a fome saiu à rua - as greves de 1943 vividas pelas operárias de almada

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A FOME SAIU A RUA: AS GREVES DE 1943 VIVIDAS PELAS OPERÁRIAS DE ALMADA Sônia Ferreira* No presente artigo pretende-se explorar o tema da resistência operária, no feminino e em contexto urbano, numa zona reconhecida histórica e socialmente como de grande concentração de operariado. Assim, e reconhe- cendo a existência de tais atributos à cidade de Almada, pelo menos desde os finais do século XIX, incidir-se-á a apresentação de dados sobre esta região da margem sul do Tejo^ No que diz respeito ao período cronológico em aná- lise, delimitaram-se as décadas de 30 e 40, o que se prende, por um lado, com as próprias conjunturas nacionais, pois o Portugal operário e resistente dos anos em questão não será o mesmo dos anos 50/60 e de todo o período do pós-guerra; e por outro, porque a nível local, como refere Jorge Rodri- gues: "Os anos 40 representaram, no concelho de Almada, uma charneira entre dois mundos completamente diferentes: o mundo da industrialização incipiente e o novo mundo da terciarização generalizada." (Rodrigues, 1999:8). Como se vão analisar momentos de revolta e protesto público, será necessário enquadrar teórica e metodologicamente a questão dos movimen- tos sociais. Em termos teóricos, a análise dos movimentos sociais não foi, como ainda não é, um campo pacificado. Durante muito tempo os movimen- tos sociais foram vistos como actuando à margem da sociedade, ou melhor dizendo, das suas instituições formais. Se por um lado colmatavam disfun- ções sociais, por outro a sua actuação era entendida como marginal, pouco convencional e até desviante (Diani e Eyerman, 1992:5). No entanto, alguns * Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa/ FCSH-UNL Almada é ainda vila durante o período histórico que se pretende estudar, passando a cidade apenas em Junho de 1973. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n." 18, Lisboa, Edições Colibri, 2006, pp. 249-272.

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Greves Laborais em Portugal Sec XX

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  • A FOME SAIU A RUA: AS GREVES DE 1943 VIVIDAS PELAS OPERRIAS DE ALMADA

    Snia Ferreira*

    No presente artigo pretende-se explorar o tema da resistncia operria, no feminino e em contexto urbano, numa zona reconhecida histrica e socialmente como de grande concentrao de operariado. Assim, e reconhe-cendo a existncia de tais atributos cidade de Almada, pelo menos desde os finais do sculo XIX, incidir-se- a apresentao de dados sobre esta regio da margem sul do Tejo^ No que diz respeito ao perodo cronolgico em an-lise, delimitaram-se as dcadas de 30 e 40, o que se prende, por um lado, com as prprias conjunturas nacionais, pois o Portugal operrio e resistente dos anos em questo no ser o mesmo dos anos 50/60 e de todo o perodo do ps-guerra; e por outro, porque a nvel local, como refere Jorge Rodri-gues: "Os anos 40 representaram, no concelho de Almada, uma charneira entre dois mundos completamente diferentes: o mundo da industrializao incipiente e o novo mundo da terciarizao generalizada." (Rodrigues, 1999:8).

    Como se vo analisar momentos de revolta e protesto pblico, ser necessrio enquadrar terica e metodologicamente a questo dos movimen-tos sociais. Em termos tericos, a anlise dos movimentos sociais no foi, como ainda no , um campo pacificado. Durante muito tempo os movimen-tos sociais foram vistos como actuando margem da sociedade, ou melhor dizendo, das suas instituies formais. Se por um lado colmatavam disfun-es sociais, por outro a sua actuao era entendida como marginal, pouco convencional e at desviante (Diani e Eyerman, 1992:5). No entanto, alguns

    * Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa/ FCSH-UNL Almada ainda vila durante o perodo histrico que se pretende estudar, passando a cidade apenas em Junho de 1973.

    Revista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 18, Lisboa, Edies Colibri, 2006, pp. 249-272.

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    desenvolvimentos histricos e sociais que culminam no Maio de 68 vo de certa forma potenciar o descontentamento progressivo acerca dos paradig-mas tericos que imperavam, nomeadamente o marxismo e o estruturo--funcionalismo, na anlise dos movimentos sociais de natureza abrangente e colectiva (delia Porta e Diani, 1999:2).

    Alain Touraine, num artigo de introduo ao estudo dos movimentos sociais, diz-nos que existe uma clara oposio entre a anlise sociolgica que se organiza em tomo da noo de sociedade ou sistema social e uma socio-logia que atribui o papel principal anlise dos movimentos sociais (Tourai-ne, 1985:749). Isto deve-se sobretudo ao facto, de o conceito de movimento social implicar uma viso diferente da vida social, enfatizando o conflito es-trutural e olhando para os indivduos como agentes sociais culturalmente orientados e envolvidos nesses mesmos conflitos. Esta definio vai de certo modo ao encontro da proposta mais abrangente de Touraine no mbito da sua sociologia da aco, considerando que no existe situao que possa ser reduzida a regras institucionais ou estatutos hierrquicos, j que existe sempre alguma dose de incerteza, negociao, conflito e transformao. A sociologia passa a preocupar-se assim tambm com as questes da mudana social.

    Comeando por sublinhar a concordncia generalizada em torno da aceitao dos movimentos sociais como tipos especficos de conflito social, Touraine ressalva o facto de muitos tipos de comportamento colectivo, como as correntes de opinio, as situaes de pnico, etc, no poderem ser enten-didos como movimentos sociais, mesmo que definam de forma precisa a que que reagem (Touraine, 1985:750). Assim, estes pressupem uma definio clara de oponentes, em competio por recursos, pelos quais lutam ou nego-ceiam, numa tentativa de assumir o seu controlo. Definir esta inveno da idade moderna significa ento cruzar conceitos como o de conflito, rede so-cial, opositor, recursos, aco (Tarrow, 1998:2). Mais recentemente tem-se colocado a questo da identidade tambm neste eixo, pois considera-se que os movimentos sociais mais recentes tm um caracter sociocultural mais vincado do que os seus antecessores, que eram essencialmente entendidos como fenmenos sociopolticos-.

    Os movimentos sociais so cada vez mais percepcionados como redes sociais plurifuncionais de interaco entre indivduos, grupos informais e organizaes formais. A diferena que estas redes tero de outras, no enten-der de Diani, o facto de colocarem grande nfase na construo de signifi-cados, na criao de identidades. Mesmo quando os indivduos j se encon-tram fora da rede activa, como por exemplo um operrio reformado, podem

    - Em torno desta questo interessante o artigo de David Plotke intitulado "Whafs So New About New Social Movements?" publicado na obra colectiva: Lyman, S. (ed.) (1995) Social Movements. Critiques, Concepts, Case-Studies, London, Macmillan, pp. 113-136.

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    continuar a partilhar essa identidade comum. alis este significado colecti-vo que vai fazer com que os indivduos no partilhem apenas preocupaes sobre assuntos especficos, mas tambm idias e crenas que os ajudem a enquadrar esses assuntos de forma mais abrangente e significativa^. Tarrow salienta tambm este facto, ao afirmar que um movimento social s existe se sentimentos mais profundos de solidariedade ou identidade existirem, exem-plificando como o nacionalismo, a etnicidade ou a religio tm sido bases mais slidas para movimentos sociais, do que o imperativo categrico da classe social (Tarrow, 1998:6). Esta identidade no tem de existir previa-mente, sendo alis uma das funes vitais dos movimentos precisamente a de construir e manter essa identidade colectiva. Ela no um pr-requisito, mas constitu uma exigncia posteriori.

    Numa tentativa de sntese e conjugao de perspectivas, delia Porta e Diani, resumem o ponto da situao a quatro caractersticas base dos movi-mentos sociais, partilhadas pela maior parte dos tericos: 1) redes informais de interaco; 2) partilha de sentidos e solidariedade; 3) aco colectiva di-reccionada para o conflito; 4) utilizao do protesto como forma de se dife-renciarem de outras aces mais institucionais de reivindicao (delia Porta e Diani, 1999:16). Em resumo, encontramo-nos perante redes informais de indivduos que partilham sentidos, crenas e solidariedades mtuas e que se mobilizam estabelecendo uma relao de conflito com um oponente, utili-zando para isso diversas formas de protesto. Lidamos com grupos de indiv-duos e no com organizaes. Os movimentos sociais no detm uma orga-nizao no sentido formal do termo, ou seja, at podem existir organizaes que fazem parte de movimentos sociais mas estes no se resumem a isso, so mais vastos e fludos, so redes de interaco social.

    Na aco colectiva existem tambm diversos patamares de participao e envolvimento. Nem todos se encontram l com a mesma percepo, enten-dimento ou vontade, apesar da moldura de enquadramento mais geral que confere alguma homogeneidade estratgica (identidade, valores, interesses, etc) ao todo colectivo'*. As aces levadas a cabo pelos operrios de Almada, so muitas vezes aces colectivas de conflito, exposto ou camuflado, quoti-dianas ou pontuais, contra um oponente com o qual lutam pela melhoria das suas condies de vida e trabalho, numa clara disputa pela obteno de re-

    ^Para uma leitura mais exaustiva desta perspectiva ver: Diani. M (1992) "Analysing Social Movements Networks" em M. Diani e R. Eyerman, Studying Collective Action, Lon-don/Newbury/New Delhi, SAGE, pp. 107-135. J Gramsci, segundo Crehan, referia esta heterogeneidade possvel dentro da classe subordi-nada: "(...) Gramsci always recognized that subaltem groups are not homogeneous, that they have their own hierarchies and inequalities, and that it cannot be assumed that ali the members ofa particular subaltern group see the world in the same way." (Crehan, 2002:5)

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    cursos. No entanto, estes operrios desenvolvem muitas vezes lutas em con-junturas mais alargadas de protesto, que tm origem em condies polticas exteriores impostas ou consideradas de feio, que redimensionam em al-guns perodos de tempo este movimento colectivo a uma rede social de inte-raco maior e mais abrangente, escala distrital ou nacional, como se pode ver no estudo de caso que a seguir se apresenta.

    As Greves de Julho/Agosto de 1943 em Almada Durante os anos quarenta, nomeadamente durante a sua primeira meta-

    de, perodo coincidente com o desenrolar da 2.^ Guerra Mundial, um surto de movimentos grevistas e de contestao vo deflagrar por todo o pas, provo-cando agitao tanto nos meios operrios como rurais. Estes movimentos va-riam na sua distribuio e incidncia, mas podem-se distinguir trs momen-tos de maior relevo no mbito das paralisaes operrias: as greves de Outubro/Novembro de 1942, as de Julho/Agosto de 1943 e por fim as de Maio de 1944. Destes trs momentos, o mais importante em termos de im-pacto na Margem Sul foi, sem dvida, o de 1943.

    Em 1943 o pas vive um perodo de grande insatisfao social, no s devido legislao j promulgada sobre o Abono de Famlia e as horas extraordinrias mas tambm porque o acesso aos bens essenciais se revelava cada vez mais difcil e a fome alastrava pelo territrio. O governo por esta altura ainda no implementara o sistema de racionamento, o que condiciona-va o acesso das famlias pobres e sem recursos aos gneros disponveis no mercado, tanto nos circuitos formais como informais. A revolta est por isso latente e a agitao cresce de dia para dia, principalmente nos locais de abas-tecimento onde freqentemente a polcia tem de intervir. Neste cenrio de efervescncia social, um acontecimento poltico como a destituio de Mus-solini, parece ter contribudo para o acelerar do processo, embora no pos-samos ter a certeza de que este acontecimento tenha sido indispensvel. O prprio PCP j tinha feito um apelo greve atravs de um comunicado a 21 desse ms, que funcionou certamente como catalisador do clima de tenso que se vivia .^ O regime, tambm ele consciente da importncia que o aliado italiano tinha, como paradigma do corporativismo portugus, tenta conter a divulgao da notcia o mximo de tempo possvel, at que esta acaba por

    ^ Desconhece-se se o PCP j teria conhecimento da notcia da queda de Mussolini quando emitiu o comunicado, mas como no feito qualquer tipo de referncia a um facto to importante, deduz-se que no. Segundo Pacheco Pereira, com a convocao formal da greve no dia 21 atravs de um comunicado, o Partido decide avanar quando se despoletaram ja algumas paralisaes espontneas, sendo o manifesto produzido para dar "aos conflitos so-ciais uma seqncia racional numa escalada de protestos que nunca existiu." (Pereira, 2001:247).

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    sair na imprensa precisamente na vspera do dia em que tero incio as para-lisaes. Segundo Femando Rosas "Todos os observadores diplomticos so unnimes em estabelecer alguma relao entre o enorme efeito de choque causado pela divulgao do acontecimento e o incio das greves no dia seguinte (...)" (Rosas, 1995:381). A Pacheco Pereira tambm no restam dvidas, "a seta da histria apontava agora noutra direco e o clima mu-dara decisivamente. Portugal no era excepo. " (Pereira, 2001:229).

    Assim, a prpria histria parece ter dado aos operrios portugueses o sinal para avanarem, como estes alis fizeram. A 26 de Julho de 1943, tarde, os operrios e as operrias das principais fbricas de cortia de Alma-da baixaram os seus braos, para dar incio maior greve geral, at data, contra o regime salazarista: "Os longos edifcios industriais da Rankin e da Bucknall, onde multides femininas se sentavam em fila a trabalhar a corti-a, ficam pouco a pouco silenciosos. " (Pereira, 2001:256).

    Para o PCP este tambm um momento marcante, j que pela primeira vez na sua histria convoca e coordena uma greve destas dimenses: "(...) o movimento dirigido por um "Comit de Greve em ligao directa com o Secretariado" do Comit Central, cujos manifestos constituiro o verda-deiro "jornal de greve". " (Rosas, 1995:386). A Margem Sul o sector que o Secretariado mais refora, tendo Alfredo Diniz (Pereira, 2001:253) assegu-rado com xito a participao de Almada, como se pode constatar pela ade-so de numerosas fbricas importantes onde a greve teve um grande impac-to. Angela Luzia vai tambm considerar que o papel desempenhado pelo PCP nestas greves foi fundamental, acentuando a importncia do "perodo de preparao, atravs da mobilizao pelo jornal clandestino do PCP, Avante, e por comunicados clandestinos, que salientavam a necessidade de manifestao face a uma realidade insustentvel. Esta informao circulava subterraneamente, sem que os prprios operrios identificassem a sua fonte. No entanto, reconheciam uma direco poltica da greve, que identificavam abstractamente com o PCP. No foram criados heris mticos, embora escala da fbrica e do local de residncia alguns indivduos se tivessem des-tacado e ganhassem, por isso, um estatuto de respeito, que se mantm ainda hoje." (Luzia, 1994/96:84).

    O govemo reage a estas paralisaes de forma enrgica e rpida. Os estabelecimentos em greve ficam sob a tutela do Ministrio da Guerra, ao abrigo da Mobilizao Industrial, e so encerrados^. Os operrios grevistas so despedidos e os patres tm de comunicar ao Ministrio, toda e qualquer actividade associada greve nas suas fbricas e empresas, no lhes sendo

    Ver "Boletim de Inscrio para os Servios de Mobilizao Industrial". Fonte: Arquivo His-trico Militar/ Repartio de Gabinete/ Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 132.

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    permitido readmitir operrios grevistas^. Os donos das fbricas so tambm obrigados a afixar listas onde os operrios se inscrevero para serem readmi-tidos, listas essas que sero fiscalizadas pelo Ministrio, mais precisamente pelo servio de Mobilizao Industrial, coordenado pelo recentemente em-possado Major Botelho Moniz, a verdadeira cara da represso das greves de 43. Os operrios grevistas encontram-se tambm proibidos de se inscre-verem para trabalhar em qualquer outra fbrica do concelho, incorrendo em penas que vo desde a acusao de desero at incorporao num bata-lho de trabalhos forados, programado para funcionar em Cabo Verdel Nos casos mais urgentes, os operrios so substitudos por legionrios, autorizan-do muitas vezes o regime que apenas sejam readmitidos operrios em nme-ro inferior quele que existia anteriormente, por razes de segurana, no la-borais mas polticas. O prprio patronato atentamente vigiado, podendo incorrer em penas de priso, como alis chegou a acontecer, quando no cumprisse rigorosamente as medidas anunciadas. Estas vo ser, principal-mente para o operariado, brutais, destroando um movimento que dificil-mente se levantar com a mesma energia e motivao (ou desespero?), como se pode constatar pelo facto de no movimento grevista que se sucede, em Maio de 1944, nenhum dos sectores de 1943 participar.

    Para o relato destes acontecimentos seguir-se-o duas fontes principais: a imprensa da poca, legal e clandestina, e os depoimentos de algumas das mulheres que viveram na primeira pessoa muitos destes acontecimentos. A apresentao destes dados ocorrer em captulos separados, porque se procu-rou ler cada uma destas fontes dentro da sua lgica de construo intema. Ou seja, importante, por um lado, ver como na diversa imprensa os aconteci-mentos vo sendo apresentados e que leitura isso nos d do que se passou, por outro, os depoimentos das entrevistadas tm uma coerncia intema e cronolgica diferente, fruto da elaborao individual e colectiva do trabalho da memria ao longo destes ltimos sessenta anos (Halbwachs, 1950). As-sim, sem descurar possveis e emiquecedores cruzamentos de informao factual, seguir-se- uma apresentao linear das fontes consultadas. Procu-

    '^ Ver "Comunicao aos Servios de Mobilizao Industrial de encerramento da Fbrica Rankin Brothers & Sons aps a greve de 1943". Fonte: Arquivo Histrico Mili-tar/Repartio de Gabinete/Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 134.

    ** E interessante verificar que a Nota da Repartio do Gabinete do Ministrio da Guerra refere que quem abandone o trabalho ser incorporado "num batalho de trabalhadores, subordina-do mais severa disciplina militar" acentuando expressamente que estas medidas dizem res-peito a qualquer indivduo "independentemente do sexo". No temos notcia de nenhuma mulher que de facto tenha sido incorporada em qualquer grupo de trabalho sob comando militar. No entanto, no deixa de ser interessante a necessidade de acentuar a idia de que a represso atingiria os membros de ambos os sexos de forma igual, ao contrrio da prpria poltica do regime que os diferenciava de tantas formas.

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    rar-se- tambm, sempre que possvel, remeter para alguma documentao da poca. Sendo que esta ltima, pela sua escassez e irregularidade, no ser utilizada como fonte primeira na sistematizao dos acontecimentos, servin-do apenas de ilustrao para situaes pontuais em que possa ser pertinente para corroborar, relativizar ou mesmo colocar em dvida as outras fontes. Sempre que possvel, centrar-se- a anlise apenas no comcelho de Almada, em primeiro lugar porque esse o mbito do artigo e depois porque j exis-tem estudos sobre outras localidades, nomeadamente o Barreiro, que devido dimenso numrica do seu operariado se constituiu de facto como o "epi-centro" da greve e se tomou na vila mtica do imaginrio antifascista.

    A Imprensa

    O jornal O Sculo refere pela primeira vez as "perturbaes no tra-balho" de 1943 na sua edio de 29 de Julho, embora situe cronologica-mente o seu incio dois dias antes, ou seja, a 27 de Julho. As trs notcias que surgem na primeira pgina do informaes gerais sobre o sucedido, situan-do primeiro a paralisao em " algumas fbricas do Barreiro e arredores" e depois enumerando as diversas medidas estatais conducentes restituio da ordem pblica e ao castigo dos agitadores. No que diz respeito a Almada, uma das fbricas que mais vezes e com maior incidncia aparece conotada ao movimento grevista so os estaleiros navais da Parry & Son.

    Surgem tambm, com bastante freqncia, nesta edio, descries do comportamento das mulheres envolvidas na greve, em diversas localidades do pas. As greves de 1943, ao contrrio do que parece ter acontecido no 18 de Janeiro de 1934, so greves onde as mulheres se destacam com um mpe-to estrondoso. Elas detm um papel importantssimo na agitao e no inci-tamento das massas, o que acontece de forma frontal e assumida, muito dife-rente do tipo de comportamento que podemos encontrar na anlise dos seus quotidianos de resistncia.^

    O jornal O Sculo, a 29 de Julho, descreve assim a situao em Almada: "Enquanto os operrios de estabelecimentos fabris do concelho de Almada, como a Fbrica Moinhos Reunidos do Caramujo, as oficinas de preparao de cortia e fabrico de rolhas do Caramujo e Cova da Piedade, os estaleiros da firma Parry & Son do Ginjal, e a Companhia de Lanifcios de Arrentela, num total de cinco mil pessoas, abandonavam o trabalho, muitas mulheres protestavam. Grupos houve que apedrejaram estabelecimentos, partindo vidros, e assaltavam o Grmio de Comerciantes. Outros, misturavam com os

    A anlise dos quotidianos de resistncia das mulheres operrias de Almada articulado com as questes aqui apresentadas est a ser desenvolvida no mbito de um projecto de doutora-mento em curso.

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    seus gritos de protesto palavras de incitamento a operrios da construo civil ainda a trabalhar, que aderissem aos seus colegas. Tentaram ainda, que o ordeiro operariado do Arsenal do Alfeite paralizasse o trabalho, o que no conseguiram. A Policia de Settlbal, reforada com praas da P.S.P. de Lis-boa, sob o comando do sr. cap. Maia de Loureiro, distribui-se pelas locali-dades do concelho e mantinha a ordem. Apesar de tudo, as mulheres apro-veitavam todos os momentos para se manifestarem, percorrendo as ruas. Se viam outras s janelas, incitavam-nas a que sassem e se lhes reunissem. As autoridades intervieram (...)^^ As manifestantes apedrejaram, ento a Polcia, que teve de dispers-las coronhada. Dois guardas e algumas mulheres fica-ram feridos. (...) Por isso, as autoridades mandaram que os estabelecimentos fabris encerrassem as suas portas. Apesar de tudo as manifestaes conti-nuaram e, s quando desembarcou na ponte da Pararia uma seco de metralhadores da G.N.R., que tomou posies, se restabeleceu alguma cal-ma. Os operrios que se mantinham de braos cados na fbrica de moagem de Caramujo foram desalojados pela autoridade. Foram presas numerosas mulheres que deram entrada nos quartis da G.N.R., na esquadra da Polcia e no posto da Guarda Fiscal. Durante a noite houve rigoroso servio de patru-lhas. "^'. Noutras localidades, como Lisboa ou o Barreiro, tambm se desta-cou a participao "activa" das mulheres.

    No dia seguinte, 30 de Julho, as notcias acerca da paralisao do trabalho continuam a merecer destaque de primeira pgina, por um lado para anunciar o regularizar da situao, embora assumindo excepes "no bairro de Alcn-tara e em algumas localidades da Outra Banda"^^, por outro anunciando a entrada em funes do Major Botelho Moniz, delegado especial do Ministrio da Guerra para a Mobilizao Industrial, que vai ter um papel importantssimo no controle e represso do movimento grevista. Ambas as notcias continuam no interior do peridico, percorrendo uma as localidades grevistas, onde se vai descrevendo a normalizao do ambiente, e outra a implementao das medi-das que o Govemo impor s fbricas, como os despedimentos, a abertura de inscries e o recrutamento de legionrios. No que diz respeito a Almada, des-taca-se o ambiente de "tranqilidade", embora na realidade a vila estivesse a ser patrulhada por foras da G.N.R. e tivessem sido feitas vrias detenes de operrios da Parry & Son e da Companhia Portuguesa de Pesca'3.

    A 31 de Julho, O Sculo continua a assegurar em primeira pgina que "A normalidade do trabalho est virtualmente feita quer em Lisboa quer na

    ' Falta texto no prprio jornal, provavelmente ter sido um erro de impresso. ' ' O Sculo, 29 de Julho de 1943, p. 2. (destaques meus) '- O Sculo, 30 de Julho de 1943, p. 1. '3 O Sculo, 30 de Julho de 1943, p. 6.

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    Outra Banda"^^. No entanto, no seu interior, encontramos a descrio da paralisao ainda em vigor entre os operrios corticeiros: "Normaliza-se a situao no concelho de Almada. H tranqilidade em todo o concelho de Almada. Algumas foras da Policia retiraram, seguindo parte para o Seixal e regressando outra a Lisboa. No Caramujo, os operrios que tinham aban-donado o trabalho na fbrica de moagem dos Moinhos Reunidos apresenta-ram-se ao servio. Na Cova da Piedade, conservam-se paralisados apenas os operrios corticeiros, que abandonaram os recintos das fbricas. A situ-ao normaliza-se. "'^.

    Com a entrada neste perodo de "normalizao", algumas fbricas so ili-badas de responsabilidades pelas autoridades e voltam rapidamente a laborar, readmitindo os mesmos operrios. Muitas outras tm, no entanto, de seguir processos mais morosos pois, de acordo com os comunicados do Govemo, nenhuma fbrica implicada no movimento grevista poderia reabrir sem fazer novas inscries sendo estas depois devidamente sancionadas pelos servios de Mobilizao Industrial. Alis, a partir do incio de Agosto e at meio de Setembro, as notcias que aparecem n'(9 Sculo so meramente informativas, apontando as fbricas que podem ou no retomar a laborao, de acordo com a devida autorizao dos servios fiscalizadores. Atravs destas notcias pode-mos constatar que as fbricas de cortia de Almada, nomeadamente a Hem-y Bucknall & Sons, so das que tm autorizao para abrir mais tardiamente.

    No dia 31 de Julho, so ainda anunciadas algumas detenes no Barrei-ro mas em Almada a ordem parece estar restabelecida, destacando o jornal a apresentao ao trabalho de muitos operrios corticeiros, o que deveras importante se atendermos ao facto de que estes eram umas das mais activas classes em greve. Sobre Almada tambm anunciada uma primeira excep-o ao encerramento das fbricas, para se efectuar um carregamento de cor-tia por forma a cumprir os prazos de uma encomenda para o estrangeiro. Este trabalho ser no entanto realizado por pessoal militar sendo que, depois de finalizado, as fbricas voltaro a encerrar'^.

    Alguns dias mais tarde, a 4 de Agosto, numa pequena notcia de segunda pgina, anunciado que "foram postas em liberdade e regressaram a Caci-Ihas trinta e quatro mulheres, que tinham sido presas naquela povoao, em Almada e na Cova da Piedade."'''. Parecem, assim, no restar dvidas de que foram detidas mulheres em Almada aquando do movimento grevista.

    ^^ O Sculo, 31 de Julho de 1943, p. 1. '^ Idem, p. 6. 16 Ver "Pedidos de autorizao para o recrutamento de pessoal adventcio depois dos despe-

    dimentos de 1943". Fonte: Arquivo Histrico Militar/Repartio de Gabinete/Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 134.

    '^ O Sculo, 4 de Agosto de 1943, p. 2.

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    A 17 de Agosto algumas fbricas de cortia de Almada ainda esto encerradas, devendo-se esse facto por um lado morosidade do processo de apuramento de responsabilidades mas tambm sua utilizao a ttulo de exemplo para o futuro, como se pode entender no discurso do jornal quando refere: "(...) a necessidade de, no interesse geral, dar exemplo que sirva para ofiituro. "'^. Talvez por isso, apenas a 24 de Agosto volte a aparecer no jomal uma lista das fbricas de cortia que podem reabrir no concelho de Almada'^. No entanto, muitas outras ainda no tm autorizao para reabrir as suas portas: "todas do Caramujo. [Onde] est ainda a proceder-se ao apuramento de responsabilidades. "-^.

    No se sabe ao certo porque foram escolhidas as fbricas de cortia de Almada para dar o exemplo. Fernando Rosas arrisca uma explicao: "(...) na indstria corticeira da Margem Sul, a primeira a entrar em greve e aque-la onde o patronato (em boa parte britnico) dera sinais de querer agir autonomamente para pr fim s greves, a punio seria severa: algumas so mantidas fechadas at incios do ms de Setembro, apesar dos pedidos dos industriais de Almada no sentido da reabertura. " (Rosas, 1995:385)^'. Neste mesmo dia, 24 de Agosto, encontramos tambm pela primeira vez uma refe-rncia concreta a um indivduo hierarquicamente superior a um operrio que ter sido punido por no cumprir as ordens emanadas pelas autoridades: "A ordem do delegado especial do Ministrio da Guerra, foi preso o industrial Luciano da Ponte, gerente da fbrica de cortias da Margueira, propriedade dafinna Barreiros & C." (Irmos), por no haver participado oportunamente aquele Ministrio a paralisao de trabalho ocorrida na sua fbrica e por haver reaberto a mesma e readmitido o pessoal respectivo sem autorizao do delegado especial. A fbrica foi imediatamente encerrada. "--.

    '8 O Sculo, 17 de Agosto de 1943, p. 2. '^ Muitas destas no so fbricas de grande dimenso mas aquilo que na zona se denomina por

    "fabricos", ou seja, pequenas exploraes familiares que empregam alguma mo de obra assalariada e onde tambm alguns dos operrios das fbricas maiores fazem "biscates".

    - O Sculo, 24 de Agosto de 1943, p. 2. Ver "Listagens de operrios corticeiros das fbricas de Almada despedidos devido s greves de 1943". Fonte: Arquivo Histrico Mili-tar/Repartio de Gabinete/Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 137; Ver "Autos de Perguntas da PVDE sobre as greves de 1943". Fonte: ANTT/ PIDE-DGS/ Proc. 906/43/ 6." vol./ Greves CUF/ Jos do Couto; Ver "Troca de correspondncia entre os Servios de Mobilizao Industrial, a Cmara de Almada e os donos das fbricas de cortia, aps as greves de 1943, sobre os salrios dos operrios". Fonte: Arquivo Histrico Mili-tar/Repartio de Gabinete/Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 135; Ver "Compara-o de Salrios das Fbricas de Cortia de Almada". Fonte: Arquivo Histrico Militar/ Re-partio de Gabinete/ Servio de Mobilizao Industrial/ Pasta 137.

    -' Ver texto de um abaixo assinado de comerciantes e outras entidades de Almada que pedem a reabertura das fbricas. Fonte: Arquivo Histrico Militar/ Repartio de Gabinete/ Servi-o de Mobilizao Industrial/ Pasta 134.

    -- O Sculo de 24, Agosto de 1943, p. 2.

  • A fome saiu rua 259

    A esta questo do apuramento de responsabilidades, no ser concerteza alheia a complexa teia de interesses estrangeiros em Portugal que se encontra bem espelhada nas mquinas de propaganda que pases como a Inglaterra, os EUA e a Alemanha tinham a funcionar no nosso pas. Antnio Telo, refere, por exemplo, que quando se do as greves de 1942 a Alemanha ir lanar uma campanha de contra-informao atravs da distribuio de panfletos assinados por uma organizao portuguesa, no existente, onde se diz que a culpa da falta de abastecimentos dos Aliados. Por isso o OSS (Office of Stratgie Services) ingls "no hesitou em atribuir Alemanha vrios boa-tos que circulavam em 1943 e 44, segundo os quais os aliados estavam en-volvidos numa conspirao militar para derrubar Salazar" (Telo, 1989:13). O facto de os operrios da grandes firmas inglesas de cortia de Almada te-rem sido os primeiros a avanar para a greve, no deve ter contribudo favo-ravelmente para eliminar as suspeitas que o regime pudesse ter sobre o papel dos servios secretos ingleses em todo este processo, embora na realidade nada tenha conseguido provar.

    Apesar de alguma informao importante que podemos ainda encontrar ao longo de Agosto, notrio que a partir do dia 2 em diante as notcias sobre a paralisao do trabalho vo diminuindo bastante em termos de dimenso e de visibilidade, desaparecendo praticamente no final do ms.

    No Dirio de Notcias, tal como no O Sculo, apenas dia 29 de Julho surgem as primeiras notcias sobre as ''perturbaes da ordem"^^. No que diz respeito ao tipo de informao veiculada pelas duas publicaes, ela bastante semelhante. Alis, os editoriais de dia 29 so mesmo idnticos na apresentao da questo das greves. Ambos destacam as dificuldades vividas pela populao portuguesa em termos de abastecimentos, mas retomam as palavras do Ministro do Interior, ao referirem que os operrios que reclamam no so mal pagos, pois nem fazem parte das reivindicaes os aumentos salariais, e em termos globais toda a situao fruto da conjuntura de guerra no se podendo, por isso, culpar os govemantes portugueses. O jomal Avan-te vai alis, mais tarde, responder a estas palavras num pargrafo sobre os objectivos do movimento^^.

    No que diz respeito s diferenas entre as duas publicaes, o que encontramos no Dirio de Noticias uma abordagem menos descritiva dos acontecimentos, nomeadamente do papel desempenhado pelas mulheres. No total das notcias publicadas no dia 29, as referncias feitas a estas so ape-nas duas, uma logo no incio em que aparecem enunciadas juntamente com os homens: "(...) grupos de homens e mulheres tentaram alterar a ordem

    23

    24 Dirio de Notcias, 29 de Julho de 1943, p. 1. Avante, n. 38, 2." quinzena de Agosto, 1943, p. 1.

  • 260 Snia Ferreira

    (...)"25. E uma segunda, onde de facto se descreve resumidamente alguns dos seus comportamentos mais "violentos", que alis j tnhamos visto nas des-cries do O Sculo, e que tambm se podem encontrar no Avante. O Dirio de Notcias diz: "Em Almada e Cova da Piedade chegou a haver certo pni-co quando grupos de mulheres, mal aconselhadas, pretenderam evitar que a Policia e a G.N.R. restabelecessem a ordem. "^^.

    Os acontecimentos no Dirio de Notcias so em geral descritos com menos pormenor, raramente se destacando aces particulares de um grupo ou outro. No entanto, em termos gerais, percebe-se claramente que todo o material publicado sobre as greves emitido pelo regime, primeiro porque as informaes so estritamente iguais em contedo^'', remetendo sempre para as mesmas declaraes e comunicados e em segundo, porque mesmo nos casos em que a informao parece ter sido construda de forma mais espon-tnea e baseada em opinies e arbtrios pessoais, como no caso dos edito-riais, a situao de similitude se mantm. Em suma, o Dirio de Notcias passa a mesma mensagem, mas omitindo alguns pormenores, o que d ori-gem a uma imagem das greves menos realista, mais apagada, retirando-lhes importncia e impacto meditico.

    Apesar de algumas diferenas, j apontadas, sobre a forma como estas duas publicaes tratam a questo das greves, no essencial a informao vei-culada a mesma, sendo alis disponibilizada pelas mesmas fontes, gover-namentais sem dvida. Passaremos assim a analisar uma outra publicao, o jomal Avante, numa tentativa de olhar para o outro lado do espelho.

    O jomal Avante vem desde 1942, e respectivamente das greves de Outubro/Novembro, a incitar continuamente s paralisaes e greve como forma de reivindicao de melhores salrios e condies de vida. No que diz respeito aos contratos de trabalho que surgem aps as greves de 42, o PCP tem uma posio dupla pois considera que "(...) no seu conjunto, tm como finalidade castrar o impulso revolucionrio das massas iludindo-as, prome-tendo aquilo que de antemo, o patronato prope no cumprir" mas tam-bm "(...) representam no seu aspecto poltico uma vitria da classe oper-ria. "2 .^ Um outro assunto que preocupa o PCP e que motivo de inmeros tumultos e alteraes ordem, por parte das populaes, o envio de gne-ros para os pases do Eixo. Comea a ser comum encontrar no Avante descri-es de situaes de apropriao de gneros por parte das populaes, alis.

    -^ Dirio de Notcias de 29 de Julho de 1943, p. 1. 26 Ibidem. "^ At os erros so iguais. Exemplo da fbrica Henry Bucknall & Son de Almada, que aparece

    simultaneamente nas listas de reabertura e de continuao do encerramento, no mesmo dia, nas duas publicaes.

    2^ Avante, n. 25, 2.' quinzena de Janeiro, 1943, p. 3.

  • A fome saiu rua 261

    O prprio jomal d incentivo a esse tipo de aces: "Camponeses! Segui o exemplo das camponesas de UL. Apoderai-vos de tudo aquilo que vos quei-ram roubar, para auxiliar os assassinos e salteadores do eixo. "^^; "Resisti ao roubo do milho! Assaltai os depsitos onde esteja assambarcado o milho e distribui-o pelo povo!"^^. Ou seja: "H que assaltar todos os locais onde os gneros estejam assambarcados. H que ir buscar os gneros onde os houver "^K As palavras de ordem so: "O povo luta pelos gneros. O povo luta contra as requisies. O povo luta contra as exportaes para os fac-noras hitlerianos. "^'^.

    O que encontramos de comum nestas descries sobre aces de apro-priao de gneros o facto de, na maior parte dos casos, serem as mulheres as protagonistas dos acontecimentos. Da que no prprio jomal encontremos muitas palavras de incentivo s mulheres e s suas aces: "As mulheres, que so quem mais sofre com a falta de gneros, voltaram novamente a jun-tar-se e a protestar. (...) Mulheres de S. Joo da Madeira! Continuai a vossa luta enquanto vos no fornecerem todos os gneros de que necessitais! Tra-balhadores de S. Joo da Madeira! Apoiai as mulheres que lutam contra a falta dos gneros!"^^, "Um magnfico exemplo de luta pelo Po acaba de ser dado pelas valentes mulheres de Braga. (...) Tambm em Arrifana, de Vila da Feira, mulheres fizeram uma marcha da fome (...) seguindo o magn-fico exemplo das mulheres de S. Joo da Madeira, as valentes mulheres de Arrifana, levando frente os seus filhos esfarrapados e famintos, apresenta-ram-se na Administrao do Concelho (...)"^'^. Noutros nmeros do Avante, mesmo depois das greves de 1943, encontramos muitos relatos destes. Alis, nota-se que existe a preocupao de recensear exaustivamente todos os mo-vimentos reivindicativos que vo ocorrendo pelo pas.

    Quando chegamos ao momento das greves de 1943 propriamente ditas, nos ltimos dias de Julho^^, um manifesto do Secretariado do Comit Central do PCP destaca o papel das mulheres no movimento: "Valentes mulheres do nosso povo! Vs tendes dado exemplos hericos de como se luta pelo Po. Vs tendes sido o exemplo vivo da abnegao, da combatividade, da inicia-tiva da classe trabalhadora". Sublinhando as aces das mulheres de Alma-

    2^ Avante, n. 28, 1." quinzena de Maro, 1943, p. 3. ^ Avante, n. 33, 1." quinzena de Junho, 1943, p. 3. '^ Avante, n. 38, 2." quinzena de Agosto, 1943, p. 1. 2^ Avante, n." 33, 1." quinzena de Junho, 1943, p. 3.

    " Avante, n. 28, 1." quinzena de Maro, 1943, p. 3. '^^ Avante, n. 33, 1." quinzena de Junho, 1943, p. 3. ^^ A greve comea em Almada no dia 26 de Julho, alastrando dia 27 para o Barreiro e Lisboa

    e comea a declinar por volta de dia 30, 31, embora no seja fcil estabelecer com rigor a data da sua extino.

  • 262 Snia Ferreira

    da: "As hericas mulheres de Almada, numa manifestao de 2.500 pessoas consegiiram a paralisao total da indstria e do comrcio e exigiram que fossem postos disposio do povo os gneros de que necessitavam. Valen-tes mulheres! Organizai marchas da fome, levai cartazes onde se leia: "Te-mos fome!", "Queremos gneros!". Desfraldai as bandeiras negras, as bandeiras da fome. Assaltai todos os lugares onde estejam os gneros aambarcados. Ide buscar os gneros onde os houver. "^^. Tambm o jomal Avante, de Agosto, destaca logo no sub-ttulo da primeira pgina: "Milhares de mulheres trabalhadoras lutam pelo po. "^ ^ e como o movimento tem in-cio nas fbricas corticeiras de Almada, o Avante descreve pormenorizada-mente neste nmero o que a "verdadeiramente" se passou: ''Em Almada, depois da policia ter pretendido encerrar a fbrica Rankin, os operrios desta fbrica organizam-se em manifestao que se dirige administrao do concelho, pedindo gneros. A manifestao converte-se numa possante marcha da fome de 2.500 pessoas, sobre a qual flutuam duas grandes bandeiras negras (as bandeiras da fome). O administrador envia ao encontro das mulhe-res uma fora da G.N.R. mas os guardas negam-se a executar as ordens de espancar as valentes mulheres. E ento que o tenente Manulito bate nos pr-prios guardas para os obrigar a bater nas mulheres. Ele prprio espanca a torto e a direito, ferindo gravemente uma velhinha. Os bombeiros voluntrios de Almada e Cacilhas, numa digna atitude, negam-se a fazer uso das agulhetas para dispersar os trabalhadores. Esta manifestao arrasta para a greve toda a indstria de Almada e obriga o comrcio a fechar. Quando chegam camionetas da policia, dezenas de mulheres, julgando que a polcia vai prender os seus companheiros, deitam-se na estrada, num gesto herico, no deixando assim passar as foras. A um delegado do govemo que procurava convencer os tra-balhadores e regressarem ao trabalho uma herica mulher operria, expe em alta voz, diante de centenas de operrios, as reivindicaes dos trabalhadores. (...) 3. Dia: 50.000 operrios em greve. (...) Em Almada, tm lugar novas marchas da fome. As mulheres obrigam novamente o comrcio a fechar. "^ ^ O jomal tambm destaca o papel das mulheres do Barreiro e de Lisboa, no mbi-to da greve, e doutras localidades, como por exemplo Coimbra, onde os cam-poneses e camponesas se revoltam contra a escassez de gneros.

    No nmero seguinte do Avante, o recuo encontra-se j bem visvel nas palavras: "Os trabalhadores de Lisboa, Almada, Barreiro, Seixal, Amora e outras localidades, efectuaram um recuo tctico ganhando posies para

    ^^ Manifesto do Secretariado do Comit Central do PCP intitulado "Em greve e unidos a vit-ria ser nossa" de 29 de Julho de 1943.

    3"^ Avante, n. 38, 2." quinzena, Agosto, 1943, p. 1. 3^ Avante, n. 38, 2.' quinzena de Agosto, 1943, p. 2. (os destaques so do original)

  • A fome saiu rua 263

    desencadear novas ofensivas. "^^. E o encerrar de um ciclo que voltar a desabrochar em Maio de 1944, mas j no com a mesma fora nem nos mesmos locais.

    Com maior ou menor intensidade na apresentao e descrio dos fac-tos, encontramos quer na imprensa legal quer na clandestina, pontos de con-vergncia sobre os acontecimentos do Vero de 1943. No parecem restar dvidas de que na Margem Sul, nomeadamente no Barreiro e em Almada, a greve teve uma adeso sem precedentes. Sobre o papel desempenhado pelas mulheres, operrias principalmente mas no s, no desenrolar dos aconteci-mentos, as descries tambm so unnimes: elas saem rua aos milhares para reclamar, encabeam marchas de protesto, confrontam-se com a polcia e so reprimidas violentamente. Nas descries do jornal O Sculo e Dirio de Notcias, a forma como so descritas e adjectivadas as aces levadas a cabo pelas mulheres operrias, pretendem que estas sejam vistas como con-denveis, inconscientes, mesmo contranatura em descries como: "dezenas delas, que numa inconscincia espantosa levavam consigo os filhos meno-res "; "levavam debaixo dos aventais pedras que, num gesto condenvel, ati-ravam aos carros elctricos"; "foi nessa altura que se deram tumultos, principalmente provocados pelas mulheres"; "grupos de mulheres mal aconselhadas". Por outro lado, o mesmo tipo de descries que, na imprensa legal, podem ter sido mais ou menos exagerados com o intuito de servir um determinado fim ideolgico, apresenta-se no jomal clandestino Avae preci-samente com a mesma finalidade, mas servindo outros pblicos e outros in-teresses. Aqui, do outro lado da luta, as descries so sobre as "hericas " e "valentes mulheres" do "nosso Povo", "o exemplo vivo da abnegao" e da "combatividade da classe trabalhadora".

    No final, uma coisa certa: nunca as mulheres operrias tinham tido, durante o Estado Novo, honras de primeira pgina na imprensa. Seja pela crtica ou pelo incentivo, desta vez, ao contrrio de muitas outras, as suas aces no foram relegadas para o esquecimento da Histria. Talvez tam-bm, porque pela primeira vez o regime as viu agir de forma to inesperada.

    As protagonistas - "Ai, valha-me Deus, nem me fale nas greves. Eu tive um medo (...) no foi s a fbrica, que os corticeiros eram muito revolto-sos. (...) Foi toda a gente."^

    As mulheres so, como se viu, das principais protagonistas pblicas das greves de 43. Elas incitam adeso, encabeam marchas da fome, assaltam

    ^^ Avante, n. 39, 1." quinzena de Setembro, 1943, p. 1. ^ R. O. Operria corticeira da fbrica Rankin & Sons, nascida em 1917. Depoimento recolhido

    em 2003.

  • 264 Snia Ferreira

    locais para a apropriao de gneros e redistribuem-nos, atiram pedras, par-tem vidros, tocam sinos, cortam fios telefnicos, assaltam comboios, gritam, insultam, barafustam, pedem e exigem, de forma clara, directa, pblica e frontal. Este comportamento, quando comparado com a sua forma de agir no quotidiano, pode parecer, numa primeira anlise, estranho e incoerente. No entanto, enquadra-se numa tipologia sexual de diviso do trabalho reivin-dicativo. Em primeiro lugar, estas greves esto intimamente associadas a problemas scio-econmicos, de subsistncia e sobrevivncia, ou seja, a uma parte da vida que toca especialmente s mulheres, enquanto gestoras da clu-la domstica. O clima de agitao e de insatisfao que se vive no pas mais visvel nos problemas que surgem quotidianamente nas ruas por causa do racionamento, da fome e da misria, do que, propriamente, no trabalho poltico feito e planeado na clandestinidade. Ou seja, ambos so motores im-portantes da revolta, mas a insatisfao nas ruas cmcial para o desencadear da situao. Na rua encontram-se as motivaes e os incentivos que podem conduzir at o mais temeroso a agir. Em segundo lugar, se as mulheres so geralmente arredadas do trabalho poltico formal no quotidiano, nos momen-tos de revolta so utilizadas como elemento chave para o confronto, por exemplo, com as foras policiais. A idia de que as mulheres no sero deti-das ou agredidas prevalece durante bastante tempo, por um lado acreditando na ideologia do regime e na forma como este entende e define o "segundo sexo", e por outro porque, na verdade, elas so menos essenciais ao movi-mento, no caso de serem presas. Este tipo de discurso aparece com freqn-cia nos depoimentos:

    "As mulheres vinham sempre frente, os homens iam sempre atrs.". (JF i^)

    A memria das greves de 43 em Almada parece fundir-se numa mem-ria lata e abrangente sobre as greves em geral e os momentos de excepo que elas constituam. Apesar disso, possvel isolar uma ou outra narrativa que, pelo cruzamento de dados ou referncias histricas, incide particular-mente sobre estes acontecimentos. Da memria das greves deste ano desta-cam-se: a falta de gneros, as marchas da fome, a represso policial e os despedimentos, embora estranhamente estes sejam at os menos referidos.

    No que diz respeito falta de gneros, aparecem na descrio dos quo-tidianos referncias s bichas, ao racionamento, ao mercado negro e ao aambarcamento como temas recorrentes nos discursos destas mulheres, tan-to no papel de vtimas do sistema como de agentes subversores do mesmo.

    '*' Operria corticeira da fbrica Rankin & Sons, nascida em 1918. Depoimento recolhido em 2003.

  • A fome saiu rua 265

    De facto, as referncias ao perodo da guerra, so sempre acompanhadas por esta memria da carncia de gneros, que condicionou radicalmente a gesto quotidiana das famlias durante esses anos:

    "A gente chegava c fora, estvamos dentro das fbricas a trabalhar, todo o dia, chegvamos s 17h00 saamos, amos aos estabelecimentos j no havia carvo, no havia azeite, nada! Ns tambm no podamos viver sem comer. No havia acar. As pessoas que estavam todo o dia em casa compravam tudo, aambarcavam e ns que estvamos nas fbricas j no tnhamos nada para comprar. Era a fome e a guerra, era tudo.". (GC)'*^

    Tambm Angela Luzia destaca estes discursos no feminino sobre a con-juntura de guerra: "As memrias femininas so aqui muito mais detalhadas, o que no espanta dada a sua responsabilidade de prover alimentao da famlia. Recordam-se os estratagemas colectivos para subverter o raciona-mento e encontrar formas alternativas de abastecimento, a fome, a revolta perante a corrupo e o sentimento de incapacidade de resoluo de uma situao que no passava especificamente pelas magras economias familia-res."''\

    As marchas da fome, talvez por serem dos momentos mais picos de desafio frontal ao poder, so amplamente evocadas e descritas com emoo:

    ""Abaixo o govemo" - era mesmo para ir presas.". (RG)

    "amos com um casaco que a gente pendurou l. Uma qualquer deu o casaco e a gente em vez da bandeira pendurou-se o casaco. (...) foi uma coisa muito grande. Pessoas que estavam na ma e que estavam em casa vie-ram, veio tudo na marcha flamb. (...) aquilo no se gritava mais porque os pulmes no davam para mais: "Temos fome, temos fome". Depois veio de l a Guarda Republicana, at Cacilhas bateu-se com os calcanhares no eu, por aquela ma das Terras [Rua Carvalho Freirinha].". (JF) "No me recordo o ano em que foi, em que havia uma grande greve, as mulheres da cortia vinham todas da Piedade, com bandeiras pretas (...) eu sa, fui mercearia comprar petrleo e vi aquela gente: "Trabalho sim, morte no. Morte PIDE, morte PIDE". E eu disse: "Ai Jesus, o que isto?". Muita mulher e muito homem com bandeiras pretas, naquela altura eu com os meus dezassete anitos talvez, dezassete ou dezoito anos, nunca tinha assistido a nada daquilo. Quando vi aquelas mulheres o que que eu

    42 Operria corticeira da fbrica Rankin & Sons, nascida em 1917. Depoimento recolhido por ngela Luzia: Luzia, M. (1994/96) A Memria, A Cidade e o Rio, dissertao de mestrado, UNL-FCSH (policopiado), p. 74 (anexos).

    ^'^ Idem, p. 53.

  • 266 Snia Ferreira

    fao, atravesso a rua e meto-me dentro da escada, era um rs-do-cho. E ento vejo elas passarem todas, da cortia, vinham todas da Piedade. (...) Foi no dia em que elas vinham j todas da cortia e depois aderiram as pessoas de Almada, aderiram.". (BR"^)

    Demonstra-se tambm um conhecimento da simbologia associada aos cones utilizados como forma de expresso:

    "Foi-se para Almada, foi-se para a Cmara, pendurou-se l no mastro da bandeira um casaco, um casaco, calhou a no ser o meu que eu nem sei se levava casaco, no me lembro. Um casaco preto em vez da bandeira, sig-nificava que era fome, uma bandeira preta.". (JF)

    A represso policial detalhadamente relembrada atravs das experin-cias prprias ou ento, no relato de algum caso que se tenha destacado ou pela bmtalidade da represso de que tenha sido alvo ou pelo engenho com que se ludibriou as foras policiais:

    "Vem de l a polcia (...) havia um tomatal e as raparigas andavam de meias, de Vero ou de Inverno, e houve ali uma que fugiu por dentro des-se tomatal chegou com as meias todas verdes. Santa me de deus (...) vinha uma carrinha que a gente chamava-lhe a ramona. E veio uma car-rinha e entrou l dentro e levou-as.". (RG)

    "Elas foram presas porque aquilo foi uma greve muito grande, depois elas foram presas para Almada, de Almada foram para o Govemo Civil mas quer dizer a gente sabe isso depois de elas terem sado, quando elas esta-vam presas iam para Almada ou iam logo directas a Lisboa, em camio-netas e a p.". (JF)

    A referncia deteno de mulheres quase sempre seguida de comen-trios acerca da situao vivida nos locais de deteno, aliada evocao das especificidades da condio feminina:

    "Tive muitas colegas que foram presas. Com aquela coisa das greves mui-tas foram presas mas vinham sempre mais depressa do que os homens. At porque depois vinha a menstmao e as cadeias no tinham condies e depois tinham que mandar as mulheres embora. Vinha o perodo e depois elas no tinham roupa porque no tinham visitas e no tinham roupa e para se lavarem e tudo. Tinham que as mandar embora.". (JF)

    44 Operria emalhadora de redes de pesca na Sociedade de Reparao de Navios, nascida em 1929. Depoimento recolhido em 2003.

  • A fome saiu rua 267

    A referncia menstmao feminina comum nas descries de mulhe-res acerca dos seus perodos de deteno, alis uma das primeiras evoca-es que fazem para explicar as ms condies de higiene em que eram man-tidas, as humilhaes e maus tratos. Paula Godinho destaca-o para as mulheres do Couo: "A negao dos mais elementares cuidados de higiene durante dias seguidos, constitua uma humilhao que, freqentemente, tinha sido iniciada no momento de deteno (...). Particularmente lesadas ficavam as mulheres, sem poderem recorrer a qualquer proteco durante a menstruao, humilhadas pelo fiuxo que tinham de ir sustendo e limpando com as prprias roupas" (Godinho, 2001:292).

    O encerramento das fbricas um facto pouco referido, talvez por outros terem sido os elementos que se mantiveram mais activamente associados memria do movimento das greves, como as marchas, as palavras de ordem, as fugas polcia, etc. Embora, como j vimos, as fbricas de cortia de Almada tenham estado encerradas por um perodo excessivamente longo, quando comparado com outros estabelecimentos igualmente envolvidos no movimento. Talvez por nenhuma das mulheres entrevistadas ter sido presa, ou ter estado directamente sob os "olhares" da polcia e a regularizao da sua situao laborai se ter dado sem incidentes de maior, prefira lembrar essas outras vertentes mais picas e invulgares do quotidiano. No entanto, apesar de pouco referenciados, os despedimentos no deixam de ser evocados:

    "Houve uma greve muito grande, l na fbrica, nas fbricas, e ficaram muitos homens de fora. No Rank. (...) Isto na greve, isto no perodo mes-mo da greve. (...) Ficaram muitos homens de fora e muitas mulheres de fora. Quer dizer a fbrica comeou a trabalhar mas ficou muita gente de fora.". (JF)

    A represso policial foi, como j se viu, dura e implacvel, mas encon-tramos presentes muitos dos elementos de resistncia existentes j no 18 de Janeiro de 1934, como a solidariedade da comunidade, que ajudava os oper-rios na fuga s foras policiais, e depois o reactivar de redes de entreajuda na tentativa de localizao dos detidos:

    "Quando encontrvamos algum conhecido: "Ento o que isso? Ento o que isso?". " a greve vem a a polcia". "Entra aqui, anda c, anda c". Abria a porta e a gente metia-se na cama, ou na cozinha a fingir que est-vamos a fazer as coisas. E ela fechava a porta, a dona da casa. A Guarda como vinha desarvorada atrs daquela malta toda, seguia e a gente l ficava em casa. (...) Aqui fazia-se costas uns aos outros. Era mesmo assim. espera disso que a gente ia num vai e vem c para fora.". (JF)

  • 268 Snia Ferreira

    "Quando era nas greves. E ento iam presas e ningum sabia para onde que elas iam. A gente mais ou menos sabia que iam sempre para o Gover-no Civil mas depois dali no se sabia nada delas, mesmo havia pessoas, eu por exemplo tinha um tio, que o meu sogro era encarregado l na fbrica e tinha um cunhado que era polcia no Govemo Civil e ento em muito segredo, que nem o cunhado dizia nem mulher nem aos filhos nem nada, aonde que elas ao depois eram transferidas, elas e eles, homens e mulheres era tudo preso.". (JF)

    A expresso "Aqui fazia-se costas uns aos outros" sintetiza de facto, de forma brilhante, o sentimento de pertena a uma comunidade envolvida num acto de afronta colectivo ao poder institudo e que conscientemente protege aqueles que considera seus: "A imagtica da greve como desafio e manifes-tao de poder uma constante, significando a validao da experincia de pertencer ao conjunto da comunidade operria. " (Luzia, 1994/96:83). A uti-lizao da expresso militar, "fazer costas uns aos outros""* ,^ confere o tom belicista que os operrios de facto sentiam no confronto com as autoridades, era uma "guerra" o que se travava nas ruas. Tambm a dicotomia "ns" e os "outros" mais do que nunca faz sentido na definio dos lugares que se ocu-pa no seio do conflito. E esta diviso no apenas pensada sobre operrios versus polcia, mas tambm dentro da comunidade sobre operrios versus elites: "E tambm nesta manifestao que se verifica a maior dicotomia entre comunidade operria, smbolo de pobreza, e o incio de uma pequena e mdia burguesia ligada ao funcionalismo pblico, aos comerciantes, pequenos proprietrios de oficinas e alguns trabalhadores liberais: "Eles, no estavam connosco", mas "ainda havia gente boa, morta de medo, que nos ajudava. ". " (Luzia, 1994/96:83).

    Angela Luzia, considera que as greves de 43 so o "acontecimento hist-rico mais recordado" pelos seus entrevistados (Luzia, 1994/96:52). Todos relatam a sua participao num momento de excepo como este: "A informa-o circulava entre militantes e no militantes e, embora haja uma conscin-cia sobre a conduo e organizao partidria do processo, recordam a greve como algo onde a toda a comunidade participou e em que se sentiram empe-nhados individualmente." (Ibidem). A autora tambm destaca o papel desem-penhado pelas grandes fbricas corticeiras, assim como pela Sociedade de Reparao de Navios, neste movimento que sem dvida "subaltemizou todas as outras manifestaes de resistncia e organizao operria. "(Ibidem). Como exemplo desta hegemonia que caracteriza as greves de 43, a autora vai compar-las com as de 1952, 53 e 55, tambm associadas a perodos de fome e

    "^^ Expresso utilizada quando um grupo de indivduos est cercado por todos os lados e por isso se pem de costas, em crculo, de forma a cobrir toda a rea envolvente.

  • A fome saiu rua 269

    carncia mas recordadas "(...) de modo impreciso e apenas cotno "houve outras greves, em que as fbricas tambm pararam ". So igualmente pero-dos de afirmao de uma identidade e conscincia operria, mas que foram completamente subaltemizadospela "greve grande" de 43. "(Idem:54).

    O Vero de 1943 o vero de todos os acontecimentos para a popula-o de Almada, o culminar de meses de fome e misria que, apesar de no serem ultrapassados, so gritados e cuspidos na face do poder. tambm a primeira vez que se fala das mulheres como protagonistas de eventos pbli-cos desta natureza, elas so agredidas, detidas e tratadas como nunca at a em situaes de confronto. Salazar descobre um novo inimigo, as operrias "corajosas, insubmissas e com uma lngua imparvel" (Pereira, 2001:254) do seu "pacato" Portugal.

    Concluso

    As greves de 1943 foram sem dvida um momento marcante nas comu-nidades da Margem Sul, nomeadamente no Barreiro e em Almada. O Vero de 43 constitui um marco na memria da resistncia operria que muitas vezes a ele se refere, no s para evocar os acontecimentos, mas tambm para utiliz--lo como barreira cronolgica, num antes ou depois da "grande greve", que baliza acontecimentos pessoais, familiares, colectivos ou institucionais.

    Quanto ao papel decisivo que as mulheres desempenham nestas greves as opinies so unnimes. Segundo Pacheco Pereira, "A participao deci-siva de mulheres marcar todos os movimentos grevistas do perodo da guerra. (...) Sem as mulheres, o movimento pela conquista dos gneros e as marchas da fome no teriam tido qualquer sucesso. Em todos os docu-mentos do PCP, vai-se chamar a ateno para este papel das mulheres - os elementos mais infamemente explorados da classe trabalhadora, que mos-traram grande heroicidade, embora o partido tenha muita dificuldade em encontrar formas organizativas para as enquadrar." (Pereira, 2001:242). Angela Luzia destaca que, "foram elas tambm as que mais facilmente ade-riram ao movimento, que entenderam como reaco fome, ao raciona-mento, motivos que as tocavam particularmente, dado serem elas o suporte do bem estar familiar, sentindo como mes, que era uma situao insusten-tvel." (Luzia, 1994/96:85). As mulheres entrevistadas, reivindicam e cha-mam a si um protagonismo que consideram indiscutvel, e que pode tambm ser encontrado no s junto dos diversos autores apontados como da impren-sa da poca e da conscincia popular local em geral.

    No que diz respeito gramtica de aco reivindicativa, acabmos de olhar para um momento da Histria em que as mulheres, operrias de Alma-da, de uma forma ou outra, participaram activamente em movimentos ou ac-es de afronta ao poder institudo. Destes momentos temos relatos que inci-

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    dem mais freqentemente e com maior intensidade sobre o tomar posse da rua, o espao pblico por excelncia onde se desenrola este tipo de aconte-cimentos. Michel Cad, num artigo sobre as tradies identitrias do movi-mento operrio francs, d particular nfase precisamente questo da rua, ao desfile dos indivduos numa apropriao ostensiva do espao pblico: "Le defil des grevistes est un de ces moments privilegies o le mouvement ouvrier se sent exister avec une identit forte dans Vaction. " (Cad, 1994:101). Tam-bm muitas destas formas de agir decorrem de uma herana comum, so modelos de aco reactivados, mtodos de resposta represso inscritos no cdigo da comunidade resistente. Nenhum operrio nos sabe dizer porque se ocupam as ruas em momentos de excepo, festivos ou reivindicativos, mas todos parecem saber como o fazer, porque natural, sempre se fez, embora esta memria genealgica seja mais mtica do que verdadeiramente datada. O mesmo acontece com outras prticas colectivas e Cad chama a ateno para a sua importncia. Reactivadas ou presentemente criadas, as prticas colectivas funcionam como forma importante de manter a identidade grupai, para alm dos heris ou mitos singulares: "Si Videntit d'un groupe se nourrit des my-thes fondateurs et d'anctres aux trajectoires individuelles exemplaires, si elle se dveloppe en fonction de sa capacite construire une representation de son histoire adquate ses buts proclames, elle se construit aussi partir de pra-tiques collectives communes qui peuvent tre totalement originales ou rsulter de Ia captation de pratiques prexistantes. "(Idem: 100). Em Almada, para alm da referncia a um ou outro operrio que se destaca na memria local como "grande antifascista" ou "grande comunista", na descrio das greves e manifestaes os relatos fazem-se no plural, o "ns" que prevalece quando se pretende oferecer uma imagem da comunidade. Tambm na definio de movimento social vimos como a identidade o elo indispensvel de unio do grupo, seja pr-existente ou precisamente construda no seio do movimento.

    Bibliografia Cad, M. (1994) "Traditions identitaires du mouvement ouvrier franais dans le

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    Resumo

    Durante os anos quarenta, nomeadamente durante a sua primeira metade, um surto de movimentos grevistas e de contestao vo deflagrar por todo o pas, provocando agitao tanto nos meios operrios como rurais. Na Margem Sul, em Almada, o mais importante destes movimentos foi sem dvida o de 1943. Pela primeira vez na histria do Estado Novo, as mulheres so protago-nistas de eventos pblicos desta natureza, sendo agredidas, detidas e tratadas como nunca at a em situaes de confronto. Procurar-se- abordar neste arti-go, a forma como as operrias de Almada contriburam de maneira decisiva para este movimento, analisando as particularidades da resistncia operria no feminino num contexto de afronta pblica e formal ao sistema.

    Abstract

    During the 1940s, and particularly during the first half of the decade, strikes and protest movements spread throughout the country, mobilising both industrial and agricultural workers. In the Southern Bank (Margem Sul), in Almada, the most important of these movements was, without a doubt, that of 1943. For the first time in the history of the Estado Novo regime, women were at the forefront of such public events, having suffered aggression, incarceration and having been treated as never before in conrontational contexts. In this paper I will attempt to discuss the key role played by the female factory workers of Almada in this movement, by focusing on the specifcities of female rsistance in the context of a formal and public challenge of the system.

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    Rsum Pendant les annes quarante, notamment dans Ia premire moiti, un lan

    de mouvement grevistes et de contestation va exploser dans tout le pays, pro-vocam Tagitation autant dans les milieux ouvriers que dans les milieux ruraux. Dans Ia Rive Sud (de Lisbonne), Almada, le plus important de ces mouve-ments a t, sans aucun doute, celui de 1943. Pour Ia premire fois dans This-toire de Ttat Nouveau, les femmes ont t les protagonistes d'vnements publics de cette nature pendant lesquels elles furent agresses, arrtes et trai-tes comme jamais encore dans des situations de conflit. On essaye d'aborder dans cet article Ia manire dont les ouvrires d'Almada ont contribu d'une manire dcisive au mouvement, analysant les particularits de Ia rsistance ouvrire fminine dans un contexte d'affrontement public et formei au systme.

    Palavras Chave: Movimentos Sociais; Resistncia; Gnero; Operariado; Greves; Estado Novo. Social Movements; Rsistance; Gender; Factory Workers; Strikes; Estado Novo. Mouvement Social; Rsistance; Genre; Classe Ouvrire; Greves; Estado Novo.