isso se o próprio primeiro objeto em

questão já não tiver provocado, na ocasião, uma relação implícita de significação como

ocorreria, por exemplo, se o objeto fosse uma mamadeira ou chupeta, remetendo à

sensações de saciamento da fome ou de conforto, ao mesmo tempo em que remete ao seio

materno. A experiência, enfim, é o que alimenta as relações semióticas dando-lhes o

embasamento necessário para a associação dos fenômenos.

Se a descoberta do mundo real se deu através de relações consecutivas de

experiência e associações, o mesmo pode-se dizer das relações de uso dentro das

interfaces baseadas na virtualidade. Recorde-se que este meio interativo tem um código

de linguagem específico, baseado na interação do receptor com o meio através de um

dispositivo mediador (o computador), e que este passa por um processo de "educação"

nesta nova forma de relacionamento, a partir das experiências anteriores, o que torna

possível sua navegação em interfaces diversas baseadas no mesmo princípio.

Com a sucessão de experiências em interfaces virtuais, alguns elementos

passaram a assumir outras associações de significação de forma quase intuitiva aos

receptores, baseados nas suas representações gráficas, disposição e posicionamento na

interface e até mesmo pela motivação de interação a partir da mudança do cursor quando

este é posicionado sobre os elementos.

Tomemos como exemplo aspectos básicos de navegação, tornados facilmente

compreensíveis a partir da associação com experiências anteriores, referentes à interface

em questão, exibida abaixo:

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Um dos exemplos mais perceptíveis da ressignificação a partir do comportamento

adquirido com base nas experiências anteriores pode ser projetado facilmente na

experiência de “navegação” nas interfaces. Se as mesmas requerem comportamentos e

ações, objetivando a interação com vistas a obter alguma recompensa (carregar uma foto,

sair da interface etc), a disposição dos elementos e suas representações auxiliam na

percepção de que comportamentos são possíveis ou, mesmo, o que se pode depreender e

esperar destes signos. No caso, se nos concentrarmos na parte superior da interface,

podemos verificar facilmente a ocorrência de alguns destes casos, sendo o da apropriação

da logo do site enquanto elemento de navegação e índice de uma ação esperada pelo

receptor o mais significativo.

Atendo-nos exclusivamente ao exemplo em questão, pode-se afirmar que o signo

visual intencionalmente posicionado na parte superior esquerda da interface, a logo do

Page 12: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

Flickr, atua como um legisigno, a partir do momento em que se apresenta ao receptor de

forma simbólica e é percebido e imediatamente associado a uma relação de causa e

efeito. A esfera de experiências do usuário em interfaces virtuais permite que o objeto

imediato representado ganhe uma categoria de Símbolo, sendo reconhecido com base nas

experiências anteriores o retorno esperado à interação que o mesmo possa ter com este,

remetendo-o à página inicial do serviço.

Em miúdos, a apresentação deste signo ao receptor sofre a influência dos três

interpretantes da teoria semiótica peirciana. Do interpretante imediato ao representar um

objeto, no caso, uma ação ou lei lógica, o retorno à página inicial; do interpretante

dinâmico ao produzir efetivamente e de forma cognitiva no receptor a percepção desta

relação de causa e efeito; e do interpretante final, em relação à própria intencionalidade

de sua disposição e apresentação ao receptor, finalizando na interação com o mesmo uma

relação de semiose, trazendo o retorno esperado e já antevisto pela esfera de experiências

do usuário em interfaces semelhantes.

É interessante reconhecer, neste ponto, o papel do designer de interfaces como

ator fundamental deste processo, a partir do momento em que deve selecionar e dispor

elementos visuais de forma intencional com o propósito de apresentá-los ao usuário,

representando-lhe ações e leis e aguardando deste uma interpretação associativa com base

nos signos visuais representados. A este comportamento, objetivando formas quase

intuitivas de se interagir com interfaces virtuais com a mesma naturalidade com que se

reconhece o mundo real, desenvolvendo no receptor as experiências necessárias para esta

constante ressignificação e familiaridade com interfaces futuras, permite-se a inserção no

que se entende por conceito como usabilidade.

Não iremos adentrar muito neste conceito, uma vez que este trabalho pretende ter

seu foco nas relações de significação ocorridas nas interfaces virtuais sob uma ótica ao

mesmo tempo semiótica e comunicacional. A citação foi pelo motivo de não se poder

ignorar que, para que tais relações ocorram, deve haver uma congruência de inúmeras

outras áreas de conhecimento, que ultrapassam a simples fronteira delimitada pelas duas

Page 13: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

disciplinas previamente citadas, como o Behaviorismo, a Gestalt, as teorias de uso das

cores, a cognição, entre outras.

Dentro deste contexto, o da usabilidade como norte no projeto de uma interface,

baseada no produto das experiências anteriores do usuário, de suas interpretações e

associações e, ainda, no aproveitamento de leis e ações previamente intencionadas e

compreendidas em retorno ao desejo do receptor, percebe-se o uso constante de signos

visuais como elementos que emulem outros signos, outros objetos dinâmicos, como

elementos orientadores da experiência de navegação.

O emprego de signos visuais, de forma intencional nas interfaces, permite que

objetos, ações e comportamentos sejam representados e ressignificados, em associação

com outros signos, transmitindo ao receptor o resultado esperado daquela interação.

Page 14: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

Na imagem acima, podemos identificar uma série de ícones (representações

visuais que comportam-se como Símbolos, em relações de leis com seus fundamentos)

que atuam, na percepção e em relação aos objetos dinâmicos como Índices de ações

esperadas e antevistas nos interpretantes dinâmicos a eles associados.

Note-se aí, como exemplos ilustrativos, os ícones de ação representados pelos

símbolos visuais no canto superior direito (uma representação de um envelope, uma

representação de uma tela de retroprojetor e a representação de um documento com uma

setinha associada, sugerindo movimento). Ao vermos estes símbolos, imediatamente

conseguimos associá-los, em relação com outros signos, às respostas esperadas na

interação com os mesmos. Nos casos, o acesso à caixa postal, uma exibição de slides ou a

possibilidade de compartilhar as imagens com outros usuários.

Ao mesmo tempo, a transformação do cursor do mouse em uma representação de

uma mão sugere que determinado elemento, no caso, as fotos apresentadas na galeria,

também permite uma interação. E basta que ocorra a primeira experiência com o mesmo

para que se desenvolva no receptor a regra lógica de que, ao clicar sobre o mesmo, a

imagem abrirá em uma nova janela.

John Maeda utiliza a analogia do manuseio de um parafuso para exemplificar o

processo de aprendizado, afirmando que não apenas o encaixe da chave de fenda é

necessário, mas, também, a sujeição desta ação a um segundo nível de conhecimento: a

habilidade de distinguir direita de esquerda ou conhecer o sentido no qual giram os

ponteiros de um relógio. Desta forma, manusear um parafuso é uma tarefa não tão

simples quanto parece e que a nós isso é imperceptível pelo fato de já termos aprendido

como fazê-lo. “O conhecimento torna tudo mais simples” (Maeda, 2008), tendo o

aprendizado mais sucesso quando associado a uma recompensa. Tal princípio se aplica às

interfaces, propondo multidisciplinarmente uma abordagem da usabilidade com base nas

experiências simples.

Page 15: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

A imagem acima exemplifica o resultado da ação de clique sobre uma imagem na

galeria. Observemos que, logo acima da imagem, uma série de ícones sugere a execução

de ações específicas, como “adicionar uma nota”, “mandar para um blog”, “ver todos os

tamanhos”, “girar” e “deletar”, por exemplo. Tais elementos visuais, que são Símbolos

em relação aos seus objetos dinâmicos, justificam hábitos e propõem a execução de ações

dentro da experiência de interação. As representações, emulando objetos reais como

folhas de papel e lupas, criam uma relação de Índice com os objetos dinâmicos reais.

A foto em tamanho grande, apresentada como objeto a receber a influência do

resultado das interações com os ícones, tampouco pode ser desconsiderada do processo

de semiose. Mesmo que se trate de uma imagem técnica (Flusser), apresente-se ao

receptor como fosse uma janela, por se tratar de um excerto do mundo real e,

aparentemente, não necessite ser decifrado, é ilusório tratar delas sob ótica tão objetiva,

Page 16: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

desprezando a intencionalidade do autor da imagem no momento da captura e, ainda, o

seu universo de significados a cada receptor. Se para Flusser, tais imagens preparam-se

para substituir textos, da mesma forma, pode-se afirmar que são símbolos extremamente

abstratos, “metacódigos de texto” que devem sua origem à imaginação. O autor conclui

afirmando que decifrar as imagens técnicas é um exercício de reconstrução dos textos que

são significados e representados pelas mesmas.

Isto posto, permitimo-nos inserir duas curtas discussões: a primeira, acerca da

intencionalidade na produção das imagens, tornando-as por natureza objetos imediatos de

um mundo real, índices de signos reais transportados para uma representação imagética; a

segunda, acerca da interpretação e decodificação desta imagem por cada receptor. Ora, se

para Flusser, temos dificuldade em decifrar as imagens técnicas e retornar-lhes o

significado textual sugerido intencionalmente pelo fotógrafo, não é distante da teoria

semiótica peirciana aproveitar este gancho para evidenciar que tal dificuldade deve

ocorrer justamente em virtude de tais interpretações acontecerem de forma bastante

distinta na mente de cada receptor, que relacionará a imagem com signos conhecidos em

sua esfera de experiência.

Sobre a primeira discussão, mesmo que desconsideremos a fotografia enquanto

campo de expressão artística, no qual a pintura e escultura ocupam posto de suportes

ideais e consolidados para as manifestações dos sentimentos humanos de forma

representativa, não se deve relevar o papel da autoria nas imagens capturadas pela

máquina fotográfica. É perfeitamente possível afirmar que um mesmo recorte do real

possa receber diferentes “olhares” quando capturados por fotógrafos diferentes,

evidenciando outros ângulos, escolha de outros motivos, a evidência de detalhes

diferentes e a expectativa de diferentes reações. Desta forma, uma imagem técnica

carrega em si uma carga de significados intencionalizada pelo autor da mesma,

objetivando transmitir aos receptores a mesma leitura que teve do objeto, como

interpretante final.

Ao passarmos do autor ao receptor, na segunda discussão proposta, identificamos

Page 17: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

um processo de interpretação que passa pelo interpretante dinâmico, ao passo em que não

se pode absorver dali uma interpretação final que seja completamente fiel à intenção do

autor, tendo em vista as idiossincrasias dos repertórios tanto de quem produziu a imagem

como de quem foi afetado por ela. Num processo constante de ressignificação, a imagem

recebida é um Ícone de um objeto real, é um objeto dinâmico por buscar a representação

de outras qualidades do signo, é um sinsigno em relação ao seu fundamento e, na mente

do receptor, transforma-se novamente a cada nova associação a inúmeros outros signos.

Desta forma, a imagem pode ser num momento imediatamente posterior, considerada

como um Ícone a sofrer a influência das ações dos outros símbolos, por exemplo.

Tal diferença na interpretação destes signos está visível inclusive quando da

associação de etiquetas às imagens, no processo de inserção das mesmas. Com o objetivo

de classificação, conforme abordamos anteriormente neste trabalho, a cada imagem

inserida na ferramenta, solicita-se a inclusão de termos vernaculares que permitam a sua

categorização e indexação. A escolha destes termos evidencia, perfeitamente, a

intencionalidade do autor, principalmente quando a esta imagem associam-se abstrações

e sentimentos. Como exemplo, apresento três imagens classificadas sob a etiqueta

“nostalgia” no Flickr:

Não necessariamente tais etiquetas receberão as mesmas associações no receptor.

Para este, as imagens transmitem outras sensações e criam outras relações com outros

signos e objetos, outras leis e qualidades. E esta constante ressignificação, a constante

associação e relação entre os signos é o que permite o desenvolvimento de um repertório

pessoal e idiossincrásico, a nortear as experiências futuras e aprendizados. É o que

individualiza cada receptor como co autor e partícipe ativo dos processos de semiose.

Page 18: A Experiência na Interface do Flickr - Análise Semiótica e de Usabilidade

5. BIBLIOGRAFIA

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MAEDA, John. As Leis da Simplicidade: design, tecnologia, negócios, vida. São Paulo:

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SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor emissivo. São Paulo: Paulus, 2004.