a hora do amor

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A Hora do Amor - Alvaro Cardoso Gomes Digitalizações de livros - http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=34725232 A Hora do Amor - Alvaro Cardoso Gomes A adolescência de Beto na década de 60. A escola e a família tentando impor valores e normas. Entre eles, pouco diálogo. Como conviver com tudo isso? Refugiando-se em si mesmo, sendo irreverente, marginalizando-se? Nesse conflito, Beto conhece o amor. E, com ele, o afeto, o desencontro, a dúvida. A Hora do Amor, de Álvaro Cardoso Gomes, fala sobre o conflito existencial da adolescência e o caminho de Beto para superá-lo.

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A Hora do Amor - Alvaro Cardoso Gomes

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A Hora do Amor - Alvaro Cardoso Gomes

A adolescência de Beto na década de 60. A escola e a

família tentando impor valores e normas. Entre eles, pouco

diálogo. Como conviver com tudo isso? Refugiando-se em

si mesmo, sendo irreverente, marginalizando-se? Nesse

conflito, Beto conhece o amor. E, com ele, o afeto, o

desencontro, a dúvida.

A Hora do Amor, de Álvaro Cardoso Gomes, fala sobre o

conflito existencial da adolescência e o caminho de Beto

para superá-lo.

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O estilingue infalível

A coisa que eu mais gostava de fazer era atirar com meu

estilingue novo. Eu mesmo tinha escolhido a forquilha (de

galho de goiabeira, que não quebra nunca), a borracha de

pneu, e um pedaço de couro que seu Maurílio tinha

arranjado pra mim. Uma beleza: a borracha não era

comprida nem curta e esticava tanto que eu não errava

uma. Não errava uma, modo de dizer: em dez vidrinhos na

cerca, eu quebrava sete. Com muita sorte, nove. Mas

naquele dia eu estava com um azar danado: primeiro,

papai bronqueou, disse que eu enchia o quintal de caco.

Então, eu tive que pôr lata de massa de tomate, o que não

era a mesma coisa, porque o gostoso mesmo é quebrar

vidro. Segundo, a droga do elástico, que eu não tinha

prendido direito, soltou. Terceiro, eu não acertava uma.

Quarto, alguém me gozou da cerca:

— Te dou uma goiaba se acertar na lata.

Uma chata

Me virei e vi que era uma menina comendo goiaba.

Vizinha nova, pensei. E já se metendo na vida dos outros.

Começando com aquela história que me dava uma goiaba,

eu que vivia roubando goiaba à vontade, quando o vizinho

ainda era o Dr. Nésio.

— Então, aceita a aposta?

Na hora, fiquei com vontade de perguntar o que ela

entendia de estilingue, mas, em vez disso, perguntei se ela

era a nova vizinha. Disse que se chamava Lúcia Helena e

que tinha vindo de Rio Preto. Estendi a mão através da

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cerca e, imitando o que papai costumava fazer, me

apresentei:

— Muito prazer. Roberto Fernandes, a seu dispor. Ela

tinha a mão muito pequena, os cabelos loiros, e os olhos

de um azul que eu nunca tinha visto antes.

Mas na hora não achei nada de especial, ainda mais

porque estava com raiva dela por ter interrompido minha

concentração.

— Como é, vai ficar segurando a minha mão o dia inteiro?

Fiquei vermelho que nem pimentão. Ela percebeu e

começou a rir. Em seguida, perguntou de novo:

— E a aposta?

Eu estava com um azar danado, e lá vinha ela querendo

fazer aposta. Então, comecei a inventar uma mentira:

— Normalmente, não erro. Em dez latas, acerto todas, até

atirando de costas. É que tive um problema sério na mão

direita.

— Verdade? — ela perguntou curiosa.

Nisso ninguém ganha de mim: conto a maior história e

todo mundo acredita. Quando começo a inventar uma

mentira, não paro mais, vou falando, emendando as coisas,

tanto que às vezes até chego a acreditar no que conto. O

que eu contei pra ela foi que nas férias costumava ajudar o

tio Onofre na fazenda. Ela perguntou se a fazenda era

grande. Eu respondi que era maior que o Estado de São

Paulo, e que todo dia eu tinha de atravessá-la inteirinha

pra chegar até onde estavam as vacas.

— Impossível! Nem de trem dá, quanto mais a cavalo.

— Modo de dizer — consertei. — A gente anda um

pedaço tão grande que, saindo de madrugada, só volta de

noite.

Continuando, contei para ela que numa das vezes que eu

tinha ido na fazenda do tio Onofre, a gente descobriu que

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uma onça estava comendo o gado. O tio reuniu os peões, e

fomos perseguir o bicho. Depois que a gente andou quase

um dia inteiro, descobrimos o rastro dela. Comecei andar

devagar, olhando as pistas e me perdi do pessoal. Lá pelas

tantas, ouvi um urro. Era a onça! Me deu um medo

danado, porque eu não trazia arma, a não ser o laço de

pegar boi. Quando a onça pulou da árvore, me abaixei, e

ela caiu no chão. Ela veio de novo, então, tive a idéia de

jogar o laço. Foi o que eu fiz. Mas o bicho era muito forte,

me derrubou do cavalo, e foi me arrastando pela floresta.

No tombo, torci o braço e me arranhei todo...

— Olha só — disse pra ela, suspendendo a camisa e

mostrando um esfolado que eu tinha feito, caindo de uma

janela.

— E a onça? — perguntou ela.

— A onça? Bem... ela fugiu pra floresta...

Olhei pra Lúcia Helena, e ela estava rindo. Acho que não

tinha acreditado em nada. Daí que ela veio de novo com a

história da aposta:

— Então, vale uma goiaba?

Não tive dúvida. Peguei o estilingue e, sem fazer mira,

apontei pra goiabeira. Que rabo! Derrubei a maior goiaba

do mundo.

Virei as costas e saí gingando como o John Wayne

costumava fazer nos filmes.

Potocas

Eu era o maior potoqueiro do mundo. O Leio vivia

dizendo:

— De cada três coisas que o Beto conta, duas e meia são

mentiras.

O Leio era meu irmão mais velho. Nem parecia irmão.

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Quando papai e mamãe começavam a me dar bronca,

gostava de ajudar. Se eu fazia besteira, me dedava. Acho

porque era o dodói da casa. Nunca tomou bomba (eu já

tinha tomado uma e passado raspando no outro ano),

gostava de estudar, ajudava mamãe a fazer compra, a tirar

a mesa. Um saco! Por causa dele, papai e mamãe sempre

me davam bronca:

— Por que não tive outro filho como o Leio?

— Faça como o Leio, ora.

— O Leio não faria isto!

Mas no fundo eles tinham razão: o Leio era mesmo uma

pessoa cem por cento. É verdade que ele gostava de me

dedar, mas também não deixava ninguém me bater.

Quando o irmão do Tuta me bateu, o Leio, que é muito

forte, meteu a mão no Tuta e no irmão do Tuta e depois

me deu bronca:

— Vê se não fica arrumando encrenca, seu cretino!

O Leio era pão-duro demais: trancava as coisas dele no

armário pra ninguém mexer. E cada coisa legal que ele

tinha! Uma coleção de selos, gibis, bolas de gude das

grandonas. As vezes, quando estava de bom humor, me

mostrava os selos. O danado sabia o nome de todos os

países do mundo: Laos, Algéria, Nova Zelândia,

Luxemburgo. Às vezes, também me deixava ler os gibis.

Mas o que me deixava louco da vida é que ele queria que

eu lesse depressa. Na metade da história, me tomava a

revista e trancava de novo no armário.

Se fosse só isso tudo bem: afinal, as coisas eram dele, e o

Leio tinha razão quando dizia que eu estragava tudo, mas

por que ele tinha a mania de me dedar? Uma vez, cheguei

atrasado pró jantar, e papai perguntou:

— Onde você estava?

Comecei a inventar uma história genial, e papai já ia

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acreditando, quando o Leio se meteu:

— Lá vem mais potoca...

— Que potoca o que, seu! Pode perguntar pró seu

Gumercindo se eu não ajudei...

— E o que você estava fazendo perto do ribeirão?

Demônio

O Lelo estava certo: eu tinha ido nadar com os colegas,

apesar da proibição de mamãe. Mamãe tinha um medo

danado de rio. Vivia dizendo que um dia eu me afogava.

Eu nem ligava e continuava nadando. Mas por que eu

gostava tanto de fazer coisa proibida? Muitas vezes, eu

sabia que não era certo, mas fazia.(D. Geni) mulher de seu

Gumercindo vivia dizendo pra mamãe:

— Este seu menino é um demônio!

Eu tinha dado uma estilingada na vidraça da casa dela.

Mas dessa vez não foi minha culpa. Eu queria acertar

numa casa de marimbondo perto do telhado. Até ia fazer

um favor pra gorda (D. Geni parecia uma bolota de

banha). Errei, e pronto: papai teve de pagar. Papai, vírgula,

eu é que paguei. Fiquei um mês inteirinho sem ir na

matinê. Mas o caso do Dr. Nésio foi diferente. A gente não

agüentava mais a sanfona da D. Darci, a mulher dele. A

chata estava aprendendo aquela joça e ficava o dia inteiro

tocando: "Minha mãezinha querida, mãezinha do

coração". Papai falava que tinha vontade de jogar uma

bomba na casa do Dr. Nésio.

— Esta velha me deixa louco. Qualquer dia, jogo uma

bomba...

— Faz que não ouve, Tonico, faz que não ouve — mamãe

dizia.

Ouvindo papai falar em bomba, é que veio a idéia.

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Do lado de casa tinha um abacateiro, que ficava em cima

da varanda do quarto do Dr. Nésio (D. Darci gostava de

tocar no quarto). Subi no abacateiro com duas garrafas de

guaraná cheias de mijo e joguei na varanda, como se

fossem granadas. É verdade que eu não estava só com

ódio da sanfona. Estava com raiva também do Dr. Nésio,

porque, no dia que e pegou roubando goiaba, me fez

descer da árvore e puxou tanto minhas orelhas, que quase

arrancou elas da cabeça. As garrafas espatifaram perto da

porta, e o mijo esparramou na varanda. D. Darci saiu

gritando, mas não viu. Depois, descobriram que só podia

ter sido eu. Papai ficou uma vara, e acho que pela primeira

vez na vida me bateu. Mas que a sanfona parou de tocar,

parou. O Dr. Nésio é que me olhava arrevesado, quando

passava em frente de casa. Pros outros, dizia que eu era

um marginal.

Marginal

Fiquei muito orgulhoso quando soube o que era marginal.

Foi o Leio que me explicou:

— No sentido mais amplo, é alguém que fica à margem de

alguma coisa. À margem da sociedade, da moral, por

exemplo. No sentido mais restrito, é "bandido",

"criminoso", "vagabundo".

Gostei do primeiro sentido, porque eu me achei parecido

com os heróis da coleção "Terramarear" (¹), que viviam

longe dos outros, e não tinham ninguém pra encher o saco.

Mas, de vez em quando, eu ficava triste com as coisas que

fazia. Quando via papai trabalhando de manhã até a noite

(ele era alfaiate), me dava um dó e eu me sentia o pior

marginal do mundo, no segundo sentido.

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_____________________________________________

(¹) Coleção de livros de aventuras exóticas publicada na

década de 1950, cuja leitura encantava os leitores jovens

da época (N. do E.)

Será que eu ia acabar na cadeia? Por que era tão ruim

assim? Acho que eu até gostava de ser ruim. Quando ia

fazer alguma coisa errada, nem pensava, ia logo fazendo.

E contar mentira então? Como já disse, era o maior

potoqueiro do mundo. Nenhum professor acreditava mais

mim:

— Sr. Fernandes!— dizia o professor de Português. Essa

eu não engulo. Sua tia já morreu no mês passado. como

pode ter morrido ontem?

— Outra tia, seu Aristides. Acho que é mal de família.

Fazer lição, outra coisa chata. Todo começo de ano eu

prometia fazer as lições, mas um dia eu esquecia, no outro,

não fazia de propósito. A única coisa que eu gostava

mesmo de fazer era ler. Já tinha lido todos os livros da

mamãe. Ela tinha todos os romances do Cronin, um

escritor inglês que gostava de contar histórias de médico.

O Leio tinha uma coleção de contos do mundo inteiro. Me

emprestou pra ler, mas disse:

— Só não pode ler os proibidos. Maupassant não pode,

Balzac também não (²).

Mas é claro que eu lia os proibidos. Li uma história

chamada Bola de Sebo, um barato, só que muito comprida.

Na biblioteca, peguei um livro que a bibliotecária não

queria me emprestar, chamado O Egípcio.

Depois, descobri que ela escondia uns livros na estante de

trás. Da uma às duas, ela saía pra almoçar, e me deixava

tomando conta da biblioteca. Aproveitei e li os livros que

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ela escondia: A Carne, A vida dos Doze Césares, Naná, O

Crime do Padre Amaro. Um dia, ela me pegou em

flagrante:

— Onde se viu gostar de coisa suja? São livros proibidos

pela Igreja!

E eu tinha gostado mesmo. Cada coisa de arrepiar os

cabelos! Sacanagem mais sacanagem. Acho que eu era um

marginal.

______________________________

(²) Balzac e Guy de Maupassant, importantes escritores

realistas do século XIX. (N. do E.)

E a chata virou amiga

No começo, não gostei de Lúcia Helena. Achei ela meio

fresca, cheia de não-me-toques. Ainda mais porque era

rica. Papai vivia dizendo que rico não prestava. Além

disso, eu não gostava de mulher loira. Tinha lido que as

loiras eram muito frias.

Mas depois acostumei todos os dias a me encontrar com

Lúcia Helena junto da cerca no quintal. Era tempo de

férias, e ninguém vinha encher. Depois daquela cena da

goiaba, Lúcia Helena começou a me respeitar. Às vezes,

pedia que eu derrubasse mais uma com estilingue, e eu,

não querendo fazer feio, me queixava do braço. Mas, para

agradá-la, subia na goiabeira e pegava a goiaba mais

bonita e dava pra ela.

No começo, pensei que ela fosse mascarada, mas não era

não. Falou muito pouco do pai e da mãe. Gostava de

conversar de outras coisas: queria saber como eram os

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colegas da escola, quais os professores que eram legais,

quais os que eram ruins. Estava pra mim, fui logo

descendo o pau nos mestres:

— Bom não tem nenhum.

— Como não tem nenhum bom?

Não consegui agüentar, lá vinha potoca:

— Tem um professor, o seu Aristides, que à toa, à toa,

bate nos alunos.

— Que mentira! Papai disse que professor não pode bater

em aluno. Se um professor faz isto, é expulso da escola.

— Não o seu Aristides. Ele o sobrinho do Governador e

primo do Delegado.

Lúcia Helena ficou pensativa, depois olhou fixo pra mim,

pra ver se eu ria. Fiquei durão. Suspendi a camisa:

— Está vendo este esfolado?

— Não foi a onça que te arrastou?

Quase que ela me pegava, eu Já ia esquecendo da

mentira...

— Não, este outro mais embaixo.

— Sim, estou vendo.

— Pois foi seu Aristides que me bateu com a régua.

— Mas por que ele fez isto?

— No dia em que tia Lucila morreu de câncer, não fiz a

lição. Mesmo assim, seu Aristides não perdoou e me deu

uma reguada.

A escola

Eu estava mentindo, mas a verdade é que a escola era

mesmo um saco. A começar da Diretora, a D. Fiolli. Era

uma gordona de bigode e óculos pretos. Usava um vestido

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que parecia farda e mancava de uma perna.

— Ferida de guerra. Era general de cavalaria — gozava o

Prof. Airton, que tinha fama de bebum e ficou pouco

tempo na escola.

D. Fiolli gostava de gritar com a gente:

— Sr. Fernandes, por que não toma jeito? Três dias de

suspensão!

Por que aquela mania de todo mundo me chamar de

"senhor"? Só pra gente parecer mais velho. E depois eu

tinha nome. Não gostava que me chamassem de

Fernandes. Quanto à suspensão, até que era bom: eu

continuava saindo de casa cedo, mas ia pescar ou nadar.

Na caderneta, imitava a assinatura de papai e tudo bem. O

pior era escutar D. Fiolli gritando feito louca. Mas não era

só ela que era chata. Tinha cada professor... Fora o Prof.

Airton, que era um sarro, e D. Elisa, que parecia a mãe da

gente, o resto só enchia.

Tinha a D. Abud, que dava História, uma chata de

galocha, o Prof. Roldão, que dava Matemática, este não

fedia nem cheirava, tinha o Sapão, apelido do professor de

Biologia. Toda vez que ele perguntava alguma coisa,

ficava repetindo:

— Não é? Não é? Não é?

E a gente do fundão respondia:

— É, é, é.

E a D. Marta, professora de Canto, então? A gente

aprontava cada uma que eu vou te contar! Ela tinha mania

de querer que a gente cantasse o Hino Nacional. A turma

ficava de pé, punha a mão no coração, e ela dizia um, dois,

três.

Um dia, eu, o Tuta e o Batata combinamos uma coisa com

a turma. Quando a D. Marta contou até três, em vez do

Hino Nacional, a gente começou a cantar "Atirei um pau

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no gato". Nem preciso dizer que foi todo mundo pra

Diretoria...

O pior de todos

Mas o pior de todos era mesmo seu Aristides, o professor

de Português. Gostava de pronunciar todos os "esses" e,

por isso, parecia uma panela de pressão. Por um acentinho

de nada descontava na nota. E depois a aula dele era uma

chatice... A mão da gente doía de tanto escrever. Ele

ficava o tempo inteiro ditando ponto. Queria também que

a gente fizesse cópia do livro. E cada história idiota que a

gente tinha que copiar. Tinha uma que eu não esqueço,

chamada O Filho da Caolha. No desenho, um menino

com cara de tonto estava fincando o garfo na cara da mãe.

Mas ele era muito pequeno e não sabia o que estava

fazendo. Quando cresceu, vivia com vergonha da velha,

até que ela contou que ele é que tinha furado o olho dela.

Tinha outra de uma mulher romana que gostava de contar

vantagem: toda hora falava de jóias, dos vestidos, coisa e

tal, pra uma amiga chamada Cornélia. Um dia, a Cornélia

mostrou os filhos e disse: estas é que são as minhas jóias.

Você entendeu a moral da história? Nem eu. E as poesias

então? O seu Aristides mandava a gente decorar cada uma.

Uma vez tive que decorar inteirinha uma poesia que eu

não lembro o nome. Começava assim: Esta de áureos

relevos, trabalhada. Não entendi nada, mas seu Aristides

vivia dizendo que era a coisa mais bonita do mundo. Eu

preferia poesia romântica.

Aula de redação

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Aula de redação até que eu gostava. Tinha gente que vivia

reclamando porque seu Aristides queria que a gente

escrevesse trinta linhas no mínimo. O Tuta ficava louco da

vida e fazia uma letra que parecia uma abóbora pra encher

a folha. Eu passava fácil das trinta linhas, quando seu

Aristides dava tema livre. Mas acontece que seu Aristides

tinha a mania de só pedir tema gorgota.

Como daquela vez que ele escreveu na lousa Uma Boa

Ação e disse pra gente:

— Contem uma história verdadeira. Exaltem os

sentimentos elevados. Usem palavras nobres.

A gente começou a escrever e bateu o sinal. Seu Aristides

mandou a gente terminar em casa. No começo, achei o

tema muito chato, mas como estava inspirado, escrevi uma

redação jóia. No outro dia, encontrei com o Tagliato na

porta da escola. O Tagliato era o cara mais metido do

mundo. Vivia contando garganta, só porque era o melhor

aluno da classe. Ô gordinho fresco. Quando falei da minha

redação, ele disse:

— A minha está muito melhor. Papai me ensinou cada

palavra que vou te contar.

O Tagliato escrevia as coisas mais bestas. Só pra agradar

seu Aristides. Daquela vez eu juro que pensava que eu é

que ia tirar dez. Minha redação estava mesmo um barato.

A melhor, a pior

Na outra semana, seu Aristides trouxe as redações. Ele

gostava de entregar as folhas de papel, falando as notas

com voz alta:

— Seu Sousa, dois; D. Eliete, quatro e meio; seu Morelli,

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cinco e trinta e dois; seu Jader, três vírgula quatro...

Mas naquele dia, em vez de fazer isto, me chamou na

frente junto com o Tagliato.

— Seu Tagliato leia-nos sua redação.

O Tagliato gostava de se exibir. A voz dele parecia de

locutor de rádio, ele nunca esquecia dos "esses" e dos

"erres". Então, ele contou uma história assim: No

alvorecer de uma bela tarde de verão, estava eu gozando

a fresca da brisa... Ele contava que dois órfãos tinham

passado na frente da casa dele, e que ele tinha ficado com

pena, porque eles estavam tremendo de frio (pô, não era

verão?) e com fome. Depois, o Tagliato contava que ficara

com os olhos marejados de lágrimas, ao ver os

pequerruchos a tossir, a tossir. Quando ele falava a tossir,

fez uma coisa que me deixou maluco: batia a mão no peito

como se estivesse tossindo. O seu Aristides só faltava

babar com tanta bobagem. Aí, ele contou mais uma coisa

que eu não agüentei. Até me segurei pra não rir.

Não é que o Tagliato falou que, morrendo de dó das

criancinhas, tinha dado toda a mesada pra elas? Pô, vai

ser mentiroso assim no inferno! Tagliato era o cara mais

pão-duro do mundo. Se ele visse a mãe passando fome,

preferia deixar a coitada morrer a dar dinheiro pra ela.

— Seu Fernandes, leia-nos agora a sua.

Bem, eu não gosto de ler em voz alta. A coisa mais fácil é

eu ficar gaguejando e falando baixinho...

— Mais alto, seu Fernandes. Dê mais ritmo às frases!

Ainda por cima, seu Aristides não parava de encher. Na

minha redação, eu contava a história de dois amigos

exploradores. Um deles era casado com uma mulher muito

bonita chamada Dolores. Um dia os dois foram num lugar

chamado Bornéu, onde só tinha leão, tigre, crocodilo,

escorpião e aranha. Além disso, tinha também uma tribo

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de índios que gostavam de encolher a cabeça das pessoas.

Bem no meio da história, o explorador que era casado foi

picado por uma tarântula. O amigo dele mais que depressa

chupou o sangue da ferida. Nisso, vinham os índios

perseguindo os dois. Aí o que estava doente não pôde mais

andar e caiu no chão. O amigo, vendo que os índios

estavam perto, pegou o revólver e descarregou no peito do

amigo. Na volta, ele contou pra Dolores que o marido dela

tinha morrido como um bravo. Ela chorou muito e acabou

casando com o amigo. E eles estavam vivendo felizes pra

sempre, quando, um dia, chegou pelo Correio uma

caixinha pequena. Quando abriram o embrulho... E eu

terminava aí, sem contar o grande segredo. Acabei de ler e

fiquei esperando seu Aristides falar da redação.

— Pedi a seu Tagliato e a seu Fernandes que lessem as

redações, para que os senhores avaliassem o que de

melhor e o que de pior se pode escrever sobre um tema.

Comecei a suar frio. Lá vinha pancada.

— O trabalho do seu Tagliato está excelente. A abertura

da redação é um primor: No alvorecer de uma bela tarde

de verão... E depois o sentimento que dela emana! Que

coisa sublime, um jovem doar a mesada em prol dos

necessitados!

Pensei que o Tagliato fosse ter um troço. Deu até vontade

de dedar aquele mentiroso. Será que o mestre não via que

o pai do Tagliato é que tinha feito a redação?

— Quanto à do seu Fernandes... O que, em sã consciência,

pode-se dizer de seu trabalho? Uma mixórdia!

Onde se vê uma boa ação? A eutanásia é um crime, seu

Fernandes! Em nenhuma circunstância se deve atentar

contra a vida humana, o dom mais precioso que Deus nos

deu! E depois, por que passar a história em outro país? O

senhor me fala das belas florestas de Bornéu. Será que

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excedem às nossas? Eu quero a cor local! Os bons

sentimentos! A correção do vocabulário! Quantas e

quantas vezes já não lhe disse que não utilizasse o termo

"chance"? Não vê que é um galicismo?

Depois daquela, nem sei como consegui voltar pro meu

lugar, a turma toda me gozando. E a besta do Tagliato

inchado que nem um peru.

Mas juro por Deus que a minha redação estava bem

melhor que a dele. É claro que tinha uns errinhos de

Português, mas pelo menos eu tinha feito tudo sozinho.

Amigos

Quando começaram as aulas, fiquei contente de saber que

Lúcia Helena ia ficar na mesma classe que eu. Para dizer a

verdade, eu estava gostando um pouco dela. Lúcia Helena

era bem legal e bonita: gostava do jeito que ela tinha de

jogar o cabelo para trás. O sorriso de Lúcia Helena era a

coisa mais linda do mundo.

Quando ria, eu ficava olhando quem nem besta. Aí, ela

passava a mão na frente da minha cara e dizia:

— Acorda Beto.

Então, combinamos ir á escola juntos. Eu que era um

porco, que não penteava o cabelo, não escovava os dentes,

comecei a levantar cedo e me arrumar. Até o Lelo reparou

e disse na hora do café:

— Que deu nele? Tomou banho ontem, tomou banho hoje.

— Pra não sentir a tua catinga, nojento.

— Beto, dobre a língua — disse mamãe, que não gostava

que a gente xingasse a mesa.

— Está de olho na garota. Penteou o cabelo, escovou os

dentes — Lelo continuava me gozando.

— Pior você, que está namorando a Elvira Espinha.

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Lelo ficou branco. É que eu tinha falado a coisa que ele

mais detestava no mundo. A Elvira Espinha era um

bagulho que vivia telefonando pra casa. O Lelo tinha ódio

dela, mas Elvira não desgrudava.

— Cale a boca, Beto!

— Cala a boca já morreu. Quem manda em minha boca

sou eu.

O Lelo levantou para me dar um soco. Mamãe começou a

gritar:

— Vocês me matam! Onde se viu, Lelo? Desse tamanho e

brigando com seu irmão?

Mamãe pôs a mão no peito e ficou sentada um tempão. De

primeiro, a gente pensava que fosse fita, mas depois que o

Dr. Hemórgenes disse que mamãe tinha um problema no

coração e que ela não devia ser contrariada. Por causa

disso, quando mamãe ficava branca, a gente sempre

parava de brigar.

Boi no laço

— Boi no laço fica manso — papai gostava de dizer isto a

respeito de qualquer coisa. Pois eu parecia boi no laço.

Depois que Lúcia Helena ficou minha amiga, nunca mais

matei aula nem deixei de fazer lição. Na classe, sentava ao

lado dela e fazia o possível e o impossível pra prestar

atenção na aula. De vez em quando, olhava pro fundão e

dava uma saudade... Sorte que o pessoal mais farrista tinha

repetido de ano. Eu tinha passado nem sei como, como

segunda época e tudo. O Lelo me ajudou na Matemática e

no Português, e mamãe passou as férias me tomando lição

de Geografia.

Seu Aristides não deixou por menos. Me vendo junto de

Lúcia Helena, veio logo tirando sarro da minha cara:

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— Sr. Fernandes, o quadro-negro fica á frente. Não ao

lado.

De volta da aula, combinamos também fazer a lição

juntos. Lúcia Helena era muito caprichosa e sabia tudo

mais que eu. Ficava impressionada por eu não saber

análise sintática e álgebra. Com ela ensinando, fui

aprendendo aquela joça. Eu gostava de estudar com Lúcia

Helena por que a gente ficava muito junto, de braço

encostado, e eu podia olhar o quanto eu quisesse pra ela...

— Beto, Beto. Entendeu ou não entendeu?

— Entendi.

— Então, vamos lá, diga.

E eu dizia tudo errado. Lúcia Helena ficava brava comigo

e dizia que desse modo eu nunca ia ser alguém na vida.

Se a companhia de minha amiga era uma delicia, era

também gostoso o lanche que D. Helena preparava para

nós. D. Helena preparava para nós. D. Helena era a mãe de

Lúcia Helena. Para falar a verdade, eu gostava mais de seu

Nestor, o pai dela. Era uma pessoa quieta, mas logo fez

amizade com papai, quando foi até em casa levar uns

cortes de tecido pra fazer um terno. Depois, os dois se

acostumaram a conversar no portão de casa e ficaram

muito amigos. D. Helena era diferente; nem

cumprimentava os vizinhos. Mas não tinha queixa dela;

enquanto estudava com Lúcia Helena, sempre levava

lanche pra gente. A única coisa que enchia é que ela

gostava de contar vantagem.

Alguém mais potoqueiro do que eu

Alguém mais potoqueiro do que eu parecia impossível,

mas juro por Deus que D. Helena era a maior contadora de

lorota que eu já vi. Logo que ela me conheceu, veio

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falando que era de uma família muito importante...

— Vovó era filha do Visconde de Ouro Fino e amiga

intima da Família Imperial. Ela contava que...

— Ih, mamãe, lá vem a senhora com essa história de novo

— Lúcia Helena perdia a paciência.

— Tenha modos minha filha. A família é coisa mais

importante que uma pessoa tem na vida.

— A senhora já contou isso mais de cem vezes na vida.

— Mas o Roberto ainda não ouviu.

Que chateação! Lúcia Helena fugia da sala e me deixava

sozinho com a velha. E ela não parava de falar. Falava

tanto que ás vezes eu distraia e ficava olhando para a rua.

Me dava uma vontade doida de sair correndo, ir nadar no

ribeirão...

— ...nas férias, vovó descia em lombo de burro a serra

para assistir á Ópera no Rio de Janeiro. Ela contava que

uma vez foi convidada paras servir de dama de companhia

á princesa Isabel. Não aceitou porque achava que não

ficava bem á filha do Visconde de Ouro Fino...

Ah, essa eu não podia agüentar! D. Helena gostava de

contar prosa com o peito para frente. Parecia até uma

pomba. E vinha agora com essa história que a avó dela não

queria ser empregada da rainha! Fosse contar potoca pra

outro.

— Mesmo vovô deu bons conselhos ao Imperador...

Ai, eu ficava louco! Não agüentei mais e disse pra ela:

— Minha família também é de origem importante...

D. Helena perguntou curiosa:

— Como assim?

— Bem, a coisa é meio complicada. Papai é pobre, mas já

foi muito rico. Meu avô era dono de fazenda de café em

Mato Grosso. Uma delas era maior que o Estado de São

Paulo...

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Nisso, Lúcia Helena ia entrando na sala. Quando me viu

contando aquela história e começou a rir. D. Helena disse

pra ela:

— Tenha modos, menina. Não vê que o Roberto está

falando?

E eu continuei:

— Papai era filho único, e vovô gostava muito dele. Mas

papai acabou-se apaixonando por mamãe, que era pobre.

O pai de mamãe era também inimigo moral de vovô.

Quando ele soube que papai queria mesmo se casar com

mamar, ameaçou matá-lo. Papai então fugiu com mamãe.

Vovô ficou com tanta raiva que antes de morrer doou

todas as fazendas pra Igreja. É por isso que papai teve que

aprender uma profissão. Quando o Lelo...

— Lelo?

— Meu irmão mais velho. Quando ele nasceu, papai e

mamãe viviam numa choupana. Era só chover, e entrava

chuva pelo telhado...

— Seu pai é um homem de valor, Roberto.

No outro dia, quando passei na casa de Lúcia Helena, ela

me disse:

— Seu mentiroso!

Mas vi que ela tinha gostado da história. D. Helena era

mesmo um pé no saco.

Papai

Na hora do jantar, papai balançou a cabeça e disse:

— Sim, senhor, não é que a D. Helena me

cumprimentou?!

— A D. Helena?! — perguntou mamãe.

— Ela mesma.

— Mulher fresca — disse o Lelo.

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— Não diga essas palavras á mesa, Lelo! — disse mamãe,

que se voltou novamente para papai. — Mas

cumprimentou-o a propósito de quê?

— Me cumprimentou, ora. Eu estava no portão quando ela

desceu do carro e disse: “Boa tarde, Sr. Antônio. Como

tem passado?” Não entendo isso. Até ontem, era como se

eu não existisse.

Papai balançou a cabeça e começou a jantar. Ele era um

homem muito orgulhoso. A coisa que gostava de dizer era:

— Não devo nada a ninguém. Tudo que consegui foi com

o suor do rosto.

E vinha de novo a velha história que ele tinha passado

fome até aprender a profissão de alfaiate, uma das mais

nobres que existem e que... A gente já tinha escutado umas

mil vezes ele contando o passado. Eu até revirava os olhos

quando ele começava a falar. E bem na hora da janta. A

única coisa boa é que não contava mentira. Por fim, papai

terminava dizendo:

— É por isso que exijo de vocês um comportamento

digno. O pão que trago para casa foi conseguido com o

suor do rosto.

Pra falar a verdade, papai dava um duro mesmo.

Levantava cedo e trabalhava até a noite. E o pior é que

tinha muito caloteiro, como o Dr. Edmundo, que devia

dois ternos há cinco anos. Volta e meia, papai dizia:

— Nena, com aquele dinheiro do Dr. Edmundo bem que a

gente podia começar uma reforminha na casa...

Mamãe resmungava:

— Sujeito mais ordinário...

— Disse que mês que vem paga. Tem andado apertado.

Papai era muito bobo. Por isso que todo mundo vivia

dando calote nele. Além disso, era teimoso. Só fazia terno

do jeito que gostava. Se alguém pedia coisa moderna, ele

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ficava louco da vida. Quando veio a moda do paletó com

um racho atrás, papai reclamou pra gente:

— Rancho atrás! Onde se viu homem usando uma coisa

dessas!

— É a moda, papai — dizia o Lelo.

— Moda, moda. Como se essas porcarias fossem mais

bonitas que as que eu faço!

Mas eu é que ficava louco com os ternos que ele fazia pra

gente. Pareciam coisa de velho: lapela bem larga e

nenhum corte atrás. Tinha até vergonha de sair na rua. Eu

mesmo com uma tesoura tentei fazer um corte, mas ficou a

coisa mais horrorosa do mundo. Se papai descobrisse, ele

me matava.

Um chato na cidade

Nas férias, Lúcia Helena viajou pro Rio de Janeiro. De lá

mandou uma fotografia de biquíni da praia. Eu nunca tinha

visto Lúcia Helena de biquíni. Ela nadava no Rio Branco,

mas, como eu não era sócio, não podia vê-la na piscina. O

Lelo era sócio: tinha arranjado dinheiro dando aula

particular em inglês. Um dia até me disse:

— Vi a tua gostosinha na piscina.

— E eu vi a Elvira Espinha na escola.

Lelo me deu um peteleco, mas, como eu já esperava, fugi

o corpo e saí correndo. Juro por Deus que a Lúcia Helena

estava um barato de biquíni. Guardei a foto na carteira e

fui para a casa do Susigan. O Susugan era o cara mais

nojento do mundo. Ficava o dia inteiro metendo o dedo no

nariz. É claro que também meto o dedo no nariz, mas não

na frente dos outros. O Susigan gostava de tirar meleca e

enfiar na boca. Além disso, era caspento como o diabo.

Quando passava a mão no cabelo, parecia tempestade de

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neve. O apelido dele era Sugismundo, mas ninguém

chamava ele se Sugismundo, porque o Susigan ficava uma

vara. Mas era um cara legal ás pampas. Não era como o

Bianqui, que emprestava dinheiro a juros. Quantas vezes

não filei dinheiro do Susigan e ele nunca me cobrou.

Eu ia na casa do Susigan ver se descolava uma grana pra

comprar um cartão bem legal para Lúcia Helena. Quando

cheguei na casa do Susigan, tinha um sujeito que eu não

fui com a cara dele na hora. Eu sou assim. Quando invoco

com alguém, é tiro e queda. Invoco mesmo, e nunca mais

deixo de invocar. Pois bem, foi o que aconteceu com esse

tal de Mário Antônio. Quando o Susigan me apresentou,

ele disse o nome “Antônio”, com o “ó” bem aberto. Fiquei

louco da vida. Por que não “Antônio” como todo mundo?

— Prazer, Mário Antônio...

— Antônio — ele corrigiu.

— Por que Antônio? — perguntei.

— Mamãe acha Antônio muito comum. E depois,

foneticamente, a pronúncia mais correta é mesmo

Antônio.

Era um sujeito grandalhão, acho que mais forte que o

Lelo, loiro, o cabelo cheio de brilhantina. Começou a

contar que tinha passado no vestibular no ITA sem

cursinho e que, em dois anos, seria engenheiro eletrônico.

Contou também que, por causa disso, ia ganhar uma DKW

vermelha do pai. Depois, começou com um papo das

garotas que viviam dando em cima dele. Que só em São

José dos Campos tinha umas quatro. E daí por diante.

Fiquei até sem jeito de pedir dinheiro pro Susigan. Voltei

louco da vida pra casa. Eu não podia mandar o cartão pra

Lúcia Helena, e ainda por cima tinha de agüentar aquele

idiota contando vantagem pra cima de mim. E o Susigan

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que nem besta, com o dedão enfiado no nariz, babando

com as potocas do outro.

Calote

Não sei por quê, pela primeira vez na vida eu não via a

hora de voltar para a escola. Ás vezes, ia nadar, outras

vezes, ia bater bola perto do ribeirão. Eu nem queria mais

encontrar com a turma, porque era só ver aquele cara que

eu ficava cabreiro. A vontade que deu foi dar uma surra

nele, mas a droga é que ele era mais forte que eu, acho que

nem o Lelo podia com ele. Então eu acordava tarde, ficava

zanzando pela casa, desanimado pra burro. Até que papai

me viu ali sem fazer nada e disse:

— Por que não me ajuda um pouco? Faça umas entregas

pra mim.

Sem muita vontade, comecei a levar os ternos na casa dos

fregueses. A verdade é que eu ia meio escondido. Não

queria que um colega me pegasse com aquele pacote na

mão, andando para cima e para baixo feito besta. Ainda

por cima, papai não me dava um tostão:

— Comecei assim, sem ganhar nada — ele dizia.

Foi aí que percebi como papai era trouxa. Cobrava um

preço de nada. Nem compensava o trabalhão que tinha

fazendo a roupa. Me lembro uma vez que ele me mandou

entregar um terno pro Dr. Tenório, o advogado mais rico

da cidade. Era de tropical brilhante, e o pano devia ter

custado uma nota.

— Diga que é Cr$ 15.500,00. Se ele reclamar, faça um

abatimento de duzentos cruzeiros.

Reclamar? O homem era podre de rico! No caminho, me

deu a tentação. Estava um sol forte, e eu suava como o

diabo. Fui andando, andando, até que tive uma idéia.

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Quando o Dr. Tenório pegou o terno, ele perguntou:

— Quanto é?

— Cr$ 18.000,00, Dr. Tenório.

— Ué, já subiu o preço?

— Papai disse que aumentou o preço da linha, do óleo da

máquina. Do giz...

— Óleo da máquina?

— Um trabalhão o seu terno, doutor. A máquina até secou

de tanto costurar.

— Está bem, está bem, não precisa dizer mais nada.

E tirando um bolo de nota do bolso, pagou sem reclamar.

Um cartão para Lúcia Helena

Quando o Dr. Tenório saiu da missa e veio andando pela

calçada de casa, fiquei gelado. Papai estava no portão e

disse:

— O Dr. Tenório está estreando o terno novo.

O homem parecia mais um monte de ouro. A gente nem

podia olhar que doía a vista. De braço dado com a D.

Eulália, vinha andando bem devagar. Fui recuando e entrei

em casa. Torci para que ele não parasse no portão, mas

tive um azar danado quando o Dr. Tenório cumprimentou

papai e mamãe, dizendo:

— Como vê, estou inaugurando sua obra prima.

— Parece que lhe caiu muito bem, Dr. Tenório.

— Como uma luva, seu Tonico. O senhor é um artista.

— Muito obrigado, Dr. Tenório. Alegra-me que esteja

satisfeito.

— Ainda mais pelo preço que me cobrou. O Menegelli

cobra pelo menos o dobro. Cr$ 18.000,00 é mesmo uma

pechincha.

— Cr$ 18.000,00?!

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— É claro que é uma pechincha! Ainda mas pelo capricho,

pelo acabamento. Nem pronto eu compraria um que caísse

tão bem.

Papai ficou branco que nem cera e veio para dentro de

casa, com aquela cara que eu conhecia bem. Me tranquei

no banheiro, e ele começou a reclamar com mamãe:

— Um marginal, este moleque. Agora até dinheiro me

rouba.

— Que roubar o quê, Tonico. Dobre a língua.

— Onde se viu? Eu trato um preço, e ele inventa outro?

— Ora, Tonico, dinheiro a que ele tem direito. O coitado

carregando terno para cima e para baixo sem ganhar nada!

— Já vem você me contrariando.

— E depois outra coisa, Tonico. Você cobra mesmo muito

pouco.

— Não é pouco. É o que vale o meu trabalho.

— Então, seu trabalho não vale nada. O próprio Dr.

Tenório disse que o Menegelli cobra o dobro.

— Não fale daquele safado! Não sabe nem fazer uma cava

direito.

Papai ficava uma vara quando alguém lembrava do

Menegelli, que tinha chegado a pouco tempo na cidade e

só fazia roupa pros ricos. Não era á toa que já tinha carro e

apartamento em Santos.

— Tonico, o Beto não pegou dinheiro seu. E não é justo

que ele ganhe uns trocados? Já está ficando grande,

precisa de um dinheirinho...

— Está bem, está bem... Eu só queria que ele não

escondesse isso de mim.

Quando papai dizia “está bem”, era porque estava bem

mesmo. Sai do banheiro, e ele me disse:

— Aprendendo a ser caloteiro, hein?

— Não fale assim, Tonico! — gritou mamãe da cozinha.

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— O que vai fazer com o dinheiro?

— Vou torrar numa coisa.

— Está vendo, Nena! A gente dá o braço, e ele já quer a

perna. Vai torrar! Não sabe o valor do dinheiro! Eu já

disse que você estraga este menino.

Nem escutei ele falar. Fui para a loja do pai do Susigan e

escolhi o cartão mais bonito do mundo. Depois de muito

pensar, escrevi numa letra caprichada: Legal á beça você

de biquíni vermelho, e naquele dia mesmo mandei para

Lúcia Helena.

O tio Cenoura

Quase no fim das férias, aconteceu um milagre:

Dr. Edmundo apareceu em casa e pagou os ternos que

devia. Na janta, pra nossa surpresa, papai disse:

— Sabe, Nena, me deu uma vontade de torrar esse

dinheiro.

Papai falando em torrar? Outro milagre. Olhei pro Leio o

Leio olhou pra mim.

— Está louco, Tonico? E a reforma?

— Ando meio cansado, e você nem se fala. Acho que

merecemos umas férias.

— Com essa grana, a gente nem saí da cidade — disse o

Leio.

Mas papai estava animado.

— O mano disse que se a gente quiser, ele empresta o

apartamento em Santos.

O mano era o tio Onofre, ou melhor, o tio Cenoura. Tinha

uma napa, seu! Nunca vi nariz tão grande e vermelho.

Pão-duro como ele só. Milagre que estivesse querendo

emprestar o apartamento. Mamãe, que não gostava de

pegar coisa dos outros, foi logo achando ruim:

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— Não gosto dessa mania de pedir emprestado. Depois

acontece alguma coisa...

— Que é que tem, Nena? Só a gente tomar cuidado...

— Muito estranho o tio Cenoura emprestando coisa — eu

disse.

— Não fale assim do seu tio. tenha respeito, Beto. —

Mamãe ficava uma vara quando a gente chamava os

outros pelo apelido. Ainda mais quando era parente.

— E depois — disse papai — ele não está emprestando de

graça. Pediu que eu lhe fizesse umas calças...

— Eu sabia que tinha dente de coelho nisso — disse o

Leio.

No fim, mamãe concordou. Ficou acertado que no outro

dia bem cedo a gente ia pra Santos. Não sei por que, não

estava muito animado. Acho que não via a hora de me

encontrar com Lúcia Helena.

Lucy e Geny

Mas até que não foi ruim a viagem. Eu nunca tinha ido pra

Santos. Pra falar a verdade, era a primeira vez na vida que

eu via o mar. Mas eu jurei pra mím mesmo não dar uma de

caipira pulando nas ondas, como a gente via aqueles

idiotas fazendo. Mamãe é que parecia contente, andando

pela calçada de braço dado com papai. Acho que também

ela nunca tinha visto o mar. Pela primeira vez também o

Leio deixou eu sair com ele.

Em Americana, nem queria me ver pela frente, dizia que

não gostava de andar com criança. Foi o maior barato.

Conhecemos duas garotas, acho que eram irmãs, a Lucy e

a Geny. Quando a gente passou pelas duas. o Leio me

cutucou:

— Eu pego a maior, você pega a menor. Devem ser boas

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de malho.

Olha, meu, me deu uma tremedeira, que até o Leio

reparou:

— Se está com medo, eu vou sozinho.

— Sai dessa. Quem disse que estou com medo?

Chegamos nelas, e o Leio começou de papo. Porreta ele:

no que elas bobearam, o Leio já tinha passado a conversa.

Então, a gente combinou de sair de noite. Depois da janta,

o Leio me disse:

— Não fica grudado. Você pega a sua e se manda.

Aí me deu um branco total e eu disse:

— Leio...

— O que que foi?

Perdi a vergonha e perguntei:

— E o que que a gente faz?

— Você dá um amasso nela, pô!

— E se ela não deixar?

— Claro que deixa. Larga de ser trouxa. Mas não vai em

cima. Primeiro, pega na mão, depois...

O Leio sabia das coisas.

Encontro na Praia

As garotas estavam esperando a gente perto do Canal 7.

Eu estava com a boca seca. Tinha torcido pra que elas não

viessem. Mas aí falei pra mim mesmo: calma, Beto, faz o

que o Leio ensinou. E não é que ele foi logo pondo a mão

no ombro da garota?

Em seguida, disse pra mim e pra Geny:

— Então, a gente se encontra às nove, neste mesmo lugar.

Divirtam-se, crianças.

E saiu andando com aquele jeito de bacana. Aí que fiquei

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gelado. Nem sabia como começar. Pensei em pôr o braço

no ombro dela, mas não tive coragem. Pra puxar conversa,

perguntei:

— Qual é seu nome?

— Já esqueceu?

Que mancada! Consertei, falando outra bobagem:

— Quero dizer, o sobrenome. Todo mundo tem um

sobrenome.

— Martins. Geny Martins.

E agora? O que eu podia perguntar? Meu coração batia

adoidado, enquanto a gente andava sem rumo na praia.

— E se a gente sentasse naquele banco? — ela perguntou.

Salvo pelo gongo. Eu estava numa de sair correndo e

deixar Geny sozinha na praia. Foi sentar, e pensei no que o

disse. Eu tinha que pegar na mão dela, mas me faltou

coragem. Olhei pra Geny, e ela estava olhando pro mar.

Bem que eu podia avançar devagarinho e... Não, o melhor

agarrar a mão depressa, assim ela não podia reagir. Mas e

se a Geny se assustasse? Ora, meu, e daí? O que é que eu

perdia? O problema era que simplesmente eu tinha que

pegar naquela mão. Fui deixando cair o braço até que

encostei no dela. Geny ficou quieta, mas quando avancei a

mão, ela tirou o braço. Então, resolvi mudar de tática.

Procurei assunto e fui falando, enquanto avançava a perna:

— Você gosta de música?

— Gosto de samba.

— E de rock? — Minha perna já estava quase Kostando

na dela.

— Só de balada romântica. Neil Sedaka, Pat Boone...

Quando encostei a perna, ela deixou, mas quando avancei

de novo o braço, Geny disse:

— Acho que já está na hora.

— Que hora?

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— A gente não combinou às nove no Canal 7?

Que droga! Eram oito e quinze ainda, mas nem reclamei.

Levantamos e fomos de volta pro local do encontro, Senti

um alívio dentro de mim, mas o que que eu ia dizer pro

mano? E a gente esperou o Leio até quase dez horas.

Quando voltamos pra casa, ele perguntou:

— Que tal?

— Legal às pampas — eu disse.

— Pegou na mão dela?

Fiquei branco, mas logo recuperei o sangue-frio:

— Claro que peguei. E até dei uns amassos.

O Leio bateu nas minhas costas:

— É isso aí, garoto. Você vai longe.

Naquela noite, não consegui dormir direito. Fiquei louco

da vida comigo. Como é que eu podia ser tão trouxa?

Depois, como sou muito mentiroso, inventei uma

desculpa: eu não tinha feito nada, porque estava com

saudades da Lúcia Helena. Mas, fora a desculpa, isto era

verdade mesmo. Desde que eu tinha tomado o ônibus, não

tirava Lúcia Helena da cabeça. Foi até com remorso que

eu tinha aceitado sair com a Geny.

Ciúmes

Quando chegamos, tomei banho rápido e fui correndo pra

casa dela. Mas fiquei chateado porque tinha visita.

E adivinha quem? Justo a besta do Mário Antônio! Lúcia

Helena, sem levantar da cadeira, disse:

— Oi, Beto, conhece o Marinho?

Marinho! E parecia que ela tinha me visto ontem.

— Já conheço o Bebeto — disse ele me apertando a mão.

Bebeto! Bebeto, a mãe!

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— O Mário Antônio está se preparando para o ITA —

disse D. Helena toda emproada. Quando ela falou

"Antônio", fiquei roxo de raiva.

— Sente-se, Roberto. Lúcia Helena, providencie um

refrigerante para seu amigo.

— Obrigado, D. Helena, mas não estou com sede.

Bem que eu tinha vontade de uma Coca, mas estava tão

louco que tinha medo de engasgar. A besta do Mário

Antônio estava todo cheio de si. Como se fosse o rei do

mundo.

Papo pra cá, papo pra lá. E tinha um sapato cinzento que

era uma coisa. Igual a um que eu tinha visto na "Ideal",

bonito à beça. Eu olhava aquele sapato cinza e ficava mais

louco ainda, ele só mexendo com o pé, de vez em quando

dando uma mirada no bico. E eu com meu Vulcabrás

descascado e fedorento. Vantagem pra cá, vantagem pra

lá, falou da DKW vermelha que ia ganhar do pai, falou

que era o primeiro da classe, que, depois de formado, ia

estudar na Europa. E D. Helena só faltando beijar o pé

dele: "Mário Antônio" daqui, "Mário Antônio" dali.

Eu não agüentava mais a conversa. Doido pra ficar

sozinho com Lúcia Helena, e nada do Mário Antônio

desgrudar da cadeira. Até que ele convidou Lúcia Helena

pra tomar um sorvete no sábado. Como eu estava ali do

lado, feito um idiota, me convidou também:

— Não quer ir com a gente, Bebeto?

Bebeto, a mãe! Respondi de maus modos:

— Não gosto de sorvete.

— Não vem com essa — disse Lúcia Helena. — Você

adora sorvete de morango.

Senti uma raiva dela, mas fiquei quieto. A besta

continuava rebolando aquele sapato nojento. Quando se

despediu, eram quase seis horas. Fui saindo também, me

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mordendo por dentro. Lúcia Helena foi atrás de mim:

— Como que é, Beto, vai saindo assim sem conversar?

Pra falar a verdade, eu tinha perdido toda a vontade de

conversar. Só de lembrar a cara daquele sujeito, eu ficava

meio maluco.

— Como foi de férias? Tenho um monte de coisas pra te

contar.

Começou a me falar do Rio de Janeiro, das praias. Falou

também que tinha sentido saudade de mim. Eu nem

prestava atenção no que ela dizia; só ficava pensando

naquele sapato cinzento. Por fim, eu disse:

— Mas você nem se levantou quando entrei...

Ela me olhou de uma maneira gozada, como se não tivesse

entendido o que eu tinha falado:

— O que que foi, Beto? Não estou... — mas não terminou

de dizer o que queria. Como se lembrasse de alguma coisa,

mudou de assunto. — Ah. esqueci de dizer: adorei o

cartão que você me mandou.

Foi aí que eu senti remorso do que tinha feito em Santos.

Se eu gostava tanto de Lúcia Helena, por que tinha

paquerado aquele bagulho? Então, esqueci da besta do o

Antônio, do sapato cinzento e ficamos conversando até de

noite. D. Helena chamou pro jantar e me convidou.

Agüentei a chatice da velha, só pra ficar junto de Lúcia

Helena. Quando voltei pra casa, pensei que ia dormir feliz,

mas não é que de repente me lembrei do convite do

nojento?

E se Lúcia Helena aceitasse?

Na caixa-d'água

No sábado, convidei Lúcia Helena pra ir no cinema.

Estava cheio da grana, porque tinha entregado duas

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encomendas pro papai. Mas tive uma bruta surpresa

quando ela disse:

— Esqueceu que o Marinho convidou a gente pra tomar

sorvete?

— Convidou você — respondi já meio cabreiro.

— Claro que te convidou também.

— ...só convidou porque eu estava junto com vocês.

— Que é que tem, Beto? O Marinho é um cara legal.

Quando ela falou que ele era legal, tive que ir embora, se

não ia ter um troço. Legal? Como podia ser legal um cara

que só contava vantagem? O que Lúcia Helena via nele?

Voltei pra casa louco da vida, fui entrando, chutando

porta, cadeira, e, ainda por cima, o Leio tirou sarro:

— Como é, brigou com a gatinha?

Xinguei o Leio e fui pró quarto. Deitei na cama e fiquei

um tempão pensando, pensando, mas a única coisa que

vinha na minha cabeça era que, à noite, o nojento do

Mário Antônio ia sair com a Lúcia Helena, e eu que nem

bobo lambendo o dedo. Depois do almoço, resolvi subir a

pé a avenida atrás da estação da estrada de ferro. Toda vez

que eu ficava nervoso, ia até a caixa-d'água. Chegando lá,

subia a escadinha de ferro, acho que uns trinta metros, e

olhava a cidade de cima. Era uma ventania danada, e o

medo que eu sentia subindo me fazia esquecer das coisas.

Eu nunca chegava na beirada, porque o vento podia me

derrubar. Mas, naquele dia, fui chegando, chegando, e por

dentro eu tremia de medo. Depois, eu recuei e deitei de

costas no cimento e, enquanto fiquei suando frio,

pensando que podia ter morrido, tive umas idéias malucas.

Por exemplo: o Mário Antônio podia ganhar a DKW

vermelha e depois morrer num desastre, quando estreava o

carro. Pensei também que podia ficar forte, levantando

peso, e dar uma surra nele. Quando eu parei de pensar

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aquelas besteiras e desci, já estava mais calmo. Decidi

então ir com eles; não era culpa de Lúcia Helena que o

bestalhão tivesse convidado pra tomar sorvete. Se eu não

fosse com eles, só ia dar vantagem pro Mário Antônio.

Piada Besta

Acho que ele não gostou nada quando me viu. Pensando

que eu não fosse, não é, seu idiota?

— Você por aqui, Bebeto? — perguntou ele com a maior

cara-de-pau do mundo.

— Você por aqui, Mário Antônio? — respondi, tirando

pêlo dele.

Nisso Lúcia Helena veio, e, juro por Deus que ela estava

bonita às pampas, com um vestido amarelo que eu tinha

visto antes.

— Demorei muito? — ela perguntou.

— Até cresceu teia de aranha no sapato — respondeu a

besta, dando uma de engraçadinho. Coisa que não gosto é

de gente que dá resposta desse tipo. É o que acontecia com

tio Cenoura: além de chato, ele tinha a mania de contar as

piadas

mais sem graça desse mundo:

— Não senta no pufe que faz "puf".

— Não come o bolo que dá bolo.

E quando a gente ia na casa dele então? O tio Cenoura

perguntava:

— Quer um pedaço de bolo de chocolate?

Está na cara que a gente queria. Quem era bobo de

recusar?

— Aceito um pedacinho, tio.

— É melhor não aceitar, porque não tem...

Ele ria que nem bobo, e eu ficava doido da vida com ele. E

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não é que o Mário Antônio vinha com umas parecidas com

as do tio Cenoura? No caminho, contou mais três de

deixar qualquer um maluco. Vendo que eu não ria, me

perguntou:

— Que que o Bebeto tem? Parece emburrado...

— É que não gostei mesmo da piada.

Pensam que ele desconfiou? Veio com outra, a piada mais

velha do mundo. Mas o que me deixou com raiva é que

Lúcia Helena não parava de rir.

Sorvete de Abacaxi

Sorte que a gente chegou logo na sorveteria. O besta foi

logo pedindo duas bananas split. Virou pra mim e

perguntou:

— O que que o garoto vai querer?

Garoto a mãe!

— Beto adora de morango — disse Lúcia Helena.

— Não quero de morango, quero de abacaxi — disse só

pra contrariar.

— De abacaxi ou de abaixa aqui? — Ele gozou de novo e

começou a rir feito doido. Depois, tirou uma nota novinha

do bolso. Quando ia pagar, avancei na frente:

— Pode deixar que eu pago.

— Eu que convidei — ele disse.

Mas eu já tinha jogado a grana no balcão. O besta deu uma

risada e disse:

— Deixa para lá. A próxima rodada eu pago.

A gente sentou numa mesa, e era como se eu não existisse.

O nojento não parava de falar, o tempo todo voltado pra

Lúcia Helena. E só contando vantagem: que era o melhor

aluno da classe, que resolvia qualquer problema de Física,

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de Química. Quando soube que Lúcia Helena tinha

dificuldade em Geometria, prometeu que no domingo ia

na casa dela ensinar:

— A maior mamata do mundo. Te ensino, você não

esquece mais.

— Você jura que ensina? A gente tem uma prova na terça,

não é, Beto?

Como sempre, ele não me deixou falar. Entrou na frente e

disse:

— Então, estamos combinados? Vou na sua casa logo

depois do almoço.

Quando a gente saiu, meu estômago doía feito doido.

Acho que era do sorvete. E ele não parava de falar. Foi só

Lúcia Helena contar que tinha ido ao Rio de Janeiro, e ele

desembestou. Disse que conhecia todas as praias do Rio,

que era campeão de surfe. E eu fervendo por dentro:

campeão de surfe uma ova! Campeão de papo! Nojento!

Uma hora resmunguei tão alto que ele parou no meio da

rua e perguntou invocado:

— Que é que foi, Bebeto? Está passando mal?

Eu ia responder: sua conversa está me enjoando o

estômago, mas resolvi ficar quieto. Senão a coisa

terminava em pau. Chegando na casa de Lúcia Helena, vi

que o idiota queria ficar conversando com ela no portão.

Pensei em ficar, mas estava com o saco cheio. Disse tchau

pra Lúcia Helena

— É cedo ainda, Beto — ela falou.

— Estou cansado, vou pra casa dormir.

Virei as costas e fui andando. Então, ela disse:

— Vem estudar Matemática com a gente amanhã...

De costas, respondi:

— Não posso, tenho um compromisso.

Como eu ia muito devagar, ainda escutei o nojento

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perguntar pra ela:

— Que é que tem o garoto?

Uma vitória, uma derrota

Claro que não fui estudar Matemática na casa de Lúcia

Helena. Fiquei a tarde toda na cama, de ouvido grudado no

rádio, escutando Corinthians e Palmeiras. De vez em

quando, vinha uma risada da casa dela. Aumentei o

volume do rádio, tão alto que mamãe veio perguntar se eu

estava doido.

— O que vão dizer os vizinhos?

Que se danassem os vizinhos! Mas abaixei o volume do

rádio. No fim, o Corinthians ganhou de 2 a 1. Já pensou se

perdesse? Aí que eu ia ficar cabreiro mesmo. Tomei um

banho e fui no Cine Cacique. Era um filme de terror. O

maior barato a história do cientista louco que tinha

inventado uma máquina que dissolvia o corpo da pessoa,

pra ela aparecer numa outra máquina, vivinha da silva.

Mas quando o cientista experimentou nele, um mosquito

entrou na máquina. O maior barato: quando ele saiu do

outro lado, tinha corpo de homem e cabeça de mosquito.

Fiquei pensando que seria legal uma experiência daquela:

já pensou misturar o Mário Antônio com um porco? Na

saída encontrei o Susigan, |e a gente foi tomar uma Coca

no Ponto Chic. Aí o Susigan perguntou:

— Você não está mais namorando com a Lúcia Helena?

Pô, ele tinha que lembrar!

— Nunca namorei com ela.

— Mas estava a fim, não é? Vai dizer que não.

— Só amizade, Susigan.

— Bom que seja só amizade — disse ele — porque meu

primo está a fim dela.

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Fiquei branco que nem papel. Eu sabia disso tudo, mas por

que ele tinha de me lembrar isto justo agora? Senti um frio

dentro de mim, quase engasguei com a Coca. Disfarcei e

disse pra ele:

— O que eu tenho que ver com isto?

Mas eu tinha que ver sim. Tanto que de noite eu não

consegui dormir direito. Fiquei só pensando que era um

besta. Por que não tinha pedido a Lúcia Helena em

namoro? Claro que eu estava a fim dela. E que ódio que eu

sentia do Mário Antônio. O nojento vinha com aquela

conversa toda e ganhava a Lúcia Helena de mim. Ainda

por cima, sonhei que eu estava namorando com ela,

quando vinha o Mário Antônio numa DKW vermelha e a

levava embora pra São José dos Campos.

Fugindo de Lúcia Helena

Na segunda, matei aula. Na terça, não passei na casa dela

como eu costumava fazer. Cheguei atrasado na escola. Na

prova de Matemática, Lúcia Helena passou cola pra mim.

Nem olhei o pedaço de papel que ela mandou. Adivinha o

que aconteceu? Tirei zero em Álgebra. Claro, eu não tinha

estudado nada mesmo. Mas preferia tirar zero do que tirar

uma nota boa com o que o besta tinha ensinado pra ela. Na

saída, nem esperei Lúcia Helena e fui correndo pra casa.

Na quarta, matei aula de novo. Na quinta e na sexta,

ganhei uma suspensão de dois dias. Foi assim: D. Fiolli

me chamou na Diretoria e perguntou:

— O senhor anda faltando demais. Que desculpa vai

inventar agora?

Desta vez eu não queria mentir.

— Matei aula.

— Pode-se saber por quê?

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— Por nada.

— Como por nada? — Ela perdeu a paciência e gritou: —

Onde o senhor foi?

— Fiquei zanzando por aí.

— Então, vai zanzar por mais dois dias!

Nem reclamei. Até que era bom, assim não tinha que ver a

Lúcia Helena. A única coisa chata é que eu tinha de

acordar cedo e fingir que ia pra escola. Mas como fazia

calor, na quinta aproveitei pra nadar. Na sexta, fui com o

Batata roubar laranja no sítio do seu Bertoldi.

Roubando laranja

Acho que seu Bertoldi sabia que a gente roubava laranja.

Tinha tanta laranja que ele nem ligava. A gente podia

roubar à vontade. Mas, naquele dia, o Batata estava

atacado. Queria de qualquer jeito levar umas uvas

também. O Batata é assim: quando encasqueta com uma

idéia, vai até o fim. Às vezes, até pensava que ele era meio

pirado. Mas eu gostava dele, porque era legal às pampas.

Então eu disse:

— Falou, Batata, mas se o velho pega a gente...

— Ele que vem pegar. Meto o braço.

O Batata era forte pra burro, e se falou que metia o braço,

metia mesmo. Não esqueço o dia que o Celso Cadela e o

Fragoso chamaram ele pra briga. Encarou os dois.

Primeiro pôs o Fragoso pra correr. Depois, o Celso Cadela

quis dar uma tijolada nele. O Batata quase fez o Celso

engolir o tijolo.

Quando a gente estava pegando as uvas, levamos o maior

susto: seu Bertoldi apareceu com uma espingarda na mão.

— Seus moleques sem-vergonha! Encho vocês de

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chumbo!

Fiquei gelado. O Batata já estava querendo ir em cima

dele, mas quando seu Bertoldi apontou a espingarda,

desistiu. A gente estava mesmo perdido. Tentei explicar:

— A gente não pegou quase nada, seu Bertoldi.

— Cala essa boca, moleque desgraçado!

Seu Bertoldi mandou a gente entrar na camionete. E dizia

que ia levar a gente pra Delegacia.

— Ladrões como vocês só merecem cadeia!

O Batata parecia que não estava com medo, mas eu estava

tremendo. Então, eu disse:

— A gente não fez por mal.,seu Bertoldi.

— Na cadeia! — ele gritava. — Na cadeia que vocês vão!

Mas chegando na cidade, em vez de ir pra cadeia, seu

Bertoldi levou o Batata na casa dele. Coitado do Batata: o

pai dele era um monstro, maior que ele. Quando seu

Bertoldi voltou, eu escutei os berros do pai do Batata. Mas

o pior era eu: papai não ia me bater, mas só de agüentar

ele falando o mês inteiro...

Ladrão

Pior do que eu pensava: quando desci da camionete com

seu Bertoldi me segurando o braço, morri de vergonha.

Lúcia Helena estava no portão conversando com D.

Constância. Nem deu pra eu me esconder. Papai levou um

susto quando viu a gente. Eu não sabia onde enfiar a cara.

Mamãe veio da cozinha, e o Lelo ficou sentado no sofá me

gozando longe. Foi mamãe que falou:

— Por favor, seu Bertoldi, sente-se.

Papai perguntou:

— O que aconteceu, seu Bertoldi?

— Peguei seu menino e o filho do Almeida roubando

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fruta.

Papai ficou branco que nem cera. Se eu já estava com uma

vergonha danada, fiquei com mais vergonha ainda, quando

vi a cara dele. Seu Bertoldi disse:

— Se fossem só as laranjas, nem me importava, seu

Tonico. Mas me estragaram as parreiras!

Papai pós a mão no bolso e perguntou:

— Quanto lhe devo, seu Bertoldi?

— Não é questão de dever, seu Tônico. As uvas não têm

preço...

Papai insistiu:

— Faço questão de pagar os prejuízos.

— Assim, o senhor me ofende, seu Tônico. Já disse que

não é questão de preço.

Sei que mamãe pediu mil desculpas pro seu Bertoldi,

porque papai não conseguia nem falar. E eu ali, todo sem

jeito. Quando eles foram levar seu Bertoldi até a porta, o

Lelo me disse:

— Só faltava essa. Agora, a gente tem um ladrão em casa.

Não falei nada, porque sabia que ele estava com a razão.

Por que a gente não tinha roubado só as laranjas? Acho

que eu estava é com raiva da Lúcia Helena. Já que estava

tudo ruim, indo mal na prova e matando aula, queria ver se

a coisa ficava pior,

— Como é que o senhor explica isto?

Quando papai me tratava de senhor, é porque a coisa

estava preta mesmo. Então, ele me disse:

— O senhor se retire para o seu quarto. Amanhã,

conversaremos.

Fui para o quarto sem falar nada. No caminho, ainda

escutei papai dizendo:

— A gente se mata para educar um filho e acaba dando

nisso: um ladrão.

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— Tônico! Não fale uma coisa dessas!

— Um ladrão! Isso mesmo, um ladrão!

Broncas

No sábado, papai me deu uma bronca danada, mas o pior

que tive de agüentar aquela história por mais de um mês.

Papai era assim: tinha uma memória de elefante, nunca

esquecia as coisas. Se ele tivesse gritado comigo e até me

dado uma surra, como o pai do Batata fez, tudo bem.

O saco era ele falando no almoço, falando no jantar. Mas

quem mandou aprontar? No domingo, nem saí de casa,

porque ele tinha mesmo proibido. Na segunda, cheguei

atrasado na escola, porque estava com vergonha de Lúcia

Helena. Entrei na classe e fui sentar no fundão. Ela ainda

me procurou com os olhos, mas fingi que estava copiando

as coisas da lousa. No recreio, entrei no banheiro e só saí

depois do sinal. E não consegui prestar atenção nas aulas:

nó ficava pensando no seu Bertoldi pegando no meu

braço, como se eu fosse mesmo um ladrão, e a Lúcia

Helena vendo tudo da casa dela. Quando o professor de

Matemática entregou as provas, Lúcia Helena ficou

espantada com a minha nota.

Na saída, ela me alcançou no corredor:

— Beto.

Eu continuei andando, como se não tivesse escutado. Ela

me segurou o braço:

— Que que aconteceu, Beto?

Olhei com tanta raiva, que ela me largou. Mas ainda

insistiu:

— Que que foi, Beto?

— Nada — respondi, desviando o rosto.

— Por que jogou fora a cola?

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— Que você tem com isto? — respondi meio bruto. Ela

me olhou espantada e perguntou:

— Que que aconteceu com você, Beto? Está tão

diferente...

— Nada — eu disse e comecei a andar. Lúcia Helena me

segurou de novo o braço. Eu falei pra ela: — Me larga,

que estou com pressa.

Lúcia Helena então sorriu meio sem graça;

— Espera aí, Beto. Está bravo comigo por causa do

Marinho?

Tive vontade de dizer que sim, mas eu estava tão por

baixo que fiquei quieto. A gente é assim mesmo: porque

quer bancar o durão, perde a chance de falar as coisas que

tem que falar. Eu devia ter falado que estava com ciúme

daquele lazarento e que eu gostava dela. Que que custava

dizer? Mas não, fiquei ali que nem besta. Mas ela

adivinhou logo o que era e me disse:

— Larga de ser bobo. Se é por causa dele, está perdendo

seu tempo. A gente é só amigo.

— Problema seu. — Eu não queria dar o braço a torcer.

— Beto... — ela ainda tentou falar, mas fingi que não

escutei e saí correndo pra rua.

Vida sem rumo

Parecia que eu estava vivendo sem rumo. Não tinha

vontade fazer nada. Achava as aulas uma droga e só não

faltava mais porque papai tinha sido chamado na escola

pra conversar com D. Fiolli. No fim de semana era pior,

porque o nojento vinha de São José e ficava dando em

cima de Lúcia Helena. Pensei até em falar com ela, mas

meu orgulho não deixava. Lúcia Helena também não me

procurou mais, depois que eu tinha sido grosso com ela.

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De saco cheio, não estudava mais. Ficava sentado no

fundão, pensando nas coisas, rabiscando no caderno. Acho

que virei o pior aluno da classe. O Prof. Aristides só me

gozava, e eu que tinha tanto ódio dele nem respondia. Se

fosse responder. . . Até em redação, comecei a relaxar:

nunca fazia as trinta linhas que ele pedia. Parava na

primeira ou na segunda. O que eu ganhei de zero não

estava escrito. Papai foi chamado na escola de novo,

gritou comigo.

Eu sabia que ele estava certo, mas eu não sentia vontade

de fazer nada. A única coisa que eu gostava de fazer era

sair com o Batata. A gente tinha descoberto um bar perto

da estação que vendia cerveja sem perguntar a idade. Eu

nunca tinha grana, porque papai não dava mais encomenda

pra eu entregar. Mas o Batata roubava dinheiro do

armazém do pai dele, e a gente ficava bebendo e falando

bobagem. Batata dizia que não via a hora de largar a

escola e se mandar pra São Paulo. Foi nessa época que eu

comecei a pensar também em ir embora. Mas andava tão

desanimado que eu nem sabia como ir e nem sabia se tinha

vontade mesmo de partir.

Voltando pra casa, não conversava com ninguém. Era

como se papai, mamãe e o Lelo não existissem. Custava

pra dormir e ficava pensando naquelas coisas malucas que

eu gostava de pensar. Mas, às vezes, sem que eu quisesse,

pensava em Lúcia Helena e, então, aí é que eu ficava triste

mesmo.

Prova de história

No outro dia, tive prova de História, e eu não tinha

estudado nada. Caiu um ponto sobre os egípcios: Ramsés

III. Fiquei ali pensando, pensando, mas não lembrava nada

daquela joça. Eu só lembrava daquele livro legal 0

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Egípcio, mas do tal do Ramsés, necas. E a D. Abud ali,

não tirava o olho de mim. Já tinha arriscado duas vezes

pegar o livro, mas a Matusalém não largava do meu pé.

Então, resolvi escrever o que eu tinha na cabeça e depressa

enchi a folha:

Ramsés III era filho de Ramsés II e neto de Ramsés I.

Como era muito jovem quando seu pai morreu, o faraó

Necao subiu ao trono em seu lugar e descobriu o caminho

para gs índias com suas caravelas. Quando Ramsés

completou vinte e um anos, tornou-se faraó e casou com a

princesa Nefertite. Esta rainha era muito bonita e não

gostava do Egito, onde só tinha deserto. Nefertite tinha

nascido na Babilônia, uma terra cheia de jardins e

florestas. Então, Ramsés, que era gamado nela, mandou

construir as pirâmides, que tinham em volta os famosos

Jardins Suspensos. As pirâmides eram feitas de pedras de

mais de trinta metros cada e tinham vários quartos, salas

e banheiros. No começo, Nefertite gostou das casas de

verão que o Ramsés mandou construir para ela, mas como

fazia muito calor no Egito, ela ficava maluca no Verão.

Depois veio a grande seca que durou cem anos e matou

todas as plantas dos Jardins Suspensos. Nefertite, de

desgosto, suicidou-se com uma cobra venenosa. Ramsés

III ficou tão triste que mandou invadir a Judéia e trouxe

os judeus como escravos para seu país. Mas foi

amaldiçoado por Deus, que lançou as sete pragas no

Egito. Por causa disso, Ramsés III teve de abdicar em

favor do filho mais velho, Ramsés IV.

Achei o maior barato minha prova. Na saída, D. Abud me

olhou com uma cara... Acho que ela pensou que eu ia

entregar em branco. Mas o pior de tudo aconteceu na

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semana seguinte, quando ela trouxe as provas corrigidas.

Salada completa

— Seu Roberto, o senhor gosta de salada completa?

D. Abud estava com a minha prova na mão.

— O senhor misturou alhos com bugalhos.

D. Abud era uma turca nariguda, que usava uns óculos que

pareciam fundo de garrafa. Quando falava com a gente,

começava a cuspir. O Paulo vivia dizendo que um dia ele

ia levar um guarda-chuva na classe, pra se proteger do

cuspe.

— 0 senhor é idiota? Débil mental?

Parecia que ninguém estava respirando. Eu só escutava o

ronco de D. Abud. Ela falava que sofria de asma, e por

isso gente tinha posto o apelido nela de Locomotiva.

— Responda, seu Roberto. O senhor é idiota?

— Não — eu disse.

— Como não? — ela gritou. E começou a ler pedaços a

minha prova pra classe. Nunca senti tanta vergonha na

vida. Todo mundo começou a rir.

— Jardins Suspensos no Egito? Onde se viu? Casa de

verão do faraó? Nefertite casada com Ramsés III? Necao

descobrindo o caminho para as índias? Uma loucura, seu

Roberto!

E a coroa não parava de gritar. Estava certo, eu tinha

escrito besteira, mas ela não precisava ficar falando aquilo

na frente dos outros. Mas D. Abud gostava de fazer isto.

Por qualquer coisa xingava a gente de tudo quanto é nome.

— O senhor é um débil mental! Só pode ser isto. Nunca vi

tanta besteira junta.

Como castigo, ela me mandou copiar da enciclopédia tudo

sobre Ramsés III, Nefertite e o Egito. Tudo bem, assim eu

aprendia. O que eu não gostei foi dela me xingar na frente

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de todo mundo.

Um palavrão

Na saída, ainda por cima, a turma começou a me gozar.

Estava tão nervoso que chamei o Paulo pra briga, o

coitado do Paulo que era aleijado. Mas eu queria bater em

alguém. Por isso, quando Lúcia Helena chegou perto de

mim, fiquei com vontade de falar um palavrão. Ela me

disse:

— Não acho você um idiota...

— Então me acha um débil mental, não é? — gritei com

raiva.

Vi que ela estava quase chorando. Lúcia Helena balançou

a cabeça:

— Você sabe que eu não acho isto. Você sabe...

Mas eu não esperei ela acabar de falar. Xinguei o palavrão

mais sujo que eu conhecia. Lúcia Helena ficou branca que

nem papel e me disse:

— Seu nojento...

Virei as costas pra ela e me mandei. Que ela se danasse.

Era melhor a gente brigar de vez. Fora da escola, o Paulo

estava me esperando. Ele me disse:

— Repete o que você falou na classe, Beto.

Eu tinha xingado a mãe dele. Então, xinguei de novo.

Paulo me deu um tapa. Eu estava nervoso, mas não queria

brigar com ele. Então falei uma coisa nojenta:

— Não brigo com aleijado.

Aí, foi ele que ficou doido e me cuspiu. Isso eu não podia

agüentar e fui pra cima dele. O Batata me segurou e disse:

— Sou teu amigo, Beto, mas se encostar a mão nele, te

meto a mão.

O Batata dava dois de mim, mas eu não via nada na minha

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frente e dei um tapa na cara dele. E o Batata só me

segurando:

— Pára com isso, Beto, pára com isso.

Uma hora ele não agüentou e me deu um soco. Caí de

costas com a pancada. O Batata mesmo me ajudou a

levantar e disse:

— Desculpa, Beto, eu não queria te machucar.

Empurrei o Batata, limpei o sangue da boca e fui pra casa.

Ele tinha razão: covardia minha querer bater no coitado do

Paulo.

Na fossa

Depois daquele dia, relaxei de vez. No fim do ano, tomei

bomba. Mas o pior de tudo é que eu tinha virado um

cafajeste. Nem os professores que eram legais eu

respeitava. Foi o que aconteceu com a professora de

Geografia, que era a bondade em pessoa. Nunca tinha me

maltratado. Pelo contrário, sempre ajudava a gente. Todo

mundo gostava dela na escola. Eu não sei o que D. Elisa

falou na classe, e eu tirei sarro dela. Ainda por cima, fiquei

jogando papel nos outros e dando risada, até que ela me

expulsou da classe. Quando ia saindo, D. Elisa disse:

— Não precisa ir à Diretoria. Depois da aula, quero

conversar com você.

Lá vem sermão, pensei. Acho que preferia falar com a D.

Fiolli. Assim, ela me xingava e me dava umas férias. Na

saída da aula, D. Elisa me chamou:

— O que está acontecendo com você, Roberto?

— Nada, D. Elisa — respondi.

— Tem certeza?

— Nada mesmo, D. Elisa.

— Nunca tive queixa de você. Sempre foi um menino

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educado.

Eu não estava a fim de conversar. Além disso, eu tinha

vergonha de escutar D. Elisa falando aquelas coisas, ela

que era a pessoa mais legal do mundo.

— Sei que você não está querendo me ouvir. Não tem

importância. Assim mesmo, tenho que falar o que vou

falar. Depois você pensa um pouco no que eu lhe disser.

Eu não queria escutar, mas escutei tudo. D. Elisa me disse

que eu devia estar tão magoado, sofrendo tanto estava

machucando eu mesmo e os outros. E quando a gente

ficava assim, acabava magoando quem mais gostava.

— Você pensa que magoa as pessoas de quem não gosta?

O contrário. Há um escritor que diz uma coisa muito

bonita sobre isto. Chama-se Lúcio Cardoso (*). Num

romance, ele disse que a gente não magoa as pessoas que

nos são diferentes, mas só aquelas que nos tocam

profundamente o coração...

Eu nem sabia o que fazer. Ficava riscando a tampa da

carteira com a unha. Me deu uma vontade doida de falar

pra ela o que estava acontecendo comigo. Mas será que eu

sabia? Um pouco eu sabia, mas não quis dizer. Ela iria me

achar um perfeito idiota.

— Você é um menino bom, Roberto...

D. Elisa levantou, saiu da sala e me deixou riscando a

tampa da carteira. Ela tinha razão: por causa de tudo que

acontecendo comigo, eu estava magoando as pessoas que

mais gostava no mundo. Mas o que eu podia fazer?

(*) Lúcio Cardoso. Falecido em 1968, autor de vários

romances (N. do E.)

Namoro firme

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Depois fiquei sabendo que Lúcia Helena estava

namorando firme aquele trouxa. Acho que foi o Susigan

que me disse. Nem lembro o que que eu respondi pra ele.

Se ela está namorando o Mário Antônio, tudo bem, o pior

é que ela fazia questão de mostrar que estava namorando o

besta. Todos os sábados, eles ficavam no portão da casa

dela. Pô! Tinha tanto lugar bom pra namorar na cidade, e

eles iam namorar bem no meu nariz! Quando chegava o

sábado, pra não ver os dois, eu pulava o muro dos fundos,

atravessava o quintal de seu Artur e saía pela outra rua.

Mas nem sempre eu podia fazer isto: às vezes, seu Artur

estava podando as árvores, e eu tinha que ver aquela idiota

beijando o Mário Antônio. O que me dava de raiva não

estava escrito.

Foi nessa época que comecei a namorar a Maria Galinha.

A Maria Galinha era a menina mais chata da escola, feiosa

como ela só e vivia dando em cima de todo mundo. Eu dar

bola pra bagulho? Mas estava tão louco da vida que a pedi

em namoro. Claro que ela topou. Só que em vez de

namorar a Maria Galinha no jardim, eu fazia questão de

namorar no portão de casa. Ela falava:

— Por que a gente não pega um cinema, Beto?

— Não tenho grana — respondia.

Era verdade, eu não tinha grana nenhuma, mas, mesmo

que tivesse, ia continuar namorando a Maria Galinha no

portão de casa. Era só ver a Lúcia Helena chegar com o

Mário Antônio, e eu beijava a Maria Galinha. E D.

Constância veio reclamar em casa:

— A gente não pode pôr a cara na janela e vê os dois

grudados.

— Então, por que a senhora olha? Não olhe, D.

Constância — mamãe disse.

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Mas papai me deu uma bronca. Nem liguei. Que D.

Constância se danasse: a casa era minha, e eu fazia o que

queria. Um dia, reparei que Lúcia Helena e o lazarento não

estavam mais no portão. Então, parei de namorar a Maria

Galinha em frente de casa. Mas ela já estava cheia de

mim, e me deu o fora. Pensam que liguei? Não estava nem

aí com ela. Dei graças a Deus, porque eu não agüentava

mais a palhaçada. Mas pelo menos uma coisa boa tinha

acontecido: não ia ver mais aqueles dois na minha frente.

Perdão

Era o que eu gostaria que acontecesse, mas aconteceu tudo

diferente. Acabei encontrando com a Lúcia Helena outra

vez, a coisa mais chata do mundo. Foi assim: eu estava

voltando pra casa e vi seu Nestor. Não tive jeito de passar

reto, porque ele sempre tinha sido legal comigo. Se fosse

D. Helena, eu passava reto, mas seu Nestor era outra coisa.

Tanto que ele quis falar comigo:

— Como vai, Beto? Há quanto tempo...

— Tenho andado ocupado, seu Nestor...

A maior mentira, eu não fazia nada o dia inteiro.

— Não veio mais visitar a gente.. .

Acho que ele sabia por que: como era um cara bacana, não

insistiu, e assim eu não tive de falar mais nada. Seu Nestor

gostava de ficar contando coisas de seu tempo de nino.

Naquele dia me contou que tinha roubado muita laranja

quando era moleque. Percebi que ele sabia do que tinha

acontecido comigo. Mas não estava querendo dar lição de

moral, porque me disse:

— Afinal, diga uma coisa, Beto: qual o menino que não

roubou laranja? Se não roubou, não teve infância.

Depois, no meio da conversa, D. Helena chamou seu

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Nestor pra jantar. Ele me convidou, mas eu disse que

precisai entregar uma encomenda pra papai.

— Mas prometa que um dia desses vem jantar com a

gente.

Eu prometi, mas juro que não queria mais botar os pés

naquela casa. Então, eu ia indo embora, quando vi a Lúcia

Helena e a besta chegando. Fiquei gelado, porque eram as

últimas pessoas do mundo que eu queria encontrar. Virei a

cara pra eles, mas Lúcia Helena parou na minha frente e

me perguntou com raiva:

— Como é? Não está mais namorando aquela galinha?

O sangue me subiu na cabeça. Qualquer pessoa podia falar

o que ela tinha falado, porque eu não gostava mesmo da

garota. Eu tinha namorado a Maria Galinha só pra fazer

fita pra Lúcia Helena. Mas fiquei louco da vida quando ela

veio se meter na minha vida. A primeira coisa que pensei

foi xingar um palavrão, mas disse outra coisa muito pior:

— Mais galinha é você que fica dando amasso no portão.

Precisava ver a cara dela: ficou vermelha e não falou nada,

mas o Mário Antônio veio pra cima de mim. Beto, você

não pode ter medo desta besta, falei pra mim mesmo.

— Repete o que você disse!

— Disse que ela é uma galinha.

Aí ele ficou louco da vida. Pensei até que fosse me dar um

soco na cara. Em vez disso, pegou no meu braço esquerdo

e começou a torcer.

— Pede perdão.

— Não peço.

O lazarento torceu mais meu braço e forçou meu corpo pra

baixo.

— Ajoelha e pede perdão.

0 braço começou a doer pra burro, e eu fui ajoelhando,

mas eu não ia pedir perdão, nem que ele me arrebentasse.

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Então, Lúcia Helena disse pra ele:

— Pára com isso, Mário!

— Vai pedir perdão, Lucinha, senão eu quebro o braço

dele.

— Pára com isso — ela disse de novo —, não quero

perdão nenhum.

Quando eu estava quase de joelhos, aquele lazarento

bufando na minha orelha, vi um pedaço de tijolo no chão.

Agarrei-o e, com toda a força que eu tinha, dei uma

pancada na testa do Mário Antônio. Ele deu um berro e

largou de meu braço. Lúcia Helena começou a gritar, e eu

me mandei correndo dali.

Em família

Não sei quanto tempo fiquei andando, antes de voltar pra

casa. Juro por Deus que eu estava assustado. O braço doía

pra burro, mas eu estava é preocupado com o Mário. E se

tivesse quebrado a cabeça dele? Sei que só à noite voltei

pra casa. Todo mundo estava jantando. Antes de entrar na

cozinha, escutei papai dizendo:

— Não veio até agora porque aprontou mais uma, Nena.

Deve estar vadiando por aí.

— Além de roubar laranja, ainda fica machucando os

outros — disse mamãe irritada.

Até a mamãe, pensei. Aí o Lelo falou:

— Acho que ele fez bem. Esse tal de Mário Antônio não é

flor que se cheire.

— Ninguém consegue nada com violência — disse

mamãe.

— Nisto, o Lelo tem razão. O Beto foi provocado. O

Ataliba disse que o rapaz estava torcendo o braço dele —

papai falou.

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— Alguma coisa de errada o Beto deve ter feito.

— Fez nada, mamãe, aquele cara é nojento mesmo.

— Mas precisava quebrar a cabeça do menino?

D. Helena disse que ele levou quatro pontos!

Entrei na cozinha. E foi só me ver que papai começou:

— Por onde andava?

— Por aí — respondi.

— Então, o senhor está dando agora uma de valente!

— Além de ladrão, assassino — disse o Lelo.

— Pode-se saber por que fez isto?

— Deixa o menino jantar primeiro, Tónico.

Comecei a comer, mas papai não parava de falar. Eu

estava tão cansado que nem prestei atenção. Só escutava

coisas como: vagabundo, marginal, arruaceiro.

Depois do jantar, fui dormir. No quarto, encontrei o Lelo

que começou a me dar bronca:

— Fica-se metendo com gente grande, é isso que dá.

Qualquer dia, vai levar uma surra que não tem tamanho.

— Qual é a sua, Lelo? Pensa que não escutei o que você

falou no jantar?

O Leio ficou todo sem graça.

— O que foi que eu falei?

— Você disse que fiz bem, e que o Mário é nojento.

Lelo ficou quieto, mas logo depois começou a rir e me deu

um tapa nas costas:

— É isso aí, garoto. Se você não tivesse dado a tijolada,

era eu que tinha que quebrar a cara daquele fresco.

Lelo nos States

O Lelo, fora o Batata, era o único amigo que eu tinha. Por

isso, fiquei triste à beça quando ele disse em casa que

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tinha ganho uma bolsa de estudos pros States. O Lelo era

bamba em Inglês e já dava aula particular há muito tempo.

Depois, conheceu um gringo que arrumou a bolsa pra ele

numa cidade chamada Nashville, um lugar que o gringo

explicou, tinha música caipira e que era muito bonito.

Todo mundo ficou contente com o que o Lelo tinha

conseguido. Até seu Nestor foi em casa cumprimentá-lo e

deu pra ele um casaco bacana, de náilon:

— Faz muito frio nesta cidade. Na última vez que estive

lá, até caía neve.

A gente só falava na viagem do Lelo. Ele estava muito

contente arrumando as malas, comprando coisas. Mas

quando foi chegando o fim do mês, a gente foi ficando

triste. Umas duas vezes, peguei mamãe chorando.

No dia da despedida, eu não quis ir na estação. Fui falar

com o Lelo no quarto. Ele me abraçou e disse:

— É isso aí, garoto. Agora é você que tem de cuidar dos

velhos.

Me deu um nó na garganta: agora é que eu ficava sozinho

mesmo. Descobri que eu gostava do Lelo como nunca.

Carta dos States

A primeira carta custou pra chegar. A gente já não

agüentava mais de saudade. Um dia, voltando da escola,

encontrei mamãe toda contente:

— Chegou carta do Lelo!

Era uma carta bem grande que eu li três vezes.

O Lelo contava da viagem de avião, as coisas bacanas que

ele tinha comido e bebido. Mas o mais legal era a cidade

de Nashville. Ele tinha mandado uma foto da casa, que era

que nem a gente vê em filme americano. Tinha um

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gramado bem grande na frente e era toda branca. O Lelo

contou que a família com quem ele vivia chamava-se

Harmer, e que Mr. Arthur e Mrs. Laura tinham dois filhos,

uma moça chamada Ann e um menino chamado Tom. Ann

era bonita às pampas, até parecia artista de cinema. O Lelo

contou ainda mais coisas: que a comida era uma joça, mas

que o resto estava legal e que logo vinha outra carta.

No jantar, mamãe comentou com papai:

— Bem que a gente podia mandar umas comidas pro Leio.

— Deixa de ser boba, Nena. Estraga na viagem. Além

disso, é bom que ele se acostume. Quando eu...

E papai começava a contar outra vez aquela história de

sempre: que, quando jovem, ele não enjeitava comida, que

os rapazes de hoje eram enjoados. Mas eu nem prestei

atenção no papo dele, porque estava começando a ler a

carta do Leio pela quarta vez.

Mamãe doente

Eu já falei que mamãe sofria de alguma coisa e que no

começo a gente pensava que era fita. Mas não era fita,

porque o médico disse que ela precisava de muito repouso.

Mamãe não parecia nada bem. Às vezes, ficava branca

como se sentisse falta de ar. Outras vezes, ficava sentada

um tempão com a mão no peito.

Papai chamou de novo o Dr. Hemórgenes. Não sei o que

ele disse pro papai, mas acho que não era coisa boa. Toda

vez que papai via mamãe trabalhando, ele dava uma

bronca nela:

— O Dr. Hemórgenes disse que não pode fazer tanto

esforço, Nena.

— Que é isso, Tonico? Quer que eu me sinta uma inútil?

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Mas mamãe, em vez de melhorar, piorou e caiu de cama.

Então papai teve de arrumar empregada. Papai parecia

cansado e nem comia direito. Não que a empregada

cozinhasse mal, mas a gente estava acostumado com a

comida de mamãe. Acho que até eu estava sentindo isto,

porque comecei a emagrecer. Mamãe ficava brava com

papai e queria levantar da cama:

— Não posso deixar a casa na mão da Lourdes.

— Calma, Nena. A Lourdes está dando conta do recado.

Aí que a gente sentia falta de mamãe. A Lourdes fazia

tudo direito, mas não era como mamãe. Não dava nem

vontade de voltar pra casa. As coisas estavam

desarrumadas, papai parecia um tonto, andando de um

lado pro outro, sem saber o que fazer. Ainda por cima,

dava uma pena danada ver mamãe daquele jeito. Ela que

gostava de acordar cedo e não parava um minuto...

Boi bravo

Mamãe tinha aquele jeito fraco, mas era uma pessoa muito

forte. Ela gostava de contar que quando moça dava aula

numa escola na roça.

— Naquele tempo, Beto, não tinha estrada. E fazia sol,

fazia chuva, a gente tinha que chegar na escola.

Ficava imaginando mamãe andando por aquele mato. Não

dava nem pra acreditar.

— Um dia, levei o maior susto da minha vida. Para

encurtar caminho até a escola, eu costumava pular umas

cercas e andar no meio do pasto. Quando eu via uma vaca,

era só levantar a sombrinha que ela fugia. Mas, daquela

vez, encontrei com um touro bravo. Ele me olhou com

aquele olhão feio e começou a riscar o chão com a pata.

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Eu só tinha a sombrinha. Adivinha o que aconteceu?

— ...eu cheguei e peguei o bicho na unha — disse papai.

— Mentiroso. Eu nem o conhecia... — e mamãe riu e

continuou a contar. — Fui me afastando devagarinho na

direção de uma árvore e, de repente, comecei a correr. E o

touro atrás de mim...

Mamãe começava a rir:

— ...acho que nunca corri tanto em minha vida... Escapei

por pouco; subi numa árvore. E o touro ali... Mas eu não

quis perder a hora da aula. Mesmo com medo, desci e

assustei o touro com a sombrinha...

Mamãe deu um suspiro e disse:

— Bons tempos aqueles...

Por isso que era difícil acreditar que mamãe estivesse

doente.

O Rio Branco

Até uma coisa que eu gostava muito tinha enjoado.

Dançar no Rio Branco. De primeiro, não perdia um baile.

Com a grana das encomendas, eu pagava a entrada e me

divertia a valer. Na verdade, eu não sabia dançar direito.

Vivia pisando no pé das garotas. O maior vexame. Bem

que a Lúcia Helena tentou me ensinar, mas eu não

aprendia de jeito nenhum. Um dia, até, passei a tarde toda

na casa dela e nada de eu aprender. Lúcia Helena ficava

uma vara comigo:

— Ih, Beto, você fica com o corpo duro. Vê se relaxa um

pouco.

A gente quase gastou o disco, e nada. Mas, mesmo sem

saber direito, eu gostava pacas de dançar. Cada baile legal:

o do Havaí, o da Primavera, o das Debutantes... A única

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coisa chata é que tinha umas garotas frescas que gostavam

de dar tábua. Já pensou atravessar o salão inteiro e chegar

numa garota, e ela:

— Não posso, estou comprometida...

O Lelo era um sarro nessas horas. Um dia, a Sarita falou

isso pra ele, e ele, com a maior cara-de-pau:

— Comprometida com quem? Com seu Beraldo?

Seu Beraldo era o dono da funerária... Mas as garotas não

costumavam dar tábua no Lelo. Agora, eu, de vez em

quando, levava uma. Depois, aprendi um truque batuta que

o Lelo me ensinou. De longe, eu fazia um sinal piscando o

olho. Se a garota fazia que sim, eu ia, mas se ela virava a

cara, eu fingia que tinha caído um cisco no olho.

Quilômetros rodados

O maior sarro era o baile das Debutantes. A coisa mais

idiota que eu já vi era a apresentação das garotas na

sociedade. Por isso, quando elas entravam no salão,

vinham de braço dado com um boboca. O Pinhanelli da

Rádio Clube dava uma de mestre-de-cerimônias. Ele

falava umas bobagens desse tipo: "estamos aqui para

homenagear estas flores que, pela primeira vez. .," Eu até

sabia de cor o discurso. Depois, ele fazia cada elogio pras

garotas que a gente morria de rir. Vá lá que a Lúcia

Helena e a Adélia merecessem ser chamadas de flores,

mas falar que a Izilda era uma "rosa em botão" era a

mesma coisa que chamar uma baleia de Miss Brasil. Tinha

também a Cleide "Limpa Trilho", com um bigode, meu!

Cada bagulho, e o Pinhanelli falando aquelas besteiras.

Mas o pior de tudo é que tinham umas garotas, como a

Elvira Espinha, a Samira, a Coruja, que todo ano

debutavam. E a gente ficava tirando pêlo, quando o

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Pinhanelli começava a apresentação:

— Srt.a Samira Caran...

— 50.000 quilômetros rodados — a gente gozava.

— Srt.a Lélia Mascarenhas de Abreu.. .

— Motor fundido.

— Srt.a Elvira Tagliato. ..

— Motor retificado.

Até que o Dr. Tassinari, o presidente do clube, pegou a

gente em flagrante e expulsou do baile.

Quebra-pau

Outro baile que eu não esqueço foi um que teve o maior

quebra-pau. Acontece que a turma do Celso Cadela, que

era de Santa Bárbara, só vinha pra aprontar. A gente

chamava o Celso de Cadela, porque ele era o cara mais

ruim do mundo. Às vezes, sem querer, a gente olhava pra

ele, e o Celso Cadela:

— Que que foi? Quer apanhar?

Ele gostava de vir nos bailes pra provocar a gente.

O Celso Cadela andava junto com os irmãos Tormento,

dois grandões com cara de assassino, o Fragoso, o Valério

e mais uns caras que eu não lembro o nome. Só sei que era

uma baita de uma turma. Eles vinham no Rio Branco e

ficavam enchendo o saco. Mas naquele dia eles passaram

da conta. O Celso Cadela queria de todo jeito dançar com

a Adélia, mas a Adélia era gamada no Lelo. Então, ele foi

tirar ela pra dançar, e a Adélia disse que não estava a fim.

O Celso Cadela disse um palavrão, e o Lelo escutou e deu

um murro nele. Aí, os irmãos Tormento quiseram se meter

na briga. O Lelo encarou os dois, e eu fui correndo trazer o

Batata, o Francês e o Neto. O pau quebrou feio. Foi nessa

noite que o Batata quase fez o Celso Cadela engolir um

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tijolo. Os dois começaram a brigar e rolaram a escada na

frente do Rio Branco. E o Fragoso só querendo se meter.

Eu fui ajudar o Batata, mas o Fragoso me deu uma no

peito que me jogou longe. O Batata então deu um chute

tão forte nele que foi a coisa mais engraçada: a ponta do

sapato abriu e parecia a boca de um jacaré. Aí o Celso

pegou um tijolo, mas antes que ele batesse no Batata levou

um na fuça que até deu dó. Quando voltamos pra dentro,

tinha mesa caída, as garotas correndo pra tudo quanto é

lado, e o Lelo estava batendo num dos irmãos Tormento.

Então, aconteceu outra coisa gozada. Foram procurar o

Delegado, e adivinhem onde acharam o Dr. Godofredo?

De fogo, debaixo de uma mesa!

O baile da primavera

Pois é, fazia um tempão que eu não ia num baile. E fiquei

com uma vontade quando a turma começou a falar no

baile da Primavera!

— Sabe quem vai tocar? O Sílvio Mazzuca — disse o

Susigan.

Eu ficava quieto, porque sabia que não podia ir mesmo.

— Você vai? — perguntou o Batata.

— Não tenho grana — eu disse.

— Também não tenho. Mas eu não perco este baile por

nada deste mundo.

O Batata continuou:

— A gente pula o muro.

— E se seu Antunes pega a gente?

Seu Antunes era o porteiro.

— Pega nada, seu. Achei um lugar jóia que a gente pode

passar. Vamos?

Inventei uma desculpa besta:

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— Não tenho roupa.

— Você? Não venha com esta. Seu pai te faz um terno.

— Papai anda louco da vida comigo.

Era mentira: o velho, depois da partida do Lelo e da

doença da mamãe, estava amigo pacas. Se eu chegasse

nele e pedisse grana pro baile, até que ele dava. Acontece

que eu não queria ir mesmo. Só de pensar que podia

encontrar a Lúcia Helena, eu ficava danado. Não que eu

tivesse medo do Mário Antônio, que vivia dizendo pra

todo mundo que ia meter a mão na minha cara. Não tinha

medo, porque tinha perdido o medo dele. E depois o

Batata disse pra mim que, se o Mário Antônio se metesse

comigo, era só dizer que ele quebrava a cara dele. E o

Batata não era de brincadeira. Mas não era medo do Mário

Antônio. O que eu não queria era encontrar os dois juntos.

O que eu não queria era ver a Lúcia Helena dançando com

aquele idiota.

Ponha a mão no meu ombro

Então, resolvi ficar em casa, mas que eu estava doido pra

ir, estava. Só de pensar no Sílvio Mazzuca tocando, era

pra deixar qualquer um babando.

Estava no quarto, triste da vida, quando mamãe me

chamou. Ela me pediu água, mas quando levei pra ela o

copo, mamãe pegou minha mão e ficou um tempão

olhando pra mim. Foi aí que vi o quanto ela tinha

emagrecido. Me deu um dó que eu não conseguia falar

nada. Até que ela me disse:

— Por que não foi ao baile, Beto?

— Não me deu vontade — eu disse.

— Devia ter ido. Você é moço, deve se divertir.

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Fiquei ali que nem besta. Mamãe então me abraçou, e eu

comecei a chorar feito uma criança. Ela me disse:

— Que é isso, Beto? Não chore.

Eu chorava tanto que não conseguia mais falar nada.

Chorava porque mamãe estava doente, mas chorava

também porque eu me sentia sozinho, chorava porque não

podia acreditar que a vida fosse tão ruim. Acho que

mamãe descobriu o que eu sentia. Tanto que ela falou:

— Estas coisas acontecem, Beto. Essa moça não merece

você. Um dia, você encontra uma moça decente... uma que

goste só de você.

Quanto mais ela falava, eu percebia por que estava

sofrendo. Será que eu podia viver sem Lúcia Helena? E

mamãe continuava a me acariciar. E eu sofria, pensando

em Lúcia Helena, pensando que eu tinha sido um bobo,

um idiota brigando com ela. Por que eu vivia magoando

quem eu mais gostava?

Depois, quando papai chegou (ele tinha ido à casa do tio

Cenoura), fui pro quarto e deitei com roupa e tudo. Eram

onze horas, e a orquestra tinha começado a tocar. O Rio

Branco ficava perto de casa, então, eu podia escutar todas

as músicas. Naquela hora estava tocando a mais legal de

todas: Put your hand on my shoulder, e eu fiquei

imaginando a Lúcia Helena pondo a mão no meu ombro.

O salão de luzes apagadas e aquela música legal tocando

sem parar. Depois, eu podia tomar uma Cuba-Libre, e ela

ficava do meu lado, a gente conversando a noite inteira. Só

de pensar nisto, me deu uma tristeza grande, mas eu não

conseguia mais chorar. Ficava triste por dentro, enquanto

aquela música parecia não querer acabar...

O dia mais triste da minha vida

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A gente estava assistindo aula de História, quando o bedel

pediu licença pra D. Abud:

— D. Abud, será que o Roberto pode sair um pouco? Tem

alguém querendo falar com ele.

Que será que eu tinha feito? Fiquei até imaginando o

sermão de D. Fiolli. Vai ver que o pai do Mário Antônio...

Mas não, era seu Nestor que parecia bastante nervoso:

— Beto, sua mãe não está bem, mas acalme-se que não é

nada grave.

Pela cara dele, vi que estava mentindo. Saímos correndo

da escola, e ele me levou de carro até em casa. No

caminho, foi-me dizendo que a vida era assim mesmo, que

eu devia ser forte. Comecei a chorar na hora, porque eu já

sabia de tudo. Chegando em casa, vi um monte de gente

na porta.

Fui entrando devagar, e todo mundo me dava os pêsames.

Vi papai com a cabeça entre as mãos. D. Helena veio

depressa me abraçar. Então, sentei numa cadeira. Sentar,

não, acho que caí, porque minhas pernas estavam

tremendo. Mas eu não tinha coragem de olhar pra mamãe.

Não, não podia ser verdade, eu não conseguia acreditar.

Ficava pensando que no sábado ela tinha conversado

comigo...

Depois, começou a chegar mais gente: o Dr. Edmundo e a

mulher dele, D. Geni e seu Gumercindo, o Prof. Aristides,

a D. Abud, a D. Elisa. A turma veio também: o Susigan, o

Celso, o Batata. Mas eu não queria ver ninguém, eu queria

ficar sozinho. E estava assim, pensando em mamãe,

quando alguém pôs a mão em minha cabeça e disse:

— Beto...

Era Lúcia Helena. Ela me disse de novo:

— Beto...

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Não olhei pra ela, não estava a fim de olhar. Eu queria

ficar sofrendo, ou merecia sofrer. Por que tinha dado tanto

trabalho pra mamãe? Por que eu nunca tinha ajudado em

casa, como fazia o Lelo? Agora era tarde, não adiantava

mais. Lúcia Helena disse mais uma vez:

— Beto, eu...

Mas não deixei que ela acabasse de falar. Levantei e saí

correndo pro quarto. Só fui sair de lá, quando vieram me

chamar pro enterro. Lúcia Helena tinha ido embora, o que

foi bom pra mim. Eu nunca mais queria vê-la na minha

frente.

Seu Nestor acabou levando a gente de carro até o

cemitério. Fazia um dia muito bonito, de céu quase sem

nuvens. Mas pra mim era como se fosse o mais horrível

dos dias.

Na fossa outra vez

Depois que mamãe morreu, a vida ficou mesmo sem

graça. Não dava vontade de ir na escola, de fazer nada.

Acho que papai sentia a mesma coisa. Ele que gostava

tanto de trabalhar, andava meio relaxado.

A única coisa que animou a gente foi que o Lelo chegou

um dia depois do enterro de mamãe. Ele tinha crescido

muito mais ainda e parecia galã de cinema. Me deu uma

camiseta jóia, onde estava escrito: "University of

Tennessee". Mas ele teve que voltar logo por causa da

escola. E minha tristeza aumentou. A casa parecia vazia.

De vez em quando, eu escutava o barulho da máquina de

costura de papai. O resto do dia era aquele silêncio triste.

Por isso, quase todo dia eu saía de casa e só voltava de

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madrugada. Ficava bebendo e conversando com o Batata,

e papai nem ligava. Acho que a morte de mamãe tinha

feito que ele esquecesse de mim. E não sei não: acho que

preferia quando ele pegava no meu pé; pelo menos,

mostrava que gostava de mim.

As outras pessoas, eu nem ligava pra elas. Só falavam de

vestibular, faculdade. Eu não queria saber nada disso. Pra

piorar, ainda vieram me dizer que Lúcia Helena e o

lazarento iam ficar noivos, e que seu Nestor ia dar uma

baita festa no fim do ano. Mas por que eu ainda me

incomodava com estes dois? Que ficassem noivos, que se

danassem!

O Prof. Airton

Já disse que o Prof. Airton era legal, mas ficou pouco

tempo no colégio. D. Fiolli detestava o Prof. Airton, e ele

também não gostava nem um pouco dela. Vivia gozando

D. Fiolli. Quantas vezes, vendo a D. Fiolli atravessar o

pátio, ele não começava:

— Um, dois, um, dois.

A gente morria de rir, porque, juro por Deus, a Diretora

parecia mesmo um milico. Não tirava aquele vestido preto

cheio de botão dourado e um sapatão de sola grossa. Seu

Airton era professor de Desenho. Nunca vi pessoa mais

relaxada: vinha dar aula com a camisa saindo pra fora da

calça rasgada. O sapato então parecia ter mais de cem

anos, todo sujo de lama. Nunca fazia a barba nem

penteava o cabelo. Chegava na sala de aula, sentava na

cadeira e ficava olhando a gente com aquela cara de sarro.

Nunca dava matéria, e eu até hoje não sei o que é desenho.

Ele gostava de contar coisas engraçadas, mas às vezes

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ficava sério e mostrava quadros pra gente. Todo mundo riu

uma vez que ele mostrou um cara que pintava uns

bichinhos esquisitos, parecidos com aranhas de pernas

compridas. Então, ele ficou bravo:

— Do que vocês estão rindo, seus bobocas?

— Ah, professor, não vai dizer que isto é pintura! — disse

a Samira.

— Vocês é que não sabem ver. Vocês estão cegos.

— Isso até eu faço — disse o Susigan.

— Você? — O Prof. Airton deu uma risada e depois

começou a falar sem parar. Quando ele falava desse modo,

nem ligava pra gente; ficava andando de um lado pro outro

e parecia que estava conversando com as paredes. Não

lembro tudo o que ele disse; mais ou menos, falou que

aquele pintor recuperava a infância, através da pintura.

— Vejam, quando vocês desenham, mostram o que é

supérfluo, a mera aparência das coisas. Este pintor, não.

Acham que ele ia perder tempo com isto? Miró sabe que a

criança tem mais juízo que o adulto, porque se entrega à

paixão da descoberta das coisas.

O Susigan levantou a mão:

— Mas o que quer dizer este quadro, professor?

— Nada — respondeu o Prof. Airton.

E a gente ficou que nem bobo e sem entender lhufas.

No hotel

A gente sabia que ele não ia durar no colégio. D. Fiolli,

quando não gostava de um professor, fazia de tudo pra ele

ir embora. O Prof. Airton era um deles. Ele mesmo dizia

pra gente que não agüentava a escola, a Diretora e a nossa

cidade fedorenta.

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Uma noite, estava sem nada pra fazer, e me deu vontade

de conversar com ele. Eu nunca tinha conversado com o

Prof. Airton, porque achava que ele não gostava de bater

papo com aluno. Mas assim mesmo fui no hotel onde ele

morava. Bati na porta, e o Prof. Airton mandou entrar. Vi

que ele estava de fogo. Seu quarto era uma bagunça só,

com roupas, livros, papéis por tudo quanto é canto. Na

parede, o Prof. Airton tinha grudado aquele quadro

maluco.

— Pegue um copo e sente-se — ele disse.

Pôs cerveja no meu copo e ficou me olhando daquele jeito

gozador. Que droga, o que que eu tinha de ir conversar

com ele? Então, eu disse:

— O senhor vai mesmo embora?

— Acho que já está na hora, não é?

— O senhor não gosta da nossa escola?

— Nem um pouco. Pra falar a verdade, acho que não

gosto de escola nenhuma.

Deu vontade de perguntar por que ele continuava dando

aula. O Prof. Airton parece que adivinhou o que eu estava

pensando e disse:

— Nessa vida, a gente não escolhe. É escolhido. Você

sonha, sonha e quando acorda está fazendo o que nunca

quis.

— O que que o senhor gostaria de fazer?

O Prof. Airton balançou a cabeça. Depois me disse, sem

responder à minha pergunta:

— Eu acho que também você deveria ir embora daqui.

Enquanto ainda é tempo.

Me serviu mais cerveja. Então, eu perguntei:

— Como é que a gente sabe o que quer fazer?

— Acho que não sou a pessoa mais indicada pra lhe dizer.

Eu gostava do Prof. Airton porque ele era diferente das

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outras pessoas. Não vinha com lição de moral. Como a D.

Violeta, a Orientadora Pedagógica. Pra ela, tudo era fácil:

"tenha o pensamento positivo", dizia, "e o mundo abrirá as

portas para você". Como é que a gente podia ter

pensamento positivo se nada era positivo?

— A única coisa que posso lhe dizer — falou o Prof.

Airton — é que você deve transformar sua vida numa

aventura.

Ele olhou pro quadro na parede e continuou:

— Deixe que a inocência fale por você.

Acho que ele estava bêbado. Quando fui embora, o Prof.

Airton me disse:

— ... mas a escola, você vê, não quer que os meninos

sejam inocentes... quer que sejam adultos... saia desta

cidade, menino, saia...

No bar do Carioca

Sair como? Primeiro, eu não sabia o que queria, depois,

não tinha dinheiro. Mas o pior era a falta de vontade. A

única coisa que eu queria era ficar deitado até tarde e de

noite sair com o Batata. Mas o Batata era meio burrão, e a

gente não tinha muito o que conversar. Eu já estava cheio

disso. Só quando a gente ficava de fogo é que a coisa

melhorava um pouco: eu não parava de falar besteira, o

Batata contava cada uma... A gente gostava de ir no bar do

Carioca, porque ele nunca pedia documento e deixava a

gente beber em paz.

Quando a gente bebia, o Batata ficava valente, mas eu

ficava triste. O Batata queria brigar com todo mundo: uma

vez queria bater nos bebuns, outra vez, quase deu um soco

no Carioca.

— Você está roubando na conta.

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— Deixa ele, Batata.

— Deixa coisa nenhuma. Quebro a cara dele.

Foi um sufoco segurar o Batata, que dava dois de mim.

Mas ele acabou sentando, e a gente pediu mais cerveja. E

eu ficava mais triste ainda. E eu nem escutava o Batata

falando: só pensava em Lúcia Helena e me dava uma

doideira, uma vontade de chegar nela e dizer tudo o que

estava sentindo. Mas na hora agá faltava coragem. Uma

vez até parei de madrugada no portão da casa de Lúcia

Helena e falei um monte de coisa que ninguém escutou.

Qe fogo, eu ficava apaixonado por ela, mais apaixonado

do que quando estava bem. E me dava tanta tristeza de

saber que aquele idiota tinha tirado Lúcia Helena de mim.

Bobeira

Uma vez, o Batata e eu enchemos a cara, e eu falei que a

gente podia ir até a caixa-d'água olhar a cidade. Nem sei

como subimos a escada. Quando vi, a gente estava lá em

cima, no maior fogo. Sentamos na laje. Ventava pra burro,

e a gente nem podia ficar de pé.

— Olha o que eu trouxe — disse o Batata.

Comecei a rir feito doido: não é que o Batata tinha

roubado uma garrafa de pinga do Carioca? Tomei um gole

e fiquei meio alegrão. A gente, então, começou a falar

bobeira. O Batata me contou umas histórias que não

entendi nada. Mas eu ria que dava dó. Aí eu disse:

— Já chegou na beirada?

— Que beirada?

— Da laje, seu.

Foi a vez do Batata rir que nem doido. Eu levantei e fui

andando. Parei de repente, e a cidade estava lá embaixo.

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Ventava forte, o meu corpo balançava pra frente e pra trás.

E eu tinha perdido todo medo. Parecia que eu voava sobre

as casas, sobre as ruas. Voltei onde estava o Batata.

Falamos tanta coisa que eu nem lembro mais. Quando a

pinga acabou, a gente desceu. Nem sei como cheguei em

casa. Minha cabeça doía pra burro. Mas, no outro dia, eu

estava pronto pra outra.

Rolo

E a gente não passava uma noite sem ir no bar do Carioca.

Beber e falar bobagem era o único jeito que eu tinha de

esquecer a doideira que era a minha vida. Mas um dia um

rolo danado. O Carioca era o único que servia bebida pra

menor. A gente ficava bebendo no fundão, depois das

mesas de snooker. Uma noite, o Carioca, com uma cara de

susto, veio correndo lá da frente:

— Se mandem, que o Delegado está aí!

Era o Dr. Godofredo que vinha com dois guardas, A gente

se levantou e saiu correndo.

— Pelos fundos — disse o Carioca, abrimos a porta e

começamos a pular o muro.

Quando a gente desceu do outro lado, adivinhem o que

aconteceu? Tinha mais dois guardas esperando. Nem

tentei correr, primeiro, porque estava baqueado; segundo,

porque eles sabiam quem eu era.

—Entramos numa fria — foi o que o Batata disse.

Na cadeia

O Batata foi o primeiro que falou com o Delegado.

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Quando chegou na minha vez, eu estava com um medo

danado.

— Não sabe que menor não pode beber?

— Sei...

— Sei, sim senhor! Responda direito, moleque! — O Dr.

Godofredo deu um tapa na mesa.

Depois, me perguntou mais umas coisas que eu não

entendi direito. Acho que eu estava mesmo de fogo,

porque ele não perguntou mais nada. Chamou um soldado

e me mandou pra outra sala. Pensei que fossem me trancar

numa cela, mas o guarda não fez isto. Falou pra eu sentar

numa cadeira e saiu sem trancar a porta. Se eu quisesse

fugir, seria a coisa mais fácil do mundo, mas quem disse

que tinha coragem?

Fiquei ali um tempão. Estava cansado e com fome. De vez

em quando, escutava um grito, ou alguém chorando.

Fui ficando com medo. Até que, mesmo sentado naquela

cadeira dura, caí no sono.

Só acordei quando alguém me sacudiu. Era o guarda.

— O Dr. Godofredo quer falar com você.

Quando entrei na sala do Delegado, senti a maior

vergonha do mundo. Papai e seu Nestor estavam

conversando com ele.

— Isto não se repetirá, doutor — papai acabava de falar.

— Que não se repita mesmo, seu Tonico. Seu menino

estava bêbado como um gambá.

— Foram as más companhias, Dr. Godofredo. Boto a mão

no fogo por ele — disse seu Nestor.

O Delegado olhou pra mim e falou:

— Solto-o, em consideração a seu pai, que é um homem

honrado, de bem. Mas não quero nem vê-lo perto daquele

bar! Está entendido?

Fiz que sim com a cabeça. Era o máximo que eu podia

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fazer. Mas juro que eu preferia ficar trancado na cadeia do

que ter papai pela frente.

Remorso

Seu Nestor levou a gente pra casa de carro. Era quase

meia-noite, e eu não agüentava mais ficar de pé. Sabia que

papai ia dar a maior bronca, mas não era isso o que me

chateava. O que me chateava era saber que desta vez eu

tinha machucado o velho pra valer. Só vendo a cara dele.

Quando entramos, sentei numa cadeira, esperando que ele

começasse a falar. Em vez disso, papai foi na cozinha e

voltou com um copo de leite, pão e manteiga.

— Você deve estar com fome — ele disse.

Me deu tanto remorso que eu não consegui comer.

Fiquei olhando o leite, o pão, a manteiga. Aí não aguentei

mais pus a cabeça entre os braços e chorei feito uma

criança. Papai veio perto de mim e me abraçou. Reparei

que também estava chorando. Aí foi que decidi: não estava

certo ficar maltratando os outros só porque tinha raiva de

mim. Então, naquela hora, eu prometi em voz baixa que

nunca mais ia magoar papai. Que culpa tinha ele se eu era

infeliz?

Fuga

Passei a noite sem dormir só pensando na minha vida. De

madrugada, me chamaram do jardim. Era o Batata. Ele

pulou a janela.

Então, eu vi que ele estava com o olho todo preto.

— Teu pai...? — perguntei.

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Ele fez que sim com a cabeça. Já disse que o Batata é

muito forte, mas o pai do Batata dá dois dele. Um

monstro. Reparei também que o Batata estava com uma

mochila.

— Você me arranja um lugar pra eu dormir aqui? Fugi de

casa — ele disse.

— Pra onde você vai?

— Pra São Paulo. Amanhã cedinho pego o ônibus.

— O que você vai fazer lá, meu? Você não conhece

ninguém.

— Qualquer coisa é melhor que em casa.

Batata estava ficando pirado mesmo. Arrumei a cama do

Lelo pra ele. Mas a gente não conseguiu dormir. Ficamos

conversando até de manhã. Então, o Batata se levantou, e

eu disse:

— Você tem grana?

— Um pouco. Dá pra passagem.

Abri a gaveta e peguei uma nota de dez dólares novinha

que o Lelo tinha me dado. O Batata não quis aceitar de

jeito nenhum.

— Deixa de ser besta! Depois, você me paga.

Batata então me prometeu que a primeira grana que

ganhasse me pagava. Prometeu também me escrever

contando tudo. Quando ele se mandou, juro que fiquei

com inveja. O pai dele podia ser um cavalo, mas isto era

até bom. Pelo menos, o Batata se mandava de vez.

A decisão

Mais essa. Agora era o Batata que se ia, e eu não tinha

mais ninguém pra conversar. Eu precisava tomar coragem

e me mandar também de Americana. Mas a verdade é que

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estava com um medo danado. Eu não conhecia São Paulo

e ficava pensando naquela cidade grande, e eu sozinho lá...

Até que um dia resolvi conversar com papai. Sem pensar

muito, disse que queria ir embora.

— O que falta a você aqui? Pelo menos, tem casa e

comida.

Eu não sabia como responder. Papai era o cara mais legal

do mundo, mas eu estava sentindo falta de alguma coisa.

O que era eu não sabia.

— E depois — disse papai —, você nem terminou o

Colegial. Forme-se primeiro e, em seguida, você vai.

— Quero ir pra São Paulo agora, papai.

Tinha que ser assim: eu não podia ficar a vida inteira

dependendo do velho. Eu precisava fazer que nem o

Batata. Meter as caras. Acho que papai não gostou da

idéia.

Tanto que ele balançou a cabeça e disse desanimado:

— Você é que sabe.

Carta do Batata

Eu estava assim naquele chove não molha, quando recebi

uma carta do Batata. Fazia mais de um mês que ele tinha

ido pra São Paulo. Ele contava que o que ele pastou não

foi mole. Que a grana foi acabando e quase expulsaram ele

da pensão. Mas, um dia, o Batata estava comendo num bar

perto do centro, quando uns caras quiseram bater num

velho. O velho era forte, mas os caras eram dois. O Batata

então se meteu na briga. Eu queria estar lá pra ver. Já

pensou o Batata daquele tamanhão dando soco pra tudo

quanto é lado? Só sei que o velho ficou muito agradecido

e deu um cartão pro Batata. Era o endereço de uma

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academia de ginástica. E o Batata foi contratado como

auxiliar do velho. A carta terminava assim: saí do sufoco,

Beto. O velho é legal, e o trabalho não enche. Melhor do

que ficar atrás do balcão o dia inteiro. Durmo na

academia mesmo e como num boteco aqui perto. Se você

vier pra São Paulo, te arranjo uma cama. Pode ficar

quanto tempo quiser aqui na academia. Já falei com seu

Nélio, ele disse que tudo bem. Ah, ia esquecendo, mandei

uma ordem de pagamento pelo Correio. Muito obrigado,

se não fosse sua grana, aí que eu morria de fome.

Carta de recomendação

Fiquei contente pra burro com a carta do Batata. Agora, eu

tinha um lugar pra dormir e tinha grana também. Mas eu

precisava arranjar emprego. Fui conversar com seu Nestor,

que sabia das coisas.

— Já falou disso com seu pai?

— Falei.

— E o que ele disse?

— Que era melhor eu ficar por aqui. Que pelo menos eu

tenho casa e comida.

Seu Nestor pensou um pouco e disse:

— Você está certo, é melhor que se vá. Precisa ter sua

própria vida.

Era o que eu tinha falado pro papai.

— Quanto ao emprego, de que tipo você quer?

— Um que eu possa estudar. Quero terminar o Colegial.

— Então você deve arranjar um emprego de meio período.

Num banco, por exemplo. Tenho um amigo que é gerente

numa agência do Centro. Sabe regra de três? Um

pouquinho de contabilidade?

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Falei que sim. A verdade é que eu não sabia direito, mas

não custava estudar um pouco. Foi o que seu Nestor disse:

— Mesmo se não souber, é fácil. Você aprende em três

tempos. Acho que não será difícil você conseguir o

emprego.

Em seguida, ele perguntou:

— Precisa de alguma coisa, Beto?

— Nada não, seu Nestor.

— Se precisar é só falar comigo.

— Obrigado, seu Nestor.

Ele pôs a mão em meu ombro:

— Amanhã, lhe dou uma carta de recomendação. O Alves

é muito meu amigo. Pode contar com o emprego.

O convite

Papai tinha ido ao cemitério visitar o túmulo de mamãe.

Eu estava sozinho em casa, quando apertaram a

campainha. Abri a porta e levei o maior susto da vida: era

Lúcia Helena. Fiquei que nem besta ali parado.

— Como é, Beto, não me convida pra entrar? — ela

perguntou.

— Oh, desculpe. Entre, por favor.

Lúcia Helena entrou, e a gente sentou no sofá. Ela trazia

um envelope na mão. Desconfiei que era o convite de

noivado. Mas, em vez de me entregar o envelope, ela ficou

brincando sem parar com ele. Depois de algum tempo, em

que ninguém falou nada, ela disse:

— Então, você vai embora...

Fiz que sim com a cabeça. Ela deu um risinho sem graça e

continuou:

— Papai disse que você vai trabalhar num banco.

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— Se eu passar no teste...

— Claro que passa — ela disse. — Além do gerente ser

amigo de papai, você é uma pessoa muito inteligente.

Ela riu de novo pra mim. Aí que eu vi como Lúcia Helena

estava bonita. De tanta raiva, nunca mais tinha olhado pra

cara dela. Parecia mais alta, tinha deixado o cabelo crescer

e usava o vestido amarelo que eu tanto gostava. Fiquei

olhando pra ela um tempão, até que Lúcia Helena reparou,

ficou vermelha, e nós dois abaixamos a cabeça. Então,

continuou a brincar com o convite.

— Quando você vai embora? — ela perguntou depois de

algum tempo.

— Sábado, no trem das nove.

— De trem?

— É mais barato.

Eu estava começando a ficar triste. Por que ela tinha que

vir em casa? Só pra me lembrar que ia ficar noiva daquele

besta? Justo agora que eu já estava esquecendo tudo?

Droga! Que raiva me deu então. Lúcia Helena ameaçou

levantar e disse:

— Bom...

E riu sem graça de novo. Não parava de brincar com o

envelope, que já estava todo amassado. Lúcia Helena se

levantou de vez:

— ... vou andando...

Não falei nada. Afinal, o que que eu podia falar?

— Então... boa sorte pra você.

A gente foi andando em direção da porta. Na hora de

despedir, me deu vontade de falar umas coisas. Tudo

aquilo que eu sentia de verdade. Mas as palavras não

saíram. Bobagem, não tinha mais jeito, eu tinha estragado

tudo mesmo. Lúcia Helena ficou olhando pra mim com

um olhar muito triste. E não se despedia nem ia embora.

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De repente, pra minha surpresa, ela começou a rasgar o

convite. Terminando de rasgar, ela jogou os pedaços na

minha cara e disse quase chorando:

— Seu nojento!

E sem que eu pudesse dizer nada, saiu correndo pra rua.

Despedida

As aulas tinham acabado, e todo mundo só falava em

formatura. E na festa de noivado que seu Nestor ia dar pra

Lúcia Helena. Eu já estava com tudo arrumado e não via a

hora de ir pra São Paulo. Fui na casa do Paulo, do Susigan

e do César pra me despedir. Fora eles, não tinha mais

ninguém. Estava me esquecendo: também tinha a D. Elisa,

que era legal à beça. Foi a empregada que atendeu e

mandou eu entrar. Fiquei na sala com o filho dela, o

Claudinho. Uma coisa, o garoto. Não parava quieto, ficava

mexendo em tudo. Até que ele puxou a toalha e derrubou

um vaso no chão. D. Elisa veio correndo lá de dentro.

— Oi, Beto — ela disse, pôs as mãos na cintura e virou

pro Claudinho: — O que você está aprontando aí, menino?

Não tem juízo?

Ih, agora ela dá nele, pensei. O Claudinho começou a

chorar com a bronca, D. Elisa ficou com dó e pegou ele no

colo.

— Não foi nada. Depois, a gente arranja outro vaso. O

Claudinho ficou quieto, e D. Elisa perguntou pra mim:

— Como vão as coisas, Beto?

Eu disse pra ela que ia embora.

— Como embora? E a escola? Você precisa terminar o

Colegial.

— Termino em São Paulo, D. Elisa.

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— Se você promete não parar de estudar, está bem.

Aí, eu fiquei quieto e D. Elisa também. Eu tinha uma coisa

pra falar pra ela, mas não sabia como. Então, eu falei

assim mesmo:

— Sabe, D. Elisa... aquilo que a senhora me disse...

— Que eu disse?

— A senhora disse que... bem... a senhora disse que a

gente não devia machucar as pessoas... As pessoas que a

gente gosta...

D. Elisa riu pra mim. Claudinho tinha pulado do colo dela

e estava mexendo de novo nas coisas.

— Bem... eu acho que a senhora... A senhora tem razão.

O Claudinho estava puxando outra toalha. Estava vendo

ele quebrar mais um vaso. E a D. Elisa nem aí, só

prestando atenção no que eu estava falando. Tomei

coragem e disse mais uma coisa que eu devia ter falado

faz tempo:

— Também eu queria... Eu queria pedir desculpas...

— Desculpa de que, Beto?

— A senhora sabe... aquelas molecagens que eu fiz na sua

aula.

A partida

Papai foi comigo até a estação. Entrei no vagão de

segunda e escolhi um bom lugar. Sorte que o trem estava

vazio. Papai ficou ali do meu lado só dando

recomendação: que eu devia tomar cuidado com os

batedores de carteira, que eu me alimentasse bem...

— ...e se precisar de dinheiro, liga pra mim, que eu mando

no mesmo dia pelo Correio.

Coitado do papai, duro como ele andava, assim mesmo,

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tinha-me arranjado uma grana. O trem apitou e começou a

andar. Papai me apertou a mão com força. Vi que ele

estava emocionado pacas. E eu então? Me segurei pra não

chorar, porque o velho ia ficar sozinho, e eu não queria

que ele pensasse que eu estava triste. O trem foi saindo da

estação, e a cidade começou a correr do meu lado. E era

como se eu fosse vendo as ruas e as casas pela última vez.

O vento batia com força na minha cara, e eu comecei a

ficar contente, porque finalmente eu tinha saído daquela

joça.

Em viagem

Estava pensando nessas coisas, quando alguém pôs a mão

no meu ombro e disse:

— Oi, Beto.

Levei um baita dum susto: era Lúcia Helena, que estava

junto com seu Nestor.

— Então, você tinha razão — disse ele pra Lúcia Helena.

Como devia estar com cara de tacho, seu Nestor me

explicou:

— A Lúcia Helena jurou pra mim que tinha visto você.

Não sei como, porque, quando a gente chegou na estação,

o trem já estava saindo.

Eu nem sabia o que falar. Fiquei ali que nem bobo olhando

pros dois. Seu Nestor disse:

— Então, até que foi bom. Assim ela tem companhia. Eu,

por,mim, preferia viajar de carro, mas a Lúcia Helena quis

porque quis vir de trem.

Lúcia Helena ficou vermelha que nem pimentão. Eu é que

não entendia mais nada. Seu Nestor falou de novo:

— Bem, eu acho que vocês preferem ficar juntos, não

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é?Eu vou procurar um lugar pra mim na primeira classe.

Em São Paulo, encontro com vocês.

O que que Lúcia Helena estava fazendo no trem?

Então, ela perguntou:

— Não me convida pra sentar?

Mais que depressa me levantei, pus as malas no bagageiro

e dei lugar pra ela. Lúcia Helena sentou, e a gente ficou

sem falar, enquanto o trem cada vez mais se distanciava da

cidade.

Um sorriso

Mas o que Lúcia Helena estava fazendo no trem? Foi o

que eu perguntei:

— O que você vai fazer em São Paulo?

— Vou ficar uns tempos na casa da tia Olívia.

E sem esperar que eu perguntasse por que, começou a me

explicar que andava muito nervosa, e que o médico tinha

recomendado que ela saísse um pouco.

— E a festa de noivado? Não era na semana que vem?

— Acho que não vai mais ter festa...

Com medo, perguntei:

— E... o Mário Antônio?

— A gente resolveu dar um tempo.

Meu coração bateu mais forte. Eu não sabia o que fazer

com ela ali do meu lado. Me lembrei que antigamente eu

era o maior potoqueiro do mundo. Não tive dúvida:

comecei a contar o que que eu ia fazer na vida. Nem sei se

eu ia fazer isso mesmo, mas fui falando tudo o que vinha

na cabeça. E Lúcia Helena só olhando pra mim. De vez

em quando, ela ria. Eu vi que ela estava contente mesmo,

que ela parecia feliz de estar naquele trem comigo. O sol

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entrava pela janela, e o cabelo de Lúcia Helena brilhava

que nem ouro. A pele do rosto dela era tão macia que dava

vontade de beijar. Linda de morrer. Uma coisa. Aí me deu

uma vontade doida de pegar na mão dela. Mas eu não

tinha coragem. E falava, só contando papo. Beto, larga de

ser trouxa, eu disse pra mim mesmo. Até que o trem deu

um solavanco, meu braço encostou no dela. Lúcia Helena

estremeceu, mas não tirou o braço. Agora, pensei. Faltava

coragem. Agora, Beto, vamos. E sem pensar mais, agarrei

a mão dela. Lúcia Helena estremeceu de novo, mas não

tirou a mão. E riu pra mim, com aquele sorriso

maravilhoso que só ela sabia dar. Apertei a mão de Lúcia

Helena com força, como se tivesse medo que fosse perdê-

la outra vez. E disse uma coisa que fazia tempo que estava

na minha garganta:

— Te amo.

Ela sorriu de novo e pôs a cabeça no meu ombro. Então,

eu comecei a me sentir o homem mais feliz do mundo.

FIM