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A HERMENÊUTICA DOS DIREITOS HUMANOS EM FACE DA DIVERSIDADE CULTURAL LA HERMENÉUTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS EN EL ROSTRO DE LA DIVERSIDAD CULTURAL Viviany Almeida Loureiro RESUMO Este artigo busca apresentar algumas das propostas desenvolvidas contemporaneamente na tentativa de encontrar uma solução mais democrática para a realização dos direitos humanos no plano global. As propostas, cada uma à sua maneira, têm em comum a valorização da diversidade e da maneira de ver o mundo de cada cultura, estando cientes do valor que elas representam, por minoritária que sejam, para a concretização de direitos que assegurem a dignidade da pessoa humana onde quer que ela se encontre. A ferramenta utilizada é a hermenêutica que privilegia a prática do diálogo e sob variadas nomenclaturas procura sempre o consenso e a paz social. PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE, CULTURA, HERMENÊUTICA RESUMEN El presente artículo pretende presentar algunas de las propuestas desarrolladas simultáneamente en un intento de encontrar una solución democrática a la realización de los derechos humanos en el plan mundial. Las propuestas, cada uno a su manera, comparte la apreciación de la diversidad y la forma de ver el mundo de cada cultura, siendo consciente del valor que representan, mientras que las minorías, a la realización de los derechos que garantizan la dignidad de persona in cualquier lugar que se encuentra. La herramienta utilizada es la hermenéutica que privilegia la práctica del diálogo y bajo diferentes nomenclaturas de la demanda siempre el consenso y la paz social. PALAVRAS-CLAVE: DERECHOS HUMANOS, DIVERSIDAD, CULTURA, HERMENÉUTICA I - INTRODUÇÃO 4885

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A HERMENÊUTICA DOS DIREITOS HUMANOS EM FACE DA DIVERSIDADE CULTURAL

LA HERMENÉUTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS EN EL ROSTRO DE LA DIVERSIDAD CULTURAL

Viviany Almeida Loureiro

RESUMO

Este artigo busca apresentar algumas das propostas desenvolvidas contemporaneamente na tentativa de encontrar uma solução mais democrática para a realização dos direitos humanos no plano global. As propostas, cada uma à sua maneira, têm em comum a valorização da diversidade e da maneira de ver o mundo de cada cultura, estando cientes do valor que elas representam, por minoritária que sejam, para a concretização de direitos que assegurem a dignidade da pessoa humana onde quer que ela se encontre. A ferramenta utilizada é a hermenêutica que privilegia a prática do diálogo e sob variadas nomenclaturas procura sempre o consenso e a paz social.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITOS HUMANOS, DIVERSIDADE, CULTURA, HERMENÊUTICA

RESUMEN

El presente artículo pretende presentar algunas de las propuestas desarrolladas simultáneamente en un intento de encontrar una solución democrática a la realización de los derechos humanos en el plan mundial. Las propuestas, cada uno a su manera, comparte la apreciación de la diversidad y la forma de ver el mundo de cada cultura, siendo consciente del valor que representan, mientras que las minorías, a la realización de los derechos que garantizan la dignidad de persona in cualquier lugar que se encuentra. La herramienta utilizada es la hermenéutica que privilegia la práctica del diálogo y bajo diferentes nomenclaturas de la demanda siempre el consenso y la paz social.

PALAVRAS-CLAVE: DERECHOS HUMANOS, DIVERSIDAD, CULTURA, HERMENÉUTICA

I - INTRODUÇÃO

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A ciência do direito tem escopo numa ousadia positivista que culminou nos grandes tratados assecuratórios de direitos aos indivíduos. Ainda hoje esses tratados são necessários em nome do que se convencionou chamar pelo lugar-comum de segurança jurídica. Ocorre que o direito não é apenas o que se encontra firmado em tais tratados. Ele é muito mais que isso, pois se constrói no dia a dia, em cada caso. Não obstante tais tratados seguem sendo diretrizes, comando que guiam a hermenêutica do direito em busca de sua efetiva realização.

É nesse contexto que se insere uma determinada declaração que há mais de 60 anos trouxe ao cenário mundial a pretensão de dar a todos os seres humanos uma segurança em termos jurídicos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, mesmo com todas as polêmicas de que foi alvo, continua sendo o estatuto da dignidade da pessoa humana no plano global. No entanto, não basta que exista um diploma assegurando determinados direitos para que estes tenham sua efetivação garantida. É preciso ter sensibilidade jurídica para identificar o que corresponde ao que a declaração quis assegurar em termos de dignidade humana nos diversos contextos, pois, tendo cada cultura sua própria visão de mundo, é necessário libertar-se da própria maneira de conceber a realidade para adentrar em uma análise comparativa do direito e assim torná-lo efetivo.

É isso o que vem postulando a nova hermenêutica jurídica. Uma ruptura com o tecnicismo da velha hermenêutica, contrapondo-se aos cânones empregados no processo interpretativo e negando a existência de uma interpretação considerada verdadeira por ser calcada na objetividade com que é aferida, para exaltar uma melhor interpretação em cada caso. Trata-se de uma oposição a idéia de hermenêutica como estudo epistemológico que visa antes de tudo à intenção do autor, cuja conseqüência tende a ser um conjunto não uníssono, mas restrito, de resultados.

Este artigo se propõe a apresentar a hermenêuticas desenvolvidas na contemporaneidade em vista das condições atuais, onde a diversidade não pode mais ser adstrita a um limite territorial, como é o Estado-Nação, mas encontram-se inseridas nos variados espaços sem fronteiras bem definidas. A primeira parte da exposição será dedicada à diversidade dando destaque a seu viés cultural, que é tão debatido no âmbito dos direitos humanos. O objeto maior, no entanto, é a hermenêutica desenvolvida para a conformação dos direitos humanos quanto projeto universal às particularidades da diversidade. Nesse ínterim será apresentada a hermenêutica diatópica de Panikkar e Boaventura, a hermenêutica analógica de Mauricio Beuchot e a hermenêutica crítica de Joaquin Herrera Flores.

II - A DIVERSIDADE E SEU VIÉS CULTURAL

A palavra diversidade está ligada aos conceitos de pluralidade, multiplicidade, diferentes ângulos de visão ou de abordagem, heterogeneidade, enfim, variedade. Ela se exprime na língua, nos usos e demais fatores que se inserem no contexto cultural do indivíduo, mas também pode ser identificada no padrão mental utilizado, no gosto, bem como, nos hábitos do sujeito ou da comunidade.

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A diversidade prescinde de investigações profundas, ela simplesmente é e está presente em toda a história, em cada lugar do cotidiano. Não fosse a diversidade algo tão notório, a tentativa de definir a natureza humana em contextos não culturais[1] não seria objeto de tantos estudos, mas, é justamente por ser a diversidade um fato que esta prescinde de provas.

Enfim, somos tão diferentes uns dos outros que foi preciso construir uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, num determinado momento de nossa história (1948), para nos lembrar que, na origem, todos somos também iguais por termos algo em comum que nos distingue dos outros seres. Isso foi uma conquista da humanidade e podemos, ou melhor, devemos nos incluir nessa conquista e nesta humanidade, sentindo-nos responsáveis por manter e ampliar os direitos fundamentais ali expressos e a nossa experiência humana individual e coletivamente. (BULGARELLI: http://www.unicrio.org.br/Textos/dialogo/reinaldo _s_bulgarelli.htm)

Este fato que é a diversidade vem se tornando cada dia mais visível, não só no âmbito cultural, onde em geral os direitos humanos se propõem a analisar a diversidade, mas no espaço que compreende o gênero humano como um todo. Geertz afirma que a diversidade deixa de ser estudada dentro de um espaço cultural para ter seu campo de pesquisa em limites cada vez menos demarcados.

Em termos mais concretos, as questões morais provenientes da diversidade cultural (que, é claro, estão longe de ser todas as questões morais que existem), as quais, se é que chegaram a surgir, surgiram sobretudo entre sociedades - aquele tipo de coisa dos “costumes contrários à razão e á moral” de que se alimentou o imperialismo -, surgem agora, cada vez mais, dentro delas. As fronteiras sociais e culturais têm uma coincidência cada vez menor - há japoneses no Brasil, turcos às margens do Main e nativos das Índias Ocidentais e Orientais encontram-se nas ruas de Birmingham -, num processo de baralhamento que já vem acontecendo há um bom tampo, é claro (...), mas que, em nossos dias, aproxima-se de proporções extremas e quase universais. (GEERTZ: 2001, p.77)

Como já observado, o estudo da diversidade no âmbito dos direitos humanos está ligado ao conceito de cultura, sendo desenvolvido como especialidade do ramo sob nome de diversidade cultural. Ocorre que, em vista do fenômeno da coincidência cada vez menor entre as fronteiras sociais e culturais, o estudo da diversidade no âmbito cultural passa a ser apenas uma faceta de um fenômeno mais abrangente.

A diversidade cultural tem reivindicado seu estatuto no campo do direito e no que tange os direitos humanos as discussões são ainda mais calorosas. A globalização e a internacionalização dos mercados são apenas fatos ao lado do fenômeno da emergência da diversidade social como realidade da qual o direito precisa se inteirar. Os principais tópicos no campo dos direitos humanos são referentes a relativismo cultural e muticulturalismo, sempre relacionados à pretensão de universalidade da Declaração Universal dos Diretos Humanos.

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As palavras multiculturalismo, pluriculturalismo e interculturalidade são utilizadas com grande reserva, cada autor atribuindo seu significado e estabelecendo suas preferências. Raimon Panikkar fala em interculturalidade como o caminho do meio entre o monoculturalismo e o multiculturalismo, pois entende que este é impossível existir no mundo atual sendo mais provável que conduzisse a uma guerra de culturas com a previsível derrota das menos fortes, condenado todos a um apartheid cultural. O monoculturalismo, portanto, seria letal e o multiculturalismo impossível.

Mauricio Belchot entende o multiculturalismo como o fenômeno da multiplicidade de culturas que se dá no mundo e na maioria dos países. Pluralismo cultural, por sua vez, seria o modelo com que se trata de explicar ou manejar esse multiculturalismo tendo sido também chamado de interculturalidade. Desta forma, o entendimento do autor é de que o multiculturalismo é a palavra de origem liberal criada para designar um fenômeno, qual seja, o da existência de várias culturas em um mesmo pais ou comunidade maior. Já a interculturalidade é o que se pretende alcançar, é o modelo que trata de explicar e orientar o multiculturalismo, evitando tanto o assimilacionismo quanto a segregacionismo. Essa postura intermediária é também denominada pluralismo cultural.

Hay que se distinguir entre multiculturalismo y pluralismo cultural. De hecho “multiculturalismo” es una denominación de origen liberal, e implica y propicia la dominación. De ahí que prefiera la denominación de “pluralismo cultural” o “intercultural” para el modelo que aquí se propone. (BEUCHOT: 2005, p.14)

A pesar das inúmeras nomenclaturas o fato é o mesmo, a diversidade, a multiplicidade de formas de ver o mundo e interpretá-lo segundo suas tradições. A história de cada grupo, bem como a visão teológica, também deve ser levada em consideração neste processo, pois um dos elementos que ajudam o interprete a identificar e compreender a diversidade é o histórico de determinada comunidade. A desconsideração da diversidade religiosa, adverte Panikkar, “parece considerar a pessoa humana como um mero conjunto de necessidades, materiais e psicológicas” (p.218).

Joaquin Herrera Flores destaca a grande a pluralidade de mudanças ocorridas no mundo e a influência do capitalismo ocidental para as diversas maneiras de se compreender os diretos humanos. Mauricio Beuchot também chama a atenção para a diferença desenvolvendo uma hermenêutica de valorização da diferença. Além disso, procura uma solução que não caia no relativismo etnocentrista, e que, neste ponto, aproxima-se bastante do ‘realismo relativista’ de Flores.

Há uma semelhança nas hermenêuticas aqui apresentadas, pois têm como ponto de partida a consideração e o respeito à diversidade sem cair nas garras do relativismo forte. A diversidade é enriquecedora, e na metáfora elaborada por Panikkar cada cultura é uma janela que permite olhar o mundo e vê-lo de maneiras parcialmente convergentes, mas não coincidentes e nunca completas. O reconhecimento da incompletude das culturas não impede o diálogo com outras culturas, mas, ao contrario, constitui uma das condições que o tornam o diálogo possível.

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III - A HERMENÊUTICA DOS DIREITOS HUMANOS:

A hermenêutica é uma ciência que tradicionalmente está ligada à arte do anúncio do que se encontrava obscuro ou duvidoso. A trajetória desta prática até os dias atuais remonta varias abordagens, uma das quais se apropriou o direito[2]. A hermenêutica jurídica, notadamente metodológica, sede espaço a uma nova que tem entre seus fundadores Hans Georg Gadamer, o qual se dispôs a estudá-la nos moldes clássicos, dando prioridade ao diálogo e a compreensão do sujeito em lugar dos cânones interpretativos que se estabeleceram na prática jurídica contemporânea.

Em um artigo denominado incapacidade para o diálogo, o autor observa que o diálogo tem perdido sua força nos tempos modernos e isso é preocupante na medida em que a linguagem só existe verdadeiramente nesta prática. Quando usa a palavra diálogo não se deve entender qualquer forma de conversação, o autor utiliza para demonstrar sua forma de conceber o diálogo o exemplo de uma conversação telefônica ao que ele compara a um negativo fotográfico onde a artificialidade vela as partes mais peculiares da mensagem lingüística. O verdadeiro diálogo deve conduzir à profundidade da comunhão humana. “o verdadeiro carisma do diálogo, que só está presente na espontaneidade viva do perguntar e do responder, do dizer e do deixar-se dizer.” (p.131)

A falta de dialogo não é o único fenômeno de carência comunicativa que conhecemos, basta lembrar o desaparecimento das cartas e correspondências e admitir que não encontram semelhança nas curtas mensagens eletrônicas que as substituíram. Analisando o que ele chamou de ‘os carismáticos do diálogo que mudaram o mundo’ - Confúcio, Buda, Jesus e Sócrates - e os mestres do diálogo, como Friedrich Scheleiermacher e Friedrich Schlegel; chega à conclusão de que o diálogo tem uma proximidade maior com a verdade. O próprio Platão transmitiu sua filosofia na forma de diálogos por reconhecer que a palavra só encontra sua confirmação através da recepção no outro e da aprovação do outro. Nisto consiste a força convincente do diálogo.

Diálogo, no sentido que Gadamer quer que a palavra seja compreendida, possui uma força transformadora. “Só no diálogo (e no rir-um-com-o-outro que é como um consenso transbordante sem palavras), amigos podem encontrar-se e construir aquela espécie de comunidade na qual cada um permanece o mesmo para o outro, porque ambos encontram o outro e no outro encontram a si mesmos.” (p.135).

“O verdadeiro tema de nossas reflexões é, ao contrário, uma incapacidade para o diálogo que não se confessa a si mesma. Ao contrario, ela tem a forma normal de não se ver, que não se vê essa capacidade em si mesma, mas no outro” (p.138). A incapacidade para ouvir é algo bem conhecido de todos e Gadamer a expõe em seu texto. Ele considera que a incapacidade tem um lado subjetivo - incapacidade de ouvir - e outro objetivo que consiste no fato de que não existe uma língua comum. Sobre a ausência de uma linguagem comum Gadamer alerta para o fato de que “também onde parece faltar linguagem, pode alcançar-se o entendimento mediante a paciência, a sensibilidade, a simpatia e a tolerância, e mediante a confiança incondicional na razão que todos nós partilhamos.” (p.140).

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Na hermenêutica diatópica desenvolvida por Panikkar e complementada por Christoph Eberherd e Boaventura de Sousa Santos o diálogo assume um papel central, pois, nesta hermenêutica, se objetiva entender uma cultura a partir do topos de outra. Baseia-se na idéia de que os topois[3] de uma cultura, por mais fortes que sejam, são incompletos, sendo necessário ampliar ao máximo a consciência desta incompletude. Ocorre que tal incompletude não é visível a partir do interior de sua cultura, pois a falta de distanciamento faz com que se tome a parte pelo todo. A incompletude só pode ser vista através do diálogo e o reconhecimento das incompletudes mútuas é imprescindível para um diálogo intercultural.

La hermenéutica adecuada para la tal empresa es aquella que me permití llamar diatópica. Los topoi o lugares culturales, son distintos y no se puede presuponer a priori que las intenciones que han permitido que emerjan los distintos contextos sean iguales. Pero con las cautelas necesarias de una hermeneutica diatópica pueden relacionarse contextos y llegar a una cierta comprensión de ellos. (PANIKKAR: http://them.polylog.org/1/fpr-es.htm)

Mas o diálogo é só um dos elementos dessa nova hermenêutica desenvolvida com vistas à aplicação da Declaração Universal de 1948 e dos demais diplomas que disciplinam os direitos humanos. Autores contemporâneos, como o espanhol Joaquín Herrera Flores e o mexicano Mauricio Beuchot, no desenvolver de suas pesquisas em busca de uma hermenêutica dos direitos humanos, dão ênfase a outros elementos que aparecem bem demarcados na hermenêutica filosófica de Gadamer com característica marcadamente intersubjetiva.

Trata-se de uma hermenêutica voltada à compreensão através da prática do filosofar. Envolve o reconhecimento da consciência histórica e busca demonstrar a diversidade e intensidade de sentidos que acontece quando se compreende algo. Além disso, como demonstrado na revalorização do diálogo, trata-se de num apelo à recuperação do âmbito prático da filosofia.

Afinado com as diretrizes hermenêuticas contemporâneas, Joaquín Herrera Flores busca banir a pretensão de uniformidade e homogeneização que possa desvirtuar a aplicação dos direitos humanos. Posiciona-se contra o humanismo abstrato que quer ver os direitos humanos como algo transcendente e traz a discussão para um plano prático, histórico e atento à realidade que é a diversidade. Em toda a argumentação está presente o fator social, o qual é apresentado sob o signo da modernidade ocidental capitalista.

O princípio da dignidade proposto por Herrera Flores tem suas bases na aceitação de uma concepção e uma prática materialista do mundo e do cultural[4]. É um principio que nega qualquer forma de transcendentalismo, seja religioso, seja axiológico, seja dialético. A acepção de materialismo de que o autor fala tem como mais importante a criação e utilização de materiais que permitam pôr em prática a capacidade humana genérica de fazer e desfazer mundos, de conhecer e enfrentar os contextos dominantes, enfim, de potenciar lutas pela dignidade humana.

Para o autor, o homem é um animal cultural que se relaciona frente a seu mundo construindo suas formas econômicas, religiosa, políticas, jurídicas e estéticas. Todos os

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processos culturais funcionam instituindo o que ele chama de ‘seus próprios conteúdos de ação social’ a partir dos quais explicam, interpretam e intervém no espaço social. Assim, também o direito é um produto cultural.

Apesar da proposta do autor ser o estudo dos direitos humanos como produto cultural surgido em um contexto concreto e preciso de relações, qual seja, o capitalismo ocidental, não se trata de pô-los unicamente como produtos da ideologia de acumulação de capital, mas de situá-los como produtos de relações políticas, sociais, jurídicas e econômicas, e não apenas como um fenômeno natural, metafísico, muito além da prática humana.

En este libro vamos a proponer una concepción cultural de los derechos humanos; es decir, vamos a entenderlos como lo que son: un producto cultural surgido en un contexto concreto y preciso de relaciones que comienza a expandirse por lo globo – desde el siglo XV hasta estos inciertos comienzos del siglo XXI – bajo el nombre de modernidad occidental capitalista. (FLORES, 2005: p.19)

Ao falar em direitos humanos como produtos culturais, o autor põe em questão a diferença e lembra que, historicamente as culturas hegemônicas têm tentado se sobrepor às demais com o argumento colonizador do bárbaro, selvagem. Mas esta maneira de considerar os direitos humanos também propõe outra forma de tratar o diferente, o que se dá depois de um trabalho árduo de reconhecimento cultural e sensibilidade para com a diferença.

A pergunta ponto de partida para essa investigação é: Os direitos humanos são um produto cultural surgido em um contexto especifico de relações ou um produto natural inscrito em nossa historia genética?

Pode-se dizer ainda, que a análise dos direitos humanos feita pelo autor parte da pluralidade e das mudanças que vêm ocorrendo no mundo. Uma proposta que rompe com as concepções que consideram os direitos como definitivamente definidos e aposta na necessidade de construir condições para o encontro entre as múltiplas e diferentes formas de caminhar rumo à dignidade.

¿Cómo dar por definitivamente definidos los derechos humanos, cuando el contexto social, político e económico ha dado un vuelco tan espectacular? ¿ No es un insulto a la inteligencia y a la sensibilidad humana seguir pensando que los derechos ya están suficientemente garantizados por aparecer en las declaraciones internacionales y los textos constitucionales, cuando esa revolución neoliberal ha cambiado el mundo sin tocar ni una coma lo contenido en tales normas? (FLORES: 2005, p.35-36)

A consideração dos elementos políticos, sociais, jurídicos e econômicos dá consistência à análise de Flores e o identifica no campo da hermenêutica moderna onde há a inserção de um maior numero de elementos na análise do texto. Em contrapartida, a desconsideração de tais elementos sombreia a compreensão e impede que se veja o fenômeno pela sua melhor luz.

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O universalismo que Herrera Flores propõe é necessariamente a posteriori em relação a esse debate entre as diversas culturas e os diversos elementos a serem considerados, não partindo de teses prontas e acabadas, daí a sua diferença para o universalismo a priori do jusnaturalismo. Assim, os direitos humanos não devem ser vistos simplesmente como direitos naturais, mas analisados como artefatos, instrumentos que, desde seus inícios históricos na modernidade ocidental, foram instituindo processos de reação; há que se compreender os direitos humanos cultural, filosófica e historicamente como uma forma de reação frente ao mundo.

a esta forma de universalismo o autor denomina “realismo relativista”, pois reconhece a exterioridade do mundo com relação ao pensamento e foge dos critérios absolutos e transcendentais. “Somos, pues, realistas en tanto que admitamos la exterioridad del contexto en el que nos movemos; y relativistas, en cuanto que reconocemos la multiplicidad de contextos que conviven en nuestro mundo.” (p.64-65)

A proposta do realismo relativista visa a garantir a aceitação positiva da pluralidade de interpretações, explicações e intervenções que se dão nos múltiplos e diferenciados contextos de relações no mundo onde os grupos vivem e atuam. Mas há ainda uma segundo proposta, um ‘relativismo relacional’ que reconhece a pluralidade e onde as diferentes e plurais formas culturais de ver e interpretar o mundo não precisam assumir a forma ocidental, tendo em vista que cada uma dessas formas plurais de reação cultural são tão legítimas quanto à ocidental.

Essa busca por uma representação não ocidental das formas de interpretar o mundo lembra o conceito de “equivalentes homeomórficos” desenvolvido por Panikkar. Na verdade os equivalentes homeomórficos estão relacionados mais diretamente a palavras utilizadas em uma cultura que buscam correspondência em outra. Não são meras traduções literais, nem tampouco traduzem simplesmente o papel que a palavra original pretende exercer. Eles apontam para uma função equiparável ao papel que dada palavra corresponde em uma cultura; não se busca a mesma função, mas a equivalente à que a noção original exerce na correspondente cosmovisão.

Pongamos un par de ejemplos, que podrán ayudarnos. "Brahman" no es sin más la traducción de "Dios", puesto que ni los conceptos se corresponden (sus atributos no son los mismos) ni las funciones son las mismas (brahman no tiene por qué ser creador, ni providente, ni personal, como Dios). Cada una de estas dos palabras expresa una equivalencia funcional en las dos correspondientes cosmovisiones. (PANIKKAR: http://them.polylog.org/1/fpr-es.htm)

O filósofo mexicano Mauricio Beuchot também apresenta sua proposta para a integração da diversidade cultural no âmbito dos direitos humanos. Segundo ele o instrumento adequado para clarear essa busca é a hermenêutica, mas uma hermenêutica analógica, que dê destaque à diferença sem acabar com a identidade. Trata-se de uma hermenêutica que permite dialogar com as outras culturas com uma dupla atitude de aprender com elas e também de criticar seus elementos.

Una hermenéutica que permita superar la postura univocista en la que se trata de imponer a toda costa un modelo universal, pero también superar la postura equivocista

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en la que se permite un relativismo cultural excesivo, que promueve la diferencia a ultranza. Una hermenéutica analógica permitirá considerar las diferencias culturales, pero sin perder de vista el ideal regulativo universal, el cual evalúa de manera diferenciada y matizada, rica en significados e por ende más compleja. (BEUCHOT: 2005, p.28-29)

A hermenêutica proposta per Beuchot é denominada hermenêutica analógica, porque analogia significa prudência e equilíbrio proporcional desde sua origem etimológica. A analogia aliada à hermenêutica possibilita um distanciamento da noção univocista de outro, de próximo, de pessoa, do mesmo modo que evita seu extremo oposto equivocista, igualmente insustentável.

Esta hermenêutica se utiliza de dois aspectos da analogia: analogia de atribuição e de proporcionalidade. Esses dois aspectos se mesclam para dar origem a uma forma mais rica de analogia uma vez que cumprem funções complementares. “La analogía de proporcionalidad da apertura, permisividad, extensión; la de atribución ata y sujeta, pone algo como primero, coloca un principio, que es obtenido por su aproximación a la verdad, por lo menos a la verdad textual” (p.37).

À luz da proporcionalidade todas as culturas se comparam entre si respeitando suas diferenças, mas buscando sua unificação proporcional, o que têm de comum. A cultura vista sob o prisma da analogia de atribuição faz uma hierarquia entre duas ou mais culturas, mas a primeira premissa é uma forma de cultura paradigma, um modelo ideal, abstrato, de como deveria ser o melhor para o homem, o qual serve de idéia regulativa. É necessário que se conjugue os dois aspectos da analogia para que se resolva o enigma, um vez que, só a proporcionalidade pode levar ao relativismo e só a atribuição pode deixar parecer unívoco o análogo principal.

Ao mesclar ambas as analogias o autor pretende mostrar que no fundo todas as culturas estão em pé de igualdade, mas que vão se hierarquizando à medida que se aproximam ou se distanciam do modelo adotado como paradigma. O que norteia a hermenêutica analógica de Beuchot também é a valorização da diferença, já que tanto a atribuição como a proporcionalidade implicam em diferença. “La analogía nos ayuda precisamente a captar las diferencias culturales en medio de las similitudes, que son las que pueden constituir universales culturales.” (p. 39)

Na busca de um modelo ideal de direitos humanos há sempre uma oscilação entre o universal e o individual, já que ambas as coisas devem ser respeitadas. Essa busca pela epistemologia ou teoria do conhecimento que nos permita conciliar os dois extremos, atendendo à universalidade dos direitos humanos mas também às particularidades que se dão nos seres ou grupos humanos aos quais se aplicam, nos aproxima do princípio que rege a frónesis, traduzida do grego como prudência, e da ética, que é retomada com o objetivo de tornar as ciências mais humanas.

Gadamer também fala sobre a importância da ética para as ciências do espírito. A ética aristotélica deve estar presente na nova hermenêutica como forma de se precaver contra a objetivação que permeou a hermenêutica por anos. A hermenêutica baseada na técnica dava origem a um saber geral que não encontrava correlação com a

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situação concreta e estava sujeito a obscurecer as exigências concretas que emanam de uma determinada situação.

O enorme alheamento que caracteriza a hermenêutica e a historicidade do século XIX, fruto do método objetivador da ciência moderna, mostrou ser a conseqüência de uma falsa objetivação. O exemplo da ética aristotélica foi citado para desmascarar e evitar essa objetivação. O saber ético, como é descrito por Aristóteles, não é evidentemente um saber objetivo. Aquele que sabe não está frente a uma constelação de fatos, que basta constatar, mas é atingido diretamente por aquilo que ele conhece. É algo que ele deve fazer. (GADAMER: 2007, p.414)

O papel da hermenêutica é importante na fundamentação filosófica dos direitos humanos, mas não apenas para este intento. Uma interpretação das culturas segundo os moldes da hermenêutica moderna tem como objetivo compreender, valorar uma determinada cultura para fazer com que elas compreendam e valorem adequadamente os direitos humanos.

Os tempos modernos amparam uma forma de conhecimento que se caracteriza por buscar a compreensão e não só a explicação. Desde Heidegger o ato de interpretar deixa de ser um ato súbito para se tornar um processo. Também a noção de texto se modifica para ser entendido não apenas como texto escrito, mas, amplamente como qualquer objeto de análise hermenêutica. Nós seres humanos somos textos sob o olhar de quem interpreta, e assim as culturas, os fatos históricos e o direito, enfim toda a realidade estudada pela hermenêutica é vista como um texto.

A proposta de Beuchot é criar situações intermediárias, caminhos conciliatórios que sirvam de alternativa aos extremos que permeiam as obras humanas e que têm se difundido como opção política na modernidade.

Entre el multiculturalismo y el asimilacionismo se propone aquí el pluralismo cultural. Y entre el liberalismo individualista y el igualitarismo comunitarista se sugiere un analogismo político-jurídico, que permita diferenciar sin lesionar la igualdad. Pero elo es un pluralismo cultural analógico. (BEUCHOT: 2005, p.58)

O mundo vive um momento em que muito se fala em tolerância, onde se dá valor a soluções criativas e inclusivas. De fato, é no caminho do meio que se encontra a virtude, no entanto, a intemperança do homem não o deixa ver que a verdade não pode estar em uma construção teórica ou numa atitude carregada de extremismo. Há que se reconhecer a importância dos extremismos no trabalho de rompimento com determinados paradigmas, mas a verdade, a justiça, consiste em algo mais complexo, em um olhar mais amplo, e dificilmente será alcançada mirando em direção a apenas um dos tantos lados.

Não obstante, cada um desses extremos foi capaz de dar seu contributo na construção deste caminho intermediário. “Del relativismo recuperamos su intuición de que no hay una sola forma válida de conducta y, del universalismo, su intuición de que no todas

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pueden ser válidas” (p.63). Esta forma plural reconhece ambas as coisas e assim valoriza o ser humano quando proclama que não há apenas uma forma de se realizar a natureza humana.

Na busca de compreender a cultura alheia é preciso compará-las com a nossa, mas a cultura alienígena não pode ser avaliada a partir dos nossos valores e sim de valores universais. Beuchot reconhece a dificuldade em encontrar esses valores universais, reconhece que o ser humano não é imparcial, mas reivindica que deve haver alguma forma de universalização. Para tanto sugere o uso do que chama ‘diafilosofia’ no lugar de uma metafilosofia, porque não se trata de um a piori, mas de um a posteriori.

Isso se dá partindo dos valores parciais próprios, já conhecidos, para então se proceder à observação dos valores particulares alheios e a partir dessa observação se contrastar a experiência de uns com os outros. Sem perder de vista as dificuldades que envolvem esse processo, a necessidade de autocrítica e de tolerância que pressupõe esse trabalho, o autor afirma que:

No tenemos otra cosa de la cual partir. Poco a poco, y como por una función simbólica, la diafilosofía nos ayudará a juzgar los valores de los otros a partir del juicio que tengamos de los nuestros ( y también escuchando el juicio que les merecen a los dos otros). (BEUCHOT: 2005, p.65-66)

O procedimento proposto pelo autor envolve simbolismo, ícones e analogias na busca da identidade dos povos, pois ele entende que o reconhecimento que se opera entre os membros de uma cultura se dá por analogia; a chave desse reconhecimento se dá pelos ícones dessa cultura e pela iconicidade de seus arquétipos e símbolos fundacionais. Beuchot reconhece que o homem é produto de sua história, mas nos adverte de que não se reduz a ela tendo algo de essencial nele. Para ele, mais que a física ou a ontológia, a identidade simbólica ou cultural de um povo é que o constitui.

Outra questão analisada pelo autor é o fato de que os direitos humanos, tal qual foram apresentados, tinham como objetivo o cumprimento dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade enunciados na revolução francesa. Dentre estes ideais, o de fraternidade é o mais distante.

Curiosamente, libertad, igualdad y fraternidad, en ese orden, se muestran como una secuencia de menor a mayor dificultad, y reflejan un proceso de maduración social. Tal vez la fraternidad exija una madurez social casi inalcanzable, pero, por lo menos, debemos tender a ella como ideal regulativo. (BEUCHOT: 2005, p.72)

Estes direitos tornam-se bem diferentes se são vistos a partir da liberdade, da igualdade ou da fraternidade. Sendo sua origem liberal estão muito polarizados na liberdade e muito ocupados em avançar essa linha em direção à igualdade. De fato tem melhorado um pouco em direção a igualdade, mas onde menos tem avançado é na fraternidade, a qual, curiosamente, parece pressupor e conter os outros dois valores. A fraternidade é, sem dúvida, o mais abrangente dentre eles e pode ser identificada com o

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que se tem denominado amizade social, generosidade cívica ou simplesmente tolerância, solidariedade, respeito.

A atitude moral que pressupõe a fraternidade se torna crucial no desenvolvimento de uma forma de pluralismo que se predispõe a compreender a cultura alheia. O diálogo intercultural requer essa atitude ética de respeito para com as outras culturas, pois, a questão dos valores grupais deve se combinar e se equilibrar com o diálogo, a tolerância e a solidariedade. Busca-se uma atitude de respeito para com as diferenças de modo que se possam criticar os direitos comunitários a partir dos direitos humanos, mas também dar aos direitos humanos, que são individualistas, uma perspectiva mais comunitária.

A intenção da hermenêutica analógica é ajudar nesse diálogo intercultural dos direitos humanos através da preservação de duas intuições complementares: a de que os direitos humanos exigem certa universalidade para que sejam legítimos e a de que também exigem a pluralidade cultural, pois nela é que são legítimos direitos humanos.

Além de todo intento conciliatório, a hermenêutica analógica também pretende encontrar uma solução para além do relativismo. Há neste ponto uma valorização da filosofia dos direitos humanos enquanto teoria voltada à fundamentação destes direitos. Muitos dos direitos humanos ainda não foram positivados e sua defesa depende de um trabalho de fundamentação com base na dignidade da pessoa humana onde se faz extremamente necessária a filosofia.

Mas a filosofia não tem seu papel restrito à defesa prática dos direitos humanos, ela tem grande importância na educação destes. Vale lembrar que há diferentes posturas no meio intelectual e acadêmico com relação à fundamentação filosófica dos direitos humanos. Há os que a consideram supérflua por ser impossível ou desnecessária, sob o argumento de que os direitos humanos já foram positivados pela declaração de 1948; há os que vêem a fundamentação baseadas em considerações pragmáticas e ainda os que reivindicam algo mais ontológico.

O autor se coloca entre estes que reivindicam algo mais ontológico, mas a fundamentação que propõe é uma fundamentação aberta, dialética, integradora, a qual se alcança fugindo da univocidade e da equivocidade rumo a uma analogicidade. A hermenêutica analógica de Beuchot objetiva tornar isso possível.

Así una hermenéutica analógica hace a la ontología más débil, pero allí la analogía, el conocimiento analógico, es un abatimiento de las fuerzas del conocer, un reconocer que nuestro conocimiento de lo ontológico es limitado y defectuoso, con deficiencias muy grandes y pesadas (una especie de Alfhebung hegeliana). (BEUCHOT: 2005, p.82)

Ao analisar as bases antropológicas da teoria dos direitos humanos o autor entende que esta se liga a uma base ontológica. A idéia de direitos humanos envolve uma idéia de homem como centro do universo, mas que tem o papel de cuidar do planeta em que vive. Trata-se, portanto, de uma base de índole jusnaturalista, mas sem deixar de fora a base juspositivista uma vez que os direitos necessitam de positivação. Na dimensão naturalista o que se tem é uma antropologia conectada com a ontologia que se plasma

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como filosofia personalista já que a noção de pessoa aqui é mais ontológica que cultural ou social.

O que quer demonstrar é que a hermenêutica aplicada à compreensão dos direitos humanos nos dará uma dimensão entre o naturalismo e o culturalismo. Para tanto, deposita toda sua credibilidade nessa hermenêutica analógica ou analógico-icônica, que vê na analogia e na iconicidade uma correspondência que os faz ser a mesma coisa, que conecta o epistemológico com o ontológico enfim, que nos fará a mediação entre o naturalismo e o culturalismo no encontro de direitos humanos nem tão universais nem tão relativistas.

A hermenêutica analógica com sua dimensão interpretativa dá lugar ao hermenêutico, mas também com seu lado analógico ou icônico dá lugar ao ontológico. Assim, a hermenêutica analógica tem duas faces, uma hermenêutica simbólica, cultural, lingüística e histórica, e outra ontológica, substantiva, radicada na natureza ou essência. É uma hermenêutica que conecta a cultura com a natureza.

Dentre tantas aspirações, o autor fala de um jusnaturalismo analógico-icônico, o qual busca estabelecer um modelo de homem como ideal abstrato. Chega até a propor um novo modelo de sujeito:

La cultura de los derechos humanos nos puede dar la ocasión de un nuevo modelo del sujeto, un sujeto analógico; un sujeto a la vez narrativo y sustantivo, narratológico y ontológico a un tiempo, uniendo lo ético y lo metafísico de un modo nuevo e inédito. (BEUCHOT: 2005, p.95)

Dentre muitos devaneios presentes na obra do autor o que temos de absorver é seu intento conciliatório e a valorização da hermenêutica como forma de atingi-lo. A hermenêutica nos ajuda a compreender o homem e desta maneira conhecer o máximo possível suas características, necessidades e desejos, para moldá-los e refleti-los nos direitos humanos que vão se estabelecendo. Além disso, devemos reconhecer que a força dialetizadora da analogia é capaz de fazer com que haja direitos humanos individuais e também coletivos.

A analogia é o que nos faz ver as conexões que existem entre as coisas, e a proposta de uma hermenêutica analógica se encontra bem afinada com o grande propósito da hermenêutica atual. Uma valorização da tradição, da vivência e a utilização do círculo hermenêutico com forma de obter uma análise mais completa do fenômeno, ou melhor, do texto.

IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há grande produção na área hermenêutica e as soluções mais bem sucedidas apontam na direção da valorização da diversidade. Nas palavras de Geertz, “uma forma garantida

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de se chegar a um fim trágico seria imaginar que a variedade não existe, ou esperar simplesmente que ela desaparecesse” (p.331). Não é isso o que queremos que ocorra com o projeto dos direitos humanos, mas é preciso um reconhecimento maior de que estes não se fazem apenas de declarações redigidas por uma cúpula, são produtos da história de luta de cada povo pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo reconhecimento dos direitos a ela inerentes.

É possível identificar diferenças entre todas as hermenêuticas expostas no presente artigo. Tanto Maurício Beuchot quanto Joaquín Hererra Flores falam de um universalismo a posteriori, mas enquanto este fala em direitos humanos como produtos culturais, frutos de lutas pela dignidade humana, aquele busca no jusnaturalismo analógico- icônico um modelo de homem ideal-abstrato, algo que seria inconcebível também para Panikkar, Boaventura e Geertz.

Mesmo que haja diferenças substanciais como esta em cada construção, o que salta aos olhos é o que trazem de comum: a busca por direitos que conformem a realidade humana que reside na diferença. Apesar das disparidades, a presença deste elemento unificador, que é o respeito à cultura alheia, permite que todos estes pensamentos estejam reunidos em um mesmo trabalho sobre hermenêutica dos direitos humanos.

É este o propósito maior em se estudar a diferença: a busca pela igualdade. Todos querem que seu modo de ver o mundo seja respeitado, e, para tanto, devem se dispôr a respeitar a maneira de interagir como o mundo praticada pelo outro.

Para estudar os direitos humanos é preciso mais que saber sobre direitos, é necessário estudar o humano e isso implica o conhecimento da cultura e dos acontecimentos históricos que influenciam na tradição de um povo. Trata-se de um estudo que se torna imprescindível à filosofia, e encontra lugar confortável na ceara da hermenêutica desenvolvida modernamente, marcada pela valorização do sujeito e sua interpretação de mundo.

Aqui, foram apenas apresentadas as principais propostas, cabendo a cada um amadurecê-las e ponderar para verificar a eficácia concreta de tais teorias. O amadurecimento do estudo das teorias já apresentadas e a educação no sentido de procurar nestes filósofos uma orientação em face de situações internacionais envolvendo direitos humanos são de grande utilidade para os que querem progredir na realização de um direito atento às condições vigentes na modernidade

Daí a importância do diálogo como prática construtora de acordos e criadora de espaços para a diversidade de opiniões, necessidades e formas de realização da paz social. Acreditamos que o diálogo entre culturas, respeitando a diversidade e com base no reconhecimento do outro como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observância do ‘mínimo ético irredutível’, alcançado por um universalismo de confluência e não um universalismo imposto que poderíamos chamar, criticamente, de universalismo de influências.

Para que os direitos humanos se realizem efetivamente é preciso que todos os povos e culturas tenham seu lugar reconhecido neste processo. Não pode ser admissível que determinada cultura se sobreponha a outras como se fosse superior. Todos somos seres

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humanos e, portanto, paradigmas para a construção e a realização de nossos direitos. Enquanto os portadores de uma visão de mundo particular se sentirem lesados em nome de tais direitos humanos, não se poderá falar em justiça, em dignidade e em direitos humanos de maneira verdadeira.

V - REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Custódio Luís Silva de, EDIPUCRS. 2000; GADAMER, Hans-George. Incapacidade para o diálogo, (p.129-141) e Sobre o círculo da compreensão, (p.141-150).

BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

BEUCHOT, Mauricio. Interculturalidad Y derechos humanos. México: Siglo XXI editores, 2005.

BULGARELLI, Reinaldo S.: A Diversidade e a Experiência de Fazer Juntos. Disponível em:

http://www.unicrio.org.br/Textos/dialogo/reinaldo_s_bulgarelli.htm

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Ttraços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis-RJ, 2007.

GEERTZ, Clifford. “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa” In O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1998: pp. 249-356.

________________ “Anti anti-relativismo” In Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001: 47-67.

FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como productos culturales. Crítica del humanismo abstracto. Madrid: Ed. Los libros de la Catarata, 2005.

PANIKKAR, Raimon: Religión, filosofía y cultura. Disponivel em http://them.polylog.org/1/fpr-es.htm.

_____________________ Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004

PIOVESAN, Flávia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas. In BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004

[1] Notadamente a pesquisa de Melford Spiro , Stephen Salkever e Robert Edgerton apresentada por Geertz.

[2] Dos manuais de teoria geral do direito: Hermenêutica jurídica = interpretação, integração e aplicação.

[3] Na definição de Boaventura, topois “são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas da argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumetos” (p.256)

[4] Essa concepção de direitos humanos como produto cultural se assemelha a observação de Geertz no que se refere ao direito ser um saber local. Os direitos humanos, como a literatura, as narrativas orais, as organizações econômicas, políticas e jurídicas devem ser compreendidos, cultural, filosófica e historicamente como uma dentre as muitas formas de reação frente ao mundo.

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