a fundamentacao das ciencias compreensivas-2564542 (1)

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Princípios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, p. 123-144. A fundamentação das ciências compreensivas: a posição de Dilthey reconstruída a partir de Leibniz, Wolff e Kant Marcos César Seneda Resumo: A obra de Dilthey desempenha um papel fundamental para a filosofia contemporânea, na medida em que Dilthey distingue duas esferas por meio das quais temos acesso ao todo da realidade: a experiência objetiva (die Erfahrung) e a vivência (das Erlebnis). É esta distinção que possibilita a Dilthey, em oposição às ciências da natureza, conceber as condições de evidência e validade das ciências do espírito. Ainda que não nomeada com estes termos, esta distinção vai estar na base dos textos de muitos autores do final do século XIX e do século XX. Conquanto Dilthey elabore sua teoria no decorrer de uma vasta obra, nosso objetivo é reconstruir a distinção que ele estabelece a partir do modo como ele reinterpreta o princípio de razão suficiente, conforme formulado por Leibniz e Wolff. Também procuramos mostrar, a seguir, como esta reinterpretação permite a Dilthey opor, à esfera dos conhecimentos teóricos circunscrita por Kant, a esfera dos conhecimentos relativos à vivência. Assim, o argumento principal aqui exposto estabelece um vínculo entre o modo como Dilthey reinterpreta o princípio de razão suficiente e o modo como reconstrói cientificamente a fundamentação das ciências do espírito, concebendo-as a partir de uma relação específica entre evidência e validade. Palavras-chave: Compreensão, Experiência objetiva, Princípio de contradição, Princípio de razão suficiente, Vivência Abstract: Dilthey’s work fills a fundamental role in contemporary philosophy insofar as Dilthey distinguishes two spheres through which we have access to all of reality: objective experience (die Erfahrung) and lived experience (das Erlebnis). This distinction allows Dilthey, in contrast to the natural sciences, to conceive of the conditions of evidence and validity of the comprehensive sciences. Even if not named in exactly these terms, this distinction will be at the base of the texts of many authors at the end of the 19 th Century and in the 20 th Century. Although Dilthey elaborates his theory throughout his vast works, our objective is to reconstruct this distinction he establishes from the way he reinterprets the principle of sufficient reason as formulated by Leibniz and Wolff. Following that, we also seek to show how this reinterpretation allows Dilthey to contrast the sphere of knowledge related to lived experience from the sphere of theoretical knowledge Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 10.12.2007.

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  • Princpios, Natal, v. 14, n. 22, jul./dez. 2007, p. 123-144.

    A fundamentao das cincias compreensivas: a posio de Dilthey reconstruda a partir de Leibniz, Wolff e Kant

    Marcos Csar Seneda

    Resumo: A obra de Dilthey desempenha um papel fundamental para a filosofia contempornea, na medida em que Dilthey distingue duas esferas por meio das quais temos acesso ao todo da realidade: a experincia objetiva (die Erfahrung) e a vivncia (das Erlebnis). esta distino que possibilita a Dilthey, em oposio s cincias da natureza, conceber as condies de evidncia e validade das cincias do esprito. Ainda que no nomeada com estes termos, esta distino vai estar na base dos textos de muitos autores do final do sculo XIX e do sculo XX. Conquanto Dilthey elabore sua teoria no decorrer de uma vasta obra, nosso objetivo reconstruir a distino que ele estabelece a partir do modo como ele reinterpreta o princpio de razo suficiente, conforme formulado por Leibniz e Wolff. Tambm procuramos mostrar, a seguir, como esta reinterpretao permite a Dilthey opor, esfera dos conhecimentos tericos circunscrita por Kant, a esfera dos conhecimentos relativos vivncia. Assim, o argumento principal aqui exposto estabelece um vnculo entre o modo como Dilthey reinterpreta o princpio de razo suficiente e o modo como reconstri cientificamente a fundamentao das cincias do esprito, concebendo-as a partir de uma relao especfica entre evidncia e validade. Palavras-chave: Compreenso, Experincia objetiva, Princpio de contradio, Princpio de razo suficiente, Vivncia Abstract: Diltheys work fills a fundamental role in contemporary philosophy insofar as Dilthey distinguishes two spheres through which we have access to all of reality: objective experience (die Erfahrung) and lived experience (das Erlebnis). This distinction allows Dilthey, in contrast to the natural sciences, to conceive of the conditions of evidence and validity of the comprehensive sciences. Even if not named in exactly these terms, this distinction will be at the base of the texts of many authors at the end of the 19th Century and in the 20th Century. Although Dilthey elaborates his theory throughout his vast works, our objective is to reconstruct this distinction he establishes from the way he reinterprets the principle of sufficient reason as formulated by Leibniz and Wolff. Following that, we also seek to show how this reinterpretation allows Dilthey to contrast the sphere of knowledge related to lived experience from the sphere of theoretical knowledge

    Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlndia

    (UFU). E-mail: [email protected]. Artigo recebido em 30.09.2007 e aprovado em 10.12.2007.

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    circumscribed by Kant. As such, the principal argument presented here establishes a connection between the way Dilthey reinterprets the principle of sufficient reason and the way he scientifically reconstructs the foundation for the comprehensive sciences, conceiving of them as based on a specific relation between evidence and validity. Keywords: Comprehension; Lived experience, Objective experience; Principle of contradiction; Principle of sufficient reason 1 Introduo Este texto pretende apresentar uma posio particular sobre a relao entre evidncia e validade, assumida por W. Dilthey, a qual oferece uma chave para se entender um dos fundamentos da filosofia contempornea e o modo como ela tem tentado pensar sua base cognitiva como ontologicamente distinta da base epistmica das cincias empricas atuais. Inicialmente preciso entendermos qual a importncia deste autor. Dilthey o primeiro filsofo a estabelecer, no pensamento alemo, a diferena entre dois grupos de cincias e a fixar esta diferena terminologicamente, referindo-se as Geisteswissenschaften e as Naturwissenschaften, ou seja, s cincias do esprito e s cincias da natureza. Esta terminologia ser depois apropriada pela Escola de Baden, da qual so nomes expressivos Windelband e Rickert, os quais procuraram pensar esta distino a partir de critrios lgicos. Afirmavam, assim, que estes dois grupos de cincias diferenciavam-se por possurem interesses lgicos distintos. As cincias do esprito intentavam apreender a realidade mediante conceitos individualizantes, j as cincias da natureza pretendiam descrever a realidade por meio de conceitos generalizantes. O modo de apreenso da realidade destes dois grupos de cincias diferenciar-se-ia, portanto, por sua respectiva Begriffsbildung, ou seja, pelo modo como cada grupo formava seus conceitos e lhes dava uma destinao cientfica. A proposta de Dilthey, ao contrrio, bem mais arcaica, e vale-se de um mtodo que nos acompanha desde a antigidade, a saber: a Histria da Filosofia. E a partir desta Histria, Dilthey se esfora em pensar esta distino a partir de um fundamento

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    ontolgico. No h tempo aqui para reconstruirmos todo o fio condutor de uma de suas principais obras Introduo s cincias do esprito , mas podemos, de forma resumida, recuperar sua tese central. Dilthey a constri a partir de Leibniz e dela se vale para fundar a distino entre cincias do esprito e cincias da natureza. Esta tese encontra-se exposta no Livro II, seo IV, da Introduo s cincias do esprito, texto hoje quase esquecido mas que permanece latente em parte significativa do pensamento filosfico do sculo XX. Se j podemos nos esquecer de Dilthey, porque o que Dilthey construiu hipoteticamente, hoje aceitamos dogmaticamente. Ou seja, h hoje, em grande parte, um consenso tcito de que a Filosofia possui um fundamento radicalmente distinto das cincias empricas como concebidas no ocidente. E muitos dos que defendem esta tese a sustentam em virtude de que teramos acesso a algum tipo de evidncia radicalmente distinta daquela com que operam as cincias empricas matematizadas1. Eis o nosso interesse. Dilthey foi o primeiro a formular esta tese. Contudo, embora precursor de um amplo ramo da filosofia contempornea, Dilthey no tinha o propsito de meramente separar dois grupos de cincias, as da natureza e as do esprito, mas pretendia conferir s disciplinas do esprito, por assim dizer, o estatuto de cientficas. Seu esforo, embora tenha sido o genitor de tamanha ciso, era complementar ao kantiano, ou seja, Dilthey queria encontrar uma soluo para as cincias no esquematizadas, isto , para aquelas que no podiam servir-se da matemtica para regrar seus objetos. preciso entender, no entanto, o propsito cientfico de Dilthey, ou seja, o modo como ele pretendeu ampliar a reflexo crtica de Kant a partir de uma interpretao pontual dos

    1 Entre os que se valem deste argumento, podemos citar Schleiermacher,

    Heidegger, Gadamer e Ricoeur (Amaral, 1994, p. 9-10). Argumento similar tambm pode ser encontrado em Natorp e Bergson (Gadamer, 1999, p. 128-130). Este em geral o argumento dos compreensivistas. Contudo, muitas vezes parte-se da constatao da ciso entre cincias empricas matematizadas e cincias do esprito ou do sentido ou compreensivas. Pr esta tese sem enfrentar as dificuldades de se reconstru-la foi o que denominamos aceitar dogmaticamente a posio de Dilthey.

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    pensamentos de Leibniz e Wolff. O fundamento crtico da proposta diltheyana assunto amplo e parte. Retornemos, portanto, nossa questo principal: como Dilthey conseguiu separar estes dois grupos de cincias, ou se quisermos formular esta questo de modo mais positivo , como Dilthey conseguiu lanar os fundamentos das cincias do esprito? 2 A reconstruo do problema a partir de Leibniz e Wolff: a formulao do princpio de razo suficiente Dilthey vale-se, com efeito, de uma tese anterior proposta por Leibniz, que distingue ... dois tipos de Verdades, aquelas de Raciocnio (Raisonnement) e aquelas de Fato (Fait) (Leibniz, 1965, p. 452). esta distino que permite a Leibniz no evitar o problema do criacionismo sem, contudo, resolv-lo ou trat-lo unificadamente na esfera da ontologia, uma vez que Leibniz retira o problema do mbito da ontologia, onde ele formava uma s questo2, e o localiza, com preciso, nas esferas da lgica e da fsica ainda que a fsica continue a ser tratada como a ontologia de um ser particular: a natureza. Na Monadologia, Leibniz constri esta distino a partir de dois princpios:

    Nossos raciocnios esto fundados sobre dois grandes Princpios, o da Contradio, em virtude do qual ns julgamos falso aquilo que encerra contradio, e verdadeiro aquilo que oposto ao contraditrio ou falso. E o de Razo suficiente, em virtude do qual ns consideramos que nenhum fato poderia pr-se como verdadeiro ou existente, nenhuma Enunciao como verdadeira, sem que houvesse uma razo suficiente do porque isto seja assim e no de outra maneira, embora essas razes, na maior parte das vezes, no possam de modo algum nos ser conhecidas. (1965, p. 452).

    2 Que Leibniz consiga vincular estes problemas a partir da teodicia, trata-se de

    assunto parte. O comentrio de Y. Belaval bem retrata esta vinculao: ... a harmonia difundida por toda parte na infinitude atual dos organismos e a harmonia preestabelecida entre a alma e o corpo testemunham um Supremo Harmonista, o princpio de razo exige, na origem radical das coisas, uma Razo que seja a fonte dos possveis e uma Vontade que escolha entre esses possveis (1993, p. 197). Ou seja, o sistema metafsico de Leibniz permitia uma tima articulao entre o domnio dos fatos e a esfera das possibilidades.

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    Em Leibniz h equivalncia entre princpio de contradio e verdades de raciocnio, de um lado, e princpio de razo suficiente e verdades de fato, de outro. Esta distino impossibilita que a questo da existncia seja alcanada dedutivamente pelo intelecto humano que raciocina, uma vez que ela s pode ser diretamente resolvida na esfera do intelecto e da vontade divina. Deus no opera por anlise e sntese, mas num s ato concebe e pe a existncia da forma mais harmnica possvel. isto que elimina a possibilidade de a existncia ser apreendida dedutivamente por um intelecto finito, e que fora o intelecto humano a conceber todos os existentes sobre o plano da contingncia. Assim, a partir do intelecto e da vontade de Deus, Leibniz circunscreve duas esferas distintas, uma lgica e outra ontolgica, impedindo que a questo da existncia seja vinculada diretamente ao problema da essncia e dos possveis que ela contm, ou seja, retirando o problema da existncia da esfera regida somente pelo princpio de contradio. Ao desnecessitar a existncia, embora o tenha feito em meio ao debate de Escola de seu tempo, Leibniz lana uma tese que ter impacto direto em toda a filosofia moderna e contempornea: a da irredutibilidade da existncia em face da essncia. Para fundament-la, Leibniz antepe a contingncia dos existentes em face do que pode ser demonstrado logicamente a partir do simples princpio de contradio. Ou seja, Leibniz contrape irredutivelmente duas esferas: a das coisas que esto fundadas no princpio de contradio e a das coisas cuja realidade depende do princpio de razo suficiente, no podendo ser determinada somente a partir do princpio de identidade. Com essa distino, Leibniz consegue, com convincente clareza, circunscrever duas esferas irredutveis, uma fundada no princpio de contradio e outra no princpio de razo suficiente, e na formulao de Leibniz que o problema ontolgico tratado por Avicena, Duns Scot e Suarez (Gilson, 1987, p. 124-186) sobreviver entre os modernos e alcanar Dilthey, um dos ltimos a reivindic-lo sob a formulao leibniziana3. Muitos contemporneos faro uso da distino

    3 Dilthey, inclusive, reportar-se- como veremos mais adiante aos fatos de

    conscincia (Tatsachen des Bewusstseins), provavelmente num esforo

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    ontolgica, conforme formulada por Dilthey, sem suspeitar que ela reporta-se a uma tradio que se estende a Leibniz e aos medievais. Dilthey, contudo, reporta-se explicitamente a Leibniz, a quem atribui a ltima frmula do pensamento metafsico, ou seja, o princpio de razo suficiente4. Segundo Dilthey, Leibniz conseguiu formular, ao mesmo tempo, um princpio lgico e ontolgico, isto , um princpio que conseguiria superar a separao, almejada desde a antigidade, entre o pensamento e o ser. Mas, pondo como fundamento do ser uma distino que de ordem lgica e ontolgica e que no pode ser suprimida, podemos afirmar que este princpio asseguraria, do ponto de vista dos entes finitos, a racionalidade no comutativa entre logos e physis, uma vez que o logos diria respeito s verdades necessrias e a physis s verdades contingentes. Dilthey no se refere somente racionalidade da physis, mas sabemos que entre os antigos ela que era fonte de fato de racionalidade, e o mundo humano no passava de mera acidentalidade a ser regrada e racionalizada a partir daquele modelo. Dilthey, contudo, tem o propsito de circunscrever um fundamento que possibilite refletir sobre a especificidade dos fatos humanos e da realidade espiritual que eles instauram. Aqui, no entanto, como formulado por Leibniz, o princpio de razo suficiente surge como fundamento de toda a esfera dos fatos, isto , pe-se como fundamento tanto da realidade material como da realidade espiritual. Vejamos, pois, como Leibniz o formula em uma de suas cartas: este princpio aquele da necessidade de uma razo suficiente para que uma coisa exista, para que um acontecimento ocorra, para que uma verdade tenha lugar (Quinta carta de Leibniz a Clarke, apud Dilthey, 1959, p. 388). Leibniz formula um problema tipicamente

    complementar ao leibniziano, mas com o intuito ento de duplicar a esfera possvel de verdades no interior do campo da experincia.

    4 J. cole, em La mtaphysique de Christian Wolff, nos descreve brevemente (1990, p.146) os antecedentes da formulao do princpio de razo suficiente, que poderamos reportar inclusive aos gregos. Mas observa que o prprio Wolff de bom grado sublinhava ter sido Leibniz quem primeiramente ... falou abertamente dele e dele se serviu para retificar as noes e demonstrar as proposies (1990, p. 146).

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    suareziano, a saber: qual o fundamento que possibilita que uma realidade adquira existncia? Mas Leibniz, justamente pelo recurso ao princpio de razo suficiente, supera a questo de se a existncia nos entes finitos seria um atributo de sua essncia. Leibniz formula um princpio no como fundamento do pensamento, mas como fundamento da prpria existncia dos entes termos quase incompreensveis hoje, mas bastante familiares se situarmos este problema, ou a parte dele que seria assim conveniente, no quadro do pensamento de Suarez. Desabituados, contudo, formulao teolgica do problema da qual tambm se vale Leibniz , nos bem mais fcil hoje compreender Leibniz a partir de Wolff, que a quem recorremos habitualmente quando formulamos este princpio, embora fique obliterado o fato de que nos reportamos a Leibniz por intermdio de Wolff. Dilthey afirma que Christian Wolff reduziu este princpio ao de que algo no pode surgir do nada. E acrescenta: por conseguinte, ao princpio de conhecimento do qual vimos a Metafsica deduzir suas proposies desde Parmnides (1959, p. 389). Em Parmnides, contudo, tnhamos um princpio metafsico que tornava comutativa a relao entre a ontologia e as regras necessrias do pensamento lgico. Em Leibniz, temos um princpio incondicional, que impe-se como dplice fundamento do pensamento e do ser. Leibniz o formula assim:

    verdade, diz-se, que no h nada sem uma razo suficiente pela qual existe, e pela qual [algo] assim mais do que de outro modo. Mas, acrescenta-se, que esta razo suficiente freqentemente a simples vontade de Deus; como quando perguntamos porque a matria no foi situada de outro modo no espao, as mesmas situaes entre os corpos permanecendo preservadas. Mas isto justamente sustentar que Deus quer alguma coisa, sem que houvesse alguma razo suficiente de sua vontade, contra o axioma ou a regra geral de tudo aquilo que acontece (Terceira carta de Leibniz a Clarke, apud Dilthey, 1959, p. 389).

    Notemos que a formulao de Leibniz pode ser claramente traduzida no quadro do pensamento de Suarez. Poderamos assim dizer que aquilo que alcanou existncia, o fez necessariamente por intermdio da vontade de Deus, pois no haveria outro modo de algo

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    adquirir existncia. No entanto, ao existir, o que existe expressa necessariamente a realizao de uma vontade perfeita, que assegura a tudo aquilo que se atualiza uma razo suficiente. Notemos como Leibniz, para unificar o existente, se vale da Metafsica Especial, em particular da Teologia e da Teodicia, e como, ao assim proceder, elimina no s todo o resduo irracional da realidade, mas igualmente confere a toda a realidade, indistintamente, o mesmo grau de racionalizao. Ou seja, tudo o que existe possui indistintamente o mesmo grau de razo suficiente, adquirido por intermdio da vontade divina. claro que em face deste modelo da vontade divina, pensada a partir do princpio de razo suficiente, surge o problema da liberdade da vontade humana e o problema do indeterminismo que esta vontade humana poderia inserir nas seqncias empricas. Pois, ao fazer escolhas, esta vontade humana estaria inserindo as determinaes de sua liberdade entre os nexos de uma realidade emprica j pr-ordenada. Mas este problema pode ser formulado fora do quadro de comparao entre uma vontade perfeita, a divina, e uma vontade finita, a humana. Wolff opera com o mesmo princpio, mas o formula simplesmente no campo da Metafsica Geral, isto , da ontologia. Assim, afirma:

    Se uma coisa A contm algo em si, a partir do que pode-se entender porque B [existe], e B pode ser ou algo em A ou fora de A, assim se chama aquilo que se encontra em A de o fundamento (Grund) de B; A chama-se propriamente a causa (die Ursache), e de B diz-se que esteja em A fundado (gegrndet sei). Isto , o fundamento aquilo mediante o qual podemos entender porque algo (existe), e a causa uma coisa que contm em si o fundamento de uma outra (Wolff apud Dilthey, 1959, p. 389).

    Tudo se passa como se Wolff, por intermdio de um recurso de sintaxe, reescrevesse o que foi dito por Leibniz, colocando todos os enunciados na voz passiva. Ou seja, o sujeito da racionalizao do mundo fica obliterado, restando apenas o princpio metafsico de inteleco que assegura a toda a realidade a possibilidade de que ela exista e seja pensada racionalmente.

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    contra a unidade do princpio de razo suficiente assim formulado, como aqui apresentado por meio dos pensamentos de Leibniz e Wolff, que se volta a argumentao de Dilthey. E a crtica de Dilthey a estes dois autores que nos permite compreender a importncia do seu pensamento para a filosofia contempornea. Para anteciparmos uma das partes do argumento, com o intuito de explicitarmos o fio condutor do que se segue, podemos afirmar que Dilthey foi o primeiro autor a fazer a crtica da filosofia da representao, cujo modelo exemplar seria a filosofia kantiana. Mas, ao contrrio de muitos autores contemporneos, que fazem esta crtica para reivindicar expedientes externos aos recursos da razo, Dilthey a faz para propor um outro modelo de racionalidade. Tanto que Dilthey no recusa o modelo das cincias naturais, mas procura construir, ao lado dele, um modelo de racionalidade radicalmente distinto, que seria o fundamento de um outro conjunto de cincias que designa por cincias do esprito5. Assim, Dilthey recusa a unidade do Geist hegeliana, que ele acredita assentar-se em Leibniz e Wolff, e, em oposio ao kantismo, procura construir um novo modelo de validade para as cincias que sustenta serem ontologicamente distintas das cincias naturais. Mas como procede Dilthey? Junto com Schleiermacher, Dilthey um dos primeiros pensadores a enfrentar epistemicamente o problema da acidentalidade do logos, ou seja, um dos primeiros a estudar o logos no como plena regularidade cujo fundamento seja fsico ou cosmolgico, mas a investigar o logos como veculo do sentido do mundo humano que se manifesta entre aquele que fala e aquele que ouve6, ou entre aquele que se expressa e aquele que

    5 Wolff distingue causa e razo suficiente (J. cole, 1990, p. 148), considerando o

    princpio de razo suficiente no somente como princpio de causalidade (como se dispe as coisas em uma seqncia de atualizaes), mas como princpio de inteligibilidade (o fundamento ou o porqu da ocorrncia de algo). Tambm Dilthey faz uma distino similar entre causa e razo suficiente, justamente para poder pensar o compreensivo no como mera decorrncia causal, mas para poder conceb-lo como fundamento hermenutico, ou seja, como um modo de inteleco promovido por inter-relaes e no somente por uma seqncia mecnica de eventos.

    6 comum se apontar os elos de reciprocidade (Amaral, 1994) ou as

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    compreende. Dilthey que pe a tese de que as cincias do esprito seriam compreensivas, distintas, por conseguinte, das cincias naturais, que seriam explicativas. Esta distino entre cincias explicativas e cincias compreensivas tornou-se um lcus clssico da filosofia e da sociologia alems, e a partir desta distino que muitos pugnaram contra o positivismo. O positivismo, aps Dilthey, ganhou a acepo de dogmtico, pois representaria uma proposta metodolgica unitria. Haveria assim um nico logos a imperar sobre o todo da realidade e a matemtica seria seu principal tradutor. Formulando isto com uma linguagem mais recente, diramos que a matemtica seria o nico princpio de explicao cientificamente vlido, ou seja, s seriam objetos de conhecimento aqueles que pudessem ser matematicamente construdos no domnio da metodologia das cincias empricas. Leibniz ser esquecido, mas o problema que podemos designar como Leibniz-Wolff continuar sendo reevocado com uma terminologia no mais metafsica mas supostamente cientfica. Assim, ao determinismo do mundo fsico, opor-se-ia o indeterminismo resultante da liberdade da vontade humana. importante salientar, no entanto, que a tese determinista, construda no quadro da cincia contempornea, nada mais contm seno a retomada do princpio de razo suficiente, erigido fora do domnio metafsico. Neste sentido, por mais que este argumento cause espcie, preciso ressaltar que Leibniz, com o princpio de razo suficiente, estabelecera uma tese determinista que dependia da fundamentao de uma teodicia; j o determinismo construdo no quadro das cincias contemporneas independe por completo de qualquer teodicia, mas no pode, por sua vez, receber validao emprica nem ser fundamentado pela metodologia das cincias atuais. Seja como for, o princpio de razo suficiente e a tese determinista so partes ou reproposies de um mesmo problema que permanece ainda irresolvido tanto no domnio filosfico quanto no terreno das cincias empricas.

    incongruncias (Scholtz, 1994) entre os pensamentos de Dilthey e Schleiermacher. Mas igualmente h um amplo reconhecimento de que ambos os autores esto na base da corrente filosfica hoje conhecida como hermenutica.

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    Como podemos perceber, trata-se de um problema de permanente atualidade, que emerge em face do filsofo ou do cientista quando estes procuram investigar seus objetos. A importncia e o alcance da reflexo de Dilthey est em que ele tem uma soluo original para enfrentar este problema7. E se esta soluo digna de ser reexaminada, porque hoje freqente nos referirmos a ela, mas j no conseguimos perceber o quanto ela depende do dilogo com Leibniz e Wolff, e, paradoxalmente, o quanto esta crtica da filosofia da representao depende do exame de fundamentos metafsicos. 3 A reconstruo do problema a partir de Kant: a ciso do todo da realidade entre Erfahrung e Erlebnis8

    7 O pensamento de Dilthey pode ser apresentado por intermdio de mltiplas

    interconexes ou ramicaes, seja a partir de sua relao com a psicologia e com a biologia (Amaral, 1994; Rodi, 1994), seja a partir de sua relao com a tradio hermenutica e com Schleiermacher (Amaral, 1994; Scholtz, 1994), seja a partir de sua relao com a fenomenologia e com Husserl (Bianco, 2001). Heuristicamente, pensamos que mais profcuo apresent-lo a partir da ciso do princpio de razo suficiente, uma vez que este expediente permite unificar a metodologia e a aparente descontinuidade do percurso terico de Dilthey. Do contrrio, o pensamento de Dilthey nos surge como dotado de uma intuio original, cuja formulao conceitual jamais pde ser suficientemente explicitada, aparecendo multifacetadamente nos mltiplos objetos estudados pelo autor. Se assim considerada, sua obra retrataria muito mais o percurso de um historiador da mentalidade da cultura ocidental do que propriamente a fora de uma genuna proposta filosfica. A reapropriao de Dilthey pelos comentadores com freqncia recai nas caractersticas desta segunda hiptese, procurando-se evidenciar uma intuio original que deveria ser visualizada a partir de um pensamento rapsdico. Partimos aqui de outra hiptese: de que o fundamento de sua reflexo pode ser circunscrito a partir de sua releitura de Leibniz/Wolff e do modo como cinde epistemologicamente o princpio de razo suficiente. isto que lhe permite postar-se ao lado de Kant pode-se aqui discutir o xito ou no dessa tentativa e lhe possibilita pensar o mundo do esprito a partir de um fundamento considerado vlido cientificamente.

    8 Na seqncia deste texto ambos os conceitos sero mais bem apresentados. Neste momento e para os propsitos deste trabalho, suficiente explicarmos que se trata de dois modos de se conceber a experincia: de um lado, a experincia objetiva (die Erfahrung) construda a partir do mundo fenomenal (Kant), de outro, a experincia subjetiva (das Erlebnis) formada a partir das vivncias de cada

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    Retomemos, portanto, este dilogo de Dilthey com Leibniz. Dilthey no nega o princpio de razo de suficiente, apenas alega que Leibniz se equivocou ao estender sua validade indistintamente ao todo da realidade que encerra os fatos, ou seja, ao circunscrever unitariamente a experincia no interior da esfera dos fatos. Mas a partir de que fundamento ns poderamos cindir a esfera dos fatos e distinguir distintas abrangncias do princpio de razo suficiente? Dilthey observa que o princpio de razo suficiente

    ... sempre apresenta-se em Leibniz junto ao [princpio] de contradio, e [que] o princpio de contradio fundamenta justamente as verdades necessrias, em contrapartida, o de razo [suficiente] fundamenta os fatos e as verdades de fato (die Tatsachen und tatschlichen Wahrheiten) (1959, p. 388).

    Ou seja, em Leibniz a esfera das verdades de fato ope-se unitariamente, a partir de seu fundamento cognitivo, esfera das verdades necessrias. Dilthey coerentemente extrai as conseqncias extremas do pensamento de Leibniz, e separa a necessidade lgica do pensamento, de um lado, e os fatos e as verdades de fato, de outro. Contudo, indo alm de Hume9, Dilthey operar uma ciso dos prprios fatos, separando as verdades de fato relativas ao mundo externo (Erfahrung) e as verdades de fato relativas ao mundo interno (Erlebnis). Por esse motivo, Dilthey afirma que a lei do conhecimento tem de assumir posio distinta em relao aos contedos destas duas esferas da experincia. Sobre este argumento, Dilthey construir a ciso ontolgica do todo da experincia, sustentando que o conhecimento relativo s verdades de fato deve se

    existncia humana (Dilthey). H que se ressaltar aqui, no entanto, que a introduo da vivncia (Erlebnis) como forma de experincia, cuja esfera deveria ser circunscrita e tratada cientificamente ao lado da experincia objetiva (Erfahrung), constitui uma contribuio original e pioneira de Dilthey, que ao longo de dcadas se props a refletir filosoficamente sobre essa questo.

    9 A distino proposta por Leibniz ocupa posio central nas construes de Hume. O texto mais emblemtico em que Hume usa esta distino a Investigao, Seo 4 (1999, p. 43-44), no qual se reporta s relaes de idias e s questes de fato. No entanto, assim como Leibniz, Hume considera que as questes de fato designam indistintamente o todo da experincia.

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    posicionar de maneira distinta em relao a ambas as esferas da experincia. Dilthey afirma:

    pois bem, a posio da lei do conhecimento sobre o fundamento (die Stellung des Erkenntnisgesetzes vom Grunde) referente s cincias do esprito distinta da posio referente s cincias do mundo externo: tambm isto torna impossvel uma subordinao de toda a realidade (der ganzen Wirklichkeit) sob um nexo metafsico. Isto de que me apercebo (innewerde), enquanto estado de mim mesmo, no relativo como um objeto externo. No existe uma verdade (eine Wahrheit) do objeto externo como concordncia da imagem com uma realidade, pois esta realidade (diese Realitt) no est dada em nenhuma conscincia e subtrai-se assim comparao. No se pode querer saber como o objeto se parece, se ningum o compreende em sua conscincia. Ao contrrio, isto, que eu vivencio (erlebe) em mim, est a para mim como fato de conscincia (als Tatsache des Bewusstseins), por isso eu dele me apercebo: fato de conscincia no nada seno isto de que eu me apercebo. Nossas esperanas e aspiraes, nossos quereres e desejos, esse mundo interior como tal a coisa mesma (als solche die Sache selber) (Dilthey, 1959, p. 394).

    Em primeiro lugar, notemos como Dilthey amplia o alcance da terminologia de Leibniz, abrindo, em meio s verdades de fato, um novo campo de investigaes: o dos fatos de conscincia. Mas Dilthey pressupe que h um modo prprio de se investig-los e que h igualmente uma verdade inerente caracterstica destes fatos. Este pressuposto surge da ciso das verdades de fato em dois mundos o da experincia externa e o da experincia interna e da tese da irredutibilidade do princpio de inteligibilidade que funda cada uma dessas esferas cognitivas. Isso est explicitado na afirmao de Dilthey de que a posio distinta e irredutvel dessas duas esferas ... torna impossvel uma subordinao de toda a realidade sob um nexo metafsico (1959, p. 394 supracitado). Ou seja, inversamente a Leibniz, que vinculava finalmente verdades de razo e de fato a partir da teologia, em Dilthey o princpio de unificao entre as duas esferas da experincia somente alcana um fundamento parcial comum na esfera do pensamento lgico, ou seja, no princpio de identidade e de no contradio, uma vez que as verdades de fato tm de poder ser pensadas. Dilthey, portanto, maneira de um

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    cientista, quer partir dos fatos e particularmente da irredutibilidade at ento no observada de duas esferas de fatos10. Em segundo lugar, notemos como Dilthey principia a crtica filosofia da representao, opondo realidade da conscincia e realidade do mundo externo. O argumento principal refere-se ao modo de representao: Dilthey afirma a distino entre a representao da realidade do mundo externo e a realidade interna da conscincia. Ou seja, pelo fato de que temos acesso indireto ao mundo externo e acesso direto ao mundo interno este o argumento de Dilthey, que at hoje nos convence , alcanamos conscincia distinta destas duas realidades, o que se expressa no referencial qualitativo de nossas experincias. Para indicar este referencial qualitativo, Dilthey utiliza os termos Erfahrung e Erlebnis11, com o intuito de por meio deles

    10 Aludindo ... posio intermediria entre a especulao e o empirismo ...,

    assumida por Dilthey, Gadamer (1999, p.123) observa: como o que importa a ele justificar o trabalho das cincias do esprito, do ponto de vista cognitivo-terico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado (os grifos so nossos). elucidativo o comentrio de Gadamer, uma vez que acentua o que caracterstico da posio de Dilthey, ou seja, o esforo para descobrir, no interior da teoria do conhecimento, possibilidades de fundamentao cientfica subjacentes ao que denomina cincias do esprito. Assim, no interior do conceito de vivncia (Erlebnis), Dilthey procurar construir a positividade de um modo distinto do fundamento. Nisso reside uma contribuio prpria de sua reflexo. Dilthey no considera que a esfera da experincia interna seja marcada, em oposio da experincia externa, por um dficit de objetividade. Ao contrrio, sustenta que o seu fundamento so os dados da vivncia, e que a partir dessa caracterstica prpria que deveriam ser pensadas as condies distintas de sua evidncia e validade.

    11 A distino semntica pouco definida do ponto de vista lxico, uma vez que os dicionrios Duden e Wahrig no constroem uma oposio sistemtica entre essas duas palavras. No verbete vivncia, a Enciclopdia de Filosofia Logos (1992, p. 556-557) e o Dicionrio de Filosofia Ferrater Mora (2001, p. 3035-3036) remetem a Dilthey o emprego sistemtico do termo Erlebnis, e localizam seu registro lexical reportando-se obra de Hans-Georg Gadamer, Verdade e mtodo, em que o autor recupera a histria do uso deste termo. Nesta obra, Gadamer afirma que, anteriormente ao uso registrado por Dilthey e por alguns bigrafos que lhe eram coetneos, havia o emprego do verbo erleben e suas variantes, mas no do substantivo, e que foi Dilthey ... quem primeiro atribuiu a essa palavra

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    uma funo conceitual ... (1999, p. 119). Comenta Gadamer: a pesquisa do surgimento da palavra vivncia (Erlenis) na escrita alem conduz ao surpreendente resultado de que, diferentemente de vivenciar (Erleben), somente se tornou usual nos anos 70 do sculo XIX. No sculo XVIII ela absolumente ainda no existe, mas tambm Schiller e Goethe no a conhecem. O mais antigo comprovante parece ser uma carta de Hegel [que emprega o conceito no feminino, observa em nota Gadamer, o que comprova que ele ainda no havia ingressado oficialmente na lngua]. Mas tambm dos anos trinta e quarenta s vim conhecer ocorrncias muito isoladas... Sua introduo geral no uso lingstico comum est vinculada, pelo que parece, sua aplicao na literatura biogrfica (1999, p. 117-118). Referindo-se apreenso de Goethe por Dilthey, Gadamer observa que possvel construir retrospectivamente uma pr-histria inconsciente da palavra (1999, p. 120). E argumenta: Goethe, como nem um outro, seduz formulao dessa palavra, porque suas poesias recebem sua compreensibilidade, em um novo sentido, a partir do que ele vivenciou. Alis, de si mesmo ele disse que todas as suas poesias tm o carter de uma grande confisso (1999, p. 119-120). Mas talvez possamos, indo alm de Gadamer, afirmar que Goethe opera conceitualmente e no apenas sugestivamente de maneira bastante explcita com a oposio entre vivncia (Erlebnis) e experincia (Erfahrung). J no princpio d As afinidades eletivas estas duas esferas se enfrentam, duplicando, por sua mtua intransponibilidade, a face dos acontecimentos que embrionariamente se anunciam atravs de dois de seus personagens principais, Eduard e Charlotte. Goethe situa o feminino e o masculino como seus portadores, inicialmente instalados como dois loci da experincia: Eu assumi o interior (das Innere), tu o exterior (das ussere) e tudo o mais (Goethe, 1968, p. 66), diz Charlotte. O interior oposto ao exterior, como afazeres a nortear e casar um universo. Posteriormente, o signifcado disso explicita-se nas fronteiras incompatveis em que ambos vo procurar enquadrar um mesmo fato: o convite a um velho amigo de Eduard, o capito. O no e o sim que a deciso implica remetem, cada qual, a universos onde tanto a Erfahrung quanto o Erlebnis aliceram as situaes que lhes so paradigmticas. Eu no sou supersticiosa (aberglubisch), responde Charlotte, e no me entrego a esses impulsos obscuros (dunklen Anregungen), na medida em que eles sejam apenas isto, mas na maior parte das vezes eles so lembranas inconscientes (unbewusste Erinnerungen) de seqncias (Folgen) felizes ou infelizes, que vivenciamos (erlebt haben) em atos prprios ou alheios. Isto de fato pode acontecer, responde Eduard, para seres que conduzem a vida sob formas obscuras, no para aqueles que, pela experincia esclarecida (Erfahrung aufgeklrt), se tornaram mais conscientes (bewusst) de si prprios (Goethe, 1968, p. 70). Sob o registro literrio este conflito assim caracterizado: por um lado, uma vivncia que se acumulou inconscientemente na memria e que obscuramente, atravs da subjetividade, sempre est prestes a invadir os atos que particamos, por outro, o homem das experincias esclarecidas, sempre pronto a lixiviar o passado e os

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    designar dois tipos de experincia: de um lado, haveria a experincia externa, objetiva, das imagens que se formam a partir das nossas sensaes e a partir das quais representamos o mundo externo; de outro lado haveria a experincia interna, subjetiva, qual temos acesso direto por meio de nossas vontades, desejos, das imagens que se acumulam em nossa memria, e dos sentidos que se manifestam e percorrem nossos estados de conscincia. Assim, ao dividir a experincia em dois loci distintos, um externo e outro interno, dotados de graus qualitativamente distintos de representao, Dilthey argumenta, contra Leibniz, que ambas as esferas no podem mais ser unificadas sob um mesmo nexo metafsico (1959, p. 394). Descobre Dilthey, desse modo, a irredutibilidade da historicidade, pois a funda como um locus da experincia especificamente humana. As verdades relativas ao mundo externo, conhecidas indiretamente pelo homem atravs das formas da sensibilidade, so distintas, portanto, das verdades relativas ao mundo interno, produzidas diretamente pelo sentido da vivncia. Ou seja, Dilthey afirma a validade universal do princpio de no contradio, no entanto, em relao validade do princpio de razo suficiente, aceita sua validade para os produtos da Erfahrung (experincia), mas nega sua aplicao de modo idntico para os contedos do Erlebnis (vivncia). Dilthey argumenta que, porque este mundo interior da vivncia compreensvel e qualitativamente distinto do mundo externo, ele sua maneira se torna fundamento suficiente de sua prpria inteligibilidade. Fica patente, ademais, que parte deste argumento seno ele como um todo dirige-se tambm contra Kant, o qual foi o grande terico da Erfahrung, cuja definio razoavelmente precisa e breve, em Kant, poderia ser a da experincia na medida em que pode ser apropriada pelas cincias empricas modernas. Do mesmo modo, podemos dizer que Dilthey foi o grande terico do Erlebnis, ou seja, da experincia que internamente se acumula no decorrer da vida de

    sentimentos neste coletados, a fim de examinar objetivamente as coisas que se lhe apresentam. Conflito paradigmtico, no texto, entre erlebt e Erfahrung, unbewusst e bewusst, dunkel e aufgeklrt, vivncia obscura e experincia cristalina.

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    uma pessoa, que se exterioriza na produo do mundo histrico, e que referencia aquilo que se pode compreender. No entanto, Dilthey mostra timo domnio das diversas lies dos modernos, que captam o objeto a partir das condies de representao do sujeito que o apreende. Concordemos ou no com Dilthey, isto que ele nos comunica, quando no texto supra citado comenta: Isto de que me apercebo (innewerde), enquanto estado de mim mesmo, no relativo como um objeto externo (1959, p. 394 - supracitado). Notemos o modo como Dilthey enfrenta as filosofias da representao no interior de seus domnios: aqui no negada a objetividade que pode ser construda para os dados externos o que seria uma concluso pueril e pr-crtica , mas firmada sua relatividade em oposio aos dados da vivncia. Ou seja, o dado da experincia externa sempre algo que tem de ser apreendido mediatamente, a partir de relaes com as quais a conscincia tem de construir sua objetividade. J os dados da vivncia esto presentes imediatamente conscincia, so, nas palavras de Dilthey, fatos de conscincia, estados de que me apercebo de modo direto e evidente. Assim, em relao aos fatos empricos, cuja apreenso objetiva depende de sua construo a partir da evidncia matemtica, os fatos de conscincia so imediatamente evidentes para o sujeito que os vivencia. Comentando a soluo crtica do problema do conhecimento, Dilthey afirma:

    pois os componentes do dado (des Gegebenen) so, em virtude de sua origem distinta, heterogneos, incomparveis. Conseqentemente, no podem ser reduzidos uns aos outros. ... Por isso o estudo do mundo exterior precisa deixar insolvel a relao interna do dado na natureza, e contentar-se com o estabelecimento de uma conexo fundada no tempo, no espao e no movimento, que unifique as experincias (die Erfahrungen) em um sistema (Dilthey, 1959, p. 393).

    Notamos aqui como Dilthey trata o problema da objetividade e da fenomenalidade do dado no mbito das cincias empricas. Dilthey concebe com clareza a soluo crtica de Kant. As partes que compem o dado no so, em virtude de sua individualidade intuitiva, comparveis, ou seja, as datidades

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    sensveis so heterogneas e, por conseguinte, irredutveis entre si. Aceita-se tambm aqui a tese de Hume: nos inacessvel a relao interna entre os elementos componentes de uma cadeia causal. Nesse sentido, a soluo crtica implica em que a unificao da experincia seja realizada sobre um outro plano, que faa a regra recobrir homogeneamente os contedos heterogneos dados na experincia. Por isso Kant tornou-se o grande terico da Erfahrung (a experincia assimilada pelo arcabouo da cincia ocidental moderna), pois conseguiu delimitar as condies em que a unificao do dado pode se tornar objetiva. Para tanto, Kant precisou separar a imaginao produtiva (die produktive; erzeugende Einbildungskraft) e a imaginao reprodutiva (die reproduktive; wiederzeugende, nachbildende Einbildungskraft). A primeira o locus das construes matemticas e a condio de todas as operaes transcendentais. Nela est contida a teoria do tempo objetivante em Kant, que possibilita o regramento a priori da experincia. A segunda a imaginao emprica, em que se acumulam as seqncias advindas do dado a posteriori. a imaginao produtiva que permite decifrar a temporalidade matemtica do dado emprico, heterogneo, reduzindo-o a um contnuo homogneo12 apreensvel pelo intelecto, ou seja, ela que assegura a possibilidade a priori de unificao de qualquer dado no mundo fenomenal. Transpondo a teoria do tempo para a esfera da vivncia (Erlebnis), Dilthey fundamenta uma outra possibilidade de se compreender seqncias de eventos agora especificamente humanos, concebendo-os a partir do sentido que expressam ao se exteriorizarem. Assim, Dilthey lana a hiptese de que a inteligibilidade da ao humana pode ser desdobrada de sua interioridade vivida, ou seja, a ao possui um sentido que pode ser compreendido, no sendo constituda apenas por movimentos externos que devem ser explicados. A conseqncia deste mtodo

    12 Esta nfase no papel homogeneizador das matemticas ser reencontrada tambm

    nos comentrios do neokantiano H. Rickert.

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    que a relao de causa e efeito ser circunscrita na esfera das cincias naturais, e o que pertence ao humana ser apreendido por um fundamento compreensivo, provido de um modo prprio de evidncia e validade. Dilthey, portanto, dirige-se ao encontro do problema epistmico, procurando expandir a noo de experincia, sem contudo conseguir resolver um problema que at hoje permanece insolvel em Kant: dotar as cincias histricas de condies de transcendentalidade. Ainda que se trate de uma empresa falida, Dilthey tem o mrito, contudo, de fornecer a base em que o problema pde ser explicitado, na medida em que alega que o modelo indireto de validade obtido mediante a congruncia de formas puras e contedos empricos, conforme proposto por Kant, no poderia ser reproposto para os contedos da vivncia (Erlebnis), conforme apreendidos numa cadeia compreensiva. Mas as cincias compreensivas, concebendo-se tacitamente distintas das cincias empricas matematizadas, jamais deram o devido valor a este problema epistmico no decorrer do sculo XX. No entanto, ao fazermos o paralelo com Kant, percebemos a importncia e a originalidade de Dilthey: ele foi o primeiro a duplicar a esfera da experincia, e a circunscrever e nomear o dplice que ela contm, com vistas a encontrar uma soluo para o problema da evidncia e da validade do conhecimento histrico. 4 Concluso Em Leibniz, estamos separados das coisas pelos smbolos, com os quais temos de traduzir toda a nossa inteligibilidade acerca dos produtos individuais da experincia. Em Kant, como bem retrata Dilthey, precisamos traduzir o plano das individualidades empricas sobre um outro plano, construdo pelo tempo e pelo espao matematizados, dotados assim da capacidade de conectar, por meio de relaes externas, a seqncia heterognea dos dados empricos. Em Dilthey encontramos uma possibilidade no interior da prpria experincia que, anteriormente formulao de sua teoria, seria considerada sobre-humana. Dilthey abre uma esfera, a da vivncia

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    (Erlebnis), em que podemos ter acesso direto e imediato prpria coisa. A fora de Dilthey est justamente em que ele consegue propor um modelo de evidncia e validade para as cincias compreensivas. Em oposio ao determinismo, conforme sustentado por Leibniz, e em oposio experincia objetiva (Erfahrung), conforme construda por Kant, Dilthey funda a ontologia do compreensivo, da qual ainda hoje somos tributrios. Retomemos, com as palavras do prprio Dilthey, este argumento supracitado:

    No se pode querer saber como o objeto se parece, se ningum o compreende em sua conscincia. Ao contrrio, isto, que eu vivencio (erlebe) em mim, est a para mim como fato da conscincia (als Tatsache des Bewusstseins), por isso eu dele me apercebo: fato da conscincia no nada seno isto de que eu me apercebo. Nossas esperanas e aspiraes, nossos quereres e desejos, esse mundo interior como tal a coisa mesma (als solche die Sache selber) (1959, p. 394).

    Dilthey reivindica a apercepo no como fundamento da construo da experincia externa, mas como acesso direto experincia interna. Esta a soluo proposta por Dilthey: porque este acesso seria direto, a experincia interna seria qualitativamente diferente da experincia externa. Conseqentemente, estaria resolvido o problema da validade deste tipo de conhecimento: como eu tenho acesso coisa tal qual ela , ento o conhecimento do mundo interior seria imediatamente vlido. claro que a muitos esta soluo poder parecer insatisfatria. Em defesa de Dilthey, no entanto, vale ressaltar o seu esforo para construir cognitivamente a tese compreensivista sem romper com a esfera epistmica das cincias. Dilthey poderia ter tomado axiomaticamente a compreenso como um fato bsico da vida humana, evitando assim, estrategicamente, examinar os fundamentos que lhe assegurassem validade cientfica. Num esforo complementar ao kantiano, no entanto, aceita a tese de que o problema da validade tem de ser resolvido no interior da esfera da experincia acessvel ao ser humano. Assim, por meio da experincia interna, duplica o referencial dos conceitos produzidos pelo pensamento. E alcana

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    isto no por meio da intuio emprica (soluo proposta por Kant), mas mediante esta evidncia intuitiva a que temos acesso na esfera da experincia interna. claro que esta soluo continuaria insatisfatria para quem almejasse uma soluo transcendental. preciso lembrar, contudo, que Dilthey parte de Leibniz, descobre duas esferas de fatos e procura pens-las a partir do princpio de razo suficiente inerente a cada uma delas. este recurso que permite a Dilthey reinterpretar o princpio de razo suficiente e separar compreenso de explicao, concebendo sobre um novo fundamento a posio da lei do conhecimento relativa s cincias do esprito. Referncias AMARAL, M. N. C. P. (Org.). Perodo clssico da hermenutica filosfica na Alemanha. So Paulo: Edusp, 1994. BELAVAL, Yvon. Le systme. In: Leibniz. Iniciation a sa philosophie. 7e d. Paris: Vrin, 1993, p. 195-280. BIANCO, Franco. lorigine de la rencontre entre hermneutique et phnomnologie: Dilthey e Husserl. In: MEJA, Emmanuel (Org.). Phnomnologie et hermneutique. Penser leurs rapports. Lausanne: Payot, 2001, p. 37-53, v. 2. DILTHEY, Wilhelm. Einleitung in die Geisteswissenschaften. Versuch einer Grundlegung fr das Studium der Gesellschaft und der Gechichte. In: Gesammelte Schriften. 7. unv. Aufl. Stuttgart: Teubner; Gttingen: Vanderhoeck & Ruprecht, 1959. ______. Introduccin a las ciencias del espritu. Traduccin de Julin Marias. Madrid: Alianza, 1980. COLE, Jean. La mtaphysique de Christian Wolff. Hildesheim: Georg Olms, 1990. 2 Bd. FERRATER MORA, Jose. Dicionrio de Filosofia. Traduo de R. L. Ferreira e A. Cabral. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2001, t. IV. GADAMER, Hans-Geog. Verdade e mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Traduo de Flvio Paulo Meurer. Petrpolis, RJ: Vozes, 1999.

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