a importância da análise do tecido musical para
DESCRIPTION
sTRANSCRIPT
-
Lia Rejane Mendes Barcellos
A Importncia da Anlise do Tecido Musical para a Musicoterapia
Mestrado em Musicologia
Conservatrio Brasileiro do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, janeiro de 1999.
-
2
Lia Rejane Mendes Barcellos
A Importncia da Anlise do Tecido Musical para a Musicoterapia
Dissertao de Mestrado em Musicologia apresentada Coordenao dos Cursos de Ps- Graduao em Msica do Conservatrio Brasileiro de Msica do Rio de Janeiro. Orientador: Professora Ceclia Conde Co-orientador: Professora Doutora Carole Gubernikoff
Rio de Janeiro, janeiro de 1999.
-
3
Ao Afonso,
por tudo.
-
4
Agradecimentos
A todos aqueles que contriburam para o meu desenvolvimento pessoal e profissional.
Em especial:
minha professora, orientadora e, principalmente, amiga, Ceclia Conde, com quem dividi e divido muitos dos momentos importantes que vivi e tenho vivido tanto na minha carreira quanto na minha vida pessoal.
minha professora e co-orientadora Carole Gurbenikoff, pela pacincia com que me ouviu e pela ateno que dispensou a mim e a este trabalho.
A Marina Lorenzo Fernndez Silva, Diretora do Conservatrio Brasileiro de Msica, casa que me acolhe desde meus primeiros passos na Musicoterapia.
Ao meu professor e amigo, Dr. Kenneth Bruscia, da Temple University Philadelphia, por ter possibilitado a minha formao no Mtodo GIM.
Ao meu grupo de formao no GIM, pela riqueza da troca de experincias, pelo apoio e pelos momentos que vivemos nestes quatro anos, especialmente:
Inge Nygaard Pedersen Dinamarca Leslie Bunt Inglaterra Lars Ole Bonde Dinamarca Gabriela Giordanela Pierilli Itlia, e Ellen Thomasen Dinamarca.
-
5
Sumrio
DEDICATRIA
AGRADECIMENTOS
SUMRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUO
ABERTURA OU ANTECEDENTES METODOLGICOS CAPTULO I Do Tecido e do Tecido Musical
1. Do Tecido no Sentido Mitolgico 2. Dos Elementos do Tecido Musical
2.1. Breves Consideraes sobre o Fio Sonoro a Melodia 2.2. Breves Consideraes sobre a Harmonia 2.3. Breves Consideraes sobre o Ritmo 2.4. Do Tecido Musical
CAPTULO II Sobre o Mtodo "Imagens Guiadas e Msica" - GIM
1. A Histria do GIM 2. Em que Consiste o GIM 3. O Papel da Msica no GIM
4. Os Mtodos de Anlise Criados para Analisar os Programas do GIM 5. Transferncia, Contratransferncia e Resistncia no GIM
-
6
INTERMEZZO Das Escolhas
1. Da Escolha do GIM 2. Da Escolha do Noturno no 3 de Lorenzo Fernndez
2.1. Sobre Lorenzo Fernndez e sua Obra
CAPTULO III Da Anlise do Tecido Musical 1. Modelo Utilizado para a Anlise do Noturno 2. A Anlise de Delalande
2.1. Procedimentos 2.2. Breves Consideraes sobre os Procedimentos de Delalande
CAPTULO IV A Anlise do Noturno n3 de Lorenzo Fernndez
1. Sobre a Anlise 2. Procedimentos
3. Modelo Utilizado para Grupamento 4. Diferenas entre os Procedimentos propostos por Delalande e os
Utilizados para as Experincias de Escuta para a Anlise do Noturno n
o 3 de Lorenzo Fernndez
5. Os Resultados das Experincias 6. A Anlise do Noturno no 3 de Lorenzo Fernndez 7. Anlise do 2o Movimento do Concerto em D Menor para Obo e
Orquestra de Cordas de Benedetto Marcello 7.1. Procedimentos
7.2. Os Resultados das Experincias 7.3. Anlise Musical do 2o Movimento do Concerto em D menor para
Obo e Cordas de Benedetto Marcello
CAPTULO V Da Importncia da Desconstruo do Tecido Musical para a Musicote-
-
7
rapia
CONSIDERAES FINAIS BIBLIOGRAFIA
ANEXO I Partitura do Noturno n 3 de Lorenzo Fernndez
ANEXO II Partitura do 2o Movimento do Concerto para Obo e Orquestra de Cordas
de Benedetto Marcello
-
8
Resumo
Este trabalho pretende refletir sobre a importncia que se constitui para a Musicoterapia, a questo da anlise musical. Discorre-se, inicialmente, sobre as formas como a msica utilizada em Musicoterapia e prioriza-se uma para ser o objeto de estudo desta dissertao. Faz-se uma analogia da msica com o tecido, refletindo-se
sobre esta como um tecido musical, com uma textura constituda por fios sonoros, cores e ritmos que vo formar a malha ou rede sonora. Apresenta-se o Mtodo GIM
Guided Imagery and Music de Musicoterapia, que utiliza a msica da forma escolhida para ser aqui abordada. Descreve-se o modelo utilizado para a anlise do Noturno n 3 de Lorenzo Fernndez e faz-se a anlise do mesmo e do 2o movimento do Concerto para Obo e Orquestra de Cordas de Benedetto Marcello, discutindo-se, por fim, sobre a importncia da anlise musical para a Musicoterapia.
-
9
Abstract
The intention of this work is to reflect on the importance of musical analysis in
Music Therapy. It inicially presents the forms in which music is used in Music
Therapy, one of which has been chosen as the object of study of this thesis. An analogy of music is made with woven materials, seen the music as woven form consisting of
sonorous threads, colors and rhythms. The Music Therapy GIM Method Guided Imagery and Music which uses music in the way to be here approached, is presented.
The model employed to analyze the Lorenzo Fernndezs Noturno number 3 is described. An analysis of this piece and of the Benedetto Marcellos Oboe Concerto (2 nd movement) is made and the importance of musical analysis to Music Therapy is discussed.
-
10
Anexo I
-
11
Anexo II
-
12
Introduo
Esta dissertao pretende discutir um aspecto que no tem tido grande espao nos
debates e estudos empreendidos pelos musicoterapeutas brasileiros: a importncia da
anlise musical ou de uma maior compreenso da msica que se utiliza num contexto
teraputico, com o objetivo de entender melhor o paciente e, tambm, de contribuir para o
desenvolvimento da Musicoterapia.
Para isto se apresenta inicialmente as diferentes formas de utilizao da msica em
Musicoterapia e como estas se transformaram, chegando s que hoje se conhece. Com este
apanhado se pretende dar uma viso histrica e metodolgica das diferentes atitudes com
relao ao emprego da msica em Musicoterapia.
No primeiro captulo esta dissertao pensa a msica como um tecido cuja trama
formada pelo fio sonoro a melodia, pela malha sonora o entrelaamento e a
superposio desses fios, e por diferentes cores o timbre, tudo isto tendo o ritmo como
elemento organizador.
No segundo captulo se introduz o Mtodo GIM Guided Imagery and Music1,
especfico da Musicoterapia; apresenta-se a sua histria e em que o mesmo consiste;
discorre-se sobre o papel da msica e sobre os mtodos criados para a anlise desta no
Mtodo e, por fim, sobre como os fenmenos da Transferncia, Contratransferncia e
Resistncia so aqui pensados.
1 Imagens Guiadas e Msica.
-
13
Logo a seguir um Intermezzo justifica as escolhas: do Mtodo GIM e do Noturno no
3 de Lorenzo Fernndez. Para uma melhor compreenso desta obra se insere algumas
consideraes sobre o compositor Lorenzo Fernndez.
O terceiro captulo pensa sobre a anlise musical tratando o assunto como uma
desconstruo2 do tecido musical, e apresenta o modelo terico de Delalande, considerado
como o mais adequado para a anlise da msica que o musicoterapeuta utiliza com o
paciente audio musical como tcnica musicoterpica.
As diferenas entre os procedimentos utilizados por Delalande e aqueles
empregados pela autora para a anlise do Noturno; os resultados das experincias de escuta
e a busca da pertinncia destes na msica, atravs da anlise musical da obra, so os
principais aspectos dos quais, o quarto captulo se ocupa. Ainda aqui se analisa o 2o
movimento do Concerto em D menor para Obo e Orquestra de Cordas de Benedetto
Marcello, para ratificar os resultados da anlise do Noturno.
O captulo quinto abre uma discusso sobre a importncia da anlise musical e
como esta vista em diferentes contextos musicoterpicos.
Abertura ou Antecedentes Histricos e Metodolgicos
Muitos estudos e trabalhos tm mostrado tanto a importncia da msica atravs e a
partir da histria quanto as suas funes nos diferentes momentos histricos. Dos papis
que esta desempenha, de como est a servio do homem e da conexo poderosa que existe
2 O termo desconstruo utilizado aqui com o mesmo sentido que Kater o utiliza: como sinnimo de anlise
musical. Diz o autor : ... ao criar operamos um processo de sntese, ao analisar, um processo de desconstruo. (Kater, 1992, p. IV).
-
14
entre a vida e a arte, ressaltando aqui a msica. Dos efeitos que os estudos da msica tm
tido na sociedade ocidental e da sua invaso em domnios no musicais, ao invs do
contrrio. (Said , 1992, p. 100).
Para Said tem havido o que ele chama de consistentes transgresses da msica
para o interior de outros domnios como, por exemplo, da famlia, da escola, de relaes de
classe e mesmo das mais amplas questes pblicas, mostrando a msica como uma
atividade que est entrelaada socialmente e que de extrema importncia para esta
realidade, onde exerce uma grande funo coletiva. A msica tem uma qualidade de viajar,
de atravessar, enfim, de ir de lugar em lugar em uma sociedade, ainda que muitas
instituies e ortodoxias tenham tentado confin-la. (ibid., p. 23). A transgresso o
movimento de um domnio para outro, desafiando limites, ultrapassando expectativas,
proporcionando prazeres, levando a descobertas e experincias. Essa noo no se refere a
uma ao insurgente da msica contra alguma coisa. Pelo contrrio, significa ir em busca
daquilo que a msica pode afetar. Said ainda ressalta que as filiaes entre msica e
sociedade, ou seja, as transgresses, no reduzem a msica, de forma alguma, a um papel
de reproduo passiva e subordinada. Pelo contrrio, esse elemento transgressivo a sua
habilidade nmade de se tornar parte das formaes sociais, de alterar determinados
aspectos de acordo com a situao e com a audincia. Assim a msica preenche,
literalmente, um espao social.
Adorno, citado por Said, fala sobre a regresso da escuta para sublinhar o
rebaixamento da msica a um status de mercadoria na sociedade contempornea. (ibid.).
A poluio sonora est em todos os lugares; os meios de reproduo musical cresceram
inimaginavelmente; a mdia faz o comrcio da msica, que tambm atinge discos e
concertos; o supermercado, o elevador, a publicidade, os sons das cidades, enfim, tudo
-
15
recebido quase que de maneira rotineira, imperceptvel e, poder-se-ia dizer, de forma
subliminar. Isso tudo se mescla numa paisagem sonora3 que nos enriquece e, ao mesmo
tempo, empobrece; que nos d alento e nos irrita; que est tanto nos espaos pblicos
quanto faz parte de circunstncias privadas. Tudo isto est disponvel a qualquer um, pela
experincia histrica ou, ainda, pela participao na sociedade e cultura.
Partindo-se do conceito de transgresso, a viagem da msica por outros domnios
poder ser considerada como suas vrias funes. Ela viajaria tanto pelo domnio mgico
e religioso, quanto pelo reino do lazer e da educao, chegando at ao domnio da terapia,
que se constitui no principal objeto de estudo deste trabalho. Nessa viagem, ela admitiria
vrias formas de emprego, de escuta e, sem dvida, tambm, distintas maneiras de ser
analisada.
A Musicoterapia tem a msica como ferramenta principal de trabalho. No entanto,
a falta de formao musical de muitos musicoterapeutas faz com que os mesmos
privilegiem um outro elemento teraputico a linguagem verbal, por exemplo , em
detrimento da utilizao da msica. Esta falta de formao musical ainda impossibilita o
musicoterapeuta de perceber os elementos musicais do fazer musical do paciente e, por
conseguinte, de analisar o material por este veiculado. Sem dvida, a compreenso deste
material seria a porta de entrada ou o acesso ao ser, atravs do musical. A formao
musical insuficiente acabaria levando crena de que tambm no seria necessrio uma
compreenso mais profunda do material musical que o musicoterapeuta venha a utilizar
com o paciente.
Mas, seria interessante se pensar sobre que tipo de anlise seria mais pertinente
para a Musicoterapia, o que ela deveria privilegiar; quais seriam as interligaes entre
3 Expresso utilizada por Schafer para significar o meio ambiente snico. (1985, p. 15).
-
16
ambas anlise musical e Musicoterapia; e, ainda, qual a importncia da anlise ou da
desconstruo musical para a Musicoterapia.
A prtica da Musicoterapia atualmente muito diversificada e marcada, sobretudo
no Brasil, pelo fazer musical do paciente. No entanto, as origens da Musicoterapia a
sua caminhada histrica e as teorias e prticas atuais existentes em outros pases do mundo
apontam para a utilizao tambm da audio musical, como tcnica musicoterpica.
Esta tcnica, que est dentre as descritas por Bruscia (1991), aparece como uma das
utilizadas pela Musicoterapia nas suas origens como profisso, por volta dos anos 50.
Em 1963 Jost props um mtodo que se utilizava da audio musical como tcnica
para modificaes do humor e do comportamento; para uma sensibilizao musical.
(apud Lecourt, 1988 p. 35). Trata-se da utilizao de pequenos trechos musicais,
escolhidos pelo musicoterapeuta, homogneos quanto caracterstica, para induzir
modificao de comportamento. O paciente era colocado relaxando numa poltrona, com
luz indireta, colorida, que era escolhida de acordo com os objetivos que poderiam ser de
tonificar, excitar ou acalmar. O musicoterapeuta tinha um papel de tcnico, isto ,
daquele que escolhia msica e cores, diferentes a cada sesso, e proporcionava ao paciente
o ambiente adequado para que, deixado sozinho, pudesse escutar a msica durante 15
minutos, o tempo aproximado de uma sesso. No se favorecia a verbalizao ao final da
sesso e esperava-se que o efeito teraputico fosse produzido pela prpria sucesso
musical e pela sua repetio no tempo. Este mtodo era indicado essencialmente para
adultos com dificuldades de ordem neurtica. (ibid., p. 35).
importante lembrar que o emprego da msica, nos pouco mais de 40 anos de
existncia da Musicoterapia como profisso, tem relao com a sua utilizao em rituais de
cura, por 30 mil anos de tradies xamnicas, ainda hoje existentes em inmeras tribos e
-
17
em sociedades no tecnolgicas da sia, frica, Austrlia, Amrica, Oceania e Europa,
fato evidenciado pela literatura de etnomusicologia, segundo Moreno4 (1988). Sem dvida,
o estudo dessas tradies universais vivas de msica e de cura nas prticas xamnicas tem
se constitudo como fundamental para clarear e ampliar o significado da msica como
elemento teraputico e, assim, para o desenvolvimento da Musicoterapia contempornea.
fundamental ressaltar que nas prticas xamnicas, a msica no feita nem pelo
xam nem pelo paciente, mas, sim, por um auxiliar ou grupo de auxiliares, para que os
xams no tenham que se distrair com o fazer msica. (ibid., p. 275). Esta afeta os
xams, levando-os a um estado de realidade no costumeira um estado alterado de
conscincia que os libera para que possam viajar para o mundo dos espritos e assim
ajudar os pacientes. Embora exista uma diferena na utilizao da tcnica hoje denominada
de audio musical, aqui se encontra, sem dvida, as razes da mesma. A diferena
fundamental que o alvo principal desta o xam. No entanto, tambm o paciente
afetado pela msica que ouve pois lhe permite entrar num estado semi-hipntico receptivo
que refora a sua crena no poder do xam e no ritual de cura. (ibid.).
Na introduo de um dos primeiros livros escritos sobre Musicoterapia Music
Therapy em 1968 e traduzido para o Espanhol em 1971, Gaston, Schneider e Unkefer
afirmam que a Musicoterapia no seu desenvolvimento passou por trs fases. Na primeira,
se deu grande importncia msica, deixando-se de lado a funo do terapeuta. Na
segunda, passou-se a cuidar mais da relao individual com o paciente e, na terceira,
adotou-se uma posio intermediria entre os extremos anteriores o musicoterapeuta
utiliza a sua especialidade para centralizar a relao com o paciente e atuar do modo mais
conveniente tanto na atividade musical como na relao mesma. (p. 23). Nas prticas
4 Joseph Moreno musicoterapeuta e etnomusiclogo americano.
-
18
xamnicas se prioriza a msica como na primeira fase da Musicoterapia. Hoje se utiliza a
msica como Objeto Intermedirio5 para facilitar a relao terapeuta paciente num
primeiro momento. Por suas qualidades teraputicas, a msica atuaria, atravs da
relao, da atuao do musicoterapeuta e pelas intervenes deste, possibilitando as
mudanas desejadas.
Retomando-se a utilizao da audio musical como tcnica, encontra-se o
trabalho de Elzbieta Galinska, na Polnia, proposto em 1973 tambm para neurticos, o
qual Lecourt aponta como sendo uma variao do Mtodo de Jost. Baseada na idia de
que a msica pode representar diferentes aspectos da personalidade, a autora introduz a
tcnica do retrato musical que consiste na audio de trechos nos quais o paciente possa
se perceber como num espelho. Trs obras so utilizadas na sesso representando trs
aspectos do self: aquele denominado pela autora self de fachada que o que o paciente
deixa aparecer; o self escondido que constitudo pelos elementos mais inquietantes de
sua personalidade e, o self potencial. Este mtodo objetiva trabalhar as falhas de
representao de si mesmo. Seriam necessrias maiores informaes sobre o Mtodo uma
vez que as disponveis levantam muitas dvidas sobre o seu emprego.
Ainda utilizando a tcnica de audio musical, e tambm considerada por
Lecourt como uma variao do Mtodo de Jost, aparece, no mesmo perodo do trabalho de
Galinska, a proposta de Schwabe, na Alemanha. A escolha musical para as sesses, a
progresso e os resultados obtidos so similares tanto em Schwabe quanto em Galinska.
No entanto, o que Schwabe prope um verdadeiro sistema englobando todas as tcnicas e
suas aplicaes.
5 Expresso utilizada por Benenzon para significar um instrumento de comunicao capaz de atuar
terapeuticamente sobre o paciente mediante a relao, sem desencadear estados de alarma intensos. (Benenzon, 1981, p. 69).
-
19
Os mtodos que utilizam a audio musical como tcnica, pertencem chamada
Musicoterapia Receptiva, antigamente denominada Passiva, isto , o paciente no est
ativo no processo de fazer msica. Esta tcnica hoje muito empregada tanto nos
Estados Unidos quanto na Europa principalmente pelos musicoterapeutas que tm
formao no Mtodo GIM , mas aqui utilizada de maneira distinta da de Jost, Schwabe
e Galinska.
Em primeiro lugar, no GIM, no o musicoterapeuta quem escolhe a msica a ser
utilizada e sim, esta j foi previamente selecionada pela criadora do Mtodo Helen
Bonny, como ser explicado posteriormente. Por outro lado, o musicoterapeuta interage
verbalmente com o paciente, durante a audio, o que lhe confere uma condio diferente
da dos musicoterapeutas anteriores. Aqueles eram vistos como tcnicos que
possibilitavam a audio. Aqui, a interao entre paciente, msica e musicoterapeuta,
investe o musicoterapeuta de sua verdadeira funo a de agente de mudanas juntamente
com a msica.
A forma de utilizao da msica nos dois contextos teraputicos, isto , naquele em
que o paciente recebe a msica por escuta e, no outro, onde ele aparece como ativo no
processo de fazer a msica, expressando atravs desta seus contedos internos, o que
vai determinar o tipo de anlise musical que ser empregada.
Este trabalho pretende priorizar o contexto musicoterpico no qual a audio ou
escuta musical empregada, estudando e refletindo sobre os aspectos que deste emprego
resultam e discutindo, principalmente, sobre a necessidade da anlise da estrutura musical
do material utilizado, dos achados que podem da advir, promovendo uma maior
compreenso do processo teraputico e, consequentemente, um maior desenvolvimento do
paciente e da Musicoterapia. As evidncias apresentadas nos trabalhos que tm estudado o
-
20
assunto podem levar concluso de que muitos dos efeitos da msica realmente resultam
da sua estrutura, embora esta seja, num contexto teraputico, perpassada pela relao.
Assim, mesmo que apenas dois Mtodos de Musicoterapia pensem e privilegiem a anlise
musical, esta deveria ser uma preocupao de todos os musicoterapeutas.
-
21
Captulo I
Do Tecido e do Tecido Musical
1. Do Tecido no Sentido Mitolgico
Em sentido estrito, tecido qualquer material feito com fios de l ou crina, algodo,
linho e fibras animais, vegetais ou sintticas. Em acepo mais ampla, o termo inclui
tambm (e talvez com mais propriedade) a estamparia txtil, que traduz a aplicao da Arte
e da Cincia na obteno de desenhos sobre aqueles materiais, sem o auxlio de meios
auxiliares como o bordado ou a costura. (Barsa, 1966, p. 168). Ou ainda, por tecido
entende-se, originalmente, um pano preparado no tear. (Delta Larousse, 1974 p. 6579).
Desta acepo derivam vrias outras, em distintas reas, todas significando rede,
revestimento, constituio ou trama de fibras que so tecidas num ato que se constitui
como arte e que apresenta uma oportunidade ao indivduo de expressar-se criativamente
em fios, desenho e cor. Existe uma emoo muito grande na construo e no
aparecimento gradual da trama; em se ver os fios se desenvolverem numa criao
original, diz Alexander, especialista na arte da tecelagem. (1954, prefcio).
As aranhas so os animais articulados dotados de rgos especiais de fiao. Dois
aspectos preponderantes engendram a tipologia fantasmtica deste inseto: ao mesmo tempo
que purificadora do ar que percorre, a aranha portadora de febre aos que so inoculados
por sua peonha. A aranha igualmente dotada de quelceras venenosas e de fiandeiras
abdominais que do a seda para a sua teia. O poder destrutivo/produtivo deste inseto atua
sugestivamente no imaginrio, exatamente por estas duas particularidades.
-
22
Primeiramente, pelo ato da criao e, extensivamente, da procriao, pelo
intermitente ato de tecer, as aranhas so a projeo, no mundo dos insetos, do ser feminino,
porm excludo de feminilidade, menos por se eximir do comportamento materno pois
copula e se desembaraa dos ovos fecundados , do que pela obstinao e laboriosidade
centrpetas. Tudo que lhes cai teia converge para o seu centro e elas tutelam, acima de
tudo, a estabilidade e a sustentao do centro. Neste sentido, elas representam um grau
superior de iniciao e simbolizam o atendimento s tendncias narcsicas6 de auto-
preservao e sustentao. (Nuez, 1991, p. 93 )
O segundo aspecto privilegiadamente retido pela imaginao simblica o carter
predador das aranhas. Em algumas espcies, o macho se constitui no primeiro alimento da
fmea fecundada.
Nuez discorre sobre Aracne como sendo a figura da mitologia que representa o
centramento do mundo no gozo e a fascinao por recriar o prazer de suas aventuras
amorosas, nas cenas do seu tear. (ibid.). E foi exatamente isto que fez com que Aten, a
Obreira, aquela que preside os trabalhos femininos da fiao, tecelagem e bordado,
depusesse em Aracne a sua ira.
Nas palavras de Brando, Aracne era uma linda jovem da Ldia, filha de dmon, um
tintureiro rico de Clofon. (1987). Tinha tal percia em tecer e bordar que at as ninfas dos
bosques vizinhos vinham admirar e contemplar a sua arte, o que lhe valeu a reputao de
discpula de Aten. No entanto, dentre os dotes da fiandeira no estava a modstia. Assim,
Aracne, certa feita, desafiou a deusa Aten para uma competio pblica. Aten aceitou a
provocao mas apareceu Aracne como uma velha, aconselhando-a a no ultrapassar os
limites o mtron , a depor o seu descomedimento hbris , enfim, dizendo-lhe que
6 Narcsico que se refere a Narcisismo que, por analogia ao mito de Narciso, o amor pela imagem de si
-
23
deuses no aceitavam disputar com mortais. Em resposta, a jovem insultou Aten que se
mostrou indignada e resolveu, em toda a sua imponncia, aceitar o desafio. Assim,
depuseram-se os fios e deu-se incio ao importante concurso. Aten teceu, com suas
maravilhosas mos, uma tapearia que representava os doze deuses do Olimpo em toda a
sua majestade, em lindos coloridos. J Aracne, exerceu o seu oficio de tecel,
representando maliciosamente, na sua obra, cenas indecorosas dos amores dos imortais,
principalmente as aventuras amorosas de Zeus. Terminada a competio Aten examinou
com ateno o trabalho da jovem. Era uma perfeio. Assim, a deusa viu-se, por um lado,
igualada em sua arte por uma simples mortal. Por outro, ficou extremamente irritada pelas
cenas representadas pela jovem na sua tapearia. Fazendo em pedaos o lindo trabalho,
Aten ainda feriu a sua competidora com a naveta.7 Aracne, insultada, tentou se enforcar
mas Aten no permitiu, sustentando-a no ar. Logo depois, transformou-a em aranha, para
que tecesse pelo resto da vida.
Pode-se fazer um paralelo entre a arte da composio e a da tecelagem. Na
composio os elementos que formam a malha musical so tecidos pelo compositor que,
tanto quanto o tecelo, tem sempre um projeto e deixa parte de si mesmo, como a aranha,
naquilo que constri. Essa trama sonora se transforma e se desdobra em partitura nas mos
do compositor como os fios se transformam em tecido nas mos do tecelo. Do tecido de
pano, que impressiona a nossa viso, passa-se agora para o tecido sonoro, que impressiona
a nossa audio. O olho que v o tecido se faz espelho; o ouvido que escuta o tecido
musical se faz radar de um prazer que se anuncia e emite vrios sentidos advindos da teia,
da malha sonora. Viso e audio, coextensivos em suas prerrogativas, descrevem
procedimentos correlatos. No entanto, se por um lado, ver , ao mesmo tempo, sair de si e
mesmo. (Laplanche e Pontalis, 1996, p.287).
-
24
trazer o mundo para si, por outro, ouvir prope internalizao, descrevendo um movimento
para dentro, impondo que todo o saber se efetive em quem ouve. A audio consuma,
assim, seu poder prodigioso por organizar-se dialeticamente com o silncio tanto quanto o
fio organiza-se dialeticamente com o vazio estabelecendo-se a relao do tecido de pano
com o espao e do tecido musical com o tempo.
2. Dos Elementos do Tecido Musical
2.1. Breves Consideraes sobre o Fio Sonoro a Melodia
Um fio sonoro, uma melodia, no constituda apenas de uma seqncia de notas,
mas de notas de durao, altura e acentuao variadas. Assim, um inconcebvel vasto
nmero de combinaes possvel. No entanto, de todas as melodias possveis, nem todas
fazem sentido para o nosso crebro. Sendo assim, dentre as milhares que nos so
oferecidas, s algumas so capturadas pelo nosso crebro. Quando uma boa melodia
emerge, ns celebramos esse evento ouvindo-a repetidas vezes. Mas, por que algumas
melodias fazem sentido para o nosso crebro e outras no? Por que algumas so melhores
do que outras para cada um de ns? Para responder a essas questes muitas hipteses tm
sido levantadas e refutadas por musiclogos que alegam no serem observados por culturas
no europias, princpios que ns gostaramos que fossem vistos como universais. O que
nos interessa na questo da universalidade do desenho meldico, em ltima instncia,
acaba sendo por que a msica nos influencia e como ela nos d prazer, embora muitas
sejam as questes tcnicas possveis de serem discutidas sobre este aspecto.
7 Naveta: "espcie de lanadeira com que se faz certa renda".
-
25
Poder-se-ia dizer que a escala a forma mais bsica da melodia. Pode ser enfadonho
se ouvir uma escala, mas ela tem um sentido para os nossos ouvidos o que no pode ser
dito de qualquer linha de sons menos organizada. Algumas vezes, longos trechos de
escalas aparecem dentro de grandes melodias. Elas podem ser 'completamente musicais'
quando apoiadas por harmonias. No entanto, somente quando escalas so cortadas em
pequenos trechos e cuidadosamente arrumadas em padres contrastantes que ns passamos
a utilizar a palavra melodia.
A maioria do trabalho musicolgico desenvolvido sobre melodia, tem se baseado em
sons encontrados na msica erudita ocidental, abarcando somente os perodos Barroco,
Clssico e Romntico dos sculos XVIII e XIX, deixando-se de lado a Idade Mdia, a
Renascena, o Impressionismo e o Modernismo. A pesquisa confinada e restrita a estes
perodos acaba por satisfazer a concepo de melodia de muitos daqueles que tm a msica
como um meio de expresso ou de lazer/prazer. Mas no de todos. Muitas culturas
endossam diferentes noes de melodia como os cantos dos ndios norte Americanos, ou
da msica vocal da ndia ou do Oriente Mdio, ou, ainda, as pesadas entonaes dos
monges Tibetanos. Nenhum desses sons tem muita ligao com as canes de Schubert,
Cole Porter, Bob Dylan ou, Tom Jobim, para falar tambm da msica popular j que a
mesma tambm construda, geralmente, sobre a tradio daqueles perodos mais
estudados e pesquisados. Mas, diferentes culturas tm diferentes noes de melodia.
Existe, no entanto, um aspecto comum entre as diversas espcies de melodia o contorno
que a linha que essa melodia segue. Segundo Jourdain, a criana de um ms pode
distinguir sons de diferentes freqncias, o que foi deduzido atravs de estudos que
monitoram mudanas sutis das batidas do corao, quando uma criana reage s mudanas
do meio ambiente. (1997). A partir destes estudos sabe-se que aos seis meses, a criana j
-
26
responde a mudanas no contorno meldico, da mesma forma que adultos que no tm
experincias musicais formais so capazes de discernir o contorno meldico quase to bem
como msicos profissionais.
Apesar de dcadas de esforo, sempre que os pesquisadores descrevem o contorno
meldico ainda o fazem usando conceitos cunhados pelos psiclogos da Gestalt no incio
deste sculo. No entanto, ultimamente, o contorno sozinho no suficiente para que se
tenha uma definio de melodia. necessrio que se tenha dimenses adicionais dentre as
quais, a mais importante a harmonia, na concepo de Jourdain. (ibid.). Ainda o mesmo
autor ressalta que uma das maneiras de se conceber a melodia como tendo uma harmonia
subjacente. Diz ainda que a anlise musical mostra que os sons mais proeminentes numa
melodia tendem a pertencer a acordes de uma harmonia predominante. (ibid. p. 81).
Assim, segundo ele, mesmo uma simples linha meldica sem acompanhamento possibilita
uma experincia harmnica, compatvel, evidentemente, com a cultura do ouvinte. J Lvi-
Strauss nos diz que "cada som em si mesmo um acorde, porque ele traz todos os sons
harmnicos concomitantes". (1993, p. 89).
Muitos so os experimentos que so apresentados na literatura para demonstrar o
poder da harmonia na melodia. Mas, uma outra dimenso da melodia o ritmo que se
constitui como um padro de extrema importncia para a nossa compreenso da melodia
ou, melhor dizendo, para que melhor se sinta a melodia.
Mas caberia aqui uma pergunta: como uma melodia percebida pelo crebro ou,
ainda, onde, no crebro, as melodias so ouvidas? Jourdain afirma que uma simples
melodia demanda um grande esforo do crebro, o qual no percebe somente o contorno
da melodia, mas tambm deduz a harmonia predominante (op. cit., p. 83). Existem
centros cerebrais que tm funes especficas para perceber seqncias sonoras. Mas a
-
27
melodia muito complexa para que um nico centro cerebral seja responsvel pela sua
percepo. Sabe-se hoje que o hemisfrio no dominante (o direito em pessoas destras) tem
uma superioridade para identificar sons. No entanto a afirmao de que isto tambm seria
possvel no que diz respeito melodia pode ser discutida uma vez que estudos de
laboratrio e os realizados em cirurgias cerebrais com feridos de guerra, comprovam que o
hemisfrio dominante o responsvel pela percepo de seqncias no tempo. Assim,
pode-se inferir que dever haver um equilbrio entre os dois hemisfrios para que seja
possvel se discriminar sons e as seqncias destes no tempo, ou seja, a melodia.
2.2. Breves Consideraes sobre a Harmonia
Aspectos Histricos
A harmonia, como tantas outras formas da atividade cultural, caracteriza o esforo do
homem ocidental em dominar a natureza.
Sempre houve uma concorrncia entre a teoria e a prtica, o ensino e a imaginao e
os conflitos destes resultados legaram arte uma fecundidade incessante.
Embora a rigidez da redao dos tratados de harmonia possa surpreender, tanto
quanto a ausncia, nesses tratados, de alguns aspectos que hoje parecem essenciais,
necessrio que se aponte a desvantagem da pedagogia diante da pesquisa terica, fato que
decorre da constante evoluo desta ltima. Para se ensinar alguma coisa necessrio que
se estabelea um cdigo provisoriamente definitivo. Este vai permitir o acesso de todos
que pelo assunto se interessem. ( Alain, 1969, p.5). Diz-se um cdigo provisoriamente
-
28
definitivo porque as sucessivas inovaes que acontecem na arte marcam a
provisoriedade.
Falar-se da harmonia do ponto de vista histrico uma questo delicada quando se
pretende ultrapassar os trs sculos que esto mais prximos de ns, pois, a prpria noo
de harmonia razoavelmente recente. Por muito tempo a harmonia foi a expresso de
relaes numricas simples nos intervalos, isto , o que definia as consonncias da
Antigidade e da Idade Mdia. Com a adoo do sistema temperado estas relaes simples
foram abandonadas em detrimento de intervalos teoricamente mais complexos, que
ampliam as possibilidades de deslocamento dos acordes. Aqui se encontra uma primeira
distino entre harmonia de intervalos e de acordes. medida em que o ouvido se habitua
com a polifonia, aparece, pouco a pouco, a impresso do acorde vertical surge(m) o(s)
fio(s) sonoro(s) vertical (verticais). A partir da, o ouvido aceita que os intervalos
tradicionais sejam levemente modificados pelo temperamento, dando-lhes uma
possibilidade maior de deslocamento no espao sonoro o que torna invarivel pela
correo inicial da escala, um mesmo acorde, atravs da transposio. Sem dvida, uma
tentativa de compreenso histrica da harmonia leva a uma reconstituio das diferentes
etapas da audio do Ocidente, s diferentes adaptaes que o ouvido teve que aceitar e s
constantes perdas e ganhos que resultaram nesse ou desse desenvolvimento histrico.
Breves Consideraes sobre as Origens e Evoluo
Admite-se hoje que a msica do Ocidente no a continuao da msica Greco-
latina apresentada por tericos como Aristoxeno ou Bocio. Entre Bocio e os primeiros
-
29
livros tericos ocidentais existe um hiato de trs sculos nos quais se constata uma
orientao mais oriental (bizantina e judaica) do que greco-latina.
Pesquisas recentes distinguem dois lados: um puramente ocidental cltico de
tendncia diatnica e outro oriental ciraco, hebraico e bizantino, sendo que estes ltimos
no correspondem s harmonias gregas mas sim, aos oito modos do Oriente Prximo.
Alguns tericos consideram que o aporte Oriental teria se ocidentalizado,
principalmente pelo desaparecimento muito rpido do cromatismo. No entanto, seria difcil
afirmar onde se encontra a origem ou o polo do ocidentalismo primitivo. Seria possvel
dizer que a Frana, submetida presso romana, teria abrigado as consonncias Greco-
latinas e achado, com a diafonia, a hipottica heterofonia dos gregos por quartas e
quintas.
Os cromatismos orientais seriam eliminados antes de integrar as consonncias, tanto
ocidentais como Greco-latinas no seio de um sistema modal que foi herdado de Bizncio
onde o cromatismo logo reapareceria: inicialmente em favor da modulao modal com a
utilizao do sustenido e do bemol para evitar o trtono, por exemplo.
As origens so extremamente confusas mas Bocio fala sobre a msica grega a um
Ocidente que no mais a pratica, dando um salto de trs sculos, at chegar ao Enchiriadis
de Roger de Laon8 que, com a descrio das primeiras heterofonias ocidentais, nos d
um testemunho do que foi a aurora da polifonia, como diz Alain. (ibid., p.16).
O primeiro organum por movimento paralelo a diafonia foi descrito por Laon no
sculo X. Admite-se que antes da diafonia se praticava uma heterofonia ao acaso. Esta era
inspirada nos instrumentos que possibilitavam o bordo som prolongado, habitualmente
8 Alain se refere a Roger de Laon como sendo o pseudo Hucbald que era um monge, terico e compositor
da Abadia de St. Amand que escreveu a primeira exposio sistemtica conhecida de teoria musical ocidental (c. 880).
-
30
grave, que era mantido continuamente ao longo de um trecho musical e que permitiam a
polifonia. No entanto, existem referncias que tornam evidente a distino entre
consonncia numa ordem sucessiva e numa ordem simultnea. A adio das quintas e
oitavas gerou uma consonncia mais complexa. Aqui poder-se-ia falar de uma harmonia
de intervalos, de uma sucesso de consonncias entre dois sons, simples ou dobrados.
Existe, desde Hucbald,9 uma hierarquia dos intervalos (consonncias e dissonncias), e
uma hierarquia dos graus da escala. O organum hucbaldiano a duas, trs ou quatro vozes.
Na verdade, trata-se de um organum a duas vozes, sendo que uma delas ou as duas podem
ser dobradas. As nicas consonncias admitidas so os intervalos de quartas, quintas e
oitavas. Trata-se de uma tcnica primitiva de improvisao coral sobre o cantus firmus.
Assim, o primeiro movimento harmnico um movimento paralelo sendo seguido de perto
pelo movimento oblquo. As regras de Guido dArezzo so claras: o canto dever partir e
voltar ao unssono embora as quartas ainda sejam privilegiadas. No entanto, aqui j
aparecero segundas e teras de passagem e a nota final que determina o modo.
Segundo Alain, no sculo XI o modo da igreja se alarga em oitava modal terica e
aparece o D Maior na melodia litrgica, afirmao que bastante discutvel. Trata-se,
segundo o mesmo autor, de uma tendncia especificamente ocidental. Alteraes ainda so
teoricamente previstas sobre todos os graus. bem verdade que este cromatismo tem por
objetivo restabelecer intervalos justos entre graus separados por uma dissonncia. No
entanto, isto se constitui como um marco cada vez mais cerrado do espao sonoro que se
prepara para o desenvolvimento futuro.
9 Monge, terico e compositor que escreveu a primeira exposio sistemtica conhecida de teoria musical
ocidental De Harmonica Institutione (c. 880). Este tratado leva em conta intervalos, consonncias, tons e semitons, escalas, tetracordes e modos. (Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 42).
-
31
Da mesma forma que a monodia, a polifonia vai conquistar o seu lugar, no s
meldico mas, tambm, harmnico. As cadncias, no final do sculo XI, comeam a ser
delineadas.
As teras e sextas aparecem nas polimelodias da Escola de Notre-Dame de Paris,
no final do sculo XII e com os trovadores e nas danas emprega-se a cadncia final em
D. Com o jogo em torno da sensvel nasce a frmula 7-6-8 (si-l-d) e o tom de D se
afirma cada vez mais.
No entanto, a simultaneidade de duas melodias, sem relao com funes tonais,
deve ser considerada como polimelodias onde o jogo de intervalos verticais apenas um
resultado e no tem uma verdadeira dimenso harmnica. A harmonia num sentido tonal
a harmonia dos acordes de trs sons, que s nasce a partir da prtica da polifonia a trs
vozes superpostas, cuja a origem pode ser encontrada na obra de Machaut.10. (apud Alain,
ibid.).
O impulso da polifonia no sculo XIII vai levar os msicos a se familiarizarem com
o manejo dos diferentes intervalos. Como os acordes ainda no haviam aparecido at
ento, as leis da escrita so ainda as da conduo polimeldica. Ainda nesse sculo, a tera
se transforma em intervalo harmnico e a escala diatnica completa, dos oito modos, passa
a incluir sons que inicialmente so considerados estrangeiros e que desaparecero pela
atrao de proximidade. No entanto, a freqncia do aparecimento dessa atrao vai
contribuir para acabar com a distino que feita entre os diversos modos, tanto quanto vai
levar criao de leis de encadeamento que sero as da harmonia, no momento em que se
adquire a percepo dos acordes. O manuseio dos intervalos requer a criao de um cdigo
10 Guillaume de Machaut (c. 1300) Compositor e poeta francs. Sua produo de motetos e canes levou-o
a ser a personalidade mais importante da Ars Nova francesa. Os aspectos mais progressistas do estilo de Machaut foram uma crescente conscincia da tonalidade e o uso de motivos rtmicos unificadores. (Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 560).
-
32
para o seu emprego. H uma preocupao na alternncia de tenso e relaxamento. A
conduo das vozes, sempre meldica, de uma forma onde se admite uma liberdade
crescente, produz encontros e atritos que levam a dissonncias ainda muito duras para a
poca. As consonncias ainda ocupam os tempos fortes enquanto que s dissonncias so
reservados os tempos breves. Surgem ento as stimas, nonas e segundas menores e o que
se analisaria hoje como apogiaturas e retardos.
Por volta de 1270, como nos diz Alain, os rondeau11 marcaram uma etapa importante
nas sucessivas conquistas para se chegar harmonia atual. Busca-se, j no sculo XIV,
uma preciso maior dos intervalos, e da conduo meldica das vozes. A terceira maior,
que j existia teoricamente, se insere no acorde de quinta. Aqui dois fatos importantes se
fazem notar: a afirmao do movimento cadencial V-I, e a adoo de melismas cadenciais.
A combinao destes dois fatos atesta a tendncia latente na direo de uma distino entre
o fato harmnico e o meldico e a msica de intervalos traz j na sua estrutura o germe da
sua evoluo futura.
A polimelodia deste sculo se volta para a pesquisa rtmica e aparecem sncopas,
contratempos e hoquetos12 em todas as vozes. O grande mestre deste sculo Machaut e
nas suas obras, tanto religiosas quanto profanas, a escrita nota contra nota pouco
freqente ao mesmo tempo que a utilizao dos diferentes tipos de ornamentos leva a uma
tcnica mais complexa da dissonncia. Apogiaturas, notas de passagem, escapadas podem
se chocar uma contra a outra. No entanto, com o objetivo de evitar esses choques, as
harmonias resultantes podem ser soberbas, no dizer de Alain. (ibid.). A despeito das
11 Forma que assumiu a sua estrutura definitiva no sculo XIII e que dominou a cano e a poesia francesa
nos sculos XIV e XV. (Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 796). 12
Termo medieval que se refere a uma tcnica contrapontstica dos sculos XIII e XIV em que sons e silncios so combinados atravs de um arranjo alternado de pausas em duas ou mais vozes.(Dicionrio Grove de Msica, 1994, p. 439).
-
33
numerosas teras e sextas que aparecem em situao no acentuada, a quinta e a oitava so
ainda os pilares da harmonia desse sculo.
Parece importante ressaltar aqui a forma como Chailley se refere a este momento da
msica:
provavelmente a primeira vez na histria da msica que nos encontramos frente a verdadeiras seqncias de acordes que se apresentam de forma to clara como um bloco harmnico, e no mais como resultantes ocasionalmente de linhas de contraponto. (apud Alain, ibid., p. 25).
Com esta afirmao Chailley chama a ateno para um fato que se constitui como de
grande importncia pois marca o aparecimento do fio sonoro vertical. Aqui a msica se
verticaliza. As vozes superpostas so vistas agora no sentido vertical e no mais,
horizontal.
Segundo Machabey, citado por Alain, o apogeu do modo maior acontece no final do
sculo XIV e no incio do XV. A teoria comea a registrar o encadeamento V-I, no baixo e,
ao mesmo tempo, o movimento meldico sensvel-tnica no soprano, fatos que indicam a
tonalidade em gestao. Os fatos mais importantes so o desenvolvimento da escrita em
imitao raiz tanto dos ricercare quanto da fuga ; as disposies vocais so variadas e
chega-se ao apogeu do contraponto. As dissonncias so introduzidas como elementos
meldicos como apogiaturas e escapadas. A prtica da transposio tanto vocal quanto
instrumental se generaliza. Da msica ficta que admitia os acidentes penetrando na
notao e permitindo a transposio , veio a palavra feinte13 que designava antigamente as
notas pretas dos teclados de hoje.
13 Fingimento
-
34
Por outro lado, o manejo da escrita a quatro vozes, a partir do sculo XIII, sem
dvida contribuiu para que os compositores tenham desenvolvido um sentido harmnico
vertical. O Ocidente comeou a escrever msica a duas vozes, depois a trs e a quatro.
A maior parte dos outros acordes diatnicos, incluindo o de stima, apareceram
numa formao transitria, principalmente, como resultado do retardo. Este foi um
fenmeno de extrema importncia para o nascimento e evoluo da harmonia.
A conquista do espao sonoro se afirma no sculo XVI, sobretudo na msica
instrumental, pela facilidade em se lidar com os deslocamentos. O modo de deslocamento
denominado mecnico ou marcha harmnica , j conhecido. E se instala a tera, no
acorde final de quinta, quase definitivamente, no final do sculo XVI, o que resulta no
acorde perfeito conclusivo clssico.
Alguns fatos marcam a evoluo harmnica nos sculos XVI e XVII. Dentre estes,
quatro devem ser destacados:
- a convergncia de diversos modos para os modos Maior e Menor;
- a afirmao dos acordes de trs e quatro sons e suas inverses. interessante
observar que, em uso h muito tempo, s no sculo XVIII formulada a teoria
da gerao dos acordes (perfeitos, stima e nona) pela superposio de teras a
partir de Rameau.
- a constatao de que o temperamento desigual impede a extenso completa da
modulao e,
- a nova utilizao da harmonia vertical, isto , como acompanhamento
improvisado ou no. Aparece a cifragem dos acordes, fato que ajuda no
desenvolvimento da anlise harmnica e produz a noo de baixo fundamental e
de inverso dos acordes.
-
35
Segundo Chailley, o sistema tetracordal definitivamente arruinado pela
importncia que a mediante adquire. (apud Alain, ibid., p.34). Assim, a despeito da
tentativa para aumentar o nmero e acreditando reencontrar os pseudo-modos gregos, os
modos europeus vo lentamente chegar ao modo Maior que possui a tera maior
(modos de d, f e sol) e modo Menor que possui a tera menor (r, f e la). A funo
atrativa que aparece por vrios sculos, subsiste nas formas tonais gerais. Nos modos
medievais, pode-se constatar as atraes que acontecem nos meios tons.
A harmonia nasce com o acorde de trs sons, com a atrao de meio tom, e com a
relao harmnica de quinta dominante-tnica. Estes fatos instalam por sculos a msica
de bases tonais, onde a modalidade s sobrevive a ttulo de colorao expressiva e, no
mais, de estrutura funcional. A sensvel, que entrou em cena durante os primeiros tempos
da polifonia como a ela se refere Alain, sob a forma fixa de meio tom temperado, exercer
a sua funo sensibilizante em todas as direes e provocar a apario de acordes
alterados, de novos encadeamentos e de novas e mais rpidas modulaes. (ibid ., p. 54).
Os jogos de alteraes possibilitaro uma harmonia cada vez mais livremente
cromtica e um sistema de modulaes que possibilita uma rpida relao com tons mais
distantes.
Os acordes de stima e nona j haviam sido empregados embora teoricamente ainda
houvesse dificuldades nesse sentido. Surgem mtodos de harmonizao simplificada com a
criao de cdigos simplificados e empricos que incluem, sem explicar, os acordes mais
complexos.
Aqui, a harmonia de um msico se define pelos seus acordes preferenciais, pelos
seus encadeamentos caractersticos e pela relao particular entre melodia e harmonia,
-
36
como, por exemplo, o emprego de ornamentos, esquemas de construo tonal e
procedimentos de modulao.
Sem dvida, o aparecimento tanto do Trait de lharmonie rduite ses principes
naturels de Rameau como o Cravo bem temperado de J.S. Bach, em 1722, foram fatos que
contriburam para uma evoluo muito grande da harmonia. Embora fosse relevante
discutir algumas das descobertas mais importantes apontadas por Rameau, ressalta-se aqui
somente o aparecimento do acorde de stima da dominante, resultado da adio da stima
ao acorde perfeito maior quando no V grau. Os diversos acordes de stima exceo do
de stima da dominante , o acorde de nona da dominante que considerado como o
tronco da harmonia dos pedagogos do sculo XIX , e o acorde de dcima primeira, no
so considerados como naturais mas, sim, como frmulas transitrias de substituio da
stima dominante.
A estabilidade tonal, conquistada com muito trabalho, ser progressiva e rapidamente
transformada pelo cromatismo de origem tonal por multiplicao das sensveis
secundrias; ou pelo cromatismo de origem modal pelo aparecimento e desaparecimento
das sensveis sem haver ento modulao.
O que faz o sistema tonal ser o que , est contido no conceito de funes
harmnicas. Os vrios graus da escala, juntamente com os acordes correspondentes,
possuem determinadas funes. O sistema tonal uma organizao particular destas
funes. O importante compreender que a funo atribuda aos acordes de quatro sons
pelos compositores de diferentes pocas e as dissonncias consideradas horrveis no sculo
XVIII, se tornam harmonias interessantes ou mesmo sedutoras, no fim do sculo XIX o
que faz a harmonia enriquecer-se.
-
37
Por volta de 1900, aparecem tanto uma sntese harmnica muito rica, onde muitos
elementos modais diversos e um sentido crescente de sonoridade se fazem sentir, quanto
diferentes disposies instrumentais. Alm disto, a criao de tcnicas de combinao do
cromatismo com o modalismo vem enriquecer a harmonia com a bimodalidade ou
bitonalidade que teve suas razes na poca clssica, nas progresses modulantes sobre o
pedal. A bitonalidade sistematicamente empregada por Milhaud que chega tri e
tetratonalidade comeando aqui o caminho para as ltimas etapas da harmonia: o
Pancromatismo de Bartok, o Serialismo de Shoenberg e o Infracromatismo ou a msica
dos micro intervalos. Os acordes so formados a partir das necessidades expressivas do
compositor e no mais segundo as regras tradicionais. Com isto a harmonia deixa de ser
funcional .
Pode-se perceber que a evoluo da harmonia mostra o estabelecimento gradual de
relaes e o crescimento lento de convenes e que nesse fluxo de impresses no houve
uma quebra mas um contnuo onde o uso reiterado de alguns aspectos como a dissonncia,
por exemplo, acaba por se tornar uma conveno estvel.
Um grande nmero de acordes isolados so classificados em relao ao poder que
eles exercem sobre a escuta do msico, de sugerir ou definir uma tonalidade particular.
Tambm verdadeiro dizer-se que um grande nmero desses acordes pode ter, com
relao combinao de notas, mais do que um sentido. No entanto, preciso que estes
sejam levados em considerao dentro de um contexto, isto , observando-se tanto o
acorde que o precede como aquele que o segue, as funes que os mesmos exercem dentro
desse contexto e as relaes entre as funes. Seus nomes tcnicos tm uma dupla
significncia. Como exemplo temos o acorde de stima da dominante que formado por
uma stima adicionada tera e quinta e que forma um intervalo de stima menor com a
-
38
nota bsica. Esta nota bsica, no entanto, definida como a dominante do tom. O termo
stima da dominante define, assim, no somente uma arrumao vertical particular mas
tambm um comportamento tradicional de uma ou mais destas notas no movimento que
elas realizam.
A classificao de acordes com relao sua significncia musical no s uma
definio de combinaes, mas, tambm, uma indicao de processos harmnicos. Um
processo desta natureza envolve trs fases: preparao, condio e resoluo.
Mas, como j foi visto anteriormente, a partir da vontade expressiva do compositor
surge uma liberdade harmnica total que rompe com a tradicional escala geral de sons da
msica europia e introduz, aos poucos, intervalos de quartos de tom ou ainda menores.
Estas breves consideraes sobre a harmonia podem levar-nos a pensar no quo
complexas so as tramas sonoras do tecido musical, que se entremeiam com o fio sonoro
horizontal tendo o ritmo como o elemento que vai tornar possvel essa malha.
2.3. Breves Consideraes sobre o Ritmo
O nosso crebro tem na msica objetos to longos quanto os que ele constantemente
vai encontrar em outras situaes. Mas, para analisar esses longos objetos o crebro precisa
faz-lo pouco a pouco, tendo, assim, que achar formas de quebr-los em partes. Diz-nos
Jourdain (op.cit., p.124) que aquilo que chamamos de ritmo "existe na msica para ajudar o
crebro nessa tarefa". Uma seqncia de marcadores rtmicos ajuda o crebro a identificar
o incio ou o fim de um objeto musical. Sem esses marcadores o crebro ficaria
rapidamente sobrecarregado por uma gama enorme de informaes.
-
39
O mesmo autor considera duas diferentes noes de ritmo. A primeira delas uma
concepo familiar que considera o ritmo como padres de batidas acentuadas. Poder-se-
ia discutir essa noo marcando a diferena entre ritmo e metro. Para os musiclogos, isto
seria mtrica e no uma noo de ritmo. No Dicionrio Grove encontramos a seguinte
definio de mtrica: a organizao de notas numa composio ou passagem, no que diz
respeito ao andamento, de tal forma que uma pulsao regular feita de tempos possa ser
percebida e a durao de cada nota medida em termos desses tempos. A mtrica
identificada no incio de uma composio atravs de uma frmula de compasso. O
compasso ordena o tempo e deriva da forma como tocamos os instrumentos musicais, os
quais permitem, geralmente, mais rapidez do que a voz. Organiza pequenos e grandes
grupos de notas e d uma espcie de grade sobre a qual a msica acontece.
A segunda concepo aquela que aparentemente nada tem a ver com ritmo. um
tipo de ritmo que geramos o dia inteiro e que advm do movimento orgnico. Dentre estes
est o ritmo da fala. Este ritmo chamado de fraseado e na msica construdo por uma
sucesso de formas snicas irregulares, que se combinam de diversas maneiras. O fraseado
o ritmo que a garganta e a respirao possibilitam enquanto que o metro o ritmo das
mos. Seria difcil a msica existir sem essas duas formas de ritmo. Muitas vezes nos
referimos a estas duas concepes de ritmo como sendo vocal para o fraseado , e
instrumental para o metro.
O fraseado vocal porque vem da fala, que uma maneira natural de "ritmar" uma
emisso sonora, a partir das possibilidades de respirao. Este concede uma espcie de
narrativa msica e varia constantemente, o que pode ser observado mais facilmente na
msica que acompanha as palavras de uma cano. Sem o fraseado a msica se torna
repetitiva e banal. No entanto, no incio do sculo XX o fraseado se tornou mais complexo
-
40
e, com esta complexidade, ele deixou de se parecer com as frases faladas. Sucesses de
pequenas frases e frases rpidas podem ser tecidas em texturas ondulantes. Ou, muitas
frases longas podem ser construdas numa hierarquia extensiva como impondo uma
dificuldade para ser seguida, como numa novela de Faulkner ou, ainda, nas construes de
Proust, em Le Temps Perdu.
Mas, por que pode-se ver o fraseado como uma espcie de ritmo? Porque este, tanto
quanto o metro, se devota ao mapeamento do fluir do tempo, embora os mecanismos que
regem ambos sejam completamente diferentes. O fraseado trabalha largamente com o
sentido inerente ao som que ele contm. Assim como o sentido de uma frase falada pode
ser percebido logo que esta dita, uma frase musical pode carregar uma idia musical
inteira, idia esta que, freqentemente, harmnica. Libertando-se da linha meldica, a
harmonia subjacente viaja para um territrio familiar e ento volta para o repouso
momentneo. Depois de ouvir esta resoluo, o crebro agrupa as notas precedentes, e
ento est pronto para perceber a progresso seguinte.
No entanto, o fraseado pode ser definido por outros mecanismos alm da harmonia,
tais como: pela utilizao dos instrumentos, constrastando intensidades, textura ou alturas.
Tanto quanto o metro, o fraseado tem marcadores. Pausas sbitas, acentuaes de abertura
e embelezamentos meldicos ajudam a anunciar o incio de uma frase ou subfrase e a
marcar o trmino da anterior. Quando um compositor cuidadoso com o fraseado e os
intrpretes conseguem dar a este uma boa execuo, todos os aspectos da msica esto
apoiados e unificados. Como resultado, o crebro percebe uma srie de distintas formas
musicais que se estendem no tempo ou atravs deste.
-
41
Embora os domnios sonoros sejam "invisveis" aos que no tm habilidades
perceptivas para isto e a compreenso de uma obra de arte resulte, segundo Koellreuter,
(1989) de um processo de crescimento intelectual, nem a inabilidade perceptiva nem a
incompreenso, vo impedir que uma obra possa provocar efeitos de diferentes ordens num
indivduo.
Um crebro pode ser capaz de reconhecer os limites das frases e, talvez mais
importante do que isto, a memria a curto prazo pode ter suficiente habilidade para
perceber artifcios musicais complexos. Contudo, ainda que a msica enfatize o fraseado
h, tambm, a necessidade do metro.
O metro apresenta uma sucesso regular de notas e como o tijolo que revestido
pelo fraseado o concreto. Na concepo de Jourdain o metro "tirnico" na sua
regularidade, a qual comparada batida de um relgio, que mede as duraes temporais.
(op. cit., p. 131). O propsito do crebro em medir o tempo no diferente do propsito de
medir a altura dos intervalos no espao. Assim como a altura dos intervalos d a base para
se detectar as relaes que definem os acordes e as progresses harmnicas que acabam
estabelecendo o sentido de tonalidade, os nossos crebros medem a durao dos sons
individuais e os silncios existentes entre eles, buscando padres entre essas duraes e,
ento, padres dos padres. certo que a msica pode existir sem um padro temporal
rigoroso. Contudo, sem esse padro temporal, falta-lhe uma dimenso inteira.
Todavia, no to fcil medir o tempo como as alturas sonoras no espao. A partir
do momento em que nosso crebro percebe as alturas sonoras, naturalmente capaz de
perceber as oitavas que podem ser subdivididas para formar escalas. No momento em que
o crebro se acostuma estrutura de uma escala de determinada cultura, ele capaz de
-
42
utilizar as alturas dessa escala como estrutura atravs da qual ele poder perceber qualquer
composio que utilize essa escala.
O tempo no tem uma unidade de medida semelhante da oitava. No existe um
relgio neurolgico que possa ser subdividido em pequenas unidades, numa espcie de
escala temporal. A categorizao temporal prpria de cada composio e isto acontece
principalmente a partir do metro em cujo centro est o pulso que um batimento
incessante que os padres rtmicos cobrem. O pulso existe como uma recorrncia de
contrao/tenso e relaxamento, sendo, cada batida, sentida como a renovao da
experincia. Quando o crebro comea a sentir uma sucesso de pulsos comea a antecip-
las, mesmo quando elas desaparecem no silncio ou em notas longas. Mas, assim como a
harmonia requer uma repetio constante dos centros tonais, o ritmo musical necessita de
uma reiterao constante do pulso subjacente. Alguns segundos de lapso e o ouvinte pode
estar perdido. (ibid.)
Psicologicamente, o pulso se constitui como algo que restabelece e renova a
percepo e a ateno. O nosso sistema nervoso tem uma propriedade bsica: ele pra
depressa de perceber um fenmeno que no muda. O pulso teria, ento, a importante
funo de manter vivos os fenmenos imutveis e que, por isso, deixariam de ser
percebidos. Nosso crebro automaticamente formar grupos de duas, trs ou quatro
batidas, comeando, cada grupo, a partir do acento. Na verdade, nosso crebro mede as
distncias atravs do tempo, agrupando batidas. interessante ressaltar que Jourdain nos
fala da percepo do metro como se articulando sobre os nmeros primos que no so
divisveis por outros nmeros inteiros (exceto por ele mesmo e por um). (ibid.,). O nmero
trs primo e no pode ser subdividido. Assim, teremos trs batidas.
-
43
Na passagem da Idade Mdia para a Idade Moderna lia-se, nos textos gregos, que a
msica deveria seguir as palavras e que haviam boas e ms formulaes do tempo,
elegendo-se os metros binrios e ternrios como os nicos bons, ou seja, os nicos belos
e justos. (Gubernikoff, 1991, p. 42). A subordinao da msica ocidental a estes valores,
durante os seus 400 anos de histria fez, sem dvida, com que eles fossem experimentados
como naturais.
No entanto, perguntar-se-ia como fica o nosso crebro frente a um compasso de
cinco tempos, no qual tem-se que perceber duas batidas seguidas de trs ou trs seguidas
de duas? Certamente o crebro ter que fazer um esforo contnuo no sentido de reajustar-
se mudana de distncia.
Embora msicas em compasso de cinco tempos apaream em toda a histria da
msica Ocidental, Jourdain assinala a dificuldade que muitos intrpretes tm em tocar
essas msicas. Trata-se aqui, provavelmente, de uma questo cultural, j que nas teorias da
msica do Extremo Oriente existem compassos de mais de trinta tempos, com subdivises
rtmicas absolutamente complexas e no se tem registros de dificuldades de percepo ou
execuo.
Entretanto, no s este compasso se apresenta como um desafio para os intrpretes
mas, tambm, o de sete tempos e a polirritmia, por consistir na execuo de mais de um
metro ao mesmo tempo. Esta exige maior ateno do nosso crebro do que o metro simples
encontrado na maioria das msicas.
A complexidade mtrica comparada complexidade harmnica assim como as
escalas subdividem as alturas, o metro subdivide o tempo. Assim, poder-se-ia dizer que um
metro complexo como a polirritmia , anlogo dissonncia.
-
44
Mas, seria interessante uma breve reflexo sobre a relao entre msica e tempo.
Enquanto os fsicos e filsofos continuam discutindo e debatendo sobre a absoluta
natureza do tempo, os neuropsiclogos tm um ponto de vista mais pragmtico. Para estes,
falar-se de um presente infinitesimal um contra-senso j que o presente no est
realmente ali. J para os psiclogos, o "presente" tem uma extenso finita e mensurvel.
Este o tempo mnimo que se leva para sentir, perceber e categorizar e isto vai ser ditado
pela velocidade com que os neurnios disparam. Esta durao denominada o presente
perceptual. No entanto, temos uma noo muito pequena do que significa a palavra "agora"
que quando vivenciamos a msica num presente perceptual que dura em mdia apenas
dois segundos. Contudo, a nossa experincia subjetiva no est to confinada pois, quando
ouvimos atentamente, sentimos como se longas passagens se apresentassem inteiras aos
nossos ouvidos o que se trata de uma iluso perpetrada pelo que Jourdain chama de "irms
gmeas" a memria e a antecipao. (ibid., p. 137). A memria evoca o que j passou e
a antecipao prenuncia o que est por vir. Trabalhando juntas, a memria e a antecipao
podem manter uma sorte de mapa, ainda que imperfeito e parcial, da composio que
estamos ouvindo. Isto vai depender tambm de audies anteriores que j foram feitas de
dita composio. No entanto, independente destas audies, muitas vezes somos capazes
de fazer antecipaes de passagens mais comuns aqui no sentido que se refere cultura.
Somos tentados a pensar o presente perceptual como uma espcie de reverberao
neurolgica do tempo para a entrada dos dados advindos pelos sentidos. Em resumo, "o
tempo perceptual a unidade na qual o nosso crebro reflete sobre o mundo" (ibid., p.
139). O momento presente vai se fundindo com o seguinte numa cadeia interminvel e
nossas mentes vo mantendo uma subcorrente de relaes abstratas que se desenrolam
como uma espcie de paisagem temporal. Barthes, citado por Boretz, afirma:
-
45
...ns constantemente flutuamos entre o objeto e a sua desmistificao, impotentes para traduzir a sua totalidade. Se ns penetramos no objeto, ns o liberamos mas o destrumos; e se ns reconhecemos o seu peso, ns o
respeitamos, mas o restauramos a um estado ainda mistificado. (1992, p. 273).
Parece pertinente transferir-se essa distncia que o autor aponta existir entre a
apreenso de um objeto e o prprio objeto, para a msica e o ouvinte. Distncia essa que
Hebdige denomina "distncia psquica" e que vista como um efeito invariante do
discurso feito, mas que fatal para a possibilidade de total e imediata interpenetrao do
texto e da conscincia. Para Boretz, o verdadeiro propsito do pensamento, seja em
relao ao que for, incluindo a msica, " precisamente aprofundar e intensificar a
particularidade da experincia expressiva envolvida de forma totalmente orgnica". (ibid.,).
Ainda importante assinalar que embora a percepo dos intervalos harmnicos
esteja localizada, nos indivduos destros, no crtex auditivo do hemisfrio cerebral direito
que se encarrega da anlise num instante, da simultaneidade , a habilidade rtmica est
localizada, nos indivduos com a mesma predominncia hemisfrica, no hemisfrio
esquerdo, que encarregado da anlise de um padro durante um tempo numa sucesso
de eventos. Na verdade, achados relativamente recentes apontam a capacidade rtmica
como sendo menos localizada do que a capacidade harmnica. No entanto, existem
algumas dificuldades para interpretar resultados desses estudos no s pelo
desconhecimento da natureza das leses cerebrais que causam ditas dificuldades, mas,
tambm, pela definio de ritmo que varia de um estudo para outro.
Mas, vale dizer que a harmonia pode ser encaixada no presente perceptual mais do
que o metro. Enquanto o nosso crebro pode ouvir sons simultneos e descobrir relaes
-
46
entre eles, o metro basicamente um fenmeno serial, isto , as batidas chegam uma a uma
e vo sendo integradas num padro mtrico cuja complexidade anloga de um nico
acorde. Uma transformao mtrica complexa demandaria segundos para ser tocada o que
sairia para alm das fronteiras do presente perceptual. Com isto perderia a proximidade e,
para ser percebida, faria grandes exigncias da memria de curto prazo. Partindo dessa
argumentao, levantada por Jourdain, pode-se concluir que, embora parea absurdo, o
crebro tem naturalmente mais facilidade para a harmonia e que o desenvolvimento
harmnico pode ser levado mais longe que o do metro, antes de chegar aos limites da
compreenso. (op. cit., p. 153).
2.4. Do Tecido Musical
A partir do momento em que pensamos sobre os elementos constituintes da msica
ritmo, melodia e harmonia , podemos, com eles, fazer uma analogia com o tecido ou com
o ato de tecer sonoramente, o que nos leva a uma relao entre viso e audio, o que j
foi feito anteriormente.
Existe, sem dvida, um fio sonoro horizontal - a melodia -, que urdido pelo
compositor e que estabelece uma relao dialtica entre sons e silncios, considerando-se o
silncio no como ausncia de som mas, como Gubernikoff a ele se refere: "como uma
virtualidade expressiva" . (1991 p. 43). Este fio sonoro se entrelaa e se desenvolve em
motivos, como estampas, o que tem sido "o grande libi da identidade e da unidade" da
msica a partir da segunda metade do sculo XX, quando as formas clssicas comeam a
perder a coeso interna e a relao imediata dada pelo sistema tonal "comea a ser
questionada". (ibid., p. 44).
-
47
Estes motivos so resultantes do tratamento que o compositor d s diferentes linhas
meldicas, interao das mesmas com a harmonia, tranadas com um determinado ritmo,
o que vai se constituir no que consideramos o tecido musical.
-
48
Captulo II
Sobre o Mtodo "Imagens Guiadas e Msica" - GIM
1. A Histria do GIM
O processo de imaginao tem sido parte integral da medicina xamnica tanto quanto
foi empregado por Esculpio, Aristteles, Galeno e Hipcrates para diagnstico e
tratamento de doenas. Na medicina moderna, com a eficcia do efeito placebo fica
evidente que a mente pode intervir, em algum grau, nos processos fisiolgicos.
Tanto Freud quanto Jung utilizaram imagens e seus efeitos associados como chave
para "destrancar" e explorar o inconsciente de seus pacientes. Freud utilizou inicialmente a
hipnose e Jung a tcnica de "imaginao ativa". Para Freud as imagens eram mais
primitivas do que o pensamento verbal e ele as ligava ao pensamento do processo
primrio:
" possvel para os processos de pensamento tornarem-se conscientes atravs de uma reverso de resduos visuais ... Pensar em cenas ... aproxima-se mais dos processos inconscientes do que pensar em palavras e isto inquestionavelmente
mais antigo do que as palavras tanto ontogenetica quanto filogeneticamente" ( Freud, 1960, apud Hanks, 1992, p. 19.)
J o trabalho de Jung envolve os arqutipos do inconsciente coletivo, as imagens
arquetpicas e os efeitos destes decorrentes. "Diferentemente do inconsciente individual, o
inconsciente coletivo o repositrio de toda a experincia humana, desde o comeo
-
49
remoto, e comum a todas as pessoas de todas as culturas". (ibid, p. 20). Foi a partir dessas
concepes que Jung desenvolveu a "imaginao ativa" que uma tcnica para trabalhar
em psicoterapia, que se utiliza dos contedos arquetpicos da psique. Nesta tcnica o
dilogo com o inconsciente pode se dar em forma de uma conversa interna ou atravs da
arte msica, dana ou escrita. Aqui o processo diferente daquele que aceita
passivamente as mensagens do inconsciente ou que por elas oprimido. A "imaginao
ativa" pode ser um poderoso facilitador de transformao da personalidade.
No entanto, embora Freud e Jung tenham se utilizado das imagens em seus trabalhos,
foi Leuner o primeiro psiquiatra a desenvolver um mtodo formal para a utilizao das
mesmas em terapia14, mtodo esse que "enfatizava a motivao 'subconsciente', a
significao dos smbolos e a resistncia". (Summer, 1988, p. 5). O objetivo de Leuner era,
atravs da mobilizao do afeto, aliviar os distrbios neurticos, psicossomticos e as
condies borderlines. O que o seu mtodo tinha em comum com seus predecessores
Freud e Jung era o desejo de chegar no subconsciente.15 Contudo, fugindo tradio, o
paciente primeiro passaria por um relaxamento. Depois disto, Leuner utilizaria uma de suas
dez formas de induo atravs de imagens, levando o paciente a um estado alterado de
conscincia, o que possibilita o aumento da emoo, da capacidade para enfrentar os
problemas, sendo que o confronto com os mesmos resulta num fortalecimento do ego. O
mtodo de Leuner foi, ento, um passo frente no campo da terapia. Todavia, na medida
em que os cientistas desenvolveram pesquisas que possibilitaram uma nova compreenso
do crebro, o campo das terapias se beneficiou destas conquistas. Condies qumicas
especficas desenvolvidas vieram contribuir para a melhora de problemas neuroqumicos e
14 "Imagens Afetivas Guiadas"- Mtodo de Psicoterapia Intensiva.
15 Aqui est sendo mantida a terminologia de Summer - subconsciente (ibid.,). No entanto, sem dvida, o
mais certo seria utilizar a palavra "inconsciente" como emprega Bonny, no captulo de seu livro que se refere msica e conscincia. (1973, p. 153).
-
50
se constituem, ainda hoje, em tratamento padro para a doena mental. Em meio ao
desenvolvimento destes agentes qumicos surge o LSD.
Em 1960 dois hospitais nos Estados Unidos16 comearam a fazer experimentos com
a utilizao de LSD e msica no tratamento de pacientes terminais e de usurios de drogas.
Nas experincias feitas no Hospital de Maryland eram colocadas msicas pr-gravadas,
escolhidas por Helen Bonny, de acordo com a intensidade da experincia com a droga,
para apoiar os estados alucingenos dos indivduos. O resultado da LSD/Musicoterapia
com 117 pacientes alcolicos aqui j se comea a ver a utilizao da msica na
experincia como Musicoterapia , mostrou que o grupo que tinha "experimentado a
'experincia culminante'17 mais profunda tinha tido a mais alta percentagem de reabilitao
e ajustamento global". (ibid.)
Todos os terapeutas que participavam dessas experincias consideravam que a
msica era essencial para a LSD/Musicoterapia. Coube a Helen Bonny perceber que o LSD
era dispensvel pois s a msica, quando escolhida com "conhecimento e discriminao
podia produzir um estado alterado da mente o que permite uma participao e observao
simultneas de eventos mentais e da experincia da pessoa". (Skaggs, 1992 p. 77). Assim,
tendo o trabalho no Hospital de Maryland como ponto de partida, Helen Bonny ainda
hoje uma violinista da Orquestra Sinfnica de Maryland , incorporou o trabalho de
Leuner e desenvolveu uma tcnica que se fundamenta numa abordagem humanista e tem
por objetivo trabalhar com pessoas "normais". Como diz Bonny "pessoas que estejam em
16 Maryland Psychiatric Research Center e Veterans Administration Hospital em Topeka. (ibid., p. 6).
17 Com 'experincia culminante' a autora se refere ao que Maslow define como sendo "... momentos de
felicidade e realizao supremas". A 'experincia culminante' "unicamente boa e desejvel, e nunca experimentada como m ou indesejvel". (Maslow, sem data, p. 102 e 110).
-
51
busca de uma auto-atualizao18. J relativamente saudveis, eles buscam mais
experincias e insights nas reas humanistas e transpessoais". (apud Summer, 1988 p. 6).
Na dcada de 70, Helen Bonny fazia parte da 'linha de frente' de profissionais que
trabalhavam em sade mental, os quais comeavam a reconhecer o valor de se melhorar a
auto conscincia e percepo das pessoas mentalmente saudveis ou "normais". Bonny
passou, ento, a trabalhar com grupos formados por este tipo de pessoas e foi construindo o
mtodo agora conhecido como GIM. Para substituir o LSD, empregado anteriormente para
levar a estados alterados de conscincia e que tinha agora a sua utilizao regulamentada,
Bonny passa a aplicar as tcnicas de relaxamento de Jacobsen e Schultz. "Com os corpos
relaxados e as mentes abertas" Bonny lana mo de uma das dez indues de Leuner como
preparao para a msica. (ibid., p. 7). A aplicao humanstica da tcnica psicanaltica de
Leuner culminou no desenvolvimento da sesso individual e do GIM que por ela definido
como sendo "uma tcnica que envolve a audio de msica, num estado de relaxamento
para eliciar imagens, smbolos e/ou sentimentos com o propsito de proporcionar
experincias de criatividade, de interveno teraputica, de auto conhecimento e de
religiosidade (espirituais)". (ibid.). Segundo Rider "as artes se tornaram parceiras
legtimas da imaginao porque o estmulo artstico (particularmente a msica) a
intensifica". (1987 p. 113).
Cabe ressaltar que embora a prpria Helen Bonny se refira ao GIM como uma
tcnica, esta vista hoje, por muitos tericos e estudiosos, como um mtodo.
Diferentemente da conduo diretiva de Leuner, Bonny passou a ver o terapeuta
18 Termo cunhado por Kurt Goldstein para "descrever os processos de desenvolvimento das capacidades e
talentos do indivduo; de compreenso e aceitao do prprio eu; de harmonizao ou integrao dos motivos individuais.(Maslow, sem data, p. 15).
-
52
componente da dade terapeuta-paciente como um facilitador ou um apoio para o processo
de auto atualizao.
Em 1972 Bonny fundou o "Institute for Consciousness and Music" frente do qual
esteve at 1986 preparando terapeutas para trabalharem com seu mtodo. Mesmo
deixando a direo desse instituto ela continuou seu trabalho no campo da msica e estados
alterados de conscincia e muitos de seus seguidores tomaram para si a funo de formar
musicoterapeutas para trabalharem no mtodo que muito utilizado hoje nos Estados
Unidos e comea j a ser difundido em muitos pases da Europa.
2. Em que Consiste o GIM
"Imagens Guiadas e Msica" um mtodo de Musicoterapia que trabalha
principalmente com dois aspectos: a possibilidade da msica em provocar tanto a sinestesia
quanto estados alterados de conscincia ou, como diz Helen Bonny, "a utilizao da
msica para alcanar e explorar nveis extraordinrios da conscincia humana". (1973 p.
13).
O mtodo utiliza como tcnica a "audio musical", para a qual foram organizadas
por Helen Bonny, previamente, 21 fitas (j hoje revisadas e modificadas pela prpria Helen
Bonny e por outros terapeutas que utilizam o mtodo e recentemente colocadas em CD por
Kenneth Bruscia), para ajudar as pessoas a buscar, atravs de nveis incomuns da
conscincia, o crescimento e o bem estar.
Alguns procedimentos realizados no GIM, como a entrevista inicial e o contrato, so
comuns tanto a outras formas de terapia como, tambm, Musicoterapia ativa (ou inter-
ativa na concepo de Barcellos, 1991). No entanto, as sesses em si, tm muita diferena
-
53
daquelas que so realizadas na Musicoterapia que utiliza como tcnicas a improvisao, a
re-criao ou, ainda, a composio musical, para citar apenas algumas tcnicas utilizadas.
Uma sesso do GIM tem etapas bem definidas: a primeira o "preldio", a segunda
o "relaxamento e a induo", a terceira a "msica /imagem sinergia" e, por ltimo, a
"finalizao da sesso".
No "preldio", faz-se um dilogo introdutrio que tem vrias funes tais como:
servir como ajuda no estabelecimento da relao teraputica indispensvel para o
desenvolvimento de qualquer processo teraputico; possibilitar a observao dos
sentimentos que o paciente apresenta no momento; e, por ltimo, mas no menos
importante, ajudar o musicoterapeuta a escolher o tipo de relaxamento, a induo e a
msica a serem utilizados. Essa conversa, que dura de 15 a 30 minutos, ir preparar o
paciente e o terapeuta para a prxima etapa da sesso.
No segundo momento da sesso o musicoterapeuta dever conduzir o paciente a um
relaxamento fsico e, ao mesmo tempo, lev-lo a uma concentrao psicolgica. Estes dois
processos caminham juntos pois o relaxamento fsico d a possibilidade de concentrao e
esta, por sua vez, facilita o relaxamento. A partir do momento em que o musicoterapeuta
percebe que o paciente est relaxado e concentrado utiliza uma induo verbal. Esta vai
depender dos objetivos do musicoterapeuta e da sua imaginao.
A terceira fase aquela que se constitui como o centro da sesso, ou seja, o
momento em que utilizada a msica e, por isto, ser abordada com maiores detalhes num
item separado. O final da sesso o momento em que o paciente sai do estado alterado de
conscincia e reflete sobre as suas reaes fsicas, sobre as imagens, sentimentos e
emoes que fizeram parte da experincia. Durante a experincia, o musicoterapeuta
escreve tudo o que foi relatado pelo paciente, as intervenes que foram por ele feitas (pelo
-
54
musicoterapeuta), os momentos de mudana da msica, as reaes do paciente, enfim, tudo
que puder ser observado, num papel com carbono, de maneira que o paciente tenha, aps a
sesso, uma cpia daquilo que aconteceu.
3. O Papel da Msica no GIM
Segundo Helen Bonny, a fase da sesso em que se utiliza a msica tem uma
seqncia conhecida como "o diagrama da viagem".19 (1978a, p. 24). Esta seqncia
usualmente envolve trs nveis de experincia: o 'preldio', a 'ponte' ascenso ou
descida a estados mais profundos e o 'centro' ou mensagem da sesso. E a msica,
evidentemente, que leva o paciente a estes diferentes momentos.
O grupo de terapeutas que trabalhou no Maryland Psycriatric Research Center
utilizou a msica em mais de 600 sesses com usurios de drogas, durante vrios anos, e
todos consideraram a msica como sendo um estmulo muito efetivo. Muitos estudos
foram realizados sobre a funo da msica na terapia com LSD e as concluses apontaram,
pela preferncia dos pacientes e pelos resultados obtidos, para a importncia de seu
emprego.
Segundo Bonny a msica 'complementa' os objetivos teraputicos de cinco formas
diferentes:
1 - ajudando o paciente a abandonar os controles usuais e entrando mais inteiramente no seu mundo interno; 2 - facilitando a liberao da intensa emoo; 3 - contribuindo para uma 'experincia culminante'; 4 - dando continuidade a uma experincia onde o tempo no existe; 5 - dirigindo e estruturando a experincia ( 1972, p. 65).
19 No GIM, a sesso de Musicoterapia vista como uma viagem, assim denominada por conta das imagens
que levam o paciente a "viajar".
-
55
Bonny examina cada um destes pontos e pode-se perceber que estas concluses
advm da experincia prtica anteriormente relatada, dos estudos tericos que
acompanharam as referidas experincias e do seu profundo conhecimento de msica.
Por centenas de anos a nica explicao possvel para o poder da msica era a que a
conectava com o mstico e sobrenatural. Alis, ainda hoje, muitas so as formas de terapia
que utilizam msica em "processos de auto cura" ou de "desenvolvimento pessoal", que
do a estes processos o nome de Musicoterapia e que trazem essa explicao para o poder
da msica.
Sabe-se que Freud evitava a msica, no se permitindo ser mobilizado por alguma
coisa que ele no podia explicar. No entanto ele, Ferenczi, Reik e Jung discutiram a
questo da melodia que vem espontaneamente mente. (Kohut, apud Hanks, 1992, p. 20).
Hanks nos diz que msica uma comunicao ntima. Poder-se-ia dizer que ela
possibilita uma forma de comunicao intra e interpessoal uma comunicao da pessoa
consigo mesma e, tambm, com outras pessoas, por ser no ameaadora e "no punitiva".
(ibid.,) Essa comunicao pode ser no verbal, pr- verbal e tambm verbal. A pessoa
pode, com segurana, projetar os seus sentimentos na msica porque ela estimula, permite
e apoia a expresso do afeto em toda a sua intensidade.
Segundo Hanks, (ibid) Kohut o maior terico que tenta, de uma forma organizada,
correlacionar a msica com a teoria do desenvolvimento e do afeto. Os estudos de Hanks,
que vo desde Aristteles, Schopenhauer, Kant e Plato que consideram a msica como
uma funo do id , at K. E. M. Bach, Rousseau, Darwin e Spencer que falam dos
aspectos da msica e do envolvimento do ego , acabam por declarar que Kohut acredita
que o prazer musical envolve a personalidade como um todo e que existe uma
-
56
"universalidade essencial" na experincia musical. Estas ltimas idias do autor podem ser
relacionadas s de Jung sobre a natureza arquetpica de experincias. A partir destes
estudos, Hanks explica, detalhadamente, o comprometimento tanto das trs instncias id,
ego e superego, bem como dos processos de pensamento primrio e secundrio com a
msica. Kohut, segundo Hanks (ibid.,), se refere aos processos primrios como formas
primitivas de tenso tendo como aspecto principal a descarga rpida e direta das mesmas
e os processos secundrios como mais refinados e complexos, envolvendo tenso
compreendendo funes como formao de conceitos, pensamento lgico, planejamento e
resoluo de problemas. O autor faz uma analogia com a msica dizendo que: a um
simples ritmo ou um som [processo primrio] podem ser freqentemente agregadas
elaboraes sofisticadas de variaes [processo secundrio] o que, ainda segundo o
autor, seria o conceito de um tema com variaes. Mas, vale retomar aqui o aspecto que
mais interessa a este trabalho: a msica como fator que estimula imagens.
Summer, referindo-se utilizao da msica no GIM, afirma que a msica erudita da
cultura ocidental a nica msica que pode ser utilizada no GIM (1988, p.4). O primeiro
aspecto que deve ser ressaltado aqui o da utilizao exclusivamente da msica ocidental
o qual est ligado, certamente, questo da cultura na qual estamos inseridos pelo fato de a
msica no ser uma linguagem universal questo que, por conta da globalizao, ser
vista de uma outra forma dentro de pouco tempo. Se utilizado no Oriente, o mtodo dever
sofrer u