a imergÊncia da pessoa humana na...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
DANIEL DA COSTA
A IMERGNCIA DA PESSOA HUMANA NA HISTRIA
ENSAIO SOBRE A FILOSOFIA RADICALIZANTE (PROTESTANTE) E O CRISTIANISMO ATEU DE PIERRE THVENAZ
SO PAULO
2014
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A IMERGNCIA DA PESSOA HUMANA NA HISTRIA
ENSAIO SOBRE A FILOSOFIA RADICALIZANTE (PROTESTANTE) E O CRISTIANISMO ATEU DE PIERRE THVENAZ
Daniel da Costa
Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a Obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
So Paulo
2014
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SUMRIO
Introduo ...................................................................................................... 13
CAPTULO I
O personalismo em Pierre Thvenaz: uma palavra sobre o ttulo ................ 19
CAPTULO II
Uma caracterizao da filosofia radicalizante (protestante) de Pierre Thvenaz como ceticismo moral .................................................................................... 42
2.1 Sobre a rubrica: filosofia protestante .......................................................... 56
2.2 Karl Barth e o princpio protestante..............................................................74
2.3 Levando Nietzsche a srio................................................................................... 81
CAPTULO III
O papel liberador da intuio religiosa para o fazer filosfico autnomo no alvorecer
da filosofia na Grcia Antiga
3.1 Prolegmenos a um novo ultrapassamento da metafsica................................. 109
3.2 A parbola Scrates-Plato-Aristteles............................................................ 119
CAPTULO IV
O cristianismo ateu: o afrontamento do Deus vivo de Abrao e de Jesus Cristo com
o Deus dos filsofos e dos sbios o Deus-dolo da filosofia......................... 134
4.1 O tema do atesmo em Pierre Thvenaz........................................................... 154
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4.2 O problema de uma filosofia crist...................................................................... 167
4.3 O conceito protestante de vocao.................................................................. 170
CAPTULO V
Transcendncia para o interior, ou a imergncia da pessoa humana na histria .. 177
5.1 Histria da interioridade em Pierre Thvenaz .................................................... 192
5.2 Indcios de uma reabilitao thvenaziana da metafsica ................................... 213
CAPTULO VI
Mtodo e experimentao intelectual I ................................................................... 219
6.1 Por um novo estatuto da evidncia .......................................................................221
6.2 Por um novo estatuto da verdade .........................................................................234
6.3 Por um novo estatuto da metafsica ......................................................................244
6.4 O ultrapassamento da metafsica ......................................................................... 247
CAPTULO VII
Mtodo e experimentao intelectual II
A superao thvenaziana da fenomenologia clssica pela proposio de uma
quarta reduo: a epoch do sentido
7.1 Aperu introdutrio..............................................................................................275
7.2 Resistncias a uma epoch do sentido:
7.2.a O transcendentalismo ........................................................................... 281
7.2.b Um passo para a epoch do sentido: a constatao de uma crise da
razo ............................................................................................................. 295
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CAPTULO VIII
Mtodo e experimentao intelectual III
8.1 A epoch thvenaziana do sentido ..................................................................... 319
8.2 Radicalizao e desabsolutizao ..................................................................... 325
CAPTULO IX
A experincia-choque
9.1.a O afrontamento do Deus de Abrao e de Jesus Cristo com o Deus dos
Filsofos.................................................................................................................... 348
9.1.b Incidncias da experincia choque para o fazer filosfico ............................ 378
CAPTULO X
10.1 Uma filosofia corporificada (do corpo) como proposta de uma continuao
possvel da pesquisa inconclusa de Pierre Thvenaz.................................................. 397
10.2 Linguagem como corpo verbal ........................................................................ 402
10.3 Mundo e histria: contingncia, historicidade e engajamento.............................421
10.4 O tema da historicidade em Pierre Thvenaz ..................................................424
CONCLUSO
Algumas crticas filosofia radicalizante de Pierre Thvenaz e ensaio de respostas........................................................................................................................445
ANEXO
Traduo de artigo de Pierre Thvenaz
Recusa do real e espiritualidade ................................................................................ 465
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
UVRES DE PIERRE THVENAZ ................................................................................. 471
ESTUDOS SOBRE PIERRE THVENAZ ..........................................................................472
DEMAIS OBRAS CITADAS ...........................................................................................473
NOTA BIOGRFICA DE PIERRE THVENAZ ....................................... 481
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Dedico esta tese a todos os que conseguiram entender que a verdadeira juventude s se conquista com o passar do tempo.
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AGRADECIMENTOS
Ao ter chegado concluso desta nossa aproximao ao ato filosfico
radicalizante de Pierre Thvenaz, nos restaria expressar nossos agradecimentos a todas
as pessoas sem as quais este trabalho no poderia ter sido realizado. Antes de tudo,
gostaria de registrar meus agradecimentos ao Departamento de Ps-Graduao em
Filosofia da Universidade de So Paulo na pessoa do seu Chefe de Departamento o
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento. Mas tambm a todas as pessoas da secretria da
ps-graduao, na pessoa da Sra. Maria Helena, que foram sempre solcitas e prestativas
nos momentos em que eu mais precisei. Gostaria de expressar meus agradecimentos ao
grande estudioso na atualidade da hermenutica ricoeuriana, Domenico Jervolino, que
gentil e prontamente me enviou dois artigos seus por e-mail os quais, juntamente com
seu livro sobre Pierre Thvenaz (durantes anos, o nico livro que fez justia ao
pensamento de Thvenaz), me foram de grande valia. Gostaria de agradecer em especial
ao meu orientador, o Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, por ter aceitado orientar-me
neste meu estudo de um filsofo dito menor e marginal histria da filosofia. Por ter,
ento, acreditado no valor e pertinncia da contestao radical thvenaziana. Como
tambm aos professores componentes da banca examinadora: Dr. Ricardo Quadros
Goiuva, Dr. Paulo Roberto Monteiro de Araujo, Dr. Jos Marcos Min Vanzella e ao
Dr. Lino Rampazzo que me prestou ajuda valiosa apontando vrias correes a serem
feitas no texto, pelo que as que persistem so de minha inteira responsabilidade. Alm
destes, agradeo tambm aos professores suplentes; enfim, a todos que rapidamente
atenderam ao meu pedido com toda solicitude e se propuseram a testar a pertinncia do
ato filosfico thvenaziano. E, dentre as inmeras outras pessoas que cruzaram minha
vida neste percurso de estudos, gostaria de agradecer aos meus irmos Jos, Josu e
Rute. Em especial, aos meus amigos Dr. Carlos Roberto Gonalves e sua mulher Maria
das Graas Silva Cardoso pelo apoio e ajuda, me concedendo o lugar e as condies
necessrias, em um momento decisivo em que me encontrei, sem o que dificilmente
poderia ter concludo este meu trabalho. A todos os meus sinceros agradecimentos.
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RESUMO
DA COSTA, Daniel: A imergncia da pessoa humana na histria Ensaio sobre a filosofia radicalizante (protestante) e o cristianismo ateu de Pierre Thvenaz. 2014. 482 pginas. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
Sob o signo do aprofundamento e da intensificao da conscincia de si, o ato filosfico de Pierre Thvenaz se define como uma filosofia radicalizante. E porque no
abre mo e nem elide o lcus de resposta do qual seu ato filosfico toma sua
consistncia prpria que o da tradio protestante pode receber o complemento
(protestante). Assim, uma filosofia radicalizante (protestante). Isso porque a
secularizao da filosofia, a que seu mtodo de radicalizao leva de modo conseqente,
j pressupe a assuno da prpria contingncia que conscincia de condio.
Conscincia de que se fala de algum lugar; conscincia de que o pensamento se
encontra previamente engajado em um especfico hic et nunc que, por conta da
condio, recebe sua densidade prpria e no pode mais ser cotado no trato das formas
abstratas do tempo e do espao. O que j um dos ndices da superao thvenaziana da
reduo da filosofia epistemologia, tal como se tem estabelecido aps Kant. Nesse
sentido, a abertura plena contingncia pela radicalizao forar a mudana do
problema do sentido, ligado pela fenomenologia conscincia intencional, para o
problema da hermenutica histrica. Quer dizer, para o da compreenso dos eventos
significativos que tm poder de reorganizar em torno de si o movimento da histria.
Com a epoch do sentido, lanada sobre o ncleo mesmo do que a fenomenologia
husserliana descobrira como a atividade prpria da conscincia intencional, assim, um
passo decisivo no movimento de radicalizao thvenaziana, s restar razo
filosfica (ao ser humano) tomar o sentido como tarefa por se fazer, inacabada e no
garantida. Esse passo negativo, todavia, no recebe, em Pierre Thvenaz, o tom de
palavra final, de ltima palavra. Pois se assim fosse, serviria ainda como libi para a
instaurao de uma nova instalao. Desta vez to segura no negativo quanto o era na
ingenuidade otimstica do sentido garantido. O qual permanecia na conscincia
intencional como ainda um ltimo bastio de fora e de atrao, exercido sobre a
conscincia ingnua da atitude natural, sem ser superado. Isso porque agora a razo, j
tendo alcanado um nvel profundo de conscincia de sua condio humana, de sua
contingncia, de sua fraqueza e equvoco sempre possveis, para continuar sua atividade
crtica costumeira, sua vocao mesma, dever aprender a tirar fora de sua fraqueza. A
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razo ter de se desdivinizar; de parar de tentar falar por Deus, ou pelos olhos de Deus;
de parar de postular reduplicaes de si como razo juiz ou razo instncia no tocada
pela crtica. Ela dever assumir-se como estando em crise: assumir-se como humana, e
humana s.
Ora, esta possibilidade inusitada que se abre prpria razo pela radicalizao,
como vemos, no surge do nada. Ela representa, no inverso mesmo, outra
possibilidade que que Hegel estabeleceu na linha do horizonte e cuja atrao exercida
no interior do pensamento contemporneo bem mais sutil e presente do que parece.
Por isso, ser preciso desvencilhar a metafsica de certos comprometimentos histricos
que a tm desacreditado, para se chegar ao seu mais autntico ncleo afim
radicalizao. Pelo que o signo da defesa da especificidade e da singularidade contra as
categorias gerais continentes; o signo da defesa das irredutibilidades aos reducionismos,
espiritualistas ou materialistas, ser o que caracteriza, para Thvenaz, o movimento
mais interno metafsica ocidental. Este signo o do espao ontolgico que a
metafsica, descoberta por Plato, esclarece a necessidade de que seja mantido entre as
grandezas em relao. Todavia, para ativar o que esta descoberta, neutralizada sob a
lgica auto contida de uma razo autista, poderia auferir em termos de aprofundamento
da conscincia de condio, ser necessrio um apoio externo razo. E este ela o
recebe da experincia choque de imputao de loucura sobre ela que a f crist
primitiva lanou. E no sendo possvel razo avaliar a justeza de tal imputao, pois
no se trata de mais um argumento lgico com o qual ela jogar o seu jogo, a razo
levada a verificar por si mesma a pertinncia de tal possibilidade. E assim, nessa nova
disposio, um campo insuspeito e infinito, sobre o qual ela pode retomar sua atividade
crtica, inesperadamente se abre. S que agora esta atividade j no poder mais ser
exercida sob o selo de sua inconscincia e do seu autismo tradicional, mas sob o novo
ndice de uma conscincia de condio aprofundada que muda o registro do
cumprimento de sua vocao para o de uma atividade intelectual responsvel no aqui
em baixo, neste mundo.
Palavras-chave: atesmo; autarquia; autismo da razo; Bergson; corpo; cristianismo; Cristo;ceticismo moral; conscincia de si; crise da razo; Deus; dialtica; epoch;epistemologia; evidncia; existncia; f; fenomenologia; filosofia secularizada; filosofia corporificada; gnose; hermenutica; histria; historicidade; dolo; imanncia; imergncia; intencionalidade; metafsica; mtodo;princpio protestante; psiqu; radicalizao; razo; reflexo; sentido; verdade; vocao; responsabilidade
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ABSTRACT
DA COSTA, Daniel: The immergence of human person in the history Essay about the radicalizing (protestant) philosophy and the atheistic Christianity of Pierre Thvenaz. 2014. 482 pp. Thesis (Doctorate) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.
The philosophical act of Pierre Thvenaz, that takes the sign of the deepening
and intensification of self-consciousness, it is here defined as a radicalizing philosophy.
Because he doesnt abandon and doesnt hides the locus of his answer, of which
philosophical act takes its consistence whereas it is the protestant tradition his
philosophical act can to receive the following complement: protestant. So, a (protestant)
radicalizing philosophy. It is because a secularization of philosophy, for which his
method of radicalization leads consequently, already presupposes the accepting of self-
contingence that is consciousness of condition. Consciousness of speaking from
somewhere; consciousness of the thought has finding prior engaged in a specific hic et
nunc. Because of condition receives its characteristic density and so it cant be quoted in
the rank of abstract forms of time and space. It is one of the evidences of thvenazian
overcoming of reduction of philosophy to the epistemology, as it has been fixed after
Kant. This way, the full overture to the contingence by radicalization will compel the
change of the problem of sense, connected by phenomenology to the intentional
consciousness, to the problem of historical hermeneutic. I mean, to the understanding of
meaningful events that have capacity to reorganize around themselfs the movement of
the history. The epoch of sense puts on kernel of husserlian phenomenology, it
founded as the specific activity of intentional consciousness, so a conclusive step in the
motion of thvenazian radicalization, only rest to philosophical raison (namely, the
human being) to take a sense as a task to be make unconcluded and no guaranteed. This
negative step, however, no receive in Pierre Thvenaz the hue of last word. So this way
serve or it would be serve still as an alibi for the setting of a new ideological fixed. This
time, such certain on the negative as it were on optimistic naivety of secure sense. This
remained in the intentional consciousness as still the last bastion of power and
attraction, exerted on the nave consciousness of natural attitude, that is, without
overcoming. This is because now the raison had already reached the deep level of
consciousness of its human condition, (its contingence), of its weakness and
misunderstanding always possible. Then, for it to continue its usual criticism activity, its
calling, it must to learn to take advantage from its weakness. The reason must be
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undivinize by itself; to stop to try speaks instead eye God; or by Gods eyes. It must be
to stop to claim self-reduplications as judge or instance raison never touched by
criticism. It must looks like being in the crisis condition; to admit yourself as human,
only human.
However, this unused possibility that appers the own reason, through
radicalization, as we can see, it doesnt emerge from nothing. This typify, in the exact
converse, another possibility that Hegel sets up on horizon line whose appeal, inner of
the contemporary thought, is more subtle and present than it seems. So, it would be
necessary to separate the metaphysic from certain historical commitments that made its
discredit, to reach to its more authentic pith related with the radicalization. So, the sign
of defense of specificity and singularity against the continent general categories; the
sign of defense of no-reductive quality to the reduction, spiritualistic reductions or
materialistic reductions, will be the main character, for Pierre Thvenaz, the more
internal movement of occidental metaphysic. This sign is from ontological space, that
the metaphysic founded by Plato clarifies the need to keep on among the magnitudes in
relation. However, to start activing this discovery, which has been neutralized about the
self-contained of an autistic reason, it might obtain in terms of deepening of
consciousness of condition, will be necessary an external support to the reason. And the
reason receives it from shock-experience of imputation of madness on the reason that
ancient Christian faith launched. But, it not been possible for the reason to evaluate the
right of that imputation, because it wasnt the most logical argument for the reason to
play its game. So, the reason is conducted to checking itself the relevance of such
possibility. And so, in this new arrangement, an unsuspected field open to the reason, on
which the reason can to retake its criticism activity, suddenly open. But, now, people
can`t practice this activity anymore about its traditional unconsciousness and its autism.
But about the new evidence of a consciousness of condition deepening that changes the
key of the perform of its calling, now as responsible intellectual practice on the here-
under, in this world.
Key-Words: atheism; autarky; autism of reason; Bergson; body; Christianity; moral skepticism; consciousness of self; crisis of reason; God; dialectic; epoch; epistemology; evidence; existence; shock-experience; faith; phenomenology; secularized philosophy; bodied philosophy; gnose; hermeneutic; historicity; immergence; intentionality; metaphysic; intentionality; method; protestant principle; psiqu; radicalization; reason; sense; reflection; transcendence; truth; call; responsibility
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INTRODUO
Durante o meu estudo da obra de Emmanuel Mounier, em que caracterizo seu
ato filosfico pelo tom da emergncia da pessoa humana na histria, em meu percurso,
deu-se o encontro com Pierre Thvenaz. Primeiramente pelo seu artigo (Refus du rel et
spiritualit) que se encontra traduzido ao final deste estudo como Anexo, e depois
pelo artigo de Paul Ricoeur em homenagem a Thvenaz (Pierre Thvenaz, um filsofo
protestante). Ambos estes artigos, sem dvida com o de Ricoeur mantendo maior peso
por tratar-se de uma verdadeira Introduo ao pensamento de Pierre Thvenaz escrita
com a fineza de um filsofo que sabe medir o peso das palavras e das proposies em
relao ao pensamento alheio, foram suficientes para me abrir a via pela qual o
movimento integrativo ao movimento de emergncia que eu havia delineado em minha
aproximao a Emmanuel Mounier, e que aqui o movimento de imergncia da pessoa
humana na histria, pareceu-me agora claro. Frente s minhas preocupaes, isso se me
mostrou verdadeiramente como um achado. Em pleno solo personalista, pois Pierre
Thvenaz e Albert Bguin eram correspondentes diretores da Esprit francesa de
Mounier na Sua, encontrei um pensador cujos textos se alinhavam plenamente afins s
minhas prprias intenes de continuidade de pesquisa.
Nesse sentido, o fato de sua obra constar em sua maior parte de artigos isolados
se me mostrou primeiramente como uma dificuldade quanto ao desejo de encontrar qual
seria a linha de continuidade, sua sincronia prpria. O que, a nosso ver, em um projeto
de livro fica mais claro. Todavia, ao ler os textos, esta linha se me mostrou muito mais
clara quanto a uma inteno mais interna a estes do que eu poderia esperar de sua
expresso a partir de um arranjo meramente linear ou cronolgico deles. Isso, para mim,
uma vez mais, confirmou-me na ideia de que estava no caminho certo: havia
encontrado, em pleno solo da interioridade, da filosofia reflexiva, sem dever nada e em
nada ceder a qualquer tentao intelectualista ou racionalista, uma filosofia plenamente
integrada a um movimento que busca unificar vida e pensamento. Um daqueles tipos de
testemunho que, ao longo da histria da filosofia, tem se colocado como o ideal tico
mais elevado almejado por todo intelectual responsvel.
Nesse sentido, a densidade dos textos de Thvenaz, o modo incisivo pelo qual
ele apresenta os argumentos, se me mostraram como um verdadeiro testemunho de
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fidelidade a um mtodo. Enquanto que a intransigncia mantida quanto aos passos
tomados no encalo de uma inteno definida se me apresentaram a mim como
realmente a prova desde o incio desta fidelidade. O que a cada vez se colocou a mim
como sem vacilo. Fato que o carter metdico em Thvenaz, se se inspira em
Descartes, o faz mais pela assuno cabal da contingncia e do erro, que Descartes
valoriza muito e que justificar, desde ento, o trabalho cientfico. Nesse sentido, a
nfase no mtodo perseguido por Thvenaz, que daremos a seguir, tem a ver com a
nossa compreenso do seu ato filosfico como marcado por uma clara assuno da
contingncia, da situao e da condio humana. Em uma palavra, da fraqueza como o
novo ponto arquimediano sobre o qual o pensamento contemporneo lcido dever
buscar sua fora, agora como filosofia humana secularizada. Na verdade, com o meu
maior contato com os textos, novamente, isso se me mostrou como uma realidade
marcante desde o incio da atividade intelectual de Pierre Thvenaz. Pelo que nesse
sentido que gostaramos que o nosso texto fosse lido e que o arranjo que lhe demos
fosse entendido.
Assim: o Captulo: I como exposio de como Thvenaz se alinha a nossa
prpria investigao sobre o personalismo; Captulo II: uma caracterizao geral que
procura situar o pensamento de Thvenaz na contemporaneidade; Captulo III: o
preparo do terreno e arranjo da cena que antecede o evento do cristianismo com a
experincia-choque da f crist sobre a razo filosfica; Captulo IV: temas que
aproximam e procuram apresentar as aderncias prprias do fazer filosfico
thvenaziano, que no parte do nada; Captulo V: exposio de um tema central pelo
qual se justifica a proposio do mtodo reflexivo thvenaziano, que o tema da
transcendncia para o interior; Captulos VI, VII e VIII: que constituem uma
aproximao aos temas centrais pelos quais o mtodo thvenaziano toma consistncia e
nos encaminha, pelo processo de radicalizao, ao enfrentamento de problemticas
caracteristicamente pertinentes histria da filosofia, segundo, a nosso ver, a leitura
original de Thvenaz; Captulo IX: apresentao dos elementos constituintes da
experincia choque da f crist sobre a razo filosfica e suas incidncias inadvertidas
sobre o fazer filosfico desde ento; e enfim o Captulo X: em que ns delineamos
nossa proposta de uma filosofia corporificada como continuao possvel do projeto
thvenaziano luz dos prprios indcios que se destacam, a nosso ver, de seus textos.
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Com efeito, graas ao seu lcus de resposta existencial em nenhum momento
elidido ou seja, a tradio crist protestante e o peso das provocaes salutares
hodiernas do telogo seu compatriota Karl Barth contra as tentaes evasivas da razo
humana, o filsofo Pierre Thvenaz porque assumira a atividade intelectual como
vocao responsvel teve de responder altura da provocao. Ele se viu picado e
afrontado pelas exigncias da f crist que aquele telogo, daquele canto europeu
Basilia e naquele momento histrico seu preciso incio do sculo XX com a
permanncia militante de Barth durante o entre-guerras contra os totalitarismos havia
renovado. E agora por meio da expresso altissonante de um verdadeiro manifesto de
volta responsvel aos textos fundantes do Novo Testamento contra a diluio e
amortizao das exigncias da f crist neotestamentria. Esta que, ao ver de Barth, a
ideologia burguesa, por sua filosofia representante, o liberalismo, em sua verso
teolgica, havia, em esforo de sculos, submetido, neutralizado, desacreditado,
desclassificado e diludo no caldo geral da chamada histria geral das religes. Isso
para, em um segundo momento, esta ideologia conceder um lugarzinho ao sol burgus
bem comportado f crist: no da histria geral das religies comparadas e como
muleta moralizante de justificao da ordem social que a burguesia criara imagem e
semelhana do seu indivduo. Frente a este verdadeiro renovo da provocao da f crist
primitiva razo filosfica contempornea empreendida por Karl Barth, aqui e agora,
somos colocados diante no mais de apenas um flerte amigvel, de mais uma concesso
cheia de cuidados conciliatrios, ao modo da diluio liberal. No; agora se tratava de
uma verdadeira provocao razo filosfica vinda de um verdadeiramente outro
que no cedia em nada e se manteve em plena defesa de sua especificidade, de sua
singularidade. A um tipo de tmpera como esta, um intelectual responsvel deve dar
ouvidos. E foi exatamente isso que Pierre Thvenaz fez.
Ora esta provocao era, nas mos e boca de um Karl Barth, a repetio de um
evento do passado que se encontrava inventariado e neutralizado no rol do patrimnio
cultural ocidental. Como pea de museu na histria geral das idias religiosas da
humanidade, com interesse verdadeiro, no mbito da pesquisa, somente para um
arquelogo ou historiador das idias, algum diletante do antigo. Nesse sentido se
explica o encalo de Pierre Thvenaz em encontrar, pela leitura original que ele faz da
histria da filosofia ocidental, os indcios prprios pelos quais a provocao
movimentada por este evento encontrou suas aderncias mais prprias. E este encalo,
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nesta nossa presente aproximao, notamo-lo e afirmamo-lo como mantido desde o
incio de sua atividade intelectual, contra as leituras muitos diacrnicas do seu
pensamento nesta conexo. E se se trata de encontrar estas aderncias, bvio que esta
busca deve se iniciar, com efeito, sobre momentos bem anteriores ocorrncia deste
evento. Momentos, podemos dizer, que realmente prepararam, engravidaram a histria
at a sua ocorrncia. E se estamos falando de histria reorganizada pela fora de um
evento significativo, os constituintes deste evento devem ser observados. Estes
constituintes se encontram registrados nos textos fundantes do Novo Testamento. Ou
seja, o nascimento obscuro de Jesus de Nazar, vida na periferia da Palestina,
sofrimento pela fome e sede de justia, conseqente morte sobre a cruz de uma maneira
terrvel a que o requinte flagelar da poltica imperial romana havia chegado contra os
inimigos polticos do Estado (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum), inusitada
ressurreio corporal, para os prprios seguidores agora do Cristo, aps trs dias de
morto, e ascenso ao cu para viver para sempre com um corpo. Eventos que
ensejaram e inspiraram a singularidade da f crist primitiva. Diante disso, ou mais
exatamente, diante dos elementos heursticos constatveis que este evento propiciou e
ajudou a instigar na histria da cultura humana, creia-se ou no neles sob o ndice de
sua f, no se pode falar meramente de histria como categoria geral. Pelo que, com
efeito, isso explica o zig-zag que mantemos em nossa aproximao e organizao dos
temas que se apresentam esparsos mesmo no arranjo valoroso que os organizadores dos
artigos de Thvenaz no-los do na forma dos livros-coletneas aos quais tivemos acesso
ao seu pensamento radicalizante. Mas este zig-zag tambm o que nos esclarece o
carter metdico de Thvenaz que no visa o mtodo em si, mas aponta para outra coisa:
sua fidelidade investigativa que d o tom de seu encalo antes citado. Assim, se o zigi-
zag se refere ao respeito de Thvenaz pelo modo mesmo pelo qual a condio histrica
nos apresenta as coisas humanas, por este respeito que, a nosso ver, se esclarece a
dimenso diacrnica do seu pensamento. Enquanto que, para ns, a sincronia de seu
pensamento dever ser medida pelo tom de sua fidelidade ao seu mtodo.
Nesse sentido, portanto, diacronia e sincronia se encontram, em Pierre
Thvenaz, assumidas como categorias da existncia histrica ou historicizada. Pelo
que se esclarece o respeito do nosso autor, mesmo em sua clara filiao tradio da
filosofia reflexiva francesa, s exigncias postadas na linha do horizonte atual tanto pela
fenomenologia quanto pela nova hermenutica. s da primeira, enquanto implicao no
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ato de pensamento de um movimento de volta s coisas mesmas, e s da segunda,
enquanto implicao, no ato de interpretao dos textos que nos do acesso ao nosso
mundo, de um movimento de desenvolvimento da capacidade de descentralizao do
eu em vista da escuta atenta ao outro do texto. Como vemos, em ambas estas exigncias
contemporneas, h a necessidade de sada, de emergncia da pessoa. Todavia, em
Pierre Thvenaz, a nosso ver de maneira genial, esta exigncia cumprida por sua
filiao tradio da filosofia reflexiva. Pois nela que ele encontra o contraponto
preciso a este movimento de emergncia. O qual se coloca na linha do horizonte do
pensamento contemporneo como um ndice de busca da superao do individualismo
burgus moderno, nem sempre tomado com rigor por muitos dos que se dizem assumi-
lo, verdade. Todavia, este contraponto, em Thvenaz, encontrar seu lcus apropriado
justamente na esfera da vida interior de cuja investigao ele no se afastar enquanto
no encontrar as vias de uma verdadeira abertura. Esta se inscrever, aqui, graas ao
mtodo reflexivo, pelo movimento de intensificao da conscincia de si at a tomada
de conscincia radical da condio que possibilitar, ento, a partir deste movimento
primeiro centrpeto da conscincia, que ela exera o movimento segundo centrfugo.
Este agora dinamizado sobre um campo de investigao at ento insuspeito razo
filosfica porque esta se mantinha em seu autismo secular alimentando seu sono
dogmtico. Na verso antiga, sono dogmtico do alm (idealismo), na verso atual,
sono dogmtico do aqum (imanentismo). Pois, a nosso ver, a, pelas vias do
intelectualismo racionalista ocidental veiculado por toda uma tradio secular de
pensamento liberal, que a alma burguesa tem acampado e feito morada no mais ntimo
dos seus indivduos e que hoje j se insinua propondo-se mesmo como uma segunda
natureza humana. Assim, inoculando e contaminado, com seu veneno do ressentimento,
toda produo cultural humana, toda civilizao.
Ora, diante disso, Thvenaz no dar o passo emergncia sem antes investigar
o frum interior, a subjetividade, de cuja reabilitao, segundo o mtodo reflexivo,
depende a consistncia de toda a outra reabilitao da objetividade. Esta, infelizmente,
por causa do desaparecimento repentino do nosso filsofo (1913-1955), o que lhe
rendeu uma vida breve mas muito positivamente profcua, s nos possvel entrever em
pistas aqui e acol que sua investigao nos permite entrever. Todavia, no Captulo X da
nossa presente aproximao, um pouco, talvez, de maneira incauta da nossa parte, tendo
em vista um pensamento que foi conquistado, pesado e burilado com afinco, como o de
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Pierre Thvenaz, propomos uma continuao de sua obra pela proposta de uma filosofia
corporificada. Bem entendido, no simplesmente uma filosofia do corpo, que nos soa
ainda como uma cesso s filosofias do objeto. Pelo que, em sintonia com a
investigao aberta pelo movimento personalista, ao qual Pierre Thvenaz se alinha
conseqentemente, mantemos que sua filosofia radicalizante (protestante) continua e se
coloca sob o signo de uma filosofia relacional, uma filosofia da relao frente a todas
as verses atuais de filosofias da separao e de filosofias da identidade. Contra tanto as
verses das filosofias do individualismo quanto s verses de filosofias do absoluto.
Pois cada qual destas duas nada mais do que sempre uma verso que se mantm s
custas do reverso da outra. Uma meia-verdade se alimentado e se justificando pela parte
de mentira da outra: briga de famlia. Da nossa insistncia em no nomear a filosofia
de Pierre Thvenaz sem mais de filosofia sem absoluto. O que para ns manter
sombra o espectro de uma filosofia do relativo, ou seja, uma filosofia dos absolutos
pulverizados, o que no a proposta de Thvenaz. E se pospomos este nome de
filsofosia radicalizante (protestante) filosofia thvenaziana, e se um nome s coisas
sempre necessrio para que ensejemos os passos da comunicao, cremos justificar-se
aqui o nosso complemento ao tema deste trabalho de tese como ensaio. Porquanto,
como vemos, se um nome tem este duplo carter de necessidade e ao mesmo tempo de
instabilidade, por conta do equvoco prprio linguagem humana, cremos justificar-se
nossa aproximao ao ato thvenaziano que no propomos como final e nem como
exauridor de sua riqueza. Pelo que nas pistas de um Montaigne, preferimos v-la como
um ensaio, que, a nosso ver, se recebe menos o peso contido na palavra tese mantm,
no menos, o ndice de uma aproximao honesta a um pensamento cujo rigor mora em
outras casas que a da chamada filosofia da linguagem atual. Na casa em que a atividade
intelectual mantm o signo prprio de sua responsabilidade em linha com um
engajmento cada vez mais consciente de sua prpria condio humana contingente
frente ao seu mundo.
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CAPTULO I
O personalismo em Pierre Thvenaz
Uma palavra sobre o ttulo
Antes de tudo, a relao de Pierre Thvenaz com Emmanuel Mounier, de
tradio catlica romana e que empreendeu sua filosofia radical em Frana, nos sugere
alguns paralelos que no so desinteressantes notar. Em Mounier, sua adeso
espiritualidade catlica romana forava-o a uma crtica ao catolicismo romano em sua
tradicional tentao integrista. Crtica que, por outro lado, vai lev-lo a propor uma
atividade intensa, original e multifacetada de anlise dos constituintes da civilizao
ocidental em sua decadncia contempornea e que mantm suas razes nos constituintes
difusos da ideologia da burguesia moderna ocidental. Constituintes diludos hoje na j
grande maioria esmagadora (inclusive contando com muitos intelectuais) como esprito
pequeno-burgus, como Cultura, viso de mundo. Ou ainda, como quer a antropologia
sustentada por sua extenso ideolgica par, grande divulgadora e mantenedora de suas
instituies a (neo)liberal , como se tratando j, e contando com isso para o
delineamento de suas cincias humanas, de uma espcie de segunda natureza.
Enquanto permanecer o problema da inadequao, para o movimento personalista, de
se falar desde 1932 do ser humano em termos de natureza humana. Ao que Mounier
preferir a noo mais concreta de condio humana, usada por ele bem antes de
Hannah Arendt, que lana seu livro sobre o tema em 1958. Assim, Mounier pretende
prestar ateno e responder, no seu estilo diferente de filosofar, s crticas de
Kierkegaard, Nietzsche, Freud e Marx cultura ocidental, cada qual a seu modo.
Resposta que pode ser caracterizada1 enquanto e com base, em Mounier (a nosso ver),
na interpretao da expresso do movimento da pessoa livre e criadora, em sua luta pelo
real na histria, delineada antes em perspectiva com a busca de compreenso do seu
movimento de exteriorizao. Justamente exterior instituies e cultura onde a 1 Ver nosso estudo: DA COSTA, Daniel: A emergncia e a insurgncia da pessoa humana na histria - ensaio sobre a construo do conceito de dignidade humana no personalismo de Emmanuel Mounier, Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a Obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, So Paulo, 2009, passim.
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tentao do integrismo romano propunha montar suas bases apologticas pautadas em
certo saudosismo histrico. Assim, no obstante Mounier entender a filosofia de
Jacques Maritain, o grande filsofo catlico romano da contemporaneidade, como
inspirada e nutrindo uma grande homenagem inteligncia humana, vai se afastar de
Maritain justamente no ponto em que esta homenagem lhe parecia campear nitidamente
e comprometer o exerccio livre da inteligncia em uma atitude integrista.
Em Thvenaz, de tradio protestante e pertencente ao mesmo movimento
personalista, h o empreendimento, a partir do solo suo, de uma crtica tentao
prpria espiritualidade protestante que encontra seu lugar no na exterioridade, como
o caso do integrismo catlico romano, mas na interioridade da pessoa, no mbito
mesmo onde se dinamiza sua experincia de f. Todavia, assim como a Igreja Romana
passou a se sentir em casa no mundo medieval que ela realmente ajudou a criar e que
lhe parecia cada vez mais expressar sua prpria imagem e semelhana, tornando-se,
depois, refm desta mesma instalao com os riscos e problemas que teve de enfrentar
por isso; as igrejas protestantes passaram a se sentir em casa no mundo que elas tambm
ajudaram a criar com o mesmo sentimento de que este mundo carregava sua imagem e
semelhana. Sentimento que lhes rendeu, por sua vez, a mesma sensao de instalao
neste mundo (burgus), com os riscos e problemas que tiveram e tm de enfrentar por
isso no que, especificamente, a tese de Max Weber permanece vlida. Todavia,
permanece, a nosso ver, um carter distinto destas duas instalaes que aqui tentamos
apresentar.
Enquanto a Igreja catlica romana mantm sua fonte no saudosismo
contemplativo a partir da constatao cabal de sua presena e de sua vida mesma na
exterioridade da longa histria de suas instituies, a protestante mantm a sua base
porque v sempre o seu lugar garantido, protegido e sem risco, na economia da suposta
sociedade laica criada pela ideologia liberal a partir do sculo XVIII no Ocidente, mas
que tem seu incio j no sculo XVI com o racionalismo. Com efeito, o que tem
possibilitado e justificando esta sua existncia a retrica liberal, de tipo neokantiana,
por exemplo, que busca manter um lugarzinho, s igrejas protestantes, de auxiliar e
muleta moralizante neste mundo burgus: mundo do dinheiro (capitalismo); mundo de
sua pseudo poltica (jogo do poder, em vista de se saber quem manda e quem
obedece); mundo do seu esquema de objetividade abstrata (lgica auto-contida e auto-
regulada de suas instituies sem a necessidade de interferncia humana responsvel);
mundo de violncia sistemtica pela capacidade de refinamento e subtilizao a que a
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longa histria de sua dominao totalitria, porque inscrita j na intimidade dos seus
entes de razo chamados indivduos como esprito pequeno burgus, tem chegado.
E assim, vemos que a ambas estas tradies as palavras do apstolo Paulo: No se
tornem conformes ao esquema mental que constitui este mundo, mas transformai-vos
pela renovao da vossa mente, para que possam experimentar qual seja a boa,
agradvel e perfeita vontade de Deus. (Romanos 12.2), j no lhes diz muita coisa.
Como vemos, ento, e para o que nos interessa aqui, no apelo exigncia da f
que a espiritualidade protestante acabou em muito, em sua histria, cedendo a sua
tentao faddica de fideismo. Todavia, esse comprometimento da f crist, por parte
do protestantismo, com o fidesmo, para Pierre Thvenaz, no ser a ltima palavra
sobre a vida da f, ou a f viva. Pelo que, de incio, deve-se fazer distino. Assim, ser
justamente no solo da expresso da pessoa livre e criadora em sua luta pelo real na
histria, e no mbito desta esfera mesma de sua vida ntima de f, de sua vida interior
portanto, enquanto movimento de interiorizao que Thvenaz, diferente de Mounier,
preferir entend-la, por lhe parecer mais concretamente histrica e existencial, sob a
rubrica da pessoa em condio do que sob condio.2 Assim, a voz de Karl Barth no
incio do sculo XX, mal compreendida em sua inteno purificadora e profiltica, a
nosso ver, no obstante tender a se confundir com o fideismo, sem necessariamente
implicar uma condio necessria de atrelamento ltimo, por causa mesmo de sua
radicalidade, ser sentida ao menos com muito mais fora no que se convencionou
chamar de o primeiro Barth como um flerte perigoso com esta tentao prpria da
espiritualidade protestante. Todavia, Thvenaz vai procurar responder crtica barthiana
arrogncia da razo humana levando em considerao o que esta mesma crtica
carrega de verdade e em que, dialeticamente, ela pode inspirar uma liberao indita da
razo por si mesma em um exerccio racional autnomo e crtico dinamizado sobre um
novo campo de atuao que o da interioridade aprofundada e intensificada como
conscincia de si.
2 Parece que esta preciso quanto ao conceito de condio proposta por Thvenaz poderia tambm, a nosso ver, se referir mesma noo que Sartre vai manter, por exemplo, em O existencialismo um humanismo, em substituio noo de natureza humana mas, em um segundo momento, retomando-a, sub-repticiamente a nosso ver, com a sua proposta de uma condio humana universal. O que nos parece uma troca de palavras para dizer a mesma coisa. Cf. SARTRE, Jean-Paul: O existencialismo um humanismo (com estudo introdutrio de Vergilio Ferreira: Da fenomenologia a Sartre), Coleo Sntese, Editorial Presena Livraria Martins Fontes, Lisboa, 1970, p. 215 e p. 251 ss. Ainda sobre isso, ver como Sartre procura apresentar sua universalidade a partir da liberdade. Todavia, se a liberdade o que em Sartre, um peso, uma condenao, desejar a liberdade do outro , ao que parece, um sinal de ressentimento ou m-f.
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Assim, completando o movimento de transcendncia como direito3, pois a
transcendncia na pessoa criadora no somente uma noo, mas expressa uma luta e
proteo contra os reducionismos, h ainda o direito da pessoa criadora escavao
conceitual. Este movimento de escavao conceitual, que se d como busca do
desprendimento necessrio (libertao) dos prprios conceitos e idias, no um
movimento espontneo, natural, da pessoa. Pelo que este movimento se define, em
Pierre Thvenaz, como uma transcendncia para o interior.4 E tambm, porque este
movimento de libertao da pessoa se d na forma de uma luta pelo real e se fazer
filosofia , como entende Pierre Thvenaz, sempre lutar contra as iluses e as
mentiras, com efeito, ser, a nosso ver, sob o signo desta luta interior contra os
dolos que encontramos um elo de ligao entre os dois. Porquanto, na histria da
filosofia se tem estabelecido, quanto transcendncia, um peso maior enquanto
expresso de exterioridade. E indo mais longe no dgrad pelo qual o conceito se
consente: como expresso de fuga deste mundo e negao do corpreo. Da a crtica
contempornea metafsica que o conceito, descoberto por Plato, que abre campo
para se pensar a transcendncia.5 E esta comodamente tomada como um conceito de
polarizao ao puro fenomenismo ctico, o que tem mantido o problema da realidade
sob a tradicional disputa, de cunho racionalista-intelectualista, que sempre posto na
forma de disjuno maniquesta.
Todavia, no modo como Pierre Thvenaz desenvolve seu mtodo,
transcendncia incide muito mais propriamente sobre a explicitao do estatuo da vida
interior, da subjetividade, como imprescindvel mesmo para o segundo passo dado em
funo da prpria objetividade.6 Assim, no nvel mais interno expresso da pessoa
enquanto racionalidade aprofundada como movimento reflexivo da conscincia de si,
3 O que desenvolvi em meu estudo sobre o personalismo de Emmanuel Mounier, op. cit. passim. 4 Desenvolveremos esta noo usada por Pierre Thvenaz no Captulo V. 5 Crtica esta que definiremos, mais frente, com as respectivas implicaes para esta mesma crtica, como uma crtica moral, antes que epistemolgica. (Cf., abaixo, Captulo II.) 6 O que demonstra claramente a perspectiva antropolgica que o pensamento de Thvenaz desenvolver desde o incio contra, por exemplo, o ensaio introdutrio de JAMES M. Edie da traduo inglesa do texto de THVENAZ, Pierre, What is phenomenology?, A Quadrangle Paperback Original, Chicago, 1962, pp. 13 a 36; o livro de HORT, Bernard: Contingence et intriorit, Prface de Paul Ricoeur, Labor et Fides, Lausanne, 1989, passim; o livro de JERVOLINO, Domenico: Pierre Thvenaz e la fiolosofia senza assoluto, Editzioni Studium, Roma, Seconda Edizione, 2003, passim, entre outros, que propem tanto uma nfase mais diacrnica o que contesto propondo que seja mais sincrnica (ver abaixo os Captulos VI, VII e VIII sobre o mtodo de Thvenaz) na curta trajetria intelectual de Thvenaz entendendo haver um primeiro e um segundo Thvenaz, quanto a proposta de um plotinismo (e seu conseqente acosmismo) do jovem Thvenaz, o que tambm contesto por motivos de mtodo que, a meu ver, no foram suficientemente observados por estes comentadores.
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temos em Thvenaz uma clara proposta de reabilitao da objetividade pela via da
interioridade.
Todavia, este movimento prprio da pessoa criadora tem, de muitas formas, sido
inibido aps mesmo ter sido tateado timidamente, na histria da filosofia, no que se
refere ao sentido mais radical e especfico de seu movimento. Assim, esta inibio no
faltou em deixar suas marcas na histria da metafsica ocidental.
Na Antiguidade pr clssica dos gregos, a transcendncia faz fora para se
explicitar. E isso com a descoberta, graas intuio religiosa7, da psiqu, tida como
de origem divina e eterna pelos cultos populares de mistrio em especial pelo culto
rfico. Isso contra o culto cvico homrico, em seu tradicional apoio ao predomnio das
prerrogativas da polis grandeza sociolgica e de carter geral sobre a singularidade
individual.8 Esta que posteriormente ser aprofundada pela reflexo crist dos primeiros
filsofos-telogos cristos pela noo de pessoa. Conceito da ordem da particularidade,
da especificidade, da singularidade. 9 Portanto, na realidade grega, a singularidade
humana sempre fora tomada como subsumida ao imprio desta, no obstante, grande
conquista da humanidade que foi a Polis. Assim, como apresentamos mais frente, ser
graas intuio religiosa popular da psiqu, dos cultos de mistrio surgidos
aproximadamente em 700 a.C., que se descobriu e abriu campo, por este precedente
intuitivo especfico, tanto para o fazer filosfico propriamente dito como atividade
7 E esta ser a tese central defendida por ns neste captulo. 8 O que, a partir do sculo primeiro, a tambm experincia religiosa popular levada a cabo pelos primeiros cristos, indita na histria da espiritualidade humana, ir elaborar motivos teolgicos delineados e desenvolvidos no obstante com o apoio da tradio do pensamento filosfico. E isso em termos que no deixaro de veicular contedo heurstico suficiente para o aprofundamento da noo de pessoa a partir, principalmente, da descoberta e proposta de um outro princpio de individuao no contemplado pelos gregos que optaram pela psiqu. Este novo princpio de individuao ser o corpo, pensado, agora, com base nos eventos da pscoa: a ressurreio corprea de Jesus Cristo. A contribuio disso para a entrada definitiva mas ainda no desenvolvida no pensamento filosfico, (em sua busca de autonomia racional), da noo de evento singular significativo, da historicidade e contingncia inspirados, por sua vez, sobre a crena bblica central na criao, no alcanada tambm pelos gregos, ser uma outra tese defendida neste estudo e que se esclarecer no Captulo X, que a nossa proposta de continuao possvel da pesquisa inconclusa de Pierre Thvenaz. 9 O que no Captulo I pretendo esclarecer, em contraste com outras propostas sobre o motivo mais bsico que ensejou o surgimento da filosofia. Ali como se tratando da descoberta do elemento que abriu o precedente inusitado para o surgimento tanto da filosofia quanto da democracia. Aquela, enquanto atividade levada a cabo por uma pessoa singular que tenta refazer e responder s perguntas emergentes que a humanidade sempre fez valendo-se agora, no entanto, de sua prpria fonte vital sua psiqu, que ser depois ao longo da histria da autonomia do pensamento filosfico antonomsia de razo. A outra, enquanto regime que, ainda em seus primeiros ensaios na Grcia ligado s prerrogativas de ascendncia e posses, todavia inspirar, ao longo da histria das idias polticas, sua radicalizao no respeito singularidade do cidado como tal, por si, como suficiente para o exerccio do seu direito de participao nos negcios da cidade.
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racional individual, quanto para o aprofundamento posterior reflexivo e ordenado
filosfico desta mesma noo de psiqu. Pelo que, com isso, este imprio tradicional
das prerrogativas da Polis sobre as da singularidade humana encontrou um grande preo
pelo qual foi afrontado. Assim, porque abriu este precedente necessrio na histria da
racionalidade humana, possibilitou o surgimento da filosofia como uma atividade
levada a cabo por uma pessoa singular que se valer agora unicamente de suas
potencialidades psquicas, ou racionais, para responder e fazer as perguntas que eram
respondidas pela tradio mtico-religiosa. Respostas que carregavam sempre a defesa
do estatuto divino e inamovvel da Polis. Mas tambm porque serviu, assim, para abrir
campo para a maior transformao poltica, revolucionria, iniciada por Solon e levada
a cabo por Clistenes, que foi inveno da Democracia. Noo que tem justamente na
base a valorizao da singularidade de cada cidado como noo suficiente para sua
participao e interferncia nos rumos da Polis, antes determinados pelos ideais
aristocrticos (oligrquicos) tradicionais. No obstante a democracia restrita dos
gregos antigos, ser o ncleo de significado da democracia ou seja, a afirmao do
estatuto prprio da singularidade na vida poltica que far histria at chegar as atuais
intenes democrticas.10
Na seqncia dos fatos, o princpio de individuao chamado pessoa, intudo
pela espiritualidade popular do cristianismo primitivo no apenas como psiqu, mas
como corpo, afrontar a cultura grega que a retinha com nfase sob o imprio desta
instituio da psiqu j como patrimnio heurstico intelectul suficiente. Tanto em
relao s bases para se pensar a ontologia (csmica) tpica quanto a antropologia.
Alm disso, com o desenvolvimento do pensamento filosfico da modernidade
burguesa ocidental, graas perenidade e subtilizao do que permanecia como legado
e em linha com a intuio da psique, a esttica intelectualista agora se manter na forma
de ideologia da razo, ou racionalismo. Contra esta, a intuio crist primitiva se
manter tambm com fora heurstica de afrontamento. Pois frente a este continusmo
histrico, a descoberta de uma ampliao e radicalizao do princpio de
individuao pelo cristianismo primitivo se dar pela sua intuio do soma, corpo.
Todavia, alm de ser inibida, a heurstica deste novo princpio ser, no Ocidente a partir
do sculo XVI, por todos os meios em busca de especializao e autonomia (cincia,
10 Sobre todo este processo, cf. o estudo clssico de VERNANT, Jean-Pierre: As origens do pensamento grego, DIFEL, So Paulo, 1986, passim.
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poltica, histria, jurisprudncia etc.), atacado, neutralizado e exaurido em suas
capacidades libertadoras. Isso porque, a preocupao da burguesia emergente foi a de
estabelecer, fixar, contra o quadro medieval em ocaso, os novos arranjos de ordenao
da sociedade que ela queria criar a sua imagem e semelhana. O que se deu, tambm,
pelo empenho de conformao e dominao exercidas, desde ento sobre esta inteno
autntica de busca de autonomia das cincias, que foi prosseguido pela ideologia difusa
e complexa do liberalismo, atual neoliberalismo, em seu carter, em profundo, esttico
que ali, no obstante, sub-repticiamente j se anuncia, se infiltra e delineia seus
primeiros passos.11 Isto por meio de todas as suas expresses, pragmticas e utilitaristas
quer dizer, suas expresses de decadncia, desvirilizao, exaurimento e neutralizao
do prtico na ideologia do pragmatismo e do til humano na ideologia do utilitarismo,
cuja vitria claudicante presenciamos hoje. Assim justificando, aps a vitria de suas
instituies, hipocritamente sua decadncia com o que chama de bom-senso e em
vista da consecuo de uma sociedade do conforto, sempre para poucos.12 Pois tratar-
se-, desde ento, no mago de sua inteno mais profunda, sempre do motos bsico de
sua retrica comandado por sua auto-justificao e legitimao social. Assim, esta
ideologia difusa tem cumprido o ideal burgus que j tem se transformado em
esprito, quer dizer, em cultura. Este ideal burgus, estando ligado ao sonho de
instalao burguesa, mesmo que sobre a injustia, com justificao racional de toda
misria e injustia que sua decadncia tem perpetrado h quinhentos anos, depois da
vitria dos seus ideais, tem conseguido estabelecer, j como costume (que se quer, como
dissemos, enquanto uma segunda natureza), a prevalncia destes seus pseudo-valores
no Ocidente.
Assim, ao impedir esta escavao da pessoa, o pragmatismo liberal, nesse nvel
notico de sua infiltrao nefasta, deixa-nos entrever o arbitrrio de suas asseres
abruptas que devem ser aceitas sem questionamento como sendo a expresso mesma
do bom-senso, digo, da natureza das coisas tais como elas so. Assim, este
movimento de escavao proposto por Thvenaz se justifica, tambm, como crtica
11 Da a nossa proposta de anlise cientfica, ou seja, da busca de esclarecimento e explicitao do ncleo duro, dos princpios de inteligibilidade do fenmeno complexo do liberalismo, sem sermos essencialistas, ser plenamente justificada cientificamente. E isto contra a prpria retrica apologtica dos partidrios desta ideologia que pretendem defend-la como se tratando de uma expresso contgua mesma, nas reas em que ela se infiltra (poltica, jurisprudncia, educao, religio, economia etc.) da prpria natureza das coisas. 12 Nova aristocracia do conforto, sutilizada, para a massa, como sonho de conforto em meio ao total desenraizamento, insegurana e mentira de sua retrica de auto justificao.
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visceral ideologia. O que caracteriza as pesquisas levadas a cabo pela equipe de
intelectuais que compuseram o movimento em torno da revista Esprit, administrada em
Frana por Emmanuel Mounier, e que manteve uma extenso em Sua administrada
por Pierre Thvenaz e Albert Bguin.13 Pois a partir do momento em que, no nvel das
relaes polticas, no diretamente tratadas por Thvenaz, verdade, mas que no
deixam de apontar suas incidncias e de imprimir um alcance para a tica14, como
apresentei em minha dissertao de mestrado sobre o personalismo de Emmanuel
Mounier15, podemos perceber o arbitrrio que parte intrnseca da ideologia liberal
tambm nessa esfera do prtico. Pelo que quer se manter pelo otimismo naturalista
expresso pela convico irracional e ingnua da existncia de estruturas ditas
autnomas e auto-reguladas vistas como expresso mesma da natureza, de como as
coisas so, que comandam suas instituies racionais. Pelo que sua burocracia e
impessoalidade tomam sua legitimao cientfica quanto mais aceleram e otimizam o
seu Eros. Todavia, instituies sempre humanas, demasiado humanas e, como tais,
passveis de crtica, e aqui, com Pierre Thvenaz: crtica radical, no meramente
epistemolgica.16
que, a nosso ver, com os seus pares histricos, ou seja, a moral burguesa, o
individualismo reivindicador, o mundo do dinheiro (capitalismo), a pseudo-democracia
representativa e parlamentar e seu aparato juridista, juntos, representam apenas
estruturas que, dialeticamente, foram o adiamento ao mesmo tempo em que engendram
o tirano encubado que s espera o momento de reivindicar seu direto ao despojo na
histria.17 Nesse sentido, vemos que a pessoa no precisa s de um movimento real de
transcendncia como direito, j que tem sido falsaeado pelo pseudo-movimento do tipo 13 Isso tambm esclarece o carter engajado da reflexo de Pierre Thvenaz, desde o incio, que os comentadores que defendem um plotinismo no que chamam de primeiro Thvenaz, para ns, no conseguem ver. 14 Principalmente, mas no unicamente, no ltimo livro projetado por THVENAZ, lanado postumamente, (La condition de la raison philosophique, Col. Etre et Penser, ditions de la Baconnire Neuchatel Sua, 1960.) e infelizmente no acabado, onde vemos j as linhas orientadoras para o que consideramos ser, e tentaremos desenvolver aqui no Captulo X, a proposio de uma filosofia corporificada. O que, a nosso ver, compe mais um aspecto de nossa crtica a Bernard HORT e outros que vem, no que chamam de primeiro THVENAZ, uma filiao do jovem filsofo a Plotino, que conseguiu escrever filosofia sem a necessidade de uma mnima referncia realidade concreta, poltica de sua poca. E esse dado em Plotino no fortuito, algo mesmo constitutivo de sua metafsica: para Plotino sua maior vergonha era estar em um corpo. Cf. ULLMANN, Reinholdo Aloysio: Plotino: um estudo das Enadas, Col. Filosofia 134, 2 edio, EDIPUCRS, 2008, p. 109 ss. 15
DA COSTA: A emergncia e a insurgncia ..., op. cit.: Quarta Parte Captulo III: Personalismo e liberalismo. 16 Com o desenvolvimento deste estudo, creio que ficar clara a distino. 17 Segundo Emmanuel Mounier, como vimos no nosso estudo, (op. cit, p. 595) o fascismo, o nazismo e o comunismo so filhos bastardos do capitalismo.
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esteira aerbica que parece caracterizar a pseudo-transcendncia deixada a ns por
um determinado ramo do chamado pensamento contemporneo. Pois contra os
reducionismos e objetificaes que a espreitam na inteno da conteno do seu lan
criador e que se do na esfera do poltico, necessrio algo mais vivo. A pessoa
criadora precisa tambm, contra as objetificaes que a espreitam na esfera notica,
em sua expresso enquanto racionalidade, do direito escavao: pelo que em Pierre
Thvenaz a reabilitao da objetividade passar pelo crivo de uma subjetividade
consciente de si. nesse sentido que, segundo Emmanuel Mounier, com o que Pierre
Thvenaz concordaria, a pessoa sendo um infinito, ou ao menos um trans-finito, seu
movimento no s, para usar a metfora potica, ascendente, mas tambm
descendente. Um infinito, ou trans-finito, se as palavras tm sentido, o em ambas
as direes.18 Portanto, trata-se de um nico movimento em duas perspectivas distintas
e complementares. Pelo que em Pierre Thvenaz, veremos aqui o aprofundamento e
radicalizao do movimento de interiorizao no aprofundamento da conscincia de si,
o que chamamos tambm de imergncia da pessoa na histria.19
Dissemos mundo exterior e interior. Todavia, mais em relao emergncia da
pessoa humana na histria, assim, em sua expresso exteriorizada, aprendemos com
Emmanuel Mounier a luta pelo real que ela trava. E mais em sua expresso
interiorizada, aprendemos, com Pierre Thvenaz, a luta que a pessoa deve travar em sua
intimidade, com os seus prprios dolos. Luta no menos tensa e nem menos difcil!
Com Thvenaz, o ato filosfico retoma a sua inspirao original de radicalidade como
filosofia reflexiva. O ato filosfico finalmente alcana-se a si mesmo, em seu carter
reflexivo, e em seu estatuto contingente e histrico. Com o signo de sua incumbncia
responsvel pela quebra da Razo divinizada como o grande dolo para a reabilitao
da razo humana dinamizada sobre um campo de atuao ainda apenas timidamente
tateado. Ainda e apenas timidamente cultivado, mas cujas descobertas e alcance
18 Ver a definio de infinito em Nicolau de Cusa em: MONDOLFO, Rodolfo, El infinito en el pensamiento de la antigedad clsica, Ediciones Imn, Buenos Aires, s.d., Captulo XVIII da parte IV, pp. 508 ss. 19 Creio que com isso, fica claro nossa inteno de continuao e aprofundamento ao que propusemos em nosso estudo citado de aproximao ao pensamento de Emmanuel Mounier. Se me permitido, gostaria que o presente texto fosse lido como o Volume II que segue o volume I que o nosso estudo anterior, que prosseguir em um volume III com a proposta de uma filosofia corporificada.
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significativo para a histria da filosofia, em sua busca de uma autntica autonomia da
razo, ainda esto para ser desenvolvidos.20
Conforme Pierre Thvenaz:
A filosofia por essncia uma situao paradoxal. um
trabalhador em luta perptua contra o nico utenslio de que ele se serve: a linguagem. Sob pena de ver seu esforo se esvaecer na inconsistncia, ele deve se submeter s exigncias das palavras e da lgica. Sob pena de ser enganado pelas representaes implcitas veiculadas pelas palavras, ele deve submet-las para permanecer fiel ao real.
O sentido comum coloca, disposio de nossa reflexo filosfica, certo nmero de termos antitticos: bem-mal, cheio-vazio, alto-baixo, interior-exterior. Em face destas alternativas, os filsofos experimentam um embarao que cada um de ns conhece muito bem embarao tanto mais vivo quanto mais estas duplas de contrrios so s vezes muito prximas das instituies sensveis e que uma valorizao implcita ou explicita favorece infalivelmente um dos termos: o interior vale mais que o exterior, o alto mais que o baixo, o cheio mais que o vazio, o bem mais que o mal.
A noo de interioridade de uma importncia central tambm em epistemologia quanto em psicologia, em moral quanto em metafsica. A oposio interior-exterior est na raiz da oposio gnosiolgica entre subjetivo e objetivo, da oposio psicolgica entre psquico e fisiolgico, da oposio moral entre obrigao e constrangimento, da oposio metafsico-religiosa entre imanncia e transcendncia. Ns a encontramos por todos os lados, em cada contorno do pensamento filosfico, em cada contorno da histria da filosofia. A noo de interioridade comanda a moral estica, a teoria do conhecimento inteligvel em Plotino, a metafsica espinosana ou leibniziana, a psicologia de um Maine de Biran, a teoria kierkegaardiana da crena ou a epistemologia de Brunschvicg; ela est no centro das preocupaes de um Lagneu, de um Bergson, de um Laberthonnire ou de um Lavelle.21
Assim, ser neste locus da interioridade que se complementa o movimento da
pessoa. Aqui, o pensamento reflexivo honesto se deparar consigo mesmo como
contendo em si, paradoxalmente, o principal impedimento continuao de um
movimento de radicalizao que lhe , por outro lado, o mais prprio a ser seguido. No
20 No tenho nenhuma dvida de que estamos, em Pierre Thvenaz, diante de uma proposta filosfica original e que tem fora para reabilitar o fazer filosfico ocidental em sua autonomia e especificidade contra as tentativas atuais de fazer da filosofia uma empregadinha das cincias sociais sem rumo. 21
THVENAZ, Pierre, Interiorit et mthode reflexive, Extraite de la Revue de Thologie et de Philosophie (n 134, janvier-mars 1945), Lausanne, Imprimerie la Concorde, p. 3 s.
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que seja pressuposta aqui uma separao fcil da exterioridade e da interioridade. A
pessoa, se no um infinito, ao menos um transfinito. Seu movimento imprime um
sentido no mbito de um contnuo histrico, no qual se desvela e ao qual temos acesso
pelos eventos singulares significativos que constituem uma existncia.
* * *
Assim, visto que o modo de ser relacional, expresso pela hermenutica
personalista atravs da adoo da pessoa como o centro doador e aferidor de sentido,
ser, em Emanuel Mounier, mediado por seu mtodo dialgico agnstico, em Pierre
Thvenaz, que adota esta mesma chave hermenutica em seu mtodo de
interiorizao, ele ser mediado por um empenho de radicalizao em que o sentido
mais denso de um mtodo atesta ser o nico, a nosso ver, que poder completar o
sentido.22 Isso veremos mais frente quando tratarmos da quarta reduo, epoch,
proposta por Thvenaz: a reduo do sentido, que no implica um niihilismo, onde
pode se esclarecer, como muito bem nota Domenico Jervolino23, a tese singular de que
s um ateu pode ser um bom cristo, e s um cristo pode ser um bom ateu. Que ,
no obstante, uma valorizao do pensamento de Bloch por via de uma teologia da
esperana.24
Em Mounier, quando a pessoa exerce sua emergncia e insurgncia no plano de
sua exteriorizao, no movimento de exteriorizao pelo qual ela se d a conhecer aos
outros por suas expresses sociolgicas s quais ela, em ltima instncia, no se reduz,
o movimento tpico que caracteriza o ser artefato que lhe corresponde a pessoa
histrica se faz historicamente pede um mtodo agnstico. nico, a nosso ver, pelo
22 Com isso, esclarecemos em parte um dos sentidos do cristianismo ateu de Pierre Thvenaz que expressamos no ttulo, alm de, no lugar devido, (Captolo IV, abaixo) fazermos uma aproximao ao fenmeno do atesmo na histria da filosofia ocidental para explicitarmos seus aspectos mais profcuos para o movimento de radicalizao da conscincia de si que se d em resistncia e luta instaurao sempre tentadora de novos dolos; no caso da filosofia, o deus dos filsofos. E isso, tambm, contra as tentaes prprias ao atesmo de instaurao sub-reptcia de dolos mais ocultos, mas no menos dolos. 23
JERVOLINO, Domenico: Pierre Thvenaz e la filosofia senza assoluto, Edizioni Studium Roma, 2 ed., 2003, p.45. 24 Cf. MOLTMANN, Jrgen: Teologia da esperana Estudo sobre os fundamentos e as conseqncias de uma escatologia crist, Nova Edio Revista e Atualizada, Editora Teolgica, So Paulo, 2005. J temos acenado para esta proposio em nosso estudo sobre Mounier, (op. cit., cf. nota 1933).
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qual possvel se criar um espao ontolgico de arejamento entre os interlocutores para
que a possa surgir um espao comum de todos: o espao laico no neutro (pois
comprometido e em vista da defesa da pessoa humana concreta e singular). O qual,
nesse sentido, para o personalismo, tambm est por se fazer e no apangio da
ideologia liberal, de sua neutralidade mentirosa que apenas a reposio do libi para
a colonizao dos espaos sociais por sua ideologia nefasta. Pois esta o afirma para
melhor, no segundo momento, coloniz-la com sua caracterstica languidez e
decadncia exauridora. Assim a eleio do movimento e do fluxo, pelo pensamento
personalista, como caracterizando a dinmica prpria de um ser histrico, como a da
pessoa concreta em sua luta pelo real, neste movimento de exteriorizao que
caracteriza mais o ato filosfico de Emmanuel Mounier, no obstante, permanecer a
mesma em Pierre Thvenaz, quando de sua tomada em considerao radical do
movimento complementar da pessoa enquanto movimento de interiorizao. Todavia,
seguindo o mtodo de radicalizao thevenaziano, precisaremos esperar pela
provocao de uma real alteridade razo em seu tradicional autismo que vir da parte
da f crist. Esta alteridade da f, tal como expressa no primeiro sculo pelo
cristianismo primitivo e passvel de ser atestada publicamente para quem quiser ver
pelos textos fundantes do Novo Testamento, , na histria da filosofia ocidental, a nica
que confronta altura a razo filosfica em suas intenes de auto divinizao. As quais
podem ser observadas como: sua inteno de colocar-se sempre em lugar seguro fora do
olhar soberano que ela mantm sobre os seus objetos. Ou mesmo, quando ela parece
acenar para algum aprofundamento na conscincia de si, como em Kant na
modernidade, o que se d, na verdade, uma reduplicao de si como Razo juiz que
julga os limites de si mesma como razo construtiva de seus objetos. Novamente, ento,
elevando-se a um nvel mais alto de segurana, esta Razo juiz no ser, ela mesma,
passvel de ser julgada nesta sua inteno auto-fundante irracional e injustificada. Pelo
que, no obstante os mritos da epistemologia crtica kantiana para o fazer filosfico,
temos aqui uma nova verso mais sutilizada kantiana da Razo Divina.
Ora, se a experincia choque provocada pela f que possibilita esta atestao
tanto na Antiguidade tardia do paganismo quanto em sua verso mais refinada no
kantismo moderno, isso demonstra claramente, a nosso ver, para quem tiver olhos e
ouvidos dispostos a ver e ouvir, a capacidade heurstica e libertadora desta provocao
da f sobre a razo filosfica. Assim, cremos ter explicitado nosso uso teimoso do
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complemento entre parnteses protestante lcus de resposta eleito por Pierre
Thvenaz (se ser um humano ainda continua sendo responder de agum lugar!) ao
nome que entendemos melhor corresponder ao ato filosfico deste filsofo que o de
filosofia radicalizante e que no abre mo do gerndio como tempo verbal filosfico
predileto. Ao que Domenico Jervolino, com o que no concordamos por motivos que
ainda sero aventados, no obstante, considera melhor como: filosofia sem absoluto.25
Assim, como o adjetivo protestante parece incomodar um pouco em uma
proposta que, no entanto, se dirige, em ltima instncia, ao fazer filosfico humano
enquanto tal, sua liberdade na busca de uma real autonomia do pensamento racional,
convm elucidarmos melhor este ponto.26
25 O professor Domenico Jervolino, grande estudioso da hermenutica de Paul Ricoeur, apresentou a mim rapidamente sua posio por e-mail. A quem agradeo pelo envio de dois artigos seus sobre Pierre Thvenaz, sendo um deles, no prelo, um verbete para uma enciclopdia francesa de teologia e filosofia produzida pelo Instituto Catlico de Paris: Pierre Thvenaz (1913-1955) La philosophie sans absolu dun croyant philosophe, e o outro um artigo: JERVOLINO, Domenico: Entre Thvenaz et Ricoeur: la Philosophie sans absolu, in Le souci du passage. Mlanges offerts Jean Greish, textos reunis par Ph. Capelle, G. Hbert et M.D.- Popelard, Paris, Beauchesne, 2004, p. 180-190. 26 Para o que segue, faremos referncia ao artigo de Paul Ricoeur que introduz a coletnea de textos Pierre THVENAZ, Lhomme et sa raison Raison et Conscience de soi, Vol. 1, Col. Etre et Penser, ditions de la Baconnire - Neuchatel, 1956, pp. 9-26. A argumentao de Ricouer nos parece muito pertinente nos pontos em que toca. Todavia, ainda desenvolveremos nuances sobre a questo do nosso uso insistente do adjetivo protestante como caracterizador do ato filosfico de Thvenaz com base em bibliografia mais extensa a fim de elucidar uma das teses que move o presente trabalho: a capacidade da experincia de f de verdadeira f, em distino com o que os racionalistas, desde Montaigne, lutaram, com razo, contra o que chamam de crena de fornecer elementos heursticos e mesmo de libertao para o fazer filosfico autnomo e racional. Com isso pretendemos tambm contestar a pecha, lanada sobre o protestantismo, como de carter inelutavelmente fideista e anti racional. Isso, a nosso ver, injustamente mantido na contemporaneidade aps os escritos polmicos de purificao necessria de Karl Barth da f crist que o liberalismo teolgico do sculo XIX de tradio kantiana queria bem comportada servindo como fez e faz o fundamentalismo protestante de ontem e de hoje ao seu esquema decadente e necrfilo de moralidade social. Como mero amparo espiritual e edificante aos seus indivduos pequeno-burgueses, servidores ao atual deus deste mundo (o dinheiro). Indivduos reivindicadores e, segundo sua antropologia chinfrim, solitrios e rachados entre suas paixes e sua razo. Indivduos joguetes do seu sistema abstrato e de irresponsabilidade sob supostas estruturas auto reguladas naturalmente cuja nica ingerncia humana possvel a deixada a este paliativo da religio cooptada na hora de confortar estes indivduos j sem face e sem qualquer aderncia significativa ao seu mundinho retrico de mentiras. Sobre esta compreenso geral lanada sobre a f protestante, que consideramos apressada e injusta, necessrio, assim, um melhor esclarecimento. Todavia, j colocamos um ponto aqui do qual no abriremos mo para desespero dos que assumem a soluo liberal quanto ao lugar tradicional da f e da religio como muleta assessria de conteno e ajuda na manuteno da atual pretensa ordem social (que com Mounier chamamos de desordem estabelecida) da tambm atual sociedade dita laica: s h verdadeiro problema filosfico na relao entre f (crist) e razo para o intelectual que tem f. O intelectual que no tem f sempre correr o perigo de tentar subsumir esta experincia fundamental que, segundo o Novo Testamento, veicula sentido e fora para viver, a fenmeno cuja especificidade pode ser, para ele, tranquilamente elencado no quadro geral do que chamar de experincia geral religiosa da humanidade. O que ainda manter-se na tese esvaziadora e neutralizadora da ideologia liberal que criticamos.
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Pelo que, segundo Ricoeur, o adjetivo protestante que Thvenaz havia
vinculado a sua filosofia era, aos seus olhos, pouco limitativo, pois designava antes o
foco de solicitao, o lugar concreto do chamado ao qual a sua filosofia era a livre
resposta.27
Resposta, responsabilidade, so, segundo Ricoeur28, palavras vrias vezes
retomadas por Thvenaz para expressar o tipo de relao viva que une a sua filosofia a
sua f; elas lhe serviram para repudiar a alternativa na qual se deixa encerrar o
protestantismo, oscilando entre a destruio da filosofia pela sola fide da Reforma e um
trabalho equvoco de harmonizao entre uma filosofia vagamente espiritualista e uma
f sem confisso.29
27
RICOEUR, Paul, Prface: Pierre Thvenz um philosophe protestant, in Lhomme et sa raison I, Raison et conscience de soi, col. tre et Penser, ditions de La Baconnire Neuchtell, Suisse, 1956, p. 10. Este texto se encontra traduzido para portugus em: RICOEUR, Paul: Pierre Thvenaz um filsofo protestante, in Nas fronteiras a filosofia, Loyola, So Paulo, 1996, p. 148. 28 Ibidem. 29 Em nossa dissertao de mestrado, (op. cit.) no captulo sobre Personalismo e Liberalismo, procuramos mostrar o carter empenhado caracterizado pelo movimento de absoro, por parte da ideologia liberal em todas as suas expresses e matizes, cuja complexidade, enquanto fenmeno histrico e difuso, no deixa de desvelar um movimento de investida comum. Este tem procurado se instalar como parasita por dentro das expresses culturais e religiosas etc. da pessoa criadora em sua dimenso singular e coletiva, pelo ncleo axiolgico mesmo delas. Mas no sentido de exaurimento, de esvaziamento, de castrao, de neutralizao, para a dominao, de todas as expresses culturais, religiosas etc. que a pessoa criadora tem tentado, a duras penas, construir ao longo da histria ocidental em sua luta pelo real. Ali procuramos deixar claro, luz do personalismo de Emmanuel Mounier, o mote do tirano que comanda a base do bom senso liberal: dividir para conquistar. Com a realidade humana fragmentada e a filosofia como empregadinha para descrever e lustrar o mosaico desfigurado da pessoa criadora mantido pelas cincias humanas, hoje capituladas pelo velho esprito (para mim, essa palavra nunca fez tanto sentido como faz atualmente) positivista, o liberalismo, na casa que tem se tornado a sua principal, quer dizer, na sociedade estadunidense e j como ideologia do estadunidencismo por via da chamada tradio anglo-analtica, tem, medida que perpetua e aumenta com a ajuda de seus pares: a moral burguesa, o individualismo reivindicador, o economicismo do mundo do dinheiro do capitalismo etc. sua necrose social, pretendido se constituir como o espelho da natureza, at mesmo como j sendo uma segunda natureza. Nesse sentido, a sua ltima investida tem se dado pelo que se chama atualmente de virada lingstica. Uma verso contempornea do velho conservadorismo liberal cioso por manter suas prerrogativas contra a pessoa criadora, em nome da camuflagem do seu abstracionismo de morte pela fragmentao e validao da realidade por meio dos contextos de uma realidade liberal-capitalista-burguesa como no passvel de uma crtica radical, quer dizer, quanto aos seus valores reais de base, ou de revoluo. A crtica aos pseudo-valores que esto na base das contextualizaes liberais o valor do til degradado na decadncia do utilitarismo, o valor do prtico degradado na decadncia do pragmatismo, o valor da economia, degrado na decadncia do economicismo do capitalismo etc. , para essa verso contempornea da velha modernidade burguesa, sempre desviada, neutralizada e tida como suficiente por uma pseudo-crtica. Pois nada mais que validao do status quo, dos contextos de linguagem e seu convencionalismo. Verso contempornea pulverizada do velho contratualismo racionalista liberal, moderno por excelncia. Toda essa elucidao da ideologia liberal necessria para que possamos desolidarizar os valores da pessoa criadora que se encontram afirmados e concretizados na histria ocidental no princpio reformado, de sua pretensa cooptao pela necrose da ideologia liberal decadente expressa por seu indivduo. (Cf., abaixo, Captulo II).
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Assim a f de Thvenaz o leva liberdade de filosofar: ... a filosofia, segundo
ele [Thvenaz], no tem a tarefa de falar sobre Deus, ainda menos do ponto de vista de
Deus; ver-se- at mesmo que ela atinge a sua autenticidade quando admite a sua
impotncia, melhor ainda, a sua renuncia em se tornar filosofia do divino, filosofia
divina.30 A uma filosofia divina, continua Ricoeur, Thvenaz opor constantemente
uma filosofia responsvel diante de Deus, uma filosofia em que Deus no mais o
objeto supremo da filosofia, mas onde ele est implicado a ttulo de plo de chamado e
de resposta do prprio ato filosfico.
Responsabilidade em Thvenaz diz respeito a uma luta, com Deus e com o
mundo, por uma resposta livre da inteligncia ao anncio de sua perdio e de sua
redeno. O Sim e o No so levados, em Pierre Thvenaz, a sua radicalidade de
assuno e de experimentao existencial enquanto ato de reflexo filosfica
responsvel. O ponto de partida da reflexo de Thvenaz cristo e protestante. O
momento protestante desse abalo inicial , novamente segundo Ricoeur31, precisamente
o seguinte: a Cruz de Cristo, acontecimento puro, tocou esta inteligncia [filosfica]
ao anunciar-lhe a morte do deus filosfico, o fim da teologia filosfica, e ao torn-la
livre para uma filosofia sem absoluto. Mesmo porque, uma experincia com o
absoluto32, tanto como com o relativo, a nosso ver, uma falsa experincia, como j
temos apontado33 e aprofundaremos mais.
Para Thvenaz, como para Pascal, a f iconoclasta.34 O Deus da f, criador,
transcendente, pessoal, histrico, no acrescenta nenhum predicado novo ao divino
elaborado pela teologia filosfica dos gregos, quer o divino seja o Ser, o Princpio, a
Unidade etc, no obstante provocar respostas e perguntas neste mesmo nvel notico
teologia racional pelo qual o Deus da Bblia se consente tambm limitada, indireta ou
negativamente a ser compreendido pelos seres humanos atravs da linguagem: pelo
30
RICOEUR, Prface, ibidem. 31
RICOEUR, Prface, op. cit., p. 149. 32 Como apresentamos em nossa dissertao de mestrado (op. cit.) substituindo a noo de absoluto pela de incontornvel, passim. 33 Ver nosso estudo sobre Emmanuel Mounier (op. cit., passim). 34 Isso est implcito no sugestivo ttulo de um dos artigos, a nosso ver, mais radicalmente provocativos de Pierre THVENAZ: Assurance de la philosphie et inquietude de la foi, in Lhomme et sa raison I, op. cit., p. 287 ss. Esse ttulo bem provocativo porque inverte o que costumeiramente se entende por filosofia e por f: a primeira como o lugar da liberdade de expresso e de exposio livre das idias sem a canga do dogma; lugar da liberdade de pensamento e de sua autonomia sem a ingerncia de qualquer autoridade, injustificada ao menos; a segunda, como o lugar da intolerncia, das opinies vagas e do subjetivismo ancorados pela fortaleza da tradio doutrinria e dogmtica etc.
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que o cristianismo no uma gnose. No se entende portador de nenhuma linguagem
unvoca ao divino referente (humilhando a linguagem) e, ao mesmo tempo, no abre
mo deste nico meio claudicante e equvoco que a lingugem para se comunicar
(exaltando a linguagem). Assim, diz Thvenaz:
A inteligncia grega no tinha necessidade de se situar em relao a Deus: ela era Deus, Deus era inteligncia... [grifo nosso] [Assim] A inteligncia, perdendo a ingenuidade (que talvez fosse presuno inconsciente), torna-se problemtica, torna-se questo para si mesma. Sublinhemos para si mesma, pois em plena liberdade filosfica e sem a ingerncia de qualquer autoridade que ela procurar responder... com o contato com esse Deus cristo que o ser humano aprender a refletir de modo novo sobre a humanidade e no mais sobre as suas possibilidades de divinizao... A filosofia aprender laboriosamente a se assimilar ao ser humano, a se desdivinizar...35 Esta uma revoluo profunda na filosofia: no h mais Deus filosfico, nem teologia filosfica, mas h uma filosofia diante de Deus que, pouco a pouco, porque ela questo para si mesma, descobre melhor que no mais que humana.36
A filosofia sem absoluto de Pierre Thvenaz o conduz ao meio das filosofias
da existncia. Por meio dessa adeso filosofia da existncia, depois da anlise da
densidade da radicalidade fenomenolgica em Husserl que no foi suficiente para
impedir a passagem de uma anlise das puras essncias para a existncia, Thvenaz
desenvolve o seu prprio projeto. Mas seu retorno ao humano no abandono, mas
ascese [exerccio]. Todavia, em Thvenaz, e sob esse ponto de vista, o aspecto s vezes
nietzscheano dessa luta por pesar para o lado do aqum, segundo Ricoeur, no deve nos
iludir: Talvez no haja maior revoluo possvel em filosofia do que descer assim do
35 Mesmo na Mstica Crist, portanto uma expresso religiosa, a divinizao um processo infinito, inacabado, porquanto o Deus da Bblia pessoa, e no um mar de energia csmica no qual a alma deve ansiar por se perder, por se misturar indistintamente. Deus para o mstico cristo e aqui com todas as lutas, inseguranas e titubeios pela forte atrao que o neoplatonismo exerce nessa rea da experincia humana um plo de atrao, antes que um dado acabado e conquistado pelo conceito. No toa que a mstica foi sempre, na histria da cristandade institucionalizada, um movimento marginal. Talvez seja a hora da filosofia mais em voga dar tambm mais ateno aos seus movimentos marginais. Sobre isso, cf.: INGE, Willian Ralph, The Christian Mysticism Considered in Eight Lectures Delivered before the University of Oxford, Methuen & Co. Ltda, London, 1899, passim. 36 Apud Ricoeur, Prface, op. cit., pp. 149 s. J falamos em nossa dissertao de mestrado (op. cit., passim) que, segundo a tradio bblica, vtero e neotestamentria, quanto mais o mundo apreendido como criao tanto mais o seu carter mais prprio se evidencia: ou seja, o seu carter de mundo. Ali, ns ampliamos esta afirmao para a existncia humana. Quanto mais esta toma conscincia de sua contingncia criatural, mais ela tomar posse do seu carter mais prprio como criatura, como finitude.
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alm para aqui em baixo...37 Para Thvenaz, no a morte de Deus que anima sua
ascese [exerccio], secretamente o Deus vivo que se significa para o filsofo com a
morte do absoluto.
Como diz Ricoeur: Ainda mais do que tudo isso, a grande contribuio prpria
de Pierre Thvenaz para a filosofia contempornea do humano nada mais que humano
ainda marcada pelo selo dessa animosidade iconoclasta. ...38 Ao no irmos at o fim
da morte do absoluto e da eternidade, a Razo tomou, por conta prpria, segundo
Thvenaz, uma dignidade atemporal: ela tomou como tarefa para si su