a incapacidade para o trabalho e suas repercussÕes

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MARA FERRO DE SOUSA TOUSO

A INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E SUAS REPERCUSSES SOBRE A VIDA COTIDIANA: interpretaes pelo mtodo Photovoice.

Dissertao apresentada Universidade de Franca, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Promoo de Sade. Orientadora: Profa. Dra. Rosalina Carvalho da Silva.

FRANCA 2008

Catalogao na fonte Biblioteca Central da Universidade de Franca

T669i

Touso, Mara Ferro de Sousa A incapacidade para o trabalho e suas repercusses sobre a vida cotidiana: interpretaes pelo mtodo Photovoice / Mara Ferro de Sousa Touso; orientador: Rosalina Carvalho da Silva. 2008 190 f. : 30 cm. Dissertao de Mestrado Universidade de Franca Curso de Ps-Graduao Stricto Sensu Mestre em Promoo de Sade 1. Promoo de Sade Psicologia Trabalho. 2. Mtodo Photovoice. 3. Trabalho Incapacidades. 4. Promoo de Sade Vida cotidiana (trabalho). I. Universidade de Franca. II. Ttulo. CDU 614:159.9:331

MARA FERRO DE SOUSA TOUSO

A INCAPACIDADE PARA O TRABALHO E SUAS REPERCUSSES SOBRE A VIDA COTIDIANA: interpretaes pelo mtodo Photovoice.

Presidente:__________________________________________ Nome: Instituio:

Titular 1:___________________________________________ Nome: Instituio:

Titular 2:___________________________________________ Nome: Instituio:

Franca, _____/_____/_____

Dedico este trabalho aos meus pais (Beth e Touso), minha irm (Li) e ao meu querido marido (Gu) por me mostrarem durante todos estes anos que a maior felicidade est em nossa prpria casa, entre as alegrias da famlia.

AGRADECIMENTOS

Agradeo Cris (Cristiane Paulin Simon) por primeiro acolher minhas idias, meu gosto por fotografia e por me apresentar ao Photovoice;

Lina (Rosalina Carvalho da Silva) por me orientar nesta pesquisa, sempre transmitindo sua sabedoria;

aos participantes por me aceitarem em suas vidas e compartilharem com carinho e confiana suas dores e alegrias;

aos meus colegas de trabalho da Fundao Civil de Misericrdia de Franca pela longa jornada que percorremos juntos, sempre com respeito e amizade;

minha av Marina e s minhas tias avs Tata e Ni pelos muitos telefonemas de incentivo e inmeros chs da tarde repletos de acar e afeto;

aos meus pais pelo constante incentivo aos estudos e aprimoramento pessoal;

ao meu marido pela pacincia e apoio; aos meu cunhadinhos Nath e Dudu pela ajuda high tech ;

por fim, a todos os que amo muito (amigos e parentes) e que sempre se fazem presente em companhias e lembranas.

Lgrimas Ocultas Se me ponho a cismar em outras eras Em que r e cantei, em que era querida, Parece-me que foi outras esferas, Parece-me que foi numa outra vida... E a minha triste boca dolorida Que dantes tinha o rir das primaveras, Esbate as linhas graves e severas E cai num abandono de esquecida! E fico, pensativa, olhando o vago... Toma a brandura plcida dum lago O meu rosto de monja de marfim... E as lgrimas que choro, branca e calma, Ningum as v brotar dentro da alma! Ningum as v cair dentro de mim! FLORBELA ESPANCA

RESUMO

TOUSO, Mara Ferro de Sousa. A incapacidade para o trabalho e suas repercusses sobre a vida cotidiana: interpretaes pelo mtodo Photovoice. 2008. 190 f. Dissertao (Mestrado em Promoo de Sade) - Universidade de Franca, Franca.

A partir de observaes profissionais, no campo da Psicologia, acerca de experincias vivenciadas junto pacientes do Centro de Reabilitao da Fundao Civil Casa de Misericrdia de Franca, foi possvel notar que muitos de seus usurios apresentam dificuldades em lidar com mudanas em suas vidas decorrentes de limitaes motoras adquiridas, quando estas os incapacitam para determinados trabalhos. Tais mudanas so evidenciadas pelas impossibilidades destes pacientes em retomarem atividades e funes antes desempenhadas com propriedade. A impossibilidade ou adiamento do retorno vida produtiva, ps-incapacidade, interfere em diversos aspectos da vida do indivduo, seja pessoal, social ou laboral. O presente estudo pretendeu conhecer as repercusses que a incapacidade para o trabalho que desenvolviam pode assumir na vida de um indivduo adulto, e, atravs de tal compreenso elaborou alternativas de Promoo de Sade que possam auxiliar na reabilitao de indivduos, sob condies semelhantes, de uma maneira ampla (fsica, social e emocional), facilitando seu retorno ao contexto laboral. Para tanto foi adotado um mtodo de pesquisa-ao participativa, intitulado Photovoice, que permitiu que os participantes da pesquisa produzissem fotografias sobre suas vivncias enquanto incapacitados para o trabalho. As imagens visuais captadas, assim como os relatos que as acompanharam consistiram o material principal deste estudo.

Palavras-chave: Mtodo Photovoice; Trabalho; Incapacidades; Promoo de Sade.

ABSTRACT

TOUSO, Mara Ferro de Sousa. The disability to work and impacts in daily lives: interpretations trough Photovoice Method. 2008. 190 f. Dissertao (Mestrado em Promoo de Sade) - Universidade de Franca, Franca.

Since observations by professionals of the psychology field about experiences with patients of the Center for Rehabilitation in a Francas Hospital it was possible to note that many of its users have difficulties in dealing with changes in their lives from limitations in motor coordination when they are disabilities for work. Such changes are evidenced by the impossibility of these patients resume activities and functions previously undertaken with ownership. The inability or postponement the return to productive life, post-disability, interferes with various aspects of the individual's life, whether personal, social or labor. This study sought to understand the impact that the inability to work may take on the life of an adult, and through this understanding has developed alternatives for the Health Promotion that can assist in the rehabilitation of individuals, under similar conditions in a broad way (physical, social and emotional), facilitating his return to the workplace. To that end was adopted a method of participatory action research, entitled Photovoice" which allowed participants of the research produce photographs on their experiences as unfit for work. The visual images captured, along with reports that followed, were the main material of this study.

Key words: Photovoice Method, Work; Disabilities; Health Promotion.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 15 Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19 Figura 20 Figura 21

Foto de Ce. na sala da psicloga do Centro de Reabilitao 26 local onde ocorre o Grupo de Apoio NGA - 16 Ncleo de Gesto Assistencial INSS Franca/SP Centro de Reabilitao Grupo de Apoio Uni-FACEF Casa de Ce. Esposa de Ce. trabalhando na garagem da casa deles Moto de Ce. Casa do sogro de Ce. Ce. em seu computador rea de preservao da prefeitura perto da casa de Ce. Casa de Di. terceiro trabalhando Casa do Di. Chcara da irm do Di. Chcara da irm do Di. terceiro trabalhando Riacho que despertou a ateno de Di. Mveis da Casa de Di. Moto do Di. Rapaz indo para o servio lembranas de Di.: seu trajeto antigo Cristo. Avenida Major Niccio 27 29 32 34 35 37 38 40 41 42 44 46 48 50 51 52 54 56 57 59

Figura 22 Figura 23 Figura 24 Figura 25 Figura 26 Figura 27 Figura 28 Figura 29 Figura 30 Figura 31 Figura 32 Figura 33 Figura 34 Figura 35 Figura 36 Figura 37 Figura 38 Figura 39 Figura 40 Figura 41 Figura 42 Figura 43

Em frente a uma escola, perto do Palmeirinha, simbolizando os 60 quatro filhos de Di. Um dos cantinhos da casa do Di. Local onde Di. faz fisioterapia 62 63

Foto de Cl. na sala da psicloga do Centro de Reabilitao 67 local onde ocorre o Grupo de Apoio Cl., a me e a av 68

Foto tirada na casa da Av de Cl. no Paran a av, o padrasto e 70 o cunhado Foto tirada na casa da Av de Cl. no Paran o esposo, a av e 71 uma vizinha da av Foto tirada na casa da Av de Cl. no Paran a av, dois primos 72 e um tio Local do acidente de Cl.. Rodovia: rotatria no Tropical Local do acidente de Cl.. Rodovia: rotatria no Tropical Local do acidente de Cl.. Rodovia: rotatria no Tropical Os dois filhos de Cl. Os dois filhos e o marido de Cl. Mo esquerda acidentada de Cl. parafusos retirados Amiga e Cl. caminho do Centro de Reabilitao Grupo de Apoio Foto de Cl. tirada na Clnica de Psicologia da UNIFRAN 73 74 74 77 77 79 81 82 83

Foto de Te. na sala da psicloga do Centro de Reabilitao 86 local onde ocorre o Grupo de Apoio Dr. Ubiali e Te. Te. em atividades de dona de casa Te. em sua casa cuidando de sua galinha e pintinhos Te. cuidando de uma galinha 88 90 93 94

Figura 44 Figura 45 Figura 46 Figura 47 Figura 48 Figura 49 Figura 50 Figura 51 Figura 52 Figura 53 Figura 54 Figura 55 Figura 56 Figura 57 Figura 58 Figura 59 Figura 60 Figura 61 Figura 62 Figura 63

Te. cuidando das galinhos e patos

95

Te., um pintinho na mo, a lagoinha que construiu e o p de 97 acerola, tambm plantado por ela NGA a espera de Te. para ser atendida Dr. Pedro Cury e Te. na sala de atendimento mdico 98 100

Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, em So Paulo. 101 Moa de avental amarelo do atendimento Conte Comigo Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, em So Paulo Te. e seus medicamentos Te. no NUBES do Guanabara Te. e a fila do INSS Te. e a fila do INSS Te. e a fila do INSS Ma. em um dos ambientes de sua casa 101 104 105 107 108 108 109

Ma., seu psiclogo e mais uma das pacientes no Ambulatrio de 112 Sade Mental Centro de Reabilitao: Ma. e dois auxiliares da fisioterapia Ma. e seu psiquiatra de So Paulo Me da Ma. em seu prprio apartamento Ma. em sua casa e sua coelha Ma. e os seus medicamentos Ma. em um Centro de Sade Ma. na fila do INSS 114 116 117 119 121 122 124

SUMRIO

INTRODUO....................................................................................................................... Antecedentes tericos............................................................................................................... Justificativa para o estudo......................................................................................................... 1. OBJETIVO...........................................................................................................................11 2. ABORDAGEM TERICA METODOLGICA............................................................... 12 2.1 Perspectiva Terica que embasa esta Pesquisa.................................................................. 12 2.2 Materiais............................................................................................................................. 15 2.3 O Mtodo Photovoice........................................................................................................ 15 2.3.1 Descrio do Mtodo...................................................................................................... 15 2.3.2 A Questo tica no uso do Mtodo Photovoice............................................................. 18 3. PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS.................................................................. 20 4. RESULTADOS................................................................................................................... 23 4.1 Participantes....................................................................................................................... 23 4.2 Caracterizao dos Participantes........................................................................................ 24 4.3 O Material Captado............................................................................................................ 25 5. ANLISE DOS DADOS................................................................................................... 128 5.1 Significando a Produo Fotogrfica............................................................................... 128 5.2 Identidade........................................................................................................................ 128 5.3 Sade................................................................................................................................ 130 5.3.1 NGA.............................................................................................................................. 130 5.3.2 INSS.............................................................................................................................. 133 5.3.3 Centro de Reabilitao.................................................................................................. 138 5.3.4 Atendimentos psicolgicos e psiquitricos .................................................................. 141 5.3.5 Dores, remdios e consultas.......................................................................................... 143 5.3.6 Grupo de Apoio............................................................................................................. 147 5.4 Recursos Teraputicos..................................................................................................... 149 5.5 Famlia............................................................................................................................. 154 5.6 Trabalho........................................................................................................................... 157 6. CONSIDERAES FINAIS............................................................................................. 167 APNDICES......................................................................................................................... 173 Apndice A............................................................................................................................ 174 Apndice B............................................................................................................................. 178 Apndice C............................................................................................................................ 179

Apndice D............................................................................................................................ 180 REFERNCIAS.................................................................................................................... 181

INTRODUO

O presente estudo comeou a ser pensado muito antes de ser efetivado, enquanto eu era a psicloga responsvel pelo servio de psicologia do Centro de Reabilitao da Fundao Civil Casa de Misericrdia de Franca, cargo que ocupei entre o incio de 2003 e meados de 2008. Na ocasio de meu exerccio profissional convivi com inmeros pacientes e profissionais e entrei em contato com a vivncia cotidiana da incapacidade para o trabalho em indivduos adultos. Aps ouvir muitos relatos sobre este tema, gradativamente, a idia de um estudo foi se delineando e passou a ser efetivamente pensada a partir de meu ingresso neste programa de mestrado em 2006.

Antecedentes tericos

Ao longo da histria da humanidade observamos que o trabalho desempenha um papel importante, na constituio identitria e no rol de atividades cotidianas que um indivduo desempenha durante sua existncia (DUBAR, 2002). Desde os primrdios da humanidade encontramos relatos que situam o trabalho como necessrio e at mesmo inerente ao ser humano. Assim como as necessidades instintivas vitais a alimentao e o sono, por exemplo o trabalho pode ser visto como ferramenta estruturante da psique humana (ALVES e ANTUNES, 2004). O poeta grego Hesodo que viveu entre os sculos VIII e VII a.C., no texto O trabalho e os dias discorreu sobre os fundamentos da condio humana atravs de suposies acerca da origem, limitaes e deveres dos seres-humanos. Interessante notar que j, neste texto, o autor justifica o trabalho como uma das contingncias da vida humana: o homem desfalcado de poderes divinos precisa trabalhar para subsistir. Neste contexto, o trabalho surge como pilar fundamental da estruturao do humano e, ainda, como precursor da justia e organizaes sociais. Pelo breve exemplo histrico acima relatado, observa-se o quanto o termo trabalho pode ser de difcil definio e contextualizao, uma vez que seus significados esto imbudos de noes histricas, culturais e sociais. 1

Ao recorrermos a um dicionrio de nossa lngua natal (Dicionrio Eletrnico Houaiss) encontramos vinte e oito definies para o termo trabalho. Dentre estas, podemos destacar duas que abrangem os sentidos mais comumente empregados: Trabalho: [...] conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim. Ex.: t. manual, intelectual, mecnico.; [...] atividade profissional regular, remunerada ou assalariada. Ex.: . Ao questionarmos sobre os significados que a palavra trabalho pode assumir, para as pessoas, deparamo-nos com diversas definies que se circunscrevem em concepes bastante distintas. Segundo Galhordas e Teixeira Lima (2004), alguns autores consideram tratar-se de uma relao social (do tipo relao salarial). Para outros, trata-se do emprego. E, para outros ainda, trata-se de uma atividade de produo social. Em um sentido mais amplo, Alves e Antunes (2004) apontam alguns aspectos que esto envolvidos no ato humano de trabalhar: gestos, saber-fazer, engajamento do corpo, mobilizao da inteligncia, capacidade de refletir, de interpretar e de reagir s situaes, e o poder de sentir, de pensar e de inventar. Em outros termos, para os autores, o trabalho no em primeira instncia a relao salarial ou o emprego, mas sim, o trabalhar, isto , um modo de engajamento da personalidade para responder a uma tarefa delimitada por presses, sejam elas materiais ou sociais. Neste sentido, Morin (2001) lembra que o trabalho pode ser definido de vrias maneiras, sendo que o nico elemento que rene os mltiplos significados : uma atividade que tem um objetivo.

Geralmente, essa noo designa um gasto de energia mediante um conjunto de atividades coordenadas que visam produzir algo de til (FRYER e PAYNE, 1984; SHEPHERDSON, 1984). O trabalho pode ser agradvel ou desagradvel;ele pode ser associado ou no a trocas de natureza econmica. Ele pode ser executado ou no dentro de um emprego. De acordo com Fryer e Payne (1984), o trabalho seria uma atividade til, determinada por um objetivo definido alm do prazer gerado por sua execuo (MORIN, p.12).

Na sociedade moderna, o trabalho est claramente associado noo de emprego que se trata da ocupao de um indivduo referente ao conjunto de atividades remuneradas em um sistema organizado economicamente. Ou seja, a noo de emprego implica a existncia de um salrio e do consentimento do indivduo em permitir que uma outra pessoa ou uma organizao estabelea suas condies de trabalho. O salrio que ele 2

propicia permite prover as necessidades de base, d um sentimento de segurana e possibilita ser autnomo e independente. O salrio associado, principalmente aos elementos de segurana e de independncia. Fica claro o quanto o trabalho conserva um lugar importante na sociedade. As principais razes so as seguintes: para se relacionar com outras pessoas, para ter o sentimento de vinculao, para ter algo que fazer, para evitar o tdio e para se ter um objetivo na vida. (MORIN, 2001). Pela dimenso que o trabalho assume na vida de um indivduo, a doena ou debilidade fsica que prejudicam sua capacidade de desempenh-lo, podem repercutir negativamente em sua sade global. consenso na rea da sade que muitas doenas, relacionadas ou no com o trabalho, exigem, pela sua gravidade, o imediato afastamento do trabalho. Este afastamento pode ser visto como parte do tratamento (repouso obrigatrio) ou pela necessidade de interromper a exposio aos fatores de risco presentes nas condies do trabalho. Apesar da discusso sobre o quanto o trabalho pode causar doenas ainda ser bastante controversa, as formas de organizao dos processos de trabalho, seu ritmo e intensificao, os modelos gerenciais e as tecnologias adotadas se sobrepem ao desgaste fsico e psquico dos trabalhadores, sendo a LER/DORT uma dessas expresses (TAKAHASHI, 2003). Os Distrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) so desordens neuro-msculo-tendinosas que correspondem a um conjunto de afeces relacionadas com as atividades laborativas. Podem acometer msculos, tendes, fscias musculares, ligamentos, articulaes, nervos e vasos sanguneos. No decorrer de sua histria os DORT j foram denominados de LER (leses por esforos repetitivos), porm desde 1998, a Previdncia Social passou a priorizar DORT como denominao. Os DORT representam hoje, no Brasil, a segunda causa de afastamento do trabalho. Sua incidncia maior no sexo feminino e na faixa etria economicamente ativa, entre 30 e 50 anos (TAKAHASHI, 2003). Frente a este quadro, Takahashi (2003) ressalta a necessidade de um modelo assistencial aos indivduos incapacitados para o trabalho que seja capaz de aliviar seus sofrimentos resgatando-lhes a capacitao funcional, emocional e social num nvel, tambm, mais amplo. Desta forma, o afastamento passa a ter uma dimenso poltica e econmica. 3

O Ministrio da Sade, em seu ltimo manual de Procedimentos para Servios de Sade (2001) preconiza o seguinte:Sendo o trabalhador segurado pela Previdncia Social e havendo necessidade de afastamento superior a 15 (quinze) dias, o pacientetrabalhador-segurado dever se apresentar Percia Mdica do INSS, onde o mdico-perito ir se pronunciar sobre a necessidade de afastamento, decorrente da existncia (ou no) de incapacidade laborativa.

Para se compreender este pressuposto poltico, importante compreender os conceitos de deficincia, disfuno e incapacidade para o trabalho. A doena relacionada com o trabalho ou o acidente do trabalho pode produzir, ou estar produzindo, deficincia ou disfuno (impairment), que segundo a Organizao Mundial da Sade (OMS, 1999) qualquer perda ou anormalidade da estrutura ou funo psicolgica, fisiolgica ou anatmica.

Por exemplo, aps um acidente vascular cerebral (AVC), a paralisia do brao direito ser deficincia ou disfuno, isto , sistemas ou partes do corpo que no funcionam, e que, eventualmente iro interferir com as atividades de uma vida diria normal, produzindo, neste caso, incapacidade (MINISTRIO DA SADE, 2001, p.124).

No entanto, para fins previdencirios valorizada a incapacidade laborativa, ou incapacidade para o trabalho, conceitos que vo alm das definies bsicas de disfuno e deficincia, ao avali-las em sua inter-relao com o ato do trabalho.

A impossibilidade do desempenho das funes especficas de uma atividade (ou ocupao), em conseqncia de alteraes morfopsicofisiolgicas provocadas por doena ou acidente. [...] Para a imensa maioria das situaes, a Previdncia trabalha apenas com a definio apresentada, entendendo impossibilidade como incapacidade para atingir a mdia de rendimento alcanada em condies normais pelos trabalhadores da categoria da pessoa examinada. Na avaliao da incapacidade laborativa, necessrio ter sempre em mente que o ponto de referncia e a base de comparao devem ser as condies daquele prprio examinado enquanto trabalhava, e nunca os da mdia da coletividade operria (MINISTRIO DA PREVIDNCIA SOCIAL, 1999, p.132).

Fica claro, ento, que a questo da incapacidade laborativa bastante complexa e paradoxal. Esta condio ao mesmo tempo resultante de um processo de acidente e/ou adoecimento e invocadora de desajustes na vida do indivduo que a experimenta 4

por impossibilitar a execuo de um ato (trabalho) extremamente importante para a definio do homem moderno. Vale ainda salientar que a OMS (Organizao Mundial de Sade) define sade como um completo estado de bem-estar fsico, mental e social e no meramente a ausncia de doena (1946). Estas consideraes a respeito do processo sade - doena apontam para a necessidade de ateno multidisciplinar para melhor entendimento do assunto. Saber como um indivduo percebe sua situao de sade, torna-se essencial para que a ateno profissional a este dirigida seja eficaz. Em 1976, a Organizao Mundial da Sade (OMS), em uma tentativa de compreender mais a fundo as conseqncias das doenas, criou a ferramenta que em portugus ficou conhecida como a Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade, CIF (BUCHALLA e FARIAS, 2005, p. 5).

O termo do modelo da CIF a funcionalidade, que cobre os componentes de funes e estruturas do corpo, atividade e participao social. A funcionalidade usada no aspecto positivo e o aspecto negativo corresponde incapacidade. Segundo esse modelo, a incapacidade resultante da interao entre a disfuno apresentada pelo indivduo (seja orgnica e/ou da estrutura do corpo), a limitao de suas atividades e a restrio na participao social, e dos fatores ambientais que podem atuar como facilitadores ou barreiras para o desempenho dessas atividades e da participao.

Importante observar que tanto a sade quanto a doena, em acordo a este modelo, so conceituadas a partir de um modelo biopsicossocial. Ou seja, os aspectos emocionais, orgnicos, sociais e a influncia ambiental sobre os mesmos, tm participao importante na vida de um indivduo e um balano em relao ao equilbrio destes permite que se compreenda a capacidade ou incapacidade para o trabalho de um modo mais profundo. Desta maneira, as deficincias fsicas, permanentes ou temporrias, so influenciadas pelo contexto do ambiente fsico e social, pelas diferentes percepes culturais e atitudes em relao a estas e tambm pela disponibilidade de servios e da legislao em vigncia. Oliveira (2002) afirma ainda que na Sade Pblica, tradicionalmente, pouca ateno tem sido dada s pessoas com deficincia, assim como, para os programas de reabilitao fsica e profissional. Esta carncia reflete-se tanto em problemas de ordem de insero social, como de ordem poltica, no que diz respeitos s questes previdencirias.

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Segundo Lima et al. (1996), o adoecimento que leva a incapacitao profissional de adultos jovens tem um aspecto muito doloroso que a destruio de projetos de vida, representando uma perda significativa da identidade prpria e profissional. Ainda neste sentido, o autor salienta que estes indivduos passam ento por uma ruptura na antiga identidade que deixa de ser referenciada pelo meio social e passa a ser necessrio, portanto, que ele busque novos parmetros para que se reconhea, reorganize sua histria pregressa e construa um novo projeto de futuro. Alguns estudiosos propem uma importante contribuio ao tratar o conceito de sade de um modo que coloca em xeque a concepo de sade como oposto de doena. Estes autores afirmam que valendo-nos de nossa capacidade para tolerar as infidelidades e variaes do meio que devemos pensar o conceito e sade. Neste sentido, a sade deve ser pensada como a possibilidade de um indivduo adoecer e poder recuperar- se (CANGUILHEM, 1995 apud CAPONI, 1997). Falar de sade como o conjunto tributos que permitem a uma pessoa viver sob a imposio do meio (CANGUILHEM, 1995) implica em intervenes em sade que necessitam se orientar, no apenas a fim de impedir que a doena acontea, mas tambm prover meios para que os indivduos e grupos possam adoecer e recuperar-se. Ao se adotar tal perspectiva, as intervenes em sade podem se orientar para ampliar a margem de segurana e as possibilidades dos indivduos para lidar com os imprevistos do meio. Podemos falar de sade quando temos os meios para enfrentar nossas dificuldades e nossos compromissos (CANGUILHEM, 1995 apud CAPONI, 1997, p. 306). Logo, para se tratar de sade, devemos pensar na participao ativa dos sujeitos que vivenciam a experincia do processo sade/doena, tanto na produo de conhecimento, como nas possveis intervenes sobre o processo. A Reabilitao Profissional, de acordo com o Ministrio da Sade (2006), constituda pelos servios de assistncia reeducativa e de readaptao profissional e prestada pela Previdncia Social aos segurados incapacitados parcial ou totalmente para o trabalho, independente de carncia, e s pessoas portadoras de deficincia, com o objetivo de proporcionar-lhes os meios para a (re)educao ou (re)adaptao profissional e social que lhes permitam participar do mercado de trabalho e do contexto em que vivem. Segundo consta, uma vez inscritos no programa nas Unidades Tcnicas de Reabilitao Profissional, esses beneficirios so habilitados em uma nova funo/atividade, podendo ser considerados aptos

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para (re)ingressarem no mercado de trabalho ou incapacitados para o desempenho de atividade profissional. A Previdncia Social o seguro social para a pessoa que contribui. uma instituio pblica que tem como objetivo reconhecer e conceder direitos aos seus segurados. A renda transferida pela Previdncia Social utilizada para substituir a renda do trabalhador contribuinte, quando ele perde a capacidade de trabalho, seja pela doena, invalidez, idade avanada, desemprego involuntrio, ou mesmo a maternidade e a recluso. Tendo em vista as consideraes acima apontadas percebemos necessidade de planejamento de programas de promoo de sade que atendam pessoas acometidas por situaes de debilidade fsica. Cabe, por fim, salientar que o movimento da Promoo da Sade tem como uma das suas propostas a capacitao das pessoas e comunidades para modificarem os determinantes da sade em benefcio da prpria qualidade de vida (CARTA DE OTTAWA, 1986). A Promoo da Sade busca o desenvolvimento do protagonismo e o empoderamento (empowerment) das pessoas para que estas desenvolvam habilidades para poderem atuar em benefcio da prpria qualidade de vida, enquanto sujeitos e/ou comunidades ativas. (UIPES/ORLA, Sub-Regio Brasil). As idias sobre Promoo da Sade se firmaram em novembro de 1986, na cidade de Ottawa, Canad, onde ocorreu a I Conferncia Internacional sobre o tema. Na poca, o evento foi uma reposta complexidade emergente dos problemas de sade, cujo entendimento passara a no ser mais possvel atravs do enfoque estritamente preventivista, que vinculava determinada doena a um determinado agente ou grupo de agentes. Esta nova concepo de sade passa ento a se relacionar a questes como as condies e modos de vida (ALVES, 2003). Este novo enfoque nos remete aos determinantes mltiplos da sade propostos por Buss em 2000 que seriam: paz, educao, habitao, alimentao, renda, ecossistema estvel, recursos sustentveis, justia social e eqidade. Sendo a sade no meramente a ausncia de doenas, as estratgias de interveno deslocam-se do eixo puramente individual recaem sobre a necessidade da interdisciplinaridade e da intersetorialidade. Quando consideramos as idias sobre Sade do Trabalhador (ST) enfocamos, mais uma vez, que sade no pode ser considerada apenas a ausncia de doenas ocupacionais e acidentes de trabalho, mas tambm, e principalmente, a transformao dos processos de 7

trabalho em seus diversos aspectos, na direo de buscar no apenas a eliminao de riscos que possam ocasionar agravos sade, mas tambm uma presumvel participao do trabalhador no processo produtivo que seja promotora de sade e de vida (BRITO & PORTO, 1991). Machado, em 1997, apontou que um dos desafios que ainda persistiam para a ST, ao se tomar como enfoque as premissas da Promoo de Sade (PS), diziam respeito concretizao da intersetorialidade em suas prticas.Uma vez que na poca persistia um conflito de competncias entre os rgos de vigilncia, sendo necessrio um maior dilogo entre os setores governamentais tradicionalmente vinculados a essas questes: o Ministrio do Trabalho, o Ministrio da Previdncia e o Ministrio da Sade.

Justificativa para o estudo

A pesquisa foi realizada na Fundao Civil Casa de Misericrdia de Franca que atende populao do municpio e Regio. A instituio conta em seu complexo hospitalar com o Centro de Reabilitao Santa Casa (CRSC) criado em julho do ano de 2002. O servio caracteriza-se por oferecer um atendimento realizado por equipe multiprofissional: assistente social, fisioterapeutas, fonoaudilogas, mdicos (fisiatras), nutricionista, psicloga, tcnicas em enfermagem e terapeuta ocupacional. A proposta de criao do Centro de Reabilitao baseou-se nos moldes do servio existente na Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (FMUSP/SP). O servio atende a populao que necessita de reabilitao fsica. Possui uma viso de ateno sade de carter interdisciplinar, uma vez que no trata somente da parte motora, mas tambm compreende que aspectos nutricionais, sociais, emocionais, entre outros, fazem parte de um trabalho de reabilitao. Este atendimento ocorre mediante encaminhamento mdico de servios de sade. oferecido em grande parte pelo SUS, porm, tambm abrange alguns convnios particulares. O pblico atendido composto por uma populao extensa, com diferentes idades e patologias que ocasionam disfunes ou deficincias motoras, dentre estas: seqelas de AVC (acidente vascular cerebral), paralisia braquial obsttrica, ps-operatrios, seqelas de tratamentos oncolgicos, reabilitao em ortopedia, neurologia e pediatria.

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Pacientes em processo de reabilitao motora apresentam alguma limitao fsica (dficit motor, dficit fsico, limitao) em decorrncia de seu diagnstico (patologia) especfico. Nota-se que tais limitaes repercutem em diversos aspectos da vida do indivduo que as experimenta e comumente prejudicam a sua habilidade no desempenho do trabalho (profisso) e execuo de atividades cotidianas que requerem esforo (executar pequenos servios domsticos, como limpar casa, lavar roupas, carregar crianas de colo, entre outras). Pelo motivo acima descrito observa-se que muitos dos pacientes atendidos no servio recorrem ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) para solicitarem um afastamento remunerado do trabalho. No entanto, estar afastado do trabalho um status provisrio, e os indivduos que se encontram nesta situao necessitam passar por percias mdicas peridicas para serem avaliados em relao as suas incapacidades para o trabalho (INSS). Muitas vezes, aps um perodo de afastamento, dependendo da limitao motora que um indivduo apresenta, a percia mdica subentende que a pessoa pode buscar outro tipo de servio mais adequado s suas atuais condies de sade. Dentro deste panorama importante salientar que a maioria dos indivduos que freqentam o servio acima descrito pertence s camadas de baixa renda, possui pouca escolaridade e no tem formao intelectual (acadmica). Acrescente-se a isso o fato de que a maioria aprendeu seu ofcio ainda jovem, sempre exerceu a mesma funo em seu trabalho (ou alguma similar) e, geralmente, so estas funes que requerem esforo fsico. Assim, quando confrontados com a realidade da perda de alguma funo motora, percebem-se sem perspectivas futuras de insero social via o trabalho produtivo remunerado. Deste modo, nota-se que o fato de no poder trabalhar na mesma funo, para muitos dos que esto em perodo de atendimento, repercute negativamente nos diversos aspectos da vida cotidiana dessas pessoas. Tais repercusses podem ser de ordem orgnica, emocional, relacional ou social. Portanto, o afastamento das atividades laborativas e o status de estar incapacitado para aquele trabalho desencadeiam uma srie de situaes e sentimentos que

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geram mudanas e interferem junto aos diferentes aspectos da vida do indivduo que a experimenta. Conviver com perdas funcionais e com as limitaes por estas impostas pode levar o indivduo a um estado de sofrimento fsico e psquico e a um processo de desajuste social podendo tomar propores maiores com conseqncias negativas para a sade global deste. Diante do exposto justifica-se a elaborao de um projeto de pesquisa que a partir de estudos e observaes, no campo da Psicologia e da Promoo de Sade, apreenda e discuta as experincias vivenciadas por pessoas em situaes de debilidade fsica, atendidas por servios de sade especficos.

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1. OBJETIVO

Realizar levantamento e anlise de: interpretaes, percepes, crenas e repertrios explicativos sobre os possveis efeitos do afastamento do trabalho por problemas de sade e mudanas relatadas aps esse afastamento. No trmino da pesquisa esperamos contribuir com um material especfico que possa servir de subsdio para Programas de Promoo de Sade.

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2. ABORDAGEM TERICA METODOLGICA

2.1 Perspectiva terica que embasa esta pesquisa

Concebemos a pesquisa cientfica como uma prtica reflexiva e crtica sempre situada historicamente. Nessa perspectiva, os critrios utilizados para estabelecer o status de cientificidade esto intrinsecamente vinculados a definies historicamente situadas sobre o que vem a ser cincia. A pesquisa remete-nos a um processo inacabado e contnuo que exige uma postura de busca permanente, seja no campo terico, seja no metodolgico (SPINK e LIMA, 1999; MINAYO, ASSIS et al., 2005). A concepo terica que respaldou este projeto foi o da psicologia social em uma perspectiva na qual se privilegia a compreenso dos fenmenos sociais, levando-se em conta que, significados e intencionalidades, os separam dos fenmenos naturais. Neste contexto, privilegiamos uma vertente compreensivista na qual as possveis interpretaes dadas aos fenmenos psicossociais so mais adequadas do que explicaes causais. Essa opo epistemolgica apia a possibilidade de que o que o pesquisador procura so verses e interpretaes possveis em relao a um acontecimento e no explicaes causais, como as que so buscadas nos paradigmas tradicionais e positivistas. A abordagem adotada insere-se, portanto, em uma abordagem qualitativa de pesquisa que privilegia o processo e as vozes dos participantes. Para Valles (1997, p. 104),

A credibilidade de um estudo qualitativo relaciona-se utilizao que tenha sido feita de um conjunto de recursos tcnicos; a triangulao de dados, mtodos e investigadores; do apoio de uma documentao escrita ou visual prpria ao contexto; das discusses com os colegas; revises de informaes e interpretao com as pessoas componentes do estudo; e dos registros de dirios de campo e dirios de investigao [...].

Estas seriam as formas de se estabelecer credibilidade que substituiriam o rigoroso controle metodolgico e a "aleatorizao" realizada nos estudos positivistas clssicos em busca da denominada validade interna. O mesmo autor tambm afirma que a generalizao dos resultados buscada e apreciada como critrio de qualidade nas investigaes clssicas deve ser considerada como 12

equivalente noo de transferibilidade adotada como critrio de boa qualidade nas investigaes qualitativas. Por transferibilidade deve-se entender no a reproduo dos resultados encontrados (generalizao) sob as mesmas condies mantidas em estudos anteriores, mas a possibilidade de utilizao dos procedimentos e resultados encontrados, em situaes semelhantes, respeitadas as peculiaridades dos novos contextos.

A contribuio da abordagem qualitativa para a compreenso do social pode ser colocada como teoria e mtodo. Enquanto teoria, ela permite desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos, grupos particulares e expectativas sociais em alto grau de complexidade [...] Enquanto mtodo caracterizado pela emprea e pela sistematizao, a abordagem qualitativa propicia a construo de instrumentos fundamentados na percepo dos atores sociais, tornando-se, assim, vlida como fonte para estabelecimento de indicadores, ndices, variveis tipolgicas e hipteses. Alm disso, ela permite interpretaes mais plausveis dos dados quantitativos, auxiliando na eliminao do arbitrrio que escorrega pela operacionalizao dos modelos tericos elaborados longe das situaes empiricamente observveis (MINAYO, 1994, p. 30-31).

Dada a opo epistemolgica, dentre a pluralidade metodolgica qualitativa, optamos, neste estudo, por uma das prticas da investigao participativa que prev a triangulao de mltiplas formas de observar, registrar e interpretar os dados do estudo (VALLES, 1997) e neste sentido, foram adotadas estratgias de coleta de dados que se enquadravam nas perspectivas etnogrficas (BOGDAN e BIKLEN, 1994). A fotografia pode ser vista como uma destas estratgias, uma vez que est intimamente ligada investigao qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1991). Fotografias auxiliam no aspecto descritivo de um acontecimento, ajudam na compreenso de aspectos subjetivos e podem ser analisadas indutivamente. As imagens capturadas em fotos permitem o estudo de aspectos da vida aos quais no se consegue apreender somente atravs de palavras. Para a realizao desta pesquisa qualitativa foi utilizada uma adaptao do mtodo intitulado Photovoice. Para a execuo desta pesquisa, inicialmente foram convidados todos os pacientes que participavam do Grupo de Apoio na semana eleita para o incio da pesquisa. Vale salientar que o referido Grupo de Apoio era realizado pela psicloga (pesquisadora) responsvel pelo Centro de Reabilitao da Fundao Civil Casa de Misericrdia de Franca, com a espordica colaborao da assistente social local. Este grupo tinha por objetivo trabalhar junto aos pacientes a compreenso e aceitao das limitaes fsicas e sociais 13

decorrentes do processo de adoecimento e, desta maneira, auxili-los na reduo da ansiedade e sintomas depressivos. No tipo de abordagem qualitativa, adotada neste estudo, a amostragem teoricamente estabelecida e intencionalmente buscada. Os participantes foram escolhidos intencionalmente por deterem os atributos buscados pela pesquisa. Na amostragem teoricamente definida os grupos sociais que se deseja pesquisar so definidos de antemo. Com isto, as caractersticas bsicas da populao so conhecidas. Nesse tipo de abordagem o tamanho da amostra tambm definido previamente, com base nos critrios j mencionados e nos procedimentos metodolgicos eleitos para a coleta de dados (MINAYO, 1993; DENZIN e LINCOLN, 2002; FLICK, 2002; DENZIN, LINCOLN et al., 2006). O nmero de sujeitos deste estudo pode ser considerado pequeno para estudos cientficos de cunho positivista. Porm, para estudos com procedimentos de anlise de dados interpretativos como os aqui propostos so considerados adequados (MINAYO, 1993; DENZIN e LINCOLN, 2002; FLICK, 2002; DENZIN, LINCOLN et al., 2006). O procedimento para o convite e a insero de participantes no estudo incluiu, primeiramente, a apresentao de esclarecimentos contidos em um rapport, no qual constavam: a) os pressupostos do tipo de estudo proposto; b) seus objetivos; c) o que se esperava dos participantes e as formas de registros; e d) as anlises previstas para o material colhido. Aps os esclarecimentos, foram formalizados os convites para as participaes no estudo fornecendo os elementos necessrios sobre os termos de consentimento livre e informado e outras questes referentes pesquisa. Deste modo, foram includos neste estudo os convidados que aceitaram participar e estiveram de acordo com a utilizao de fotos registradas e das transcries das sesses de entrevista para fins de pesquisa.

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2.2 Materiais

Foram utilizados os seguintes materiais para a execuo deste estudo: - Material grfico sobre a arte da fotografia que continha instrues bsicas sobre fotografias e manuseio das mquinas fotogrficas, confeccionado pela pesquisadora (Apndice A). - Mquinas fotogrficas descartveis. - Fotografias reveladas e ampliadas. - Fotografias selecionadas pelos participantes da pesquisa, expostas em cartazes para discusso final em grupo. - Aparelho de mp3 com gravador digital de voz. importante ressaltar que todo o material foi custeado pela pesquisadora responsvel e que os participantes no tiveram gastos financeiros no decorrer da pesquisa. Conforme a necessidade, foram fornecidos passes de nibus da empresa de transporte local para aqueles que precisaram se encaminhar ao local do estudo em dias que no coincidiam ao seu tratamento de reabilitao habitual.

2.3 O Mtodo Photovoice

2.3.1 Descrio do Mtodo

O mtodo Photovoice foi desenvolvido por Wang, Burriss e seus colaboradores em meados dos anos noventa. Foi utilizado pela primeira vez na China rural para o levantamento de necessidades de sade das mulheres que viviam naquele contexto e, na ocasio, subsidiou a elaborao de aes do governo e possibilitou a avaliao destas (WANG, BURRIS, PING, 1996). Segundo seus criadores, o Photovoice um processo que possibilita que indivduos representem e exponham suas vivncias comunitrias atravs de uma tcnica de fotografia especfica. Este mtodo prov cmeras s mos das pessoas que sero capacitadas a atuarem como reprteres e potenciais catalisadores de mudanas polticas e sociais em suas prprias comunidades (WANG e BURRIS, 1996). Seu corpo terico foi baseado em trs idias fundamentais. A primeira idia, na qual o Photovoice est fundamentado, a abordagem da educao crtica de Paulo Freire 15

(1970 apud WANG e BURRIS, 1996). Esta abordagem defende que todo ser humano, no importando o quo ignorante (grifos do autor) ou submerso na cultura do silncio (grifos do autor) esteja, ele capaz de um olhar crtico e dialtico do mundo ao seu redor e dos relacionamentos que mantm. Segundo Freire (ibid), com as ferramentas apropriadas, qualquer um pode perceber sua realidade pessoal e social, assim como as contradies desta, alm de tornar-se consciente de suas percepes e lidar criticamente com estas. Freire, no mesmo artigo, apontou ainda que a imagem visual uma ferramenta capaz de auxiliar o indivduo a atingir este olhar crtico. O segundo pilar do mtodo Photovoice abalizado pela teoria feminista. Maguire (1987 apud WANG e BURRIS, 1996), importante estudioso deste movimento ideolgico, notou que a dominao o principal tema de nossa poca e acrescentou que a dominao feminina pelo homem ainda mais grave. A teoria feminista sugere que o poder acompanha aquele que tem voz, desenvolve comunicao, faz histria e participa nas decises. O terceiro pensamento apontado como raiz do Photovoice, envolve a possibilidade de acesso de uma comunidade fotografia. J Spence (1995 apud WANG e REDWOOD-JONES, 2001), fotgrafo e educador ingls, descreveu a fotografia comunitria (grifos do autor) como um instrumento que pode ser utilizado como ferramenta para mudana social, e acrescentou que a fotografia tem a vantagem de ser de simples manuseio e acesso. No sentido apontado pelos criadores do mtodo Photovoice, a familiaridade com seus arredores d aos membros da comunidade uma vantagem em relao aos pesquisadores externos, uma vez que os primeiros tm, evidentemente, um maior acesso e mobilidade dentro de sua comunidade. Difere-se, portanto, da fotografia de cunho documental uma vez que os indivduos participantes se deslocam de uma postura passiva frente s intenes e imagens de outras pessoas, para serem os protagonistas das fotos e registrarem fatos e experincias sob suas ticas (WANG e BURRIS, 1997). Outra caracterstica importante do Photovoice que este se classifica como um tipo de pesquisa-ao participativa em que as pessoas produzem e discutem fotografias que elas prprias tiraram sobre suas vivncias enquanto membros de uma determinada comunidade ou grupo. Atravs de fotografias e relatos que as acompanham, tm a possibilidade de expor suas vises para as autoridades e pesquisadores responsveis pelas

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questes levantadas (WANG e BURRIS, 1997; WANG, CASH, POWERS, 2000; WANG e REDWOOD-JONES, 2001;). A partir de uma perspectiva histrica, a estratgia da pesquisa-ao participativa (PAR) surgiu da realizao de muitas pesquisas que levavam escassos benefcios ou um ganho pouco objetivo para a comunidade na qual eram realizadas, apesar de terem aproveitado do tempo, recursos e boa vontade destas comunidades. Diferentemente, o Photovoice coloca os participantes como principais autores de uma pesquisa: atravs de suas cmeras fotogrficas so os prprios participantes que documentam suas realidades cotidianas focando em uma ampla escala de necessidades e recursos que compreendam os mbitos familiares, pessoais e comunitrios. Ao dividirem e conversarem sobre suas fotografias, utilizam ativamente o poder da imagem visual para comunicarem suas experincias de vida, conhecimento e habilidades (WANG; BURRIS, 1997 ; WANG, CASH, POWERS, 2000; WANG; REDWOOD-JONES, 2001;). Como uma estratgia participativa para avaliao de necessidades, Wang e Burris (1997 apud SIMON, 2007) consideram, ainda, que o mtodo possibilita aos profissionais de sade uma viso do mundo a partir da perspectiva da populao-alvo, diferentemente da viso viciada (grifos do autor) por pr-conceitos daqueles que tradicionalmente esto no controle dos servios de sade. Em suma, podemos destacar que o poder da imagem visual aliado facilidade de manuseio da tcnica fotogrfica, a partir de um treinamento prvio, empodera as populaes mais vulnerveis socialmente, incluindo os indivduos que tm dificuldades para ler e escrever. A partir deste empoderamento permitido um processo de criao que facilita a representao da diversidade das vivncias enquanto membros de um grupo ou comunidade. Como apontam as autoras Wang e Burris (1997 apud SIMON, 2007, p. 385):

Das pessoas, suas vises e seus mundos, ns podemos comear a avaliar as necessidades locais reais, na esperana de que as perspectivas divergentes dos profissionais de sade e as pessoas leigas convergiro para exercer um impacto mais efetivo sobre o bem-estar da comunidade.

Neste sentido, o mtodo Photovoice constitui-se como um conjunto de ferramentas que facilitam a apreenso do conhecimento e debate sobre as repercusses da incapacidade para o trabalho e seu conseqente afastamento das atividades laborativas nas vidas de indivduos adultos. Conforme j apresentado, esta opo metodolgica possibilita que o conhecimento e avaliao de necessidades extrapolem o diagnstico de sade, por 17

fomentar a reflexo, tomada de conscincia dos participantes e conseqente planejamento de ao.

2.3.2 A questo tica no uso do mtodo Photovoice

A questo da tica em relao captao e uso das imagens em pesquisas que utilizam o mtodo Photovoice, como referencial, amplamente considerado no aparato terico desenvolvido por seus precursores. No artigo intitulado Photovoice Ethics: perspectives from flint Photovoice (2001), os autores Wang e Redwood-Jones discutem e orientam a respeito desta questo. Neste artigo sugerido que os inconvenientes que podem ocorrer pela intruso no espao privado de algum, grupo ou comunidade, so parcialmente controlados pelo uso de formulrios de consentimentos. Assim sendo, como sugere o Mtodo Photovoice, trs tipos de Formulrios de Consentimentos, abaixo descritos, so usados: O primeiro - segue o modelo usual de protocolos de tica em pesquisa com seres-humanos. Baseado nos princpios de respeito s pessoas, caridade e justia explicita os direitos e as responsabilidades dos participantes. (Apndice B). O segundo formulrio - chamado pelos autores de Agradecimento e Liberdade de Publicao, solicita aos participantes obterem as assinaturas dos sujeitos a serem fotografados e implica em suas concordncias com os termos de uso de imagem propostos pela pesquisa. Este formulrio de consentimento no somente chama a ateno sobre o problema de intromisso no espao privado de um indivduo, mas tambm ajuda a prever os inconvenientes da intruso no espao privado de um grupo ou vizinhana. Embora o fato de pedir a permisso para tirar a foto possa fazer com que a espontaneidade da mesma seja perdida, assim como prejudicar o fotgrafo de capturar o momento pretendido ou idia, no conjunto, tais dificuldades devem ser suplantadas, uma vez que o consentimento prev vrios tipos de inconvenientes futuros. Para tratar com o problema da espontaneidade, os participantes so advertidos a aprenderem a arte da pacincia na fotografia. Muitos aprendem a esperar por algum tempo depois de conseguir a assinatura, at que os sujeitos esqueam que os fotgrafos esto l e voltem para sua rotina ou postura. O treinamento prvio sobre a arte e a tcnica da fotografia,

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auxilia os participantes a compreenderem que eles passam a maior parte do tempo atrs da cmera simplesmente esperando, antes de realizarem uma foto adequada (Apndice C). O terceiro - tipo de consentimento, empregado apenas depois das imagens terem sido desenvolvidas e discutidas, indica que o fotgrafo permite que as fotos sejam publicadas ou usadas para promover os objetivos da pesquisa (Apndice D). Ressalta-se que as trs formas requerem a assinatura de um parente ou do responsvel legal do participante ou sujeito, caso o indivduo fotografado no responda legalmente por seus atos. Importante advertir, que no presente estudo, os participantes no s fotografaram, mas tambm se permitiram fotografar. Como este fato no est previsto originalmente na literatura sobre o mtodo Photovoice, ainda que os participantes que aparecem nas imagens tenham assinado os consentimentos necessrios, na apresentao das fotografias, seus olhos foram velados por um recurso grfico com o intuito de preservarmos suas identidades.

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3. PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS

O mtodo Photovoice compreende o desenvolvimento de vrias etapas que so um tanto flexveis em relao a sua seqncia, pois dependem das metas e objetivos definidos pelo pesquisador coordenador da pesquisa (WANG; BURRIS, 1994). Para a execuo da pesquisa proposta neste projeto foram seguidas as seguintes etapas descritas: 1 Etapa Fase Preparatria: Os encontros previstos nesta fase da execuo da pesquisa foram realizados em grupo com os sujeitos selecionados e tiveram a durao de uma hora cada. Estes encontros foram registrados, posteriormente, em um dirio de campo de uso da pesquisadora. 1 Encontro Treinamento Tcnico. Neste encontro os participantes aprenderam os fundamentos tericos da fotografia a partir de uma apostila confeccionada pela pesquisadora responsvel. Nesta ocasio, os indivduos receberam a apostila e assistiram a uma aula explicativa sobre o tema. 2 Encontro Treinamento Prtico. Neste encontro aconteceu uma sesso de fotografia guiada. Os participantes receberam uma mquina fotogrfica do mesmo modelo utilizado na fase seguinte da pesquisa, foram orientados sobre seu funcionamento e orientados a tirarem algumas fotografias, seguindo um roteiro pr-estipulado. Esta atividade foi realizada no ptio externo do Centro de Reabilitao, local onde h mais elementos a serem fotografados. 3 Encontro Avaliao dos Treinamentos Prvios. Neste encontro a pesquisadora levou as fotografias tiradas no encontro anterior, reveladas e ampliadas. O grupo foi orientado a fazer uma observao cuidadosa das fotografias e a observarem a qualidade das mesmas. Em seguida foram orientados sobre os equvocos cometidos e puderam esclarecer suas dvidas. Foi um momento de avaliao do domnio da tcnica pelos participantes. 4 Encontro Preparao para Campo. Este foi o ltimo encontro da fase preparatria. Neste, foram distribudas as mquinas aos participantes, os mesmos foram orientados a respeito das questes ticas envolvidas no ato de fotografar e em como captarem os consentimentos de permisso junto 20

aos indivduos que iriam fotografar. Foi, por ltimo, reforada (retomada ou relembrada) a questo que norteou a ao de fotografarem: retratar o seu dia-a-dia a partir do momento em que ficou incapacitado para o trabalho, lembrando-se de enfocar as mudanas que ocorreram em sua rotina de vida. 2 Etapa Atuao em Campo: Durante esta etapa da pesquisa, os participantes tiveram no total duas semanas, durante as quais ficaram em posse das mquinas e executaram a tarefa proposta. Uma vez que cada mquina continha um filme com vinte e sete poses (27), uma nica mquina foi designada para dois participantes, os quais se organizaram para que cada um deles permanecesse com o material por uma semana. Importante esclarecer que cada participante teve direito a sacar doze (12) fotografias. Aps este perodo, a pesquisadora recolheu as mquinas, revelou os filmes e ampliou as fotografias de todos os participantes. 3 Etapa Entrevistas: Nesta etapa da pesquisa foram realizadas entrevistas livres e individuais com cada participante. Cada sesso de entrevista teve a durao de, aproximadamente, uma (1) hora. No entanto, quando houve necessidade, foi possvel agendar mais de uma entrevista por sujeito. Nestes encontros a pesquisadora apresentou as fotografias ampliadas de cada participante e conversou com eles a respeito de suas escolhas de temas, percepes e associaes a respeito de cada fotografia; sentimentos (vivenciados) durante o processo; entre outras questes que surgiram. As entrevistas foram gravadas em arquivos digitais e posteriormente transcritas para a anlise. Importante enfatizar que uma entrevista livre, como a que foi utilizada, caracterizada pela ausncia de formulao prvia de um roteiro a ser seguido durante a sua execuo. Neste tipo de entrevista foram apresentados aos entrevistados objetos ou temas que nortearam suas reflexes, no caso fotografias. Este instrumento permite uma maior flexibilidade da dupla na medida em que promove liberdade na expresso de sentimentos e pensamentos por parte do entrevistado e possibilidade de fazer intervenes que julgue convenientes por parte do entrevistador (VALLES, 1997)

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4 Etapa Discusso Final: Esta ltima etapa aconteceu em grupo e transcorreu em nico encontro com durao de uma hora. Neste momento, as fotografias foram expostas em cartazes e serviram de estmulos para uma discusso grupal acerca da Promoo de Sade em populaes com caractersticas semelhantes a este grupo especfico. Alguns tpicos nortearam a interpretao da pesquisadora sobre este momento, entre eles: avaliao geral do processo, percepes em comum em relao s fotografias do grupo, temas que mais chamaram ateno e dicas que propusessem trabalhos na rea da sade quanto ao auxiliar a pessoas que estivessem passando por momento de vida semelhante. Importante ressaltar que a pesquisadora, sob orientao de sua Professora Orientadora do Programa de Ps-Graduao em Promoo de Sade da UNIFRAN, foi a responsvel pela realizao de todas as etapas do processo de pesquisa: convite aos participantes, agendamento e realizao de sesses e entrevistas, anlise e tratamento dos dados, elaborao da tese. As quatro etapas, do incio ao trmino, contabilizaram um perodo de trs (3) meses. A pesquisadora responsabilizou-se para que a realizao da pesquisa no interferisse na rotina do atendimento oferecido pelo Centro de Reabilitao, bem como, por assegurar que a proposta do Projeto fosse seguida rigorosamente. Manteve, tambm, o compromisso com uma postura tica e responsvel durante toda pesquisa, preservando o anonimato dos participantes, respeitando as normas da instituio, cumprindo o planejamento proposto e comunicando os resultados obtidos. Foi de responsabilidade da Instituio, na qual a pesquisa foi realizada, fornecer autorizao atravs do Comit de tica e Pesquisa com Seres Humanos, homologada e regulamentada pelo CONEP (Comisso Nacional de tica de Pesquisa) que tem suas caractersticas estruturadas na Resoluo 196/96. Cabe ainda, relembrar que esta pesquisa no possuiu promotores ou patrocinadores.

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4. RESULTADOS

4.1 Participantes

Para o desenvolvimento da pesquisa, como j descrito em captulos anteriores, foram selecionados alguns pacientes do Grupo de Apoio citado que ocorria com freqncia semanal e dele participavam em mdia dez (10) pacientes adultos, sendo todos usurios do servio de reabilitao. Os pacientes, aps avaliao do servio mdico local, eram encaminhados para triagem psicolgica na qual era avaliada a demanda. Aps esta avaliao, os pacientes que apresentassem perfil eram convidados a participarem do grupo. A permanncia do paciente no grupo tinha durao varivel de acordo com o nvel de comprometimento emocional e evoluo global do processo. No geral, o desligamento ocorria no momento em que o usurio obtinha alta mdica do processo de reabilitao. A escolha destes sujeitos para participantes da pesquisa se justifica pelo fato de que todos os pacientes do Grupo de Apoio possuam, ao menos, uma dificuldade fsica (dficit motor, dficit fsico, limitao) que acompanhava seu diagnstico especfico. Conforme havia sido observado previamente pela pesquisadora, tais dificuldades fsicas repercutiam em diversos aspectos da vida dos indivduos que as experimentavam e comumente prejudicavam suas habilidades no desempenho do trabalho (profisso) e execuo de atividades cotidianas que requeriam esforo (executar pequenos servios domsticos, limpar casa, lavar roupas, carregar crianas de colo, entre outras). Outros fatores que colaboraram foram: a intimidade pr-existente entre os membros do grupo; o hbito de trabalharem juntos no sentido de obterem autoconhecimento; o interesse previamente manifestado em participarem de atividades dinmicas nas quais pudessem adquirir algum aprendizado, dentre os j citados acima. Sendo assim, o convite para a participao na pesquisa foi realizado juntamente com uma exposio sobre como a mesma estava estruturada e qual seria o envolvimento previsto para cada integrante que aceitasse fazer parte. Na ocasio o Grupo de Apoio era composto por sete indivduos adultos e todos confirmaram participao. Observaes a respeito deste momento e os demais previstos na Fase Preparatria foram registrados em um Dirio de Campo. Ao fim da Fase Preparatria, o grupo contou com duas baixas: 23

- Li., 30 anos, (F), desistiu de prosseguir em funo de um problema de sade. Descobriu que estava com pedras na vescula, que necessitaria de uma cirurgia e que por este motivo seria afastada do processo de reabilitao at a sua melhora. - Su., 52 anos, (F), interrompeu sua participao por ter se tornado av prematuramente, como ela mesma denominou. Sua nora tivera o beb prematuro aos sete meses de gestao e Susana decidiu no se comprometer uma vez que passaria a ajudar a nora nos devidos cuidados com o neto. Uma vez comunicadas as desistncias ao grupo, o trabalho prosseguiu conforme previsto, sem maiores contratempos.

4.2 Caracterizao dos participantes

Apresentaremos, a seguir, um quadro contendo uma breve caracterizao dos participantes incluindo: idade, estado civil, nmero de filhos, profisso, tempo e causa do afastamento do trabalho. Quadro 1 Caracterizao dos Participantes da Pesquisa.PARTICIPANTE SEXO IDADE ESTADO CIVIL casado N DE FILHOS 02 PROFISSO CAUSA DO AFASTAMENTO acidente de trabalho doena degenerativa acidente automobilstico DORT - cervicalgia DORT fibromialgia TEMPO DE AFASTAMENTO 04 anos

Ce.

M

44

sapateiro

Di.

M

35

casado

04

sapateiro

04 anos

Cl.

F

34

casada relacionamento estvel relacionamento estvel

02

sapateira

02 anos

Te.

F

47

00

telemarketing

01 ano e 02 meses

Ma.

F

42

00

telemarketing

01 ano e 06 meses

Fonte: Elaborado pela autora da pesquisa, 2008.

Observamos que trs (3) dos participantes atuavam na indstria caladista, que ocupa posio de destaque na economia do municpio, sendo responsvel pela contratao de parcela significativa da populao economicamente ativa. Destacamos o fato de que trs (3) dos participantes relatam ter filhos, o que pode influenciar na vivncia do afastamento do trabalho se considerarmos as preocupaes com o sustento da prole, em especial, quando esta ainda no atingiu independncia financeira. 24

Destacamos, tambm, que trs (3) dos participantes esto na faixa etria acima dos 40 anos, a partir da qual a insero ou reinsero no mercado de trabalho, na nossa sociedade, torna-se mais difcil, em especial, para pessoas com pouca qualificao profissional e/ou pouca escolaridade.

4.3 O Material Captado

A seguir esto apresentados os resultados por participante. Inicialmente, h uma breve exposio de cada sujeito. Em seqncia esto exibidas as fotografias captadas por cada um, a transcrio da respectiva entrevista seguida de comentrios elaborados pela pesquisadora. Importante ressaltar que neste primeiro momento esto expostas todas as fotografias e que os comentrios em negrito foram tecidos a partir de interpretaes advindas tanto do contedo manifesto do material como da experincia prvia que a mesma tinha com cada participante. Ce. - 44 anos Casado, dois filhos, sapateiro, afastado h quatro anos por acidente. Prensou a mo em uma mquina durante o trabalho como cortador em um Curtume. A leso de alguns nervos e tendes comprometeu muito os movimentos da mo e brao esquerdos. Alm do comprometimento dos movimentos, o acidente desencadeou um processo inflamatrio que acomete dor freqente. Por este motivo, Ce. faz tratamento, tambm, no Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto.

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Figura 1 Foto de Ce. na sala da psicloga do Centro de Reabilitao, local onde ocorre o Grupo de Apoio. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Esta foto foi tirada na sala da psicloga do Centro de Reabilitao, local onde ocorre o Grupo de Apoio. Ele solicitou que um colega de grupo a sacasse para identificar que as fotos na seqncia seriam suas, uma vez que cada mquina fotogrfica foi dividida por dois integrantes do grupo. Esta escolha aponta para a importncia do Grupo de Apoio no processo de reestruturao identitria. Durante a entrevista ocorrem outras verbalizaes sobre o tema que aprofundam a importncia do Grupo de Apoio no sentido levantado.

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1 Foto

Figura 2 - NGA 16.: Ncleo de Gesto Assistencial. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Sou uma pessoa que quase nunca dependeu de estar a, praticamente no ia ao mdico de jeito nenhum. Tinha uma sade boa. Hoje, praticamente de trinta em trinta dias eu tenho que estar a. s vezes at antes, porque quando eu tenho alguma consulta a pedido de Ribeiro (trata no Hospital das Clnicas), tenho que antecipar. Fao acompanhamento com o ortopedista. Agora, depois deste acidente que eu tive, este local passou a fazer parte do meu dia-a-dia, da minha vida. Pesquisadora H quanto tempo voc tem freqentado estes mdicos? Ce. - 44 anos H quatro anos. Desde o acidente. Pesquisadora Como o atendimento deste local? Demora? Ce. - 44 anos Agora que j sou paciente, posso marcar retorno mensal ou em at noventa dias, conforme algum mdico solicita. No preciso mais passar por toda a burocracia de acordar cedo e pegar senha para ser atendido. As pessoas que vo de vez em quando, ou pela primeira vez, sim, estas esperam e nem sempre conseguem ser atendidas de imediato. Pesquisadora Quais mdicos voc costuma consultar a? Ce. - 44 anos O ortopedista. Eu comecei com um mdico l da Santa Casa, Doutor Francisco Rocha, depois dele passei com o Doutor Maurcio Barbosa. A o Doutor Maurcio teve que sair de Franca e me passaram para a Doutora Solange. A Doutora Solange 27

tambm foi para outra cidade e me passaram pro Doutor Cludio, que por fim teve outros problemas e me passaram pro Doutor Marcelo, e, atualmente, eu estou com ele. Pesquisadora Algo mais sobre a foto? Ce. - 44 anos s vezes, mesmo nos fins de semana, quanto eu estou passando ali perto, parece que j virou costume pra mim, rotina. Estou sempre ali. Pesquisadora Voc fica chateado por ter que freqentar tantos mdicos? Ce. - 44 anos A gente sente, porque como se fosse algo que terei que fazer durante toda uma vida, como se a gente fosse obrigado a estar a. O acidente cortou o meu ritmo de vida de repente e fez com que eu praticamente comeasse a ser forado a estar a.

Podemos interpretar esta fala como reveladora da falta de maiores cuidados com a sade, at que se v obrigado pelas condies de sade atuais e suas implicaes a modificar sua rotina relativa aos cuidados relativos a si. O acidente representa um momento de quebra repentina, pois a partir deste, se inicia uma epopia de consultas com diversos mdicos, em diferentes locais. Tais mudanas fazem com que o mesmo passe a questionar sua vida como se a sade (liberdade), tivesse sido substituda pela doena (rotina). Podemos notar uma certa melancolia quando fala dos finais de semana. Como se passar por perto, sentir este local como familiar o levasse a uma constante lembrana de suas limitaes e dor.

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Figura 3 - INSS Franca/SP. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Esta a do INSS!!! penoso, no s pra mim, mas pra todo mundo. A um lugar que no tem boas coisas, s se v coisas ruins. Deveria haver mdicos que te fazem percia, que te examinam, mas, em quatro anos, eu s encontrei um, o Doutor Jos Geraldo, que atencioso no s comigo, mas com todo mundo. O resto, eles no te olham, no pedem seus papis (exames em geral). Mandam voc guardar seus relatrios (de tratamento) sem sequer olh-los. Eles determinam se voc est apto ou no, se est tendo alguma coisa ou no. Eles no te pem a mo, parece que eles tm uma super viso, de que podem ver voc por dentro. E o atendimento, no s dos mdicos, um completo descaso. Tem uma atendente que uma princesa, excelente, educada, mas no geral, os demais maltratam todo mundo. Tem uma encarregada, no sei se voc j a viu, que uma pessoa mal educada, voc no pode pedir informao pra ela, que ela te maltrata. Ento, s vezes, voc chega ali mais ou menos, pois quando entra, o seu psicolgico, que j est um pouco abalado, piora, j que voc sabe o que vai estar esperando ali dentro. Agora at que deu uma melhorada para agendar as percias, mas a gente j chegou a esperar quatro meses sem ter como fazer percia porque no tinha mdico. Agora est dentro do normal, voc marca e com oito dias j est fazendo a percia. Mas, as percias continuam ruins. Pesquisadora Quando voc precisa ir, espera muito tempo? Ce. - 44 anos Voc fica umas trs horas, pelo menos, na fila. Mesmo tendo agendado com antecedncia. 29

Pesquisadora E dentre o pessoal que aguarda, voc acha que todos sentem o mesmo mal-estar? Ce. - 44 anos Tem gente que passa mal, sai da direto para o Janjo (Pronto socorro Municipal). Direto voc v chegando polcia, o pessoal faz ocorrncia policial pra poder ter o direito de ser bem atendido. Quantas pessoas saem dali pior! Voc j sabe o que vai te esperar ali dentro! Pesquisadora E quando voc aprovado na percia, por quanto tempo dura seu afastamento, geralmente? Ce. - 44 anos Eu tive um pequeno afastamento de um ms, porque o mdico achou que no tinha mais como eu fazer percia, no estava adiantando, meu quadro no melhorava. Mas meus outros afastamentos foram de oito ou de seis meses. Pesquisadora Algo mais sobre a foto? Ce. - 44 anos A gente v tantos polticos roubando, ningum vai preso ou paga aquilo que rouba, e enquanto esto tirando de l, esto sacrificando a vida de quem t ali dentro porque precisa. Pela falta de dinheiro que se v l, o governo anda dando alta pra quem no tem condio de trabalhar. Ontem eu ouvi no rdio uma coisa absurda: um mdico deu alta pra um paciente com cncer em estgio terminal. isso que eu quero falar do INSS. Pra quem ta doente, tem s piorado a situao. Pesquisadora Voc est falando que quem est doente, em funo te todo esse estresse, acaba piorando. Voc acha que isso acontece? Ce. - 44 anos Exato. E eu tenho provas de pessoas, ali dentro, que mesmo doentes tiveram alta. D pra ver que a alta j estava programada. Ento, pra que um relatrio do seu mdico, relatando o seu problema? Ali, eles no olham exames, radiografias ou qualquer tipo de exame que voc leve. Isso faz mal para a pessoa, a deixa pior, deixa para baixo. Alm de no poder trabalhar, a pessoa que tem alta fica sem ter como viver, se sustentar.

Este depoimento revela a percepo negativa do Servio resultante do tipo de atendimento prestado pelo INSS. Conforme veremos nas prximas entrevistas, Ce., no o nico a ter esta percepo negativa. Podemos perceber, no relato, a falta de humanizao no atendimento. H a falta de um trabalho integrado entre a rea da sade assistencial e a previdenciria. Os diagnsticos e tratamentos realizados em outros servios, muitas vezes, so invalidados pelos 30

mdicos peritos. A super viso apontada pelo entrevistado conota uma arrogncia deste servio, enfatizada pelos maus-tratos, ocorrncias policiais, e corrupo por parte do governo. Um atendimento humanizado proporcionaria um acolhimento e um olhar sensvel do profissional, que poderia perceber que as pessoas que necessitam deste local, geralmente esto passando por momentos crticos. As coisas ruins mostram que a busca de benefcios previdencirios, com exceo do auxlio maternidade e da aposentadoria voluntria, esto associados a uma mudana na vida da pessoa (penso por morte de contribuinte, auxlio doena, afastamento por acidente de trabalho, entre outros). Em casos semelhantes ao relatado, independentemente da razo que leva um indivduo ao afastamento do trabalho, supe-se que o mesmo ir necessitar de uma readaptao ao mercado de trabalho, preparao para a aposentadoria. Novamente, h a importncia dos profissionais do INSS estarem cientes de que esto prestando servios a uma clientela, em sua maioria, fragilizada pelos eventos recentes em seu cotidiano. Fica clara a percepo de que o Governo no garante o exerccio da cidadania. Pessoas que no tm condies de trabalhar em suas profisses no esto incapacitadas, necessariamente, para toda e qualquer funo laborativa. Fica evidente a necessidade de um espao em que, atravs de discusses e reflexes, pudessem identificar novas funes e/ou reas para atuarem. Nestas circunstncias poderiam ter outra avaliao em relao aos pareceres dos profissionais do INSS e em relao ao termo incapacitado para o trabalho.

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Figura 4 - Centro de Reabilitao. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Centro de Reabilitao. Uma coisa que me ajudou muito foi estar tanto na fisioterapia quanto aqui, com voc, no Grupo de Apoio. As fisioterapeutas, a mdica, foram pessoas que me deram fora. Pois, quando eu entrei aqui, a minha distrofia estava bem avanada, eu estava com comeo de ressecamento nos nervoso do brao. Minha mo estava bastante cerrada. Hoje minha mo abre quase que normalmente, porm, no possuo movimento. Pelo menos eu no tenho aquela possibilidade de atrofiar mais ainda. A gente fica sem sada por conta destes problemas, ento eu fui encaminhado para voc, aqui no Grupo de Apoio, o que me ajudou muito, pois eu estava em uma situao de apreenso, achando que ia ficar doido. Ento, deste lugar, l da fisioterapia, com a Ktia na terapia ocupacional, eu s trago boas lembranas. como todo mundo que passa por aqui... Pesquisadora Voc ficou aqui quanto tempo? Ce. - 44 anos Aqui eu fiquei trs anos. Fui bem tratado, no tenho do que reclamar. O acompanhamento, a preocupao... Nunca tive problemas para consultar. Nessa parte, a doutora Lliam (mdica fisiatra responsvel pelo servio) uma excelente pessoa, me anima bastante, ela me examina de fato e muito legal. Voc tambm, como psicloga, eu tenho que te agradecer porque eu estava muito estressado, pois eu estava em uma vida produtiva e de repente... Eu comecei a trabalhar cedo, com oito anos. Havia uma fbrica de doces aqui na Vila Nova - minha me comprava os doces e ns vendamos. Ns tivemos infncia, mas uma infncia no final de semana pois durante a semana ns trabalhvamos. 32

Ento, de repente, depois de mais de trinta anos trabalhando, minha produtividade foi interrompida de uma vez e isso deixa qualquer pessoa aborrecida. E voc passa a depender de outras pessoas, sendo que antes era voc que contribua. E isso me deixa muito aborrecido. Pesquisadora As pessoas que te conheciam, ou as pessoas que tinham convvio com voc, pelo fato de no estar trabalhando, voc acha que elas te julgam de alguma maneira? Ce. - 44 anos No. s vezes eles ficam... No com pena, analisando a situao que existe no INSS e o fato de ns dependermos dele. O tempo de contribuio, quanto falta para a aposentadoria. Faltam trs anos para eu aposentar. Ento, a contribuio voc j fez, mas na hora que voc precisa voc fica nesta situao. onde as pessoas comentam que tem d de quem precisa passar por isso. Agora, resumindo, do Centro de Reabilitao eu s tenho a agradecer, por tudo, a todo mundo. Pesquisadora Fizemos nossa parte, nada alm. Ce. - 44 anos Mas foi timo.

Neste trecho da entrevista, Ce. aponta que a patologia orgnica pode originar distrbios psicolgicos. H vrios estudos, os quais sero citados na discusso desta pesquisa, que apontam que limitaes fsicas adquiridas levam ao surgimento de quadros de ansiedade e depresso. Ce. traz consigo a certeza de que no Centro de Reabilitao foi bem tratado, relata que a mdica o examinava de fato e que os demais profissionais se preocupavam com ele. Neste Servio ele percebido como pessoa enquanto no INSS ele mais um a ser submetido percia. H tambm referncia ao seu trabalho que iniciado cedo na vida e que, portanto, contribui na sua aquisio da identidade, mas que por outro lado, pode levar a um desgaste fsico precoce.

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Figura 5 - Grupo de Apoio. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Pesquisadora Voc estava falando do Grupo de Apoio... Ce. - 44 anos Que aqui houve uma troca, isso que eu achei legal, as dificuldades de um serviam de experincia para outros. Muitas vezes, algum estava em uma situao pior que a nossa. Era um grupo, no de pacientes, mas sim de amigos. Um querendo sempre o melhor para o outro, sempre ajudar o outro. Se eu puder, mais pra frente, eu vou continuar participando, pois foi muito bom. As pessoas sempre me davam fora e eu dava fora aos outros, como eu falei, era uma troca. A Luciana (assistente social responsvel), eu esqueci de falar, tambm uma pessoa super legal. Pesquisadora Todo mundo se divertindo muito? Ce. - 44 anos . Sempre havia momentos de descontrao e isso ajudou bastante. Eu comecei com a Marciene (fisioterapeuta) e ela falou: Ce. - 44 anos, eu vou precisar passar voc para a mdica e vou avis-la para te passar para o psiclogo. Ou seja, ela percebeu o jeito que eu estava. Eu no estava me conformando com aquilo, e foi atravs daqui que eu comecei a aceitar o problema. Ento foi timo e s tenho a agradecer.

H a identificao de algumas caractersticas que um Grupo de Apoio pode ter: no caso so apontadas as identificaes e trocas, os laos afetivos que so criados nesta 34

vivncia e os momentos de descontrao possveis (vide foto), apesar da doena e sofrimento que levam os pacientes a busc-lo. Enquanto psicloga deste servio, presenciei momentos de intenso sofrimento e compaixo entre os participantes, assim como momentos de alegria. O convvio e a intimidade criada possibilitavam a experincia de diferentes tonalidades afetivas. Criou-se um clima de respeito e comunho entre os integrantes.

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Figura 6 - Uni-FACEF. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Da Uni-FACEF. Por que eu fotografei? Porque eu estou afastado, estou recebendo normalmente e a minha luta para que meu filho no passe pelo que eu estou passando hoje. Para que ele tenha um futuro melhor. Pesquisadora Qual a idade do seu filho? Ce. - 44 anos Dezenove anos. Pesquisadora Quantos filhos so? Ce. - 44 anos So dois, eu tenho tambm uma menina de doze. Ele j est terminando o primeiro ano de Administrao, j est trabalhando no Magazine Luiza. o sonho de qualquer pai, que o filho tenha o caminho dele. Mas no porque ele vai trabalhar, vai ganhar bem, que ele precisa me sustentar. Eu quero que ele no passe por aquilo que eu passei, mas se passar um dia, que ele tenha mais recursos. Pois uma pessoa que tem um curso, 35

uma formao, ela tem mais chance de no depender de trabalhar fechado dentro de uma fbrica. No desprezando a classe sapateira, pois foi dela que consegui tudo que tenho. Pesquisadora Mas no seu trabalho voc sabe que dependia de habilidade manual. Ce. - 44 anos Isso. Pesquisadora E voc quer que seu filho tenha habilidade intelectual. Ce. - 44 anos Exato. E eu j tive chance, mas no consegui por falta de estudo. Eu tive que parar de estudar para trabalhar. Pesquisadora Mas voc est fazendo um curso, no ? Ce. - 44 anos Sim, estou fazendo Computao. Estou indo bem e pretendo futuramente fazer um curso do SENAI, de tcnico de segurana, porque eu no sei se eu vou poder voltar a trabalhar no Curtume. Eu tenho meu filho, tenho minha filha que tambm estuda, e o que eu puder fazer para eles terem aquilo que eu no tive, eu vou fazer. Pesquisadora E seu filho est satisfeito? Ce. - 44 anos Bastante! E depois que ele comeou a fazer faculdade, vrias empresas ligam atrs dele, pois ele deixou currculos em vrios lugares antes de conseguir o emprego. Agora ele vai prestar concurso para a Caixa Econmica. Ento ns estamos depositando nossa f e nossa fora nele para que ele tenha um caminho melhor. Por isso que eu coloquei a Uni-FACEF na foto.

A bela foto da fachada da Universidade onde o filho mais velho de Ce., estuda e o relato que a segue, confirmam sua crena de que um curso universitrio garante insero no mercado de trabalho, boa remunerao, proporciona o desenvolvimento de um maior nmero de habilidades que permitem a atuao em diferentes campos profissionais. O desenvolvimento intelectual pode ser um eficiente antdoto em caso de limitaes fsicas. Por outro lado, a produtividade na atividade caladista, parece encerrar o indivduo em um universo limitado. Uma vez que este universo se dissipa, a pessoa encontrase despreparada para a vida, para o mercado de trabalho. Aps um tempo participando do Grupo de Apoio, aps diversos debates sobre a incapacidade, o quanto se est incapacitado?, e por suas experincias pessoais, com o filho principalmente, Ce., passou a considerar sobre a importncia de descobrir novas habilidades (independente do nvel educacional), fato que o motivou a fazer curso na rea de informtica e a querer fazer curso de tcnico de segurana. 36

No entanto, este foi um processo lento e gradual, uma vez que antes de chegar neste ponto, houve muita dor, sofrimento psquico, desesperana, revolta, entre outros sentimentos vivenciados intensamente no processo de crise e necessidade de mudanas.

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Figura 7 - Casa de Ce.. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Esta da minha casa. O tempo que eu no estou me tratando, eu estou a. Eu fotografei porque, primeiro, ela foi conseguida com muita luta, com muito trabalho. Ser impedido, de uma vez, de trabalhar me deixa muito chateado. H quinze anos atrs eu tinha uma bicicleta para andar e hoje, graas a Deus, eu tenho uma casa, tenho uma moto, que hoje nem tem como eu andar mais, e tenho um carro tambm. E isso era uma prova do que estar trabalhando, estar produzindo. Se eu tinha um plano de mexer na minha casa, eu calculava que se fizesse sero quatro meses seguidos, eu conseguia. Voc tinha um plano e conseguia realiz-los. Agora hoje, que eu estou afastado, voc sabe que no tem como sair para fazer outra coisa. Ento eu coloquei a casa pelo que ela representa, por ser o lugar que eu fico, hoje em dia, quase vinte e quatro horas. Pesquisadora E como ficar em casa? Muito difcil? Voc j se acostumou? Ce. - 44 anos Agora, minha mulher tambm est com problemas no brao, e minha cunhada emprestou uma mquina para ela. E mesmo com uma mo s, ela consegue movimentar e est mexendo com palmilhas de sapato em casa. Eu estou sempre ali, sempre com ela porque eu estou vendo que ela est na batalha tambm. Ento, resumindo, aqui onde 37

eu passo meu maior tempo. Pra quem ia l apenas para dormir, pois almoava na fbrica, s vezes fazia sero, chegava entre nove e dez horas.

Por este depoimento fica claro o significado do trabalho para Ce.. Os bens adquiridos ao longo dos anos de trabalho (como a casa da foto) so prova de que ele era uma pessoa produtiva, o responsvel pela melhoria das condies de vida da famlia. A impossibilidade de traar planos, pois embora esteja recebendo, est na dependncia de percias, a remunerao menor, entre outros fatores, aparecem como fatores impeditivos para um bem estar social e mental. Como se a vida estivesse suspensa por um perodo, aguardando algum tipo de aval (reinsero no mercado, aposentadoria, etc) para que pudesse ser retomada. O gnero, ser homem e o ideal de provedor, aparecem em xeque, na medida em que ser cuidado financeiramente e afetivamente tem um carter dual. H aborrecimento por depender de algum seja financeiramente ou para realizar atividades cotidianas, autocuidados, mas h prazer em ter a famlia por perto.

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Figura 8 - Esposa de Ce. trabalhando na garagem da casa deles. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008.

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Pesquisadora Ento sua esposa fica trabalhando. Ce. - 44 anos . Fica na garagem, l em casa. Essas a so umas palmilhas para pespontar. Ali est uma pia, faz trs anos que eu mandei fazer. Queria mexer na minha cozinha, mudar. S que teve a questo do INSS, no tem conserto. Pesquisadora Os planos ficaram paralisados. . Ce. - 44 anos Pois ! Mas ela uma pessoa com quem eu conto, sei que posso contar, que tudo na minha vida. Est sempre me apoiando, me dando fora, e eu tambm sempre dando fora pra ela. Pesquisadora Agora que voc passa mais tempo em casa, o convvio com a sua famlia melhorou? Antes voc no tinha muito tempo, no ? Ce. - 44 anos Eu vou te falar a verdade sobre uma coisa. O convvio da gente melhorou porque hoje, eu estando a, estou vendo tudo o que est se passando. Meus filhos, graas a Deus, esto no trabalho. Minha filha tambm... Porque menina, quando vai crescendo, no que ela me d trabalho. Mas se ela est sabendo que tem sempre eu ali, ela j... Minha filha assim. Eu a pus na ginstica da prefeitura, que no paga nada, tem nibus que leva no Poliesportivo e traz... Ela faz jazz tambm, na igreja. Ela gosta disso. Ela no fica na rua. Hoje as crianas de dez anos saem e os pais no sabem nem onde elas esto. Ento sempre assim, meu filho, at hoje, com dezenove anos, me fala aonde vai e que horas vai chegar. s vezes liga de madrugada e fala que vai chegar um pouquinho mais tarde, pergunta se tem problema. A gente tem, graas a Deus, um bom relacionamento. s vezes tem uns momentos de nervosismo tambm, mas nunca de maltratar um ao outro. Eu posso falar que tem um pai na minha casa, e dou graas a Deus. H tambm os louros do afastamento. A possibilidade de maior convivncia com a esposa, e a percepo de que esta tambm batalha para a manuteno da casa, a participao no cotidiano da famlia, o conhecimento a respeito dos filhos, a possibilidade de um convvio respeitoso e no somente autoritrio com os mesmos, entre outros.

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Figura 9 - Moto de Ce.. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Essa a uma coisa que eu sempre adorei na minha vida, desde os meus dezessete anos eu gostei de moto. Quantas vezes, quando eu era solteiro, at ao Mato Grosso a gente j foi de moto, num encontro de motos l. O dia em que eu comprei minha primeira moto eu dormi l na garagem, de emoo. O tanto que eu gosto... Essa moto recente, no faz muito mais que quatro anos que eu tenho ela, e eu andei pouco nela, uns trs meses s. Teve uma poca em que estava muito ruim de servio em Franca, a a fbrica fazia acordos, falava pra ficar quinze dias em casa, que perdia quinze mas ela te pagava quinze. Eu tinha uma outra moto e pegava muito bico, subia na moto s cinco horas da manh e ficava at sete, oito horas trabalhando, fazendo entrega nas cidades da regio. uma coisa que eu sempre gostei, e hoje em dia a nica coisa com que eu fico chateado de no poder andar nela. At eu ia, na poca, vender a moto.

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Mas a meu filho j fazia estgio e falou pra eu no vender. Disse que trabalharia um pouquinho a mais pra ajudar a pagar. Ele se dedicou, pagou, e depois tirou carta. Hoje ele que dirige pra trabalhar, pra ir pra faculdade. Serviu pra ele. E a questo do carro a seguinte: o pai da minha mulher tinha umas heranas para passar para ela e como estava demorando demais ele falou que ia passar esse carro pra gente. Quando saiu o dinheiro ele descontou s metade do valor. E agora ele est sendo til, porque s vezes eu tenho que ir ao mdico, minha esposa me leva, aqui perto. Esses dias eram trs horas da manh e eu estava no Janjo, tive dor. Pra pagar txi difcil, pois ele no te espera. Ento, uma coisa que me chateia nisso tudo eu no poder mais andar na moto.

Em contrapartida a foto anterior, o adoecimento surge associado privao de prazeres: a moto, o afastamento do trabalho enquanto uma atividade produtiva (na fbrica de calados, como entregador nas horas vagas).

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Figura 10 - Casa do sogro de Ce.. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos A onde meu sogro mora. Eu vou muito a.s vezes eu vou dia de sexta e fico at segunda-feira. No fundo tem um rio que passa por l, uma coisa gostosa, a gente passar uns momentos pra refletir, uma tranqilidade. E eu gosto muito de 41

ficar em contato com a natureza. A gente vai a e descansa muito, descontrai, porque vai todo mundo. um momento que eu passo alegre. Tenho boas lembranas da, do tempo que eu podia ajudar a mexer a, cuidava do pomar. Porque ele sempre falava que isso a ia ser da gente, pra cuidar mesmo. Hoje eu fiquei impedido de podar, mas alguma coisinha do tipo aguar as plantas, pr rao para os porcos, eu fao. Eu gosto de ir l pra descarregar, um momento de lazer pra esquecer os problemas. Pesquisadora Porque tambm ningum vive s de problemas.

Mesmo restringindo suas atividades relativas aos cuidados com o lugar ele consegue vivenciar momentos felizes. Para tanto, pensamos que o trabalho de reabilitao motora e emocional foi fundamental para que o mesmo pudesse voltar a sentir prazer. No incio do tratamento, em crise, o mesmo relatava um grande desnimo, vontade de se isolar, sintomas que conotavam um humor depressivo. H tambm uma tnica na produtividade, fazer algo parece ser sinnimo de identidade e laboriosidade sinnimo de prazer.

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Figura 11 Ce. no computador da casa dele. Fonte: Mquina de Ce., maro de 2008. Ce. - 44 anos Aqui na minha casa. Eu estou fazendo um curso de Computao pra pelo menos entrar na Internet, um passatempo. Voc pode olhar que o site 42

que est a o da Previdncia Social, por onde eu acompanho o dia que eu vou receber. Eu estou co