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A hora de estrela O Enredo Antes de iniciar este tópico, é preciso que saibamos que as obras de Clarice dificilmente têm um enredo, um começo, meio e fim, como os cânones narrativos tradicionais. A própria autora nunca soube explicar os seus processos de criação. “É um mistério”, dizia ela. “Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão do conjunto, mas isso é coisa de momento, que depois se perde. Se houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho.” (CAMPADELLI & ABDALLA JR.). Mais do que histórias, os seus livros contêm impressões. Por isso, consciente de sua condição como (não-)escritora, Clarice dizia-se uma “sentidora, intuitiva”. A Hora da Estrela foi o último livro da autora publicado em vida. O narrador do romance é Rodrigo S. M., escritor que ironiza, através de várias contínuas no texto, o estilo de narrativa que ele próprio utiliza. Dessa forma, ele se coloca como uma das personagens centrais do romance, já que dialoga o tempo todo com o leitor sobre o estilo de sua narrativa. Sua personagem-protagonista é Macabéa (Maca), alusão irônica aos sete macabeus, personagens bíblicos. Após a morte de seus pais, quando tinha dois anos de idade, Maca fora criada por uma tia beata, a qual nela muito batia. “Acumula em seu corpo franzino, ‘herança do sertão’, todas as formas de repressão cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade. Dessa forma, segundo o narrador, ela nunca se deu ‘conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável’”. (idem) De Alagoas, a protagonista muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro colegas de quarto (todas Marias) na rua do Acre. Trabalhava como datilógrafa, profissão da qual

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Page 1: A hora de estrela

A hora de estrela

O Enredo

Antes de iniciar este tópico, é preciso que saibamos que as obras de

Clarice dificilmente têm um enredo, um começo, meio e fim, como

os cânones narrativos tradicionais. A própria autora nunca soube

explicar os seus processos de criação. “É um mistério”, dizia ela.

“Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão do

conjunto, mas isso é coisa de momento, que depois se perde. Se

houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho.”

(CAMPADELLI & ABDALLA JR.). Mais do que histórias, os seus livros

contêm impressões. Por isso, consciente de sua condição como

(não-)escritora, Clarice dizia-se uma “sentidora, intuitiva”.

A Hora da Estrela foi o último livro da autora publicado em vida. O

narrador do romance é Rodrigo S. M., escritor que ironiza, através

de várias contínuas no texto, o estilo de narrativa que ele próprio

utiliza. Dessa forma, ele se coloca como uma das personagens

centrais do romance, já que dialoga o tempo todo com o leitor sobre

o estilo de sua narrativa. Sua personagem-protagonista é Macabéa

(Maca), alusão irônica aos sete macabeus, personagens bíblicos.

Após a morte de seus pais, quando tinha dois anos de idade, Maca

fora criada por uma tia beata, a qual nela muito batia. “Acumula em

seu corpo franzino, ‘herança do sertão’, todas as formas de

repressão cultural, o que a deixa alheada de si e da sociedade.

Dessa forma, segundo o narrador, ela nunca se deu ‘conta de que

vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso

dispensável’”. (idem) De Alagoas, a protagonista muda-se para o

Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro colegas de

quarto (todas Marias) na rua do Acre. Trabalhava como datilógrafa,

profissão da qual tinha muito orgulho. Era virgem, e nunca, até

Olímpico de Jesus, possuíra um namorado. Este, também

nordestino, procurava a ascensão social, assim como ela tinha o

sonho de ser uma “estrela de cinema” (daí o título do livro). Por não

terem a ambição em comum, Macabéa perde-o para sua amiga de

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trabalho (e única), Glória, a qual possuía os atrativos materiais que

ele sonhava.

A busca de identidade da personagem-protagonista processa-se

quando ela se observa diante do espelho. A primeira imagem que

vê é a do autor, Rodrigo S. M., majestático e presente em todo o

texto, moldando a personagem à sua imagem e solidão. Há,

também, outras vezes em que Maca se olha no espelho. Em uma

delas, assim que rompera com Olímpico, ela, diante do espelho,

passa em seus lábios um batom vermelho como busca da

identidade desejada: Marilyn Monroe, símbolo social e sexual

inculcado pelas superproduções de Hollywood da década de 50.

Por conselho de Glória, Macabéa vai procurar ajuda em uma

cartomante, sendo esta a única vez em que se dera conta da vida

medíocre que levava; fora preciso Madame Carlota dizer isso a ela.

Reforçando a ideia de “nostalgia do futuro”, a vidente prevê que a

vida da nordestina mudaria a partir do momento em que saísse de

sua casa. Esta também foi a primeira vez em que Macabéa

encorajou-se para ter esperança. Um homem estrangeiro, alourado,

“de olhos azuis, ou verdes, ou castanhos, ou pretos” (p. 77)

apareceria em sua vida, casar-se-ia com ela. Ironicamente, a

protagonista sai da casa de Madame Carlota e é atropelada por um

Mercedes Benz. Consolida-se a “hora da estrela” de cinema, quando

ela vai ser “tão grande como um cavalo morto”: ferida, a

personagem vomita uma “estrela de mil pontas”. Com ela, morre

também o narrador, identificado com a escrita do romance, que

neste instante se acaba.

As Personagens

Com um falso livre-arbítrio, o narrador da narrativa decide que

serão “uns sete (...) e eu sou um dos mais importantes deles, é

claro.” (p. 13)

Macabéa: nordestina (alagoana) que migra para o Rio de Janeiro, é

a protagonista da narrativa. Datilógrafa, “toda fome e deserto”,

Macabéa (Maca, como o narrador passa a chamá-la no decorrer da

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história) tem o heroísmo dos seus irmãos bíblicos, os sete

macabeus. Seu nome é grafado quase como escreve-se “maçã”,

símbolo da tentação, só que, como não poderia deixar de ser, sem

os adornos da palavra indicadora da fruta. A personagem principal

do livro mal tem consciência de existir, mas tem um desejo: tornar-

se estrela de cinema, e admira com certa dose de melancolia

Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa forma,

acaba conseguindo realizar o seu sonho: a hora da estrela condiz

com o momento de sua morte. Dialogando intertextualmente com

Os Sertões de Euclides da Cunha, a autora (ou o narrador?) chega

a comentar que “o sertanejo é antes de tudo um paciente”(p. 79)

Olímpico de Jesus: imigrante nordestino assim como Macabéa,

Olímpico trabalhava como operário numa metalúrgica e dizia-se

“metalúrgico”. Possuidor de um dente de ouro, o qual muito

estimava por ser demonstrador de poder, sonhava em um dia ser

deputado, mas seu desejo secreto era ser toureiro. Procurava

ascensão social a qualquer preço, seja do roubo ou do crime de

morte. “Para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas

um dia vou ser muito rico, disse ele que tinha uma grandeza

demoníaca: sua força sangrava.” Torna-se o namorado da

protagonista no decorrer da trama.

Glória: amiga de trabalho (e a única) de Macabéa, possuía todo o

charme e “carnes” que a outra não tinha. “Carioca da gema” (razão

forte pela qual Olímpico atrai-se por ela), rouba o namorado da

amiga. Na página 59 do livro há uma ótima descrição desta

personagem: “Glória possuía no sangue um bom vinho português e

também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do

sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da

mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas

raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura,

o que significava um degrau a mais para Olímpico. (...) apesar de

feia, Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa

qualidade.”

“Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque

não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas

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cabeludas e das axilas que não raspava. Olímpico: será que ela é

loura embaixo também?” (p. 63)

Seu Raimundo Silveira: chefe da firma de representante de

roldanas, é o responsável pela demissão de Macabéa, pois ela

errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o

papel.

A tia: beata que cria Maca após a morte da mãe menina, quando

tinha dois anos de idade. “Muito depois fora com a tia beata, única

parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa

esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça

porque o cocoruto de uma cabeça deveria ser, imaginava a tia, um

ponto vital. (...) Batia mas não era somente porque ao bater gozava

de grande prazer sensual — a tia não se casara por nojo — é que

também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um

dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de

cigarro aceso esperando homem.” (p. 28)

As quatro Marias: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e

Maria apenas eram as colegas de quarto da nordestina. Uma delas

trabalhava vendendo produtos de beleza Coty.

Madama Carlota: a cartomante que prevê o futuro reluzente de

Maca. Trata-a com um carinho que ninguém jamais dirigiu à

protagonista. “Era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda

com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge

brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado.”(p. 72).

Durante a consulta, a cartomante comia um bombom atrás do outro

compulsivamente. Trabalhara na zona e, sem poder ser diferente da

realidade que conhecemos, sustentara um cafetão, a quem amava.

Tornara-se cafetina quando começara a engordar e perder os

dentes. O narrador coloca Madama Carlota como o ponto alto da

existência de Macabéa, já que seria a informante do seu futuro, que

mudaria (e realmente mudou) a partir do momento em que Maca

saísse da casa da Madama.

O médico: procurado por Maca, quando, pela primeira vez na vida,

fez a audácia de procurar um médico (barato) após o recebimento

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do salário. “Muito gordo e suado, tinha um tique nervoso que o fazia

de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado

era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está

prestes a chorar. (...) não tinha objetivo nenhum. A medicina era

apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor à profissão nem a

doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia.

Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram

para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também

não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas

novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter

dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.” (ps.67, 68)

O rico ocupante do Mercedez Benz: dono do carrão amarelo,

alourado e estrangeiro, é quem vai realizar, de certa forma, as

previsões de Madama Carlota.

O narrador: também uma personagem, Rodrigo S. M., a questão

do narrador será melhor discutida logo a seguir.

Foco Narrativo

Dizer se o foco narrativo de A Hora da Estrela é em primeira ou

terceira pessoa é uma questão não tão simples de ser respondida,

já que é um dos pontos mais inovadores e estilisticamente

extraordinários do livro. A autora inventa um narrador (que,

portanto, é também uma personagem e se assume durante a

narrativa como tal) para contar a história de Macabéa. Assim sendo,

o narrador, apesar de fazer parte da história, não conta uma trama

que acontecera com ele, e sim, com a sua personagem inventada,

que poderia ser real. A narrativa desvenda a sua problemática

interior e à medida que nos faz conhecer a protagonista, também

nos mostra (e vai descobrindo) a sua própria identidade.

“A ação dessa história terá como resultado minha transfiguração em

outrem e minha materialização em objeto. Sim, e talvez encontre a

flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.” (p. 20). O

narrador é onipotente, pois cria um destino. É onisciente, pois sabe

tudo a respeito de suas personagens, apesar de não conhecer a

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verdade inteira, já que se mostra no ato de inventar. Hesita, pois

não conhece o final da história. Por sentir-se culpado em relação à

protagonista, suspende-lhe a morte por páginas e páginas. Quando,

finalmente, decide-se pelo “gran finale”, volta-se contra si mesmo:

“Até tu, Brutus?” (p. 85). Sá, em sua obra anteriormente citada,

comenta que “Clarice sabe que todo narrador inventa o mundo à

sua imagem e semelhança e o ‘ele’ ou ‘ela’ das fábulas é sempre

um disfarce do ‘eu’ do escritor. O narrador se escreve todo através

de Macabéa, por entre seus próprios espantos. Sua onipotência se

estende ao leitor, com o qual dialoga constantemente. A função

fática é uma tônica dessa narrativa.” (p.212) Tanto é assim, que o

narrador morre quando morre Macabéa. E morre também Clarice

Lispector. “As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora,

está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos

porque quanto a mim não me perdôo a clarividência.” (p. 84).

O narrador precisa escrever para poder se compreender. “Enquanto

eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.”

(p.11) Essa é a dor que atravessa a narrativa, já indicada pela dor

de dentes que perpassa a história, a qual é “uma melodia sincopada

e estridente — é a minha própria dor, eu carrego o mundo e a falta

de felicidade. Felicidade. Nunca vi palavra mais doida, inventada

pelas nordestinas que andam por aí aos montes.” (p. 12). A tarefa

do escritor é “procurar a palavra no escuro”. E ele não pode parar

de escrever, já que “ao escrever me surpreendo um pouco pois

descobri que tenho um destino”. Assim, vai se descobrindo ao longo

da narrativa. Este escritor só se livra de ser um acaso na vida pelo

fato de escrever. Não tem classe social, “ironicamente, denuncia o

escritor burguês que defende a necessidade da literatura engajada,

faz-se pobre, dorme pouco, deixa a barba por fazer, anda nu ou em

farrapos, abstém-se do sexo e do futebol.” (Sá, 1979, p. 214) Como

ele mesmo diz, “escrevo porque sou um desesperado e estou

cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a

sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente

todos os dias.” (p. 21).

É facilmente percebível, portanto, que a questão do foco narrativo

em A Hora da Estrela é um dos pontos altos da novela. E se “os

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modos de articulação em uma narrativa são ilimitáveis porque

ilimitável é a combinatória de signos possível no engendramento da

teia ficcional, e a postura do narrador, em relação às personagens,

amplia ainda mais essa possibilidade criativa, oferecendo através de

seu ângulo de visão uma fresta por onde se pode descortinar o

mundo, o seu mundo” (KADOTA, s/d, p.71); a possibilidade criativa

da narrativa, além de ilimitável, é surpreendente e inovadora,

demonstrando a bela e sensível capacidade inventiva de Lispector.

Gênero Literário e Material da Narrativa

Como anteriormente já foi citado, a narrativa tem um tom de

novela, não apenas pelo número de personagens, mas também

porque a descrição e a narração ocupam posição privilegiada na

obra.

Uma “história exterior e explícita”, A Hora da Estrela não deixa de

ser um relato, um registro de fatos. O narrador, a contra-gosto,

apaixonou-se por fatos, mas cansar-se-á deles por serem banais e

definíveis. O “sussurro”, porém, é o que predomina nos interstícios

da narrativa: “Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um

sussurro. É o sussurro que me impressiona.” (p. 31).

A pergunta que, de certa forma, já havia sido feita em Perto do

Coração Selvagem repete-se: “Será mesmo que a ação ultrapassa

a palavra?” (p. 22) Para Lispector, por ser o material básico da

escritura a palavra, ela domina qualquer narrativa e sobrepõe-se a

qualquer fato. “Assim é que esta história será feita de palavras que

se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que

ultrapassa palavras e frases.” (p. 14). E para o narrador, é como se

as palavras tivessem realmente poder sobre a narrativa, como se

ele fosse impotente em relação à história que irá contar: “Não se

trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira,

respira, respira.” (p. 13)

Tempo e Espaço

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O tempo da narrativa se mostra cronológico e linear, apesar de

embaraçar o narrador, que preferiria começar pelo fim: “Só não

inicio pelo fim que justificaria o começo — como a morte parece

dizer sobre a vida — porque preciso registrar os fatos

antecedentes.” Depois das muitas divagações do início do livro, em

que o narrador mais se narra do que faz progredir a ação narrativa,

enfim ele inicia pelo meio, quando a moça nordestina recebe o aviso

de despedida do emprego e vai refugiar-se no banheiro. Assim, o

narrador projeta respeitar o tempo do relógio, como se a narrativa

fosse sendo construída simultaneamente à leitura, intuito este que é

marca extremamente clariceana, não apenas nessa obra.

A narrativa se passa em um ambiente urbano. “Cidade toda feita

contra ela” (p. 15), Macabéa, O Rio de Janeiro é o cenário das fracas

aventuras da protagonista alagoana. Dentre ruas cariocas, o quarto

barato que as moças compartilham entre si, a casa da cartomante,

o lugar do trabalho, o banheiro, a história se desenvolve. Como cita

Sá em sua obra A escritura de Clarice Lispector, “nesse espaço

há espelhos comidos pela ferrugem, bares, a Rádio Relógio,

cinemas baratos, Jardim Zoológico, automóveis de luxo Mercedez

Benz, patrocínio de refrigerante mais popular, que ‘patrocinou o

último terremoto em Guatemala’ (HE, p.29), Rua do Acre para

morar, rua do Lavradio para trabalhar. Com a raridade de um galo

‘cocoricando’ de manhã e o cais do porto para espiar, no Domingo,

um ou outro prolongado apito de navio cargueiro.” Assim, pode-se

perceber os contrastes (não apenas sociais) existentes em

metrópoles brasileiras e o desalento de um imigrante nordestino

que busca uma vida melhor no sul também pela ambientação da

narrativa.

Análise da Obra

“Macabéa, personagem central de A Hora da Estrela de Clarice

Lispector, é uma retirante nordestina que vai tentar vida nova na

cidade grande (Rio de Janeiro). Filha do sertão, nasceu e

permaneceu raquítica. Anônima, desajeitada, desgarrada do mundo,

tudo nela inspira descompasso e compaixão. Seus dias dividem-se

Page 9: A hora de estrela

entre o trabalho como datilógrafa e o pretendente, também

nordestino, Olímpico de Jesus. As madrugadas, para ela, são

embaladas pelos sons regulares da Rádio Relógio: hora certa,

anúncios, pouca ou nenhuma música. (...) É por intermédio dessa

escuta, entretanto, que Macabéa vai lentamente construindo um

certo reconhecimento sobre si e sobre o mundo.” (AQUINO, 2000, p.

205) A rádio realmente desperta na moça uma avidez por

conhecimento, o que fazia com que sua vida se tornasse menos

banal, mais importante.

A Hora da Estrela apresenta certos momentos que não podem

deixar de ser comentados. Comecemos pelo título:

A HORA DA ESTRELA

A culpa é minha

ou

A hora da estrelas

ou

Ela que se arrange

ou

O direito ao grito

.quanto ao futuro.

ou

Lamento de um blue

ou

Ela não sabe gritar

ou

Uma sensação de perda

ou

Assovio no vento escuro

ou

Eu não posso fazer nada

ou

Registro dos fatos antecedentes

ou

História lacrimogênica de cordel

Page 10: A hora de estrela

ou

Saída discreta pela porta dos fundos

A obra apresenta doze títulos que se desdobram e representam

algum aspecto da história que logo mais será narrada. Em “.quanto

ao futuro.”, por exemplo, o título é precedido e seguido por ponto,

isso porque o futuro da história depende única e exclusivamente do

seu narrador (Rodrigo S. M.), que determina com um “falso livre-

arbítrio” o destino das personagens, sendo ele próprio uma das

mais importantes. É “uma história com começo, meio e ‘gran finale’

seguido de silêncio e de chuva caindo”, como diria o próprio

narrador, apesar de a história não ter esse aspecto temporal tão

bem definido como ele nos (leitores) dá a entender que teria.

O material básico em que se sustenta a narrativa é a palavra, que

se agrupa em frases, com um sentido secreto. “O escritor renuncia

à transfiguração própria da ficção e não enfeita a palavra (não

utiliza “termos suculentos” como “adjetivos esplendorosos,

carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos

o ar em vias de ação”), pois sua personagem é uma pobre e

esfomeada moça nordestina.” (SÁ, 1979, p. 97). Dessa forma,

subentende-se que se pode ler, no questionamento contínuo a que

a escritora submete a linguagem em geral e a da ficção, em

particular, uma desmistificação irônica do narrador do anti-romance

moderno e de seus artifícios.

Apesar de o narrador escrever em fluxo de consciência, tentando

embaralhar as coisas, a narrativa é escrita em tempo linear, sendo o

leitor diretamente o seu interlocutor. O leitor é sustentado por suas

próprias palavra e “deve embeber-se da jovem como um pano de

chão todo encharcado.”

A morte, declaradamente, foi colocada na narrativa de Rodrigo S. M.

como uma personagem não ordinária, ao contrário, como sua

personagem predileta e ele assume a morte de Macabéa como se

fosse feita exclusivamente para o leitor: “O final foi bastante

grandiloquente para a vossa necessidade?”. Sua futura morte

Page 11: A hora de estrela

também é expressa quando morre a protagonista, mas “por

enquanto é tempo de morangos.” (p.87)

Finalmente, devemo-nos lembrar de que A Hora da Estrela seria

um “ponto de articulação” entre as lições realista-naturalistas da

autora e seus poemas em prosa, nos quais tempo, enredo e

personagens se desagregam. Esta novela “não só recolhe quase

todos os problemas da narrativa dos outros romances de Clarice

Lispector, mas também muitas de suas imagens.” (SÁ, 1979, p.

215).

Assim, saibamos que Clarice produz aquela que seria a última de

suas obras publicadas em vida de maneira grandiosa, para que

nunca nos esqueçamos da riqueza e originalidade de seu estilo.

O Estilo Clariceano

As inovações feitas por Clarice Lispector em sua escritura, desde a

sua primeira obra publicada, provocaram grande espanto na crítica

e no público da época. Grandes críticos literários chegaram a

apontar inúmeras falhas nos romances da escritora, como o fez

Álvaro Lins, em sua obra Os mortos de sobrerressaca, 1963, p.

189: “li o romance duas vezes, e ao terminar só havia uma

impressão: a de que ele não estava realizado, a de que estava

completa e inacabada a sua estrutura como obra de ficção.” Sem a

frequência das estruturas tradicionais dos gêneros narrativos, a

narrativa clariceana quebra a ordem cronológica e funde a prosa à

poesia.

Uma das inovações de sua linguagem para a literatura brasileira é o

fluxo de consciência. Para entendermos o que é isso, seguiremos

a definição de Norman Friedman sobre análise mental, monólogo

interior e fluxo de consciência. “O primeiro é definido como um

aprofundamento nos processos mentais da personagem por uma

espécie de narrador onisciente; o segundo, um aprofundamento

maior, cuja radicalização desliza para o fluxo de consciência onde a

linguagem perde os nexos lógicos e se torna caótica” (KADOTA, s/d,

Page 12: A hora de estrela

p. 74). Clarice transitaria pelos três movimentos, apesar de

presentar características mais evidentes de “fluxo de consciência”.

É como se uma câmera fosse instalada na cabeça da personagem,

como se pudéssemos acompanhar exatamente o que ela pensa e da

mesma maneira como pensa. Sabemos que o nosso pensamento

não é ordenado, e quando se pretende demonstrá-lo de forma

semelhante, acompanhamos sua desordem. Presente e passado,

realidade e desejos da personagem (ou narrador) misturam-se na

narrativa, quebrando limites espaço-temporais verossímeis. Joyce e

Proust já haviam feito experiências como essa, mas foi Clarice que

introduziu esse estilo no Brasil.

Para Friedman, “a ‘Câmera’ e o ‘Fluxo de Consciência’ são os que

mais caracterizam a literatura contemporânea porque neles se

detecta uma subversão ótica tradicional do relato. (...) É um resgate

dos pensamentos das personagens ou do narrador na sua forma

primitiva, à medida que surgem, desarticulados, como a própria

sintaxe que os apresenta e descontínuos como o mundo que lhes dá

sustentação.” (idem, ps. 74/75).

A organização textual clariceana aproxima-se da rebeldia. Ela,

“como James Joyce, como Virginia Woolf, se propôs a essa busca

introspectiva, através de ‘insights’ luminosos, ou de uma escritura

pontilhada de minúsculos incidentes descontínuos, que melhor

revelam os conflitos humanos, superando qualquer descrição do

narrador ou um encadeamento de fatos, por mais representativos

que se mostrem a um primeiro olhar.” (Kadota, p. 77)

Os textos clariceanos também estão repletos de epifania

(revelação). Suas personagens costumam viver momentos

epifânicos, como se tivessem realmente tido uma revelação,

desencadeada por qualquer fato banal, e, a partir dela, pudessem

ter uma visão mais aprofundada da vida , das pessoas, das relações

humanas. Sobre isso, Cereja e Magalhães comentam: “De modo

geral, esses momentos epifânicos são dilacerantes e dão origem a

rupturas de valores, a questionamentos filosóficos e existenciais,

permitindo a aproximação de realidades opostas, tais como

Page 13: A hora de estrela

nascimento e morte, bem e mal, amor e ódio, matar ou morrer por

amor, seduzir e ser seduzido, etc.” (1995, p. 413)

Apesar de desenvolver, na maioria das vezes, personagens

femininas, Clarice extrapola os limites da experiência pessoal da

mulher e seu ambiente familiar. Os temas tratados por ela são

universais e essencialmente humanos. Temáticas como as relações

entre o eu e o outro, a falsidade das relações humanas, a condição

social da mulher, o esvaziamento das relações familiares e,

sobretudo, da linguagem, são abordadas pela autora intimista e

psicológica, mas de forma alguma alienada, como muitos já

chegaram a dizer. Em A Hora da Estrela, por exemplo, a questão

da migrante nordestina em uma cidade grande como o Rio de

Janeiro, relações e reflexões existencialistas, a condição e o papel

do escritor moderno, entre outras foram abrangidas de forma

estilisticamente original e sensível.

Berta Waldman, em sua obra anteriormente citada, comenta o

“silêncio de Clarice”, reflexão que nos vale a pena conferir: “Entre a

palavra e o silêncio, entre o que diz e o que está implícito em seu

dizer, situa-se o texto de Clarice. Ler o seu texto é penetrar nesse

âmbito elétrico onde forças opostas se digladiam. (...) Se quisermos

saber o que diz o seu texto, devemos interrogar também o silêncio.

Não o silêncio que se situa antes da palavra e que é um querer

dizer, mas o outro, o que fica depois dela e que é um saber que não

pode dizer a única coisa que, de fato, valeria a pena ser dita.”

(1983, p. 89)

parte 21. Enredo

Em A Hora da Estrela, aquilo que se convencionou chamar de enredo é algo bastante simples, com pouca ação, e pode ser resumido assim:

Uma feia moça nordestina, muito pobre, muito simplória, muito ignorante, mas também muita rica em peculiaridades que o narrador descobre nela, é a personagem central [protagonista] da história. Essa moça tem 19 anos, chama-se Macabea e vive no Rio de Janeiro, na Rua do Acre, próxima do cais do porto,

Page 14: A hora de estrela

onde compartilha, num velho sobrado, as vagas de um quarto muito modesto, com mais quatro moças [todas Marias e todas balconistas das Lojas Americanas].

Macabea trabalha como datilógrafa numa firma de representantes de roldanas, que fica na Rua do Lavradio. Quando viera para o Rio, ainda vivia com a tia beata, pessoa que a criara desde a morte dos pais, aos dois anos de idade, no sertão de Alagoas, onde a moça nascera. Mais tarde, foram morar em Maceió e, depois, não se sabe por quê, mudaram-se para o Rio. Só após a morte da tia é que Macabea vai viver no quarto da Rua do Acre.

Os fatos propriamente ditos começam a ser narrados quando a nordestina recebe de seu chefe, Raimundo Silveira, [por quem ela estava secretamente apaixonada] o aviso de que será despedida por incompetência. Como Macabea aceita o fato com enorme humildade, o chefe se compadece e resolve não despedi-la imediatamente.

Logo depois disso, num final de tarde chuvoso, dia 7 de maio, a moça encontra, por acaso, um rapaz também nordestino [Olímpico de Jesus], com quem inicia uma espécie de namoro. Esse namoro, porém, dura pouco, pois Olímpico, um operário ambicioso e de maus antecedentes, acaba trocando Macabea por Glória, sua colega, com quem ele acha que terá mais chances de 'subir na vida', já que ela era mais bonita e muito mais esperta do que Macabea.

Glória, com certo sentimento de culpa por ter roubado o namorado da colega, sugere a Macabea que vá a uma cartomante, sua conhecida. Para isso, empresta-lhe dinheiro e diz-lhe que a mulher [Madame Carlota] era tão boa, que poderia até indicar-lhe o jeito de arranjar outro namorado. Macabea vai, então, à cartomante, que, primeiro, lhe faz confidências sobre seu passado de prostituta; depois, após constatar que a nordestina era muito infeliz, prediz-lhe um futuro maravilhoso, já que ela deveria casar-se com um belo homem loiro e rico - Hans - que lhe daria muito luxo e amor.

Macabea sai da casa de Madame Carlota 'grávida de futuro', encantada com a felicidade que a cartomante lhe garantira e que ela já começava a sentir. Então, logo ao descer a calçada para atravessar a rua, é atropelada por um luxuoso Mercedes amarelo. E a morte vem lentamente, enquanto o narrador vai fazendo divagações e reflexões filosóficas, às vezes fóricas sobre Macabea, sua vida, seu destino e sobre o próprio ato de narrar e a [in]capacidade dele, narrador, de

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evitar a morte da personagem.

Enfim, tendo se acomodado fetal, Macabea morre. Assim, ao que tudo indica, é através da morte que essa pobre criaturinha, de 'corpo cariado' e 'útero murcho', mas que queria ser 'artista de cinema', vai encontrar a sua hora de estrela.E, morrendo Macabea, morre o próprio narrador, Rodrigo S.M. Ao longo de toda a narrativa, a identificação e o envolvimento de Rodrigo com sua personagem é realmente tão grande, [tornando-se ele a própria consciência que Macabea não possuía] que se entende por que ele diz morrer junto com ela.

2. Personagens

2.1. Rodrigo S.M. - o narrador e, na verdade, personagem muito importante do relato. Representa, sem dúvida, a própria Clarice, com seus mistérios, suas interrogações, sua preocupação constante em mergulhar fundamente na interioridade do ser humano. Ele inicia o livro justamente fazendo reflexões e indagações sobre a existência e sobre o ato de escrever. Apresenta-se, depois, justificando por que a história terá de ser contada por um narrador homem e dizendo que decidiu escrever sobre a moça porque 'numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina'.

2.2. Macabea - a moça nordestina [alagoana] de 19 anos, que vivia sem família, pobre, desleixada e subempregada no Rio de Janeiro. Era tão alienada e inconsciente, que não sabia num mesmo que era infeliz.

2.3. Olímpico de Jesus - o primeiro e único namorado de Macabea. Nordestino da Paraíba, já havia cometido um crime e estava no Rio trabalhando com lúrgico. Ambicioso e sem escrúpulos de honestidade e decência, pretendia ser deputado. Adorava ouvir discursos e sabia desenhar caricaturas.

2.4. Glória - colega de trabalho de Macabea. Loira oxigenada, embora não fosse bonita, era bem alimentada e 'amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido'. Isso e o fato de ser filha de açougueiro constituíram atrações para o ambicioso Olímpico, que deixa Macabea por ela.

2.5. Madame Carlota - a cartomante. Ex-prostituta e ex-cafetina, era 'fã de Jesus' e gostava muito de comer bombons. Prevê dinheiro grande e marido estrangeiro

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para Macabea.

3. Comentário da obra

3.1. Mais um romance do 'eu'O grande crítico Massaud Moisés diz, a respeito da obra de Clarice Lispector, que 'a personagem única, ou predominante, da ficção da autora é ela própria. Romances do 'eu', contos do 'eu', eis o que são as suas obras: fictício, ou construído, suposto ou imaginário, 'verdadeiro' ou 'real', não importa, é o 'eu' da ficcionista - que pode não ser o da Clarice Lispector/pessoa física, mas é difícil supô-lo - a personagem central [heroína/anti-heroína?] de suas narrativas.' [...] Tudo se passa como se a escritora somente tivesse o 'eu' da sua fantasia. Só por isso o se caso se torna incomparável em nosso meio literário'.'É que o 'eu' da autora constitui para si próprio um enigma. E para desvendá-lo/desvendar-se, põe-se a [re]escrever os textos em que se manifesta, como se outro destino não tivesse. Em dado momento de A descoberta do mundo, diz ela que seus romances não são autobiográficos nem de longe, 'mas fico depois sabendo por quem os lê que eu me delatei.'Por tudo isso, em A hora da estrela, podemos ver Clarice transfigurada em Rodrigo S.M. e também, de certa maneira, na nordestina Macabea, com quem o narrador se identifica por várias razões, como, por exemplo, pelo fato de ele [=Clarice], quando menino[a], ter vivido no Nordeste.

3.2. Aspectos sociaisEmbora a crítica tenha acusado de ser a ficção de Clarice excessiva ou exclusivamente interiorizada, cheia de mistério, abstração, considerações e indagações filosóficas de caráter intimista, a própria Clarice declarou:'Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. [...] Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.'Se esse engajamento ao social não pode ser notado em outros livros de Clarice, é certo que, em A hora da estrela, 'Macabea representa o aviltamento por passa o ser humano, quando sua vida é barateada. Ela representa todos os perdidos retirantes nordestinos que se movem alienamente numa metrópole como o Rio de Janeiro'.

3.3. O narrador

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O relato se faz todo em primeira pessoa, e o enredo parece ser apenas um pretexto para que Rodrigo S.M. exponha as suas reflexões e indagações sobre si mesmo, sobre o sentido da vida, o ato de escrever, o valor da palavra. Ele é, pois, o personagem mais importante do relato.Quanto à sua relação com Macabea, ele declara amá-la e compreendê-la, embora faça contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.

3.4. Linguagem e linguagemA linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e outras figuras de estilo. Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da autora a construção de frases inconclusas e outros desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a palavra e o fazer narrativo.Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a 'Dedicatória do autor', aparecem os treze títulos que teriam sido cogitados para o livro.

3.5. Humor e ironiaEmbora a história de Macabea seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito humor e ironia. O próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia [tragicomédia].

3.6. Espaço e tempo da narrativaA história se passa no Rio de Janeiro, com referências breves ao Nordeste, região onde viveram Macabea, Olímpico e o próprio narrador.Quando ao tempo, o narrador diz: 'Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.' [p.23]Mais adiante, diz ainda; 'Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta, não sou um desertor [p.40].

Resenha

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A Hora da Estrela de Clarice Lispector, é um “romance”

diferente de todos os já lidos, isso se deve ao fato de a escritora

fazer um jogo de personagens, tentando até mesmo se excluir como

narradora, mas que por fim, acaba por se contradizer mostrando

realmente quem era, além de  narradora, também personagem na

figura de Rodrigo (narrador-personagem criado por Clarice);

Rodrigo que também as vezes se confundia com Macabéa,

personagem criada por ele (e consequentemente por Clarice), já

que essa (Macabéa) é criada e levada a morte por essa descrição,

descrição marcada com uma linguagem que a desfigura e a constrói

ao mesmo tempo.

 

   Na verdade, a expressão “romance” supra citada, foi

propositadamente posta entre aspas, pelo motivo de que a própria

autora, não sabia, ou melhor, não queria, classificar sua obra como

romance, ou como novela, enfim, pois para Clarice, não mais

importava essa questão de classificação em gêneros, para ela o

texto apenas existia, seu encaixe em determinado gênero não iria

mudar nada, o que está escrito, está escrito e pronto, cada leitor é

que deveria tirar suas próprias conclusões.

 

   Os leitores de A Hora da Estrela podem estar se perguntando o

porquê de Clarice ter criado Rodrigo para narrar a história de

Macabéa, isso ocorreu porque ela queria narrar de forma distante,

sob o ponto de vista masculino, já que se fosse a narração feita por

uma mulher, com certeza teríamos um cunho mais sentimental, e

não era esse o interesse de Clarice, ela refletia muito sobre a

situação de submissão das mulheres, ela achava que a felicidade só

acontecia ao lado de um homem, por isso também a história é

narrada por um homem, para que fosse afastada de todo esse

sentimentalismo lacrimoso das mulheres, “homem não chora”.

 

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   Clarice Lispector, sofria muito com a posição dos críticos, que

diziam que sua obra não estava de acordo com o esperado na

época. Argumentavam que suas produções não tinham um cunho

social, que era o que marcava os textos daquele momento. Na

verdade, toda a obra de Clarice não tinha mesmo essa

preocupação, ela escrevia e pronto, não procurava escrever sobre o

que os outros estavam acostumados a ouvir, ou querendo ouvir.

Desde nova, quando escrevia histórias infantis ao jornal de

Pernambuco, seus textos não eram publicados, por se tratarem,

segundo o editor do jornal, de textos muito fragmentados e

complicados.

 

   É relevante pontuar, que a obra de Clarice realmente não é

simples de se ler, ela requer certa reflexão do leitor, as cenas não

estão descritas de forma tão explícita, de modo que não nos leve a

uma reflexão mais profunda, no entanto, em A Hora da Estrela,

Clarice tentou “retratar” um pouco essa questão social, não de

forma tão explícita, mas sim nas entrelinhas. Pode-se notar isso,

quando ela, por exemplo, fala do médico, médico de pobres, que

como acontece no dia-a-dia odeia o que faz, e as pessoas menos

favorecidas têm que se submeterem a esse tipo de serviço, com

esse tipo de “profissional” que não está satisfeito com o que faz e

com a quantia que recebe.

 

   Percebe-se também, essa questão citada acima, na própria

história de Macabéa, que é a história de milhares de nordestinos

(pobres), que vem para a cidade grande tentar ser alguém na vida,

ocupar o seu espaço, e o que acontece? Nada de novo acontece,

vêem e, na maioria das vezes, passam por situações piores do que

as que viviam no interior, em sua terra natal.

 

   Se essas pessoas eram pouco importantes, insignificantes onde

viviam, serão mais ainda na cidade grande, na capital, onde cada

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um quer saber de si, onde cada um tem que “se virar”, onde

amizade, solidariedade, são palavras que não existem. Essas

pessoas passam a ser apenas mais um dentre tantos; são pessoas

substituíveis, que tanto faz morrerem ou não, existirem ou não.

 

   É justamente sobre essa questão da inutilidade, do “ser mais um”,

que trata o “romance” A Hora da Estrela, que mostra esse

processo de massificação a que todos estamos submetidos. Nessa

narração, ou melhor, metanarrativa, a autora quer justamente nos

levar a essa reflexão, afinal, quem somos? Para que vivemos? Qual

é o nosso papel na sociedade? Será que fazemos falta, ou somos

apenas mais um? Somos importantes? Será que no fundo, também

não somos uma Macabéa da vida?

 

   Quando lemos o livro, muitas vezes rimos da personagem

Macabéa, mas será que no fundo, bem lá no fundo não nos

parecemos com ela? Quantas vezes não sabemos quem somos e o

que estamos fazendo nesse mundo? Também não vamos

empurrando a vida com a barriga, e seguindo uma rotina fatigante,

achando que é assim mesmo, que assim está correto, está bom.

Imaginamos que a única diferença que temos de Macabéa, é que

nós, ainda por cima, reclamamos dessa vida e ‘Macabéa” não, ela

não tinha essa consciência, para a personagem, tudo estava bom,

perfeito, até o momento em que a cartomante através da

linguagem lhe mostra o futuro, felizmente (ou infelizmente) ela teria

um destino.

 

   É mister, deixarmos claro, que Macabéa, não tinha a oportunidade

de ter uma outra perspectiva, tinha que agir assim mesmo, porque

ela era um ser excluído da sociedade, e esta, não dava margem

para que ela fosse alguém na vida. No entanto, as vezes, Macabéa

dava-nos a entender que tinha um pouco, mesmo que muito

raramente, consciência de sua inutilidade, quando por exemplo,

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Olímpico pergunta à ela sobre seu nome, e ela diz que não tem

importância, que ela não é importante, ou quando acordava pela

manhã e imagina, quem sou eu? E respondia: sou virgem,

datilógrafa e gosto de coca-cola, (ela, sempre procurava lembrar

quem era, já que os outros não percebiam, até mesmo para ela

própria não se esquecer). Mas a percepção concreta dessa sua

inutilidade ela não tinha, aliás, ela nunca aprendeu a pensar, só

repetia o que ouvia dos outros, principalmente da rádio relógio, que

ensinava uma “cultura” inútil.

 

   Macabéa era ingênua, a tal ponto que chegava a agradecer e

pedir desculpas quando os outros a ofendiam, ela era apenas mais

uma, ia a lugares comuns e sonhava em ser uma estrela de cinema,

apesar, é importante deixar claro, de ela estar (demonstrar)

satisfeita com sua situação. Temos esse ponto em comum com a

personagem, de querermos ser uma “estrela de cinema”, também

nós sempre temos o desejo de ser alguém, nunca estamos

satisfeitos com o que somos. Apesar de, vou reforçar mais uma vez,

que Macabéa, não tinha essa consciência, ela desejava e pronto, do

mesmo modo que comia, trabalhava e ouvia rádio, era apenas, mais

uma atitude e não um desejo obsessivo, um objetivo de vida.

 

   Aliás, objetivos, perspectiva, ambição, eram sentimentos que

Macabéa nunca teve, ela sempre foi construída como a ausência de

tudo, ou seja, a que não tem. Ela é uma não idéia de nada, não tem

família, não tem namorado, não tem dinheiro, não tem sensualidade

(ela só se descobre sensual depois das palavras da cartomante).

Olímpico, o namorado de Macabéa, era também um nordestino que

havia vindo tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro, mas diferente

de Macabéa, ele queria crescer na vida, mesmo por meios ilícitos, e

ela nem isso queria. Na verdade Macabéa, só ao entrar em contato

com a cartomante é que começa a refletir, se é que se pode dizer

isso, sobre sua existência, Madama Carlota foi a única que achou

seu nome bonito, que a chamou de florzinha, foi a primeira vez que

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foi reconhecida como gente, apesar de percebermos que Carlota

fazia isso, porque era seu papel iludir as pessoas, encher “os

miseráveis” de esperança.

 

   Ao ouvir a cartomante, Macabéa se sente grávida do futuro, é a

primeira vez que lhe vem a mente, uma certa perspectiva, um

destino, que como sabemos é trágico. Justamente quando ela

imagina que vai começar a viver é que a morte lhe toma a vida.

Mesmo assim, é relevante deixarmos claro, que mesmo acidentada,

atropelada, Macabéa em sua ingenuidade se senti feliz e acredita

que sua vida está mudando para melhor, pobre sabe ela que sua

vida está terminando, aliás, podemos tirar a conclusão de que de

certo modo ela estava correta, quem sabe com a morte física ela

não poderia viver, já que enquanto estava viva ela simplesmente

vegetava.

 

   A idéia conclusiva que podemos chegar é que a única saída para

Macabéa era nada mais, nada menos que a morte, esse é o destino

de todos (morte física), apesar de muitos já estarem mortos antes

mesmo de morrem literalmente, principalmente essas pessoas

excluídas, Macabéa só foi alguém, só foi percebida no mundo,

quando foi atropelada, atrapalhando o tráfego, como já dizia Chico

Buarque, em sua música Construção. Na verdade somos o nada,

como Macabéa, só somos percebidos por um instante, quando a

vida nos coloca nessa situação que é a morte, enfim, nesse

momento encontramos nosso lugar, mesmo que na calçada (que

não é a da fama, mais uma comum), que por um instante se torna o

palco, o picadeiro, o cenário de um estrelato. Macabéa enfim,

consegue ser vista, sentir-se gente, uma verdadeira estrela.

 

   No próprio momento de sua morte física, é que Macabéa se sente

mulher, sente um gozo por si, é a primeira vez que se toca e se

abraça como sentindo uma estima por si mesma, é o ápice, o clímax

Page 23: A hora de estrela

da narrativa. Aliás, a morte se torna a personagem principal desse

metarromance. A morte é a única figura que consegue dar um fim a

essa história, se não terminasse assim, não teria fim, pois a todo o

momento Rodrigo já nos deixa claro e nós também já, de certa

forma, imaginamos que não resta outro destino senão esse, e que é

o final de todos nós. De repente só morrendo é que podemos sentir

e descobrir quem somos (éramos).

 

   Muitos filósofos, já desde a antigüidade, vem tentando descobrir

quem somos, e na verdade nunca se chegou a uma conclusão, essa

é uma pergunta que nunca terá uma resposta, somos o que

vivemos e pronto, e se isso está correto ou errado, não sabemos,

talvez um dia possamos descobrir como Macabéa, mas isso

ninguém sabe. Apenas vamos vivendo, e afinal, o que é a vida

senão uma busca constante?

 

   Constatamos, também, que como Macabéa, muitas vezes,

estamos vegetando, já estamos mortos, mesmo estando vivos, pois

como já dizia Charlie Chaplin “O homem não morre quando

deixa de viver, mas sim quando deixa de amar”. Toda essa

narrativa também nos remete, com toda certeza, a própria história

de vida de Clarice Lispector, desde cedo perde a mãe, assim

como Macabéa que não lembrava dos pais, também veio do

nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro, e por fim Clarice

também, principalmente após sua separação, seu acidente com o

cigarro (apartamento pegando fogo) e com sua doença (câncer no

útero), não tem mais um objetivo na vida, uma meta, uma

perspectiva, apenas espera sua morte física, porque sua morte

interna já havia ocorrido a muito tempo.

 

   Macabéa, Rodrigo, Clarice, representam todos nós, um nada, que

vivemos em busca de entender o que somos, e quando descobrimos

é tarde demais, como sempre, descobrimos tudo tarde demais.

Page 24: A hora de estrela

Somos pó e ao pó iremos voltar. Na verdade, cada um constrói a

sua história, boa ou ruim, mas constrói, quem somos nós para

julgarmos Clarice, Rodrigo ou Macabéa? Se somos como eles,

simples mortais que temos que lutar diariamente, para

sobrevivermos nessa labuta constante que é a vida em sociedade.

Quantos de nós também não queríamos uma cartomante, mesmo

que charlatona, para nos dá uma esperança, para nos transformar

em alguém, para também como Macabéa, deixarmos de ser

ausências apenas. Será que somos o que queremos, ou

simplesmente queremos ser.

 

   Quantas vezes, quando estressados, não gostaríamos de ser como

Macabéa simplesmente, não pensar em nada e achar que tudo está

muito bom? Mas não, temos essa tendência a complicar as coisas, a

reflexão, ao estresse.

 

   São essas reflexões que todo o tempo Clarice quer nos repassar,

que são também, como já havia citado, suas próprias reflexões, e

acho que muito mais do que retratar a realidade, ela conseguiu

levar-nos a uma introspecção, a um estudo sobre nós, nossa vida e

a sociedade. Clarice foi mestre, conseguiu escrever de forma

diferente, nova, sem ser rebuscada, até mesmo porque o narrador-

personagem Rodrigo, não podia escrever de forma erudita para

poder se aproximar da personagem Maca. Esse não é um livro

comum, e não foi escrito para qualquer um ler, na verdade, o

“romance”, não tem público, como alguns críticos e o próprio

Rodrigo nos deixa entender.

 

   A própria sugestão de vários títulos foi inovador, tudo nesse livro

nos remete a algo novo, segundo Gotlib, o livro se divide em cinco

histórias, sendo que a última só quem lê o “romance”, descobrirá,

Gotlib nos remete novamente aos títulos, que se formos ler o livro

sob a perspectiva de determinado título, teremos uma história nova,

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aliás, sempre que lemos novamente uma obra, independente de

mudarmos ou não o nome dela, temos uma nova visão, pois como já

dizia, se eu não me engano, Heráclito, “Não nos banhamos duas

vezes no mesmo rio”. A cada leitura é um nova descoberta, e a

autora quer justamente deixar ao leitor esse trabalho de reflexão,

de construção. Nós leitores temos que tirar nossas próprias

conclusões.

 

   E é justamente por isso, que a história se torna interessante, até

mesmo porque, como já citei várias vezes, nós mesmos nos

identificamos muito com os personagens desse metarromance.

Estamos constantemente buscando essa “Hora da Estrela”,

muitas vezes também não nos encaixamos em lugar nenhum, a

autora quer deixar isso bem claro, que não existe no mundo lugar

para pessoas como Macabéa.