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1 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA CLÁSSICA PARA O ESTUDO DO MÉTODO ESCOLÁSTICO NO SÉCULO XIII A PARTIR DO “DE TRINITATE” DE BOÉCIO OLIVEIRA. Flávio Rodrigues de 1 ANZOLIN, Ana Aisi 2 Partindo da premissa de que a história deve ser pensada como “a ciência dos homens no tempo (BLOCH, 1886, p.21)”, tem-se em mente que ao fazer história deve-se partir do princípio que essa é feita por meio da ação do homem no mundo, em todas as suas relações como esse espaço, sejam sociais, morais, éticas, étnicas, cronológicas, factuais do homem em seu período histórico. É por isso que, ao se estudar um autor como Boécio, que fundamentou os seus estudos sobre o presente nos clássicos, percebe-se que o homem do passado é indispensável para o entendimento do homem e do contexto presente. Desta forma, excluí-se qualquer limes sobre o período histórico abordado, uma vez que, entende-se que a história, segundo Le Goff (1978), caminha mais ou menos depressa, porém as forças profundas da história, só atuam e se deixam aprender no longo do tempo. Assim segundo o autor: A história do curto prazo é incapaz de aprender e explicar as permanências e as mudanças. Uma história política que se pauta pelas mudanças de reinados, de governos, não apreende a vida profunda: o aumento da estrutura dos humanos, ligado às revoluções da alimentação e da medicina (LE GOFF, 1978, p. 45). Le Goff permite olhar a história por meio de um processo mais lento, pois a cultura, a tradição, a mentalidade, a estruturas governamentais, não desaparecem de um ano para o outro de uma forma abrupta, todavia, levam até alguns decênios para transformarem-se e adquirirem características próprias desse período, assim, como um sistema econômico e social também mudam apenas em um processo longo, duradouro. 1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá. 2 Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá.

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A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA CLÁSSICA PARA O ESTUDO DO

MÉTODO ESCOLÁSTICO NO SÉCULO XIII A PARTIR DO “DE

TRINITATE” DE BOÉCIO

OLIVEIRA. Flávio Rodrigues de1

ANZOLIN, Ana Aisi2

Partindo da premissa de que a história deve ser pensada como “a ciência dos homens

no tempo (BLOCH, 1886, p.21)”, tem-se em mente que ao fazer história deve-se partir do

princípio que essa é feita por meio da ação do homem no mundo, em todas as suas relações

como esse espaço, sejam sociais, morais, éticas, étnicas, cronológicas, factuais do homem em

seu período histórico. É por isso que, ao se estudar um autor como Boécio, que fundamentou

os seus estudos sobre o presente nos clássicos, percebe-se que o homem do passado é

indispensável para o entendimento do homem e do contexto presente. Desta forma, excluí-se

qualquer limes sobre o período histórico abordado, uma vez que, entende-se que a

história, segundo Le Goff (1978), caminha mais ou menos depressa, porém as forças

profundas da história, só atuam e se deixam aprender no longo do tempo. Assim segundo o

autor:

A história do curto prazo é incapaz de aprender e explicar as permanências e as mudanças. Uma história política que se pauta pelas mudanças de reinados, de governos, não apreende a vida profunda: o aumento da estrutura dos humanos, ligado às revoluções da alimentação e da medicina (LE GOFF, 1978, p. 45).

Le Goff permite olhar a história por meio de um processo mais lento, pois a cultura, a

tradição, a mentalidade, a estruturas governamentais, não desaparecem de um ano para o

outro de uma forma abrupta, todavia, levam até alguns decênios para transformarem-se e

adquirirem características próprias desse período, assim, como um sistema econômico e social

também mudam apenas em um processo longo, duradouro.

1 Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá. 2 Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá.

2

É por esse motivo que empregar o termo Antiguidade Tardia ao invés de Alta Idade

Média ou a Primeira Idade Média faz-se mais conveniente. Em contrapartida, alguns autores3

definem esse período de translatio como Alta ou Primeira Idade Média, pois entendem que o

tempo em questão constitui-se de características plenamente inovadoras em relação ao

passado. Porém, diferente desses autores, deve-se entender que a queda e o fim do Império

Romano, como um fato eminentemente político não determina necessariamente todos os

aspectos referentes à vida social e econômica de um período histórico, por exemplo. Todavia,

alguns historiadores mais apegados ao modelo positivista veem que a queda do Império

Romano e o Fim do Império Antigo estão intrinsecamente ligados. Pressupondo, portanto,

que a passagem da Antiguidade Clássica para a Idade Média seria explicada a partir apenas de

um fato político.

Jacques Le Goff (2005) e Peter Brow (1972) foram dois dos vários autores que

olharam a história de uma forma menos positivista e uníssona, levando em consideração

outros aspectos da vida humana, além da política, como: economia, cultura, tradição,

sociedade, religião, entre outros, que deveriam ser analisados a partir de suas estruturas e

importância própria, contudo ainda interligados entre si.

Segundo BROWN (1972), é importante observar a relação entre o último período do

mundo antigo (200-700 d.C.), e o seu constante recurso de mudanças e as continuidades. Pois,

o autor incita a ver esse período além de uma triste história do final de um império, a saber, o

Império Romano4, definindo uma visão muito simplista e cômoda, fazendo com que não se

análise as novidades que o período trás. Peter Brown, afirma que estudar esse período é

sobretudo uma busca, em que se vê e percebe que os homens desse contexto histórico

conseguiram lidar com a translatio, isto é, um período de mais dinamismo e mudanças

contínuas. Traz novidades e permeia o aparecimento de novas estruturas tanto materiais como

sociais, bem como mentalidades. Inaugura uma nova visão sobre o pensar do homem em

relação ao mundo, ao sagrado, ao profano, a religião, conduzindo e estabelecendo novas

maneiras de se pensar e agir.

LE GOFF (2005), também não é adepto a ver a história de forma serial, prefere não

considerar uma ruptura tão brusca entre o antigo e o medievo, pois, não só no período 3 Segundo Hilário Franco Júnior (2005), em A Idade Média. Nascimento do Ocidente, p. 15, o termo ‘Antiguidade Tardia’ precisa ser superado, pois, as características que marcam esse período são essencialmente medievais, tanto nos espaços sociais, nos costumes, na escrita e na religiosidade. 4 Período que vai da crise do século III, até o final do Império Romano quando Romulus Augustus, o último Imperador do Ocidente, foi deposto por Odoacro, datando o ano de 476 da nossa era.

3

considerado Antiguidade Tardia, o pesquisador de estudos medievais pode encontrar traços da

antiguidade, mas, também é possível esses mesmos traços estarem presente na Idade Média.

O autor, considera que alguns traços do período medieval também podem ser encontrados na

Antiguidade Tardia. Contudo, o período em questão não é o Antigo, pois não compreende

mais a Antiguidade Clássica, muito menos se faz medieval, uma vez que não perdeu os traços

clássicos de forma completa. Então esse período de translatio, é visto pelo historiador com

uma dupla continuidade ao invés do termo ruptura.

Ainda a respeito do período de translatio, temos mais uma evolução de muitas de suas

estruturas sociais e culturais, em diferentes níveis de intensidade e temporalidades, do que

uma mera mudança de forma total, abrupta e assaz. Visto que, mudanças econômicas,

políticas, sociais, religiosas, culturais, e etc., nem sempre acontecem de maneira uníssona e

simultânea, perdendo a sua mais intima essência de um período para o outro. Por isso afirma-

se, que não há uma ruptura abrupta de uma época e outra, mais sim, períodos de transição que

possibilitam entender de maneira mais clara as características do período em questão. Assim

se depois de toda essa abordagem sobre o período denominado Antiguidade Tardia ainda

possui alguma dificuldade em fixar-se uma barreira entre o mundo antigo e o medievo é

porque justamente não há, identificando um tempo de transição rico em mudanças e distante

de um conceito de uma decadência imperial.

É neste contexto histórico de translatio que nasce Anício Mânlio Torquato Severino

Boécio (470-526), da estirpe do Anícios e dos Torquatos, o autor de vários textos de caráter

teológico; precursor do legado clássico no ocidente medievo. Considerado por muitos como o

último romano: Boécio teve uma educação exemplar, estudando por muitos anos as ciências, a

literatura e a filosofia grega, onde adquiriu um conhecimento inigualável da cultura clássica

greco-romana, estando presente em seus textos o capacitando a desempenhar a função

histórica de singular importância que lhe foi designada. Não é casual que Luiz Jean Lauand,

ao observar o período em que Boécio vivia, escreve sobre a importância da preservação dos

clássicos: “[...] em meio da barbárie dominante, realizar (na medida do possível...) a salvação

e transmissão da cultura antiga para os novos ocupantes do Ocidente, instalados onde

florescera o Império Romano (LAUAND, 1998, p.75)”.

Segundo Lauand, o autor do De Trinitate, viveu em um período de profundas

transformações, onde as invasões bárbaras representavam um risco de um iminente

desaparecimento da cultura greco-romana que plasmara o Ocidente. Boécio percebeu

4

claramente o período em que estava inserido e, ao retornar a Itália5, valeu-se dos cargos que

lhe foram confiados pelo rei Teodorico para exercer sua tarefa pedagógica (LAUAND, 1998,

p. 76).

O aspecto pedagógico boeciano é expresso por meio de suas inúmeras traduções e

comentário das obras de Aristóteles, Platão, dentre outros clássicos. Com esse trabalho de

tradução Boécio valeu-se também de fazer alguns comentários, estabelecendo dessa forma,

um paralelo entre o mundo antigo e o seu presente, onde nascerá o que seria conhecido por

todos como: o método escolástico6.

É graças às traduções da obra da Lógica de Aristóteles, e aos comentários à mesma, ele terá um legado ao Ocidente latino uma função dialética preciosa e informante. Visa-se reconhecer a importância da lógica e compreender o modo da sua recepção como determinante e essencial na sua configuração da filosofia da Latinidade, sendo ainda hoje a melhor introdução sobre este aspecto as secções III, IV e V de The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. (CARVALHO, 1958, p.28).

A importância de Boécio é realmente definida quando entendemos a dimensão que o

comentarista romano atingiu com suas traduções. Em um período extremamente conflituoso,

onde o risco da cultura greco-romana clássica possuía um alto índice de se perder para sempre

na história, Boécio atuou com todas as suas forças para traduzir o máximo possível de obras

gregas para o latim preservando assim a importância do saber clássico para o mundo medievo.

Segundo VERGER (1999), uma das características fundamentais da cultura erudita da Idade

Média é o lugar essencial que nela possuía a língua latina. Jacques Veger afirma que: “Por

vezes, dizemos que a civilização medieval é uma civilização bilíngue, marcada pela

coabitação, em todos os países do Ocidente, do latim e de uma ou até mais línguas vernáculas

(VERGER, 1999, p. 23-24)”.

Em contrapartida, deve-se ressaltar que esse predomínio da língua latina encontrava-se

somente nas ciências, ou mais detidamente nos estudos feitos da época, uma vez que, desde a

Antiguidade Tardia romana, já se falavam diversas línguas como: italiano, catalão, castelhano 5 Reino dos Ostrogodos, também conhecidos como Visigodos, Francos, ou popularmente chamados de bárbaros. 6 Sabe-se que hoje, o termo escolástica é impregnado de conceitos dogmáticos e conservadores diante da sociedade pela qual passava ou associam o termo ao período da Inquisição dos séculos XVI e XVII. Não abordaremos aqui esses aspectos negativos que o termo escolástica adquiriu durante os séculos XVII e XVIII com o Renascimento e nem explicitaremos sobre os usos da inquisição fez dela a partir do século XVI. Para saber sobre as dificuldades de se definir o termo escolástica na atualidade e os tons depreciativos que o termo recebeu, ler o História da Educação na Idade Média, cap. IX A escolástica, de Ruy Nunes, p. 243-286, 1979, ou O caráter histórico da Escolástica (2005), de Terezinha Oliveira, p. 47-64).

5

e português. Todavia, foi somente a partir da Idade Média, ou seja, meados do século VIII ao

início do século IX, que o latim deixa de ser uma língua materna, não sendo falada mais em

parte alguma do Ocidente. É um dos motivos pelo qual podemos frisar mais uma vez a

importância do autor em questão para o seu período histórico. Segundo Lauand,

Boécio foi o homem certo no lugar certo. Estava habilitado como nenhum outro a lançar os fundamentos da transmissão do saber clássico aos bárbaros e tal projeto, como se sabe, contém um dos elementos essenciais daquilo que se convencionou chamar de Idade Média (LAUAND, 1998, p. 77).

O seu tratado De trinitate é um exemplo claro da sua importância tanto para o mundo

antigo quanto para o medievo, pois, além de retomar os clássicos para fundamentar a sua

filosofia, Boécio instaura o que podemos chamar posteriormente de escolástica.

Boécio viveu em um período onde o debate sobre fé e filosofia cristã estava em pleno

conflito. Um dos paradigmas mais comuns do período era sobre o debate trinitário suscitado

pela polêmica dos monges citas7 e tendo em vista a recomposição do cisma acaciano, que

separava as Igrejas do Ocidente e do Oriente desde o ano de 484 d.C.

Para compreender melhor o debate boeciano em que surge o De trinitate, FILHO

(2005), fala que as formulações dos citas atingiram uma figura negativa, devido ao seu caráter

dogmático. Todavia, do que caracterizou seu esforço de fidelidade, pode ser obtida, por

exemplo, com a questão do sofrimento do Verbo, pois, o Concílio de Calcedônia de haver

renovado a heresia nestoriana, à medida que duplicava a figura de Cristo e, com isso atentava

também contra a Trindade, uma vez que, introduzia nela uma figura diferente. Segundo o

autor, essa perspectiva levou-os a introduzir na tradicional invocação “Deus Santo, Santo e

Forte, Santo e Imortal”, para enfatizar a crucificação de Jesus, seguindo da conclusão

“crucifixus est nobis”. Contudo, ao fazer introduzir esses conceitos, tais pessoas não

perceberam que junto ao Cristo, também crucificaram toda a Trindade.

Um pouco mais a frente, tais homens movidos pela vontade de conciliar as expressões

cotidianas de Fé com o Concílio da Calcedônia, procuraram escapar a influência eutiquiana e

7 A história eclesiástica designa como monges citas, um grupo de godos que vieram do norte europeu e da Ásia, envolvidos pessoalmente, pelos anos de 519-521, com as controvérsias dogmáticas e políticas havidas entre Roma e Constantinopla. Seu interesse, como o de muitos outros grupos da época pós-calcedôniana, não era outro senão encontrar um modo de conciliar suas próprias posições com as definições do concílio e, por isso mesmo, contribuir para a paz efetiva entre as Igrejas, que acabavam de sair do cisma acaciano. No entanto, a atuação desses monges acabou adquirindo uma conotação negativa, sobretudo por sua insistência e um certo exagero nas formulações dogmáticas (FILHO, 2005, p.100).

6

ligar-se à teologia conciliar (FILHO, 2005, p. 101). Assim, o apoio do ortodoxo Justino torna

se explicável, bem como o fato de que, depois do ano de 519, eles não tenham tinha problema

algum para mudar a fórmula “unus de Trinitate crucifixus est” em “unus de Trinitate passus

est carne”, que eliminava qualquer relação com a fórmula eutiquiana e a antiga prevenção

contra a interpretação nestoriana.

É nesse contexto que surge o De Trinitate, para responder de uma forma já acadêmica,

as tendências como o arianismo, o monofisismo, e outras heresias que faziam apologia a

diversidade de pessoas na Trindade.

Que esses debates tenham oferecido a Boécio ocasião para redigir seus escritos trinitários é algo possível, mas, vale dizer, seu interesse não consiste, certamente, em apenas dar uma contribuição para tais discussões, pois uma leitura do Vtrum Parter e do De Trinitate faz pensar que estamos diante de escritos comandados, sobretudo, por uma curiosidade já acadêmica, que se preocupa antes com o aprofundamento da fé, por via da elaboração de uma linguagem adequada, do que pela busca de uma formulação que previna ou afaste o falso entendimento da tradição evangélica. É certo que ele se preocupa em manter continuidade com a “orto-doxia” da tradição, mas seu texto não tem caráter apologético, e, sim especulativo (FILHO, 2005, p.102).

O ponto de partida da reflexão de Boécio parte do pressuposto de fé segundo o qual

“O Pai é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus” e seu escopo consiste em dizer que

Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses, embora sejam três pessoas diferentes, mas sim,

um Deus. O tratado é composto de VI pequenos capítulos direcionados ao sogro Símaco, pois,

segundo o próprio Boécio era a única pessoa capaz de lê-lo “[...] não apenas pela dificuldade

vinda do próprio assunto, mas também pelo fato de que só posso falar sobre ele com raras

pessoas – na verdade, somente contigo [...] (BOÉCIO, 2005, p. 197).

O texto boeciano pode ser dividido em duas partes maiores, a primeira, Boécio trata da

questão da não implicação entre repetição de unidades e a pluralidade numérica, que são

tratadas mais especificamente entre os capítulos I a III, e a outra parte, e que considera a

maneira como se atribui um predicado a Deus, iniciando no capítulo IV e indo até o VI

capítulo. Contudo segundo Filho (2005), uma parte não pode ser pensada como separada da

outra, pois, a primeira reclama à segunda, uma vez que Boécio indica na primeira parte, como

a enunciação “Pai” e “Filho” e “Espírito Santo” não produz uma pluralidade essencial, no que

na segunda parte, cujo principio estruturador será a análise da categoria de relação, tendo

7

assim que explicar a possibilidade de haver alguma diferença entre eles, uma vez que não se

confundem nem são predicados substanciais.

Boécio discute o paradigma sobre os três deuses, dizendo que não há uma diferença

entre eles, nem de caráter numérico e nem de caráter substancial, pois a razão de sua unidade

consiste na ausência de diferença. Segundo Boécio é por verem a diferença que os arianos

distribuem graus de hierarquia a Trindade, dizendo: Primeiro Pai o Deus criador, Filho o

Criado e o Espírito Santo o Intermediador, desfazendo a unidade e ocasionando a pluralidade.

O autor nos fala que neste ponto reside o princípio da pluralidade “Principium enim

pluralitatis alteris est8”, uma vez que, fora da alteridade torna se incognoscível a pluralidade.

Explica que no caso dos arianos, eles estão passíveis ao erro por considerarem justamente que

existe um Deus maior que o Filho e um intermediário, estabelecendo deste modo, graus

diferentes as pessoas da Trindade.

Segundo Boécio a diferença entre três (ou qualquer número de) coisas reside no

gênero, na espécie ou no número. Já a igualdade pode dar-se de três modos também, uma vez

que ela acompanha o mesmo processo da diferença a literatura boeciana nos indica que: a)

segundo ao gênero, pode-se dizer, por exemplo, ao gênero animal: - o homem e o cavalo são

iguais, uma vez que pertencem a um só gênero. Pela b) espécie também poderíamos dizer que

duas pessoas diferentes, ou qualquer outro tipo de espécie de seres são iguais por pertencerem

a mesma espécie: - espécie homem: João e José, João, José e Maria, e assim por diante. E por

c) número como no caso de Boécio, dizer que Túlio e Cícero são um e o mesmo, pode ser

afirmado uma vez que tanto ao falar Túlio ou Cícero, estamos falando da mesma pessoa, pois

Túlio no período de sua vida, também foi conhecido pelo nome de Cícero.

Desse mesmo modo, assim é a diversidade. Contudo, quando a diversidade pelo

número, é diferente da igualdade pelo número, pois está se dá pela variedade de acidentes,

uma vez que, por exemplo, João, José e Maria, não se diferem nem pelo gênero e nem pela

espécie, mais sim pelos seus acidentes. Assim, se mentalmente retirarmos de João todos os

seus acidentes: altura, peso, sexo, e etc., e retiramos os mesmos acidentes de José e depois os

de Maria, os três ainda continuarão sendo diferentes, e ainda não serão um, mas três, que

continuam ocupando lugares diferentes no espaço, na medida em que sabemos que corpos

diferentes não ocupam o mesmo espaço. E ainda assim, ao tentarmos retira todos os seus

8 O princípio da pluralidade é a alteridade.

8

acidentes um é certo que fica, pois o lugar também é um acidente, então por serem plurais em

seus acidentes, João, José e Maria também serão plurais em seu número.

Então Boécio nos induz a perguntar como pode Deus ser Triplo que é Uno, uma vez

que vemos em relação à diversidade que são três iguais, ou seja, sem acidentes, pois não

podemos atribuir acidentes a Deus9, e ainda assim três diversos, pois ocupam lugares

diferentes? Para responder tal questão Boécio faz uso da Teologia uma das três ciências

especulativas10, para explicar intelectualmente a Trindade.

Sendo Deus, impossível de ser predicado, uma vez que a imaterialidade divina se dá

como forma pura, sendo Deus apenas Deus, ou mais detidamente aquilo que é o é, pois todo o

ser que é a partir da forma, o que faz concluir a impossibilidade de Deus ser predicado.

Assim, Deus não difere de Deus a título algum, pois não há diversidade de sujeitos por diferenças acidentais ou substanciais. Onde, pois, não há diferença, não haverá pluralidade alguma, e daí tampouco número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e dizemos Pai, Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica naquilo que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e não o modo pelo qual numeramos (BOÉCIO, 2004, p. 03).

A interpretação boeciana da diversidade numérica se dá de duas formas, uma pela qual

numeramos algo e a outra na qual consistem os objetos e coisas numeráveis. Por isso dizemos

um para a coisa real e dois ou três e assim por diante, nas coisas as quais se referem

numericamente, ou seja, no número pelo qual numeramos, como por exemplo, pedras,

homens e etc., nesse caso a repetição da unidade se faz pluralidade, duas pedras, três homens.

Nas coisas reais, ou pela qual a repetição de unidades não produz número, “[...] no número 9 Segundo Boécio, no capítulo II, do De Trinitate, tudo é pela forma menos Deus. Boécio dedica o capítulo quase que exclusivamente para dizer que as categorias não são aplicadas a Deus. Uma vez que tudo é pela forma, podemos afirmar que uma casa se constitui tal como ela é e se diz chopana ou casa, não pela madeira com que é feita, mas pela forma que lhe é empregada quando feita, e pelo mesmo modo a própria madeira não é madeira pelas substâncias que a constitui que são materiais, mas sim pela forma. Em contrapartida, Deus, ou a divina substância como o tratado boeciano nos indica é forma sem matéria e, portanto é Um e é o que é. Qualquer outro ente não pode ser o que é como no caso do homem, pois em cada parte do homem tem seu ser no que está dando a sua “hominilaridade” da conjunção de suas partes: mas não são tal e tal tomadas separadamente. Assim sendo, o homem em seu estado comum, consiste de corpo e alma, e só é homem na medida em que entendemos como corpo e alma, e nunca alma ou corpo separadamente e, portanto, não é o que é, pois se constitui de um composto. Todavia Deus não é composto de nada, na medida em que se faz simplesmente de uma unidade que é o que é, pois apenas é UM e não um de compostos. 10 No De Trinitate, cap. II, Boécio escreve sobre as três ciências especulativas, a saber, a Física: que está em movimento e não é abstrativa ou separável, a Matemática: que está sem movimento e não é abstrativa e a Teologia, está sem movimento e é abstrativa, pois a substância de Deus carece de matéria e de movimento. Das três ciências, a Física trabalha racionalmente; a Matemática, disciplinarmente e a Teologia intelectualmente.

9

das coisas, porém, a repetição de unidades não produz pluralidade, como quando digo do

mesmo: um gládio, uma espada, um sabre (BOÉCIO, 2005, p. 202)”. Dessa perspectiva, o

número não é senão a repetição da unidade, uma vez que não visa marcar uma pluralidade

entitativa.

Por esta via de pensamento, dizer Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, não

constitui um número plural, mas sim: Deus, e aí consiste o erro dos arianos que fazem

distinção entre os três. É o mesmo que dizer, uma espada, um gládio, uma lamina, um sabre,

ou sol, sol, sol. Com essa afirmação Boécio, pretende considerar como indicada a inexistência

de diferença numérica na Trindade, do ponto de visa da essência, ou seja, “naquilo que elas

próprias (as pessoas divinas) são”, na sua consubstancialidade (FILHO, 2005, p. 109).

Contudo, Boécio afirma logo em seguida, no final do cap. III, que quando dizemos

Pai, Filho e Espírito Santo, não estamos usando sinônimos diversos como no caso de dizer

espada e gládio que são iguais e idênticos, pois Pai, Filho e Espírito Santo, são iguais, mas

não são o mesmo. Segundo Boécio o Pai não é o próprio Filho, e um não é o mesmo que o

outro. Porém, o autor nos coloca que não há entre eles uma total indiferença em todos os seus

aspectos, sendo possível falar-se em número, do qual procede a diversidade de sujeitos.

A explicação dada por Boécio é feita a partir das dez categorias aristotélicas11, que são

determinadas ao sujeito ao qual se referem. Segundo Boécio patê delas quando são aplicadas

as outras coisas que não são Deus, referem-se à substância12, a outra parte as acidentes.

Contudo ao serem aplicadas a Deus, todas se tornam substâncias. No IV capítulo do De

Trinitate, Boécio abre um parênteses para explicar a partir da concepção clássica aristotélica o

caso da categoria de relação que vai determinar todo o resto do tratado. Segundo ele, a relação

não pode de modo algum ser predicada de Deus, pois ao aplicarmos a substância nEle, não é

propriamente substância, mas ultra-substância, ou é para além da substância. Entender o que

está para além da substância ou ultra substância não é complicado. Vejamos o exemplo de

Boécio:

Ao dizermos “Deus”, aparentemente estamos designados a uma certa substância, mas na verdade, aquela que é ultra substância; ao dizermos

11 Segundo Boécio ao todo as dez categorias de Aristóteles da Metafísica, podem ser universalmente predicadas de todas as coisas: substância, qualidade, quantidade, relação, lugar, tempo, condição, situação, atividade e passividade. 12 A noção de substância implica, como é sabida, uma relatividade essencial, que se deixa entender seja como condição para as determinações acidentais, seja como condição para toda e qualquer predicação (FILHO, 2005, p. 109).

10

“justo” (aplicado a Deus), referimo-nos a uma qualidade, mas não é qualidade acidental, e sim à própria substância ou ultra substância. Pois em Deus não é uma coisa ser, e outra coisa ser justo, mas é-Lhe idêntico ser Deus e ser justo (BOÉCIO, 2004, p. 03).

E assim, Boécio explica o porquê Deus é para além da substância, uma vez que o que

Deus é, e o é em seu sentido pleno, uma vez que de Deus nada carece e tudo nEle existe, pois

Deus é sua própria forma. Ao equipará-lo com o homem, vemos a diferença, na forma,

percebendo que no último, que não é a própria forma. Também não poderá ser a sua própria

substância, carecendo assim, de determinações diferentes da dele para que tanto a forma

quanto a substância venham a existir. É por isso, que Boécio dirá que as categorias

aristotélicas não podem ser aplicadas a Deus, porque Ele é a própria forma, ou seja, realiza-se

em si como totalidade divina. Se existe a possibilidade de existir alguma diferença em Deus,

esta se situa exteriormente a ele, em meio aos predicados que indicam a circunstância do ser e

não o próprio ser em si.

A predicação divina que estabelecerá uma diferença entre Pai e Filho e Espírito Santo,

deve ser predicada a partir da relação. Esta categoria estabelece o ser segundo a sua relação

com outro ser ou consigo mesmo, não mudando nada no ser que está sendo relacionado, nem

acrescentando ou diminuindo, pois se trata apenas de uma relação. Boécio cita o caso da

relação entre senhor e servo. Uma vez retirado o servo dessa relação entre senhor e servo, o

senhor perde a sua função de senhor, pois o senhor é senhor de alguém e, não tendo esse

alguém, também se suprime a hierarquia do que era dito senhor. Assim também acontece com

uma pessoa que está a sua direita ou a sua esquerda, pois ela está a sua direita na medida em

que se pôs a sua esquerda e assim o contrário. É por isso que Boécio diz que a categoria de

relação ou predicação como é dito nos termos aristotélicos, não muda nada do ser em si, mais

parte de pressupostos exteriores a ele. Filho diz que “Assim, a predicação relativa indica algo

que vem de fora da coisa, de um termo de comparação, e não da coisa mesma, fazendo,

portanto, que, na relação ou na supressão dela, nada se altere no ser (FILHO, 2005, p.112).

Deus, segundo Boécio exerce com as outras pessoas da Trindade uma relação de

predicação, contudo essa multiplicidade da qual o autor cita não é uma diversidade em si, mas

exerce uma relação mesmo que essa predicação de relação, em Deus, exerça uma relação de

Deus para com Deus, na medida em que sabemos que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito

Santo são um. Contudo só é dito Pai por causa do Filho, o Filho por causa do Pai, e o Espírito

Santo, por causa do Pai e do Filho. Então a relação entre as pessoas da Trinitate, é uma

11

relação de substância, o que segundo Boécio, “[...] a inteligência humana só pode conceber

quando foge da realidade transitória, onde reina a alteridade total, e se eleva à realidade

formal de Deus (FILHO, 2005, p. 113)”.

Diz-se Pai segundo a sua relação com o Filho e se diz Espírito Santo segundo a relação

que este tem com o Pai e o Filho. Como a relação a algo não altera em nada os relacionados, a

não ser unicamente pela própria que relação que ambos têm em seu status de ser coisa

relacionada. A relação não se predica daquilo pelo qual é predicada, nem se predica segundo a

coisa pelo qual é dita. Portanto não produzirá alteridade nas coisas pelas quais se faz

predicada, fazendo com que nas potências divinas a predicação de relação seja apenas de

lugar. Segundo Boécio, devemos entender que de Deus nada adveio para que esse se fizesse

Pai, pois ele é eterno, nunca teve um começo, Deus é sempre, não num sentido de sucessão

temporal, dentro da qual ele permaneceria, mas num sentido de um agora eterno e imóvel.

Para Deus a produção do filho remete-se a um caráter substancial, ao passo que a predicação

de Pai é relativa.

Boécio pede para rememorarmos todas as sentenças sobre Deus e a partir delas somos

levados a considerar que Deus Pai é Deus, Deus Filho é Deus, Deus Espírito Santo é Deus, e

não contendo Deus alguma diferença que o distingue de Deus então a Trindade é Una. Sendo

una a Trindade, ou seja, não havendo diferença entre o Pai o Filho e o Espírito Santo, incorre

a impossibilidade de haver pluralidade. Onde não há pluralidade, há unidade. Ou dito de outra

forma, são um Pai, Filho e Espírito Santo, devido a substância que os compõem, uma vez que

onde não há diferenças substancias também não existe pluralidade. E se diz múltiplo devido à

categoria de relação, porque existe uma relação entre as pessoas da Trindade para que Deus

Pai possa ser chamado de Pai, Deus Filho de Filho e Deus Espírito Santo de Espírito Santo.

Por isso Pai, não é o mesmo que o Filho e/ou que o Espírito Santo, contudo Deus é

igualmente Pai, Filho e Espírito Santo, assim como as três pessoas da Trindade são

igualmente boas, justas, grandes.

Esse pensamento Boeciano esteve presente durante toda a Idade Média mancando

decisivamente junto com a filosofia aristotélica e platônica um modelo ímpar de se pensar a

relação entre fé e razão que até então não havia sido indagada. Entende-se assim por

escolástica, um método de pensamento e de ensino e como um conjunto de doutrinas.

Segundo Ruy Nunes, “[...] a essência da filosofia escolástica, foi anunciada por Boécio, ao

12

utilizar a filosofia no estudo da doutrina cristã no seu Opuscula Sacra (NUNES, 1979, p.

246)”.

Ocorre dizer que todo o pensamento dos séculos XI, XII, XIII e meados do século

XIV, estiveram estritamente ligados ao modelo escolástico de pensar e de estudar. No texto de

Grabmann, Die Geschichte der scholastischen Methode, ele nos fala sobre pensar a

escolástica como um método de pensamento e de ensino que surgiu e se formou nas escolas

medievais e se plasmou de modo inexcedível nas universidades do século XIII, máxime

através do magistério e das obras de São Tomás de Aquino. “O termo escolástica, porém,

significa ainda o conjunto de doutrinas literárias, filosóficas, jurídicas, médicas e teológicas, e

mais outras científicas, que elaboraram e corporificaram no ensino das escolas universitárias

do século XII ao século XV(GRABMANN,1957, apud NUNES, 1979, p. 244)”.

Tanto o pensamento boeciano como o aristotélico foram fontes de referencias para que

os estudantes e mestres do período áureo da Idade Média, defendessem suas teses sobre a

divindade, fé, religião cristã, etc., que compunham as características do pensamento

escolástico. Ruy Nunes, afirma que quando se considera o conjunto de doutrinas que o termo

escolástica abrange e quando se observa que é a filosofia a disciplina que exprime os seus

aspectos mais salientes. Segundo o autor, Grabmann diz que a escolástica é um modo de

pensar e um sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena como dom admirável de

que usufruímos para o nosso bem e para o nosso desenvolvimento pessoal e em que se admite

que o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existência terrena, uma vez que o

homem tem um fim supraterreno e eterno e o destino de uma vida interminável, sobre poder

crescer ainda neste mundo na vida sobrenatural que ele obtém através do batismo.

Todo o conhecimento medieval oferecido aos estudantes partia do método escolástico.

Os programas oferecidos aos estudantes consistiam em textos13, pois as leituras dos textos

permaneciam como a base do saber. Os textos eram divididos em áreas, tendo cada área a sua

auctoritas. Assim, Ruy Nunes expõe de acordo com o período medieval as autoridades de

cada área. Afirma esse autor que:

13 Segundo VERGER (1999), os livros no período medieval eram de difícil acesso, na maioria das vezes por questões financeiras, pois os livros tinham um alto valor. Segundo o autor do Homens e saber na Idade Média, o alto custo consistia principalmente pelo suporte. Para se fabricar um livro, havia a necessidade de se comprar uma grande quantidade de pergaminhos. Só no século XII que o papel chiffon se difundiu por toda a Espanha e no século XIII que esse tipo de artífice chegou à França. Embora foi apenas no século no século XIV e principalmente no século XV que o uso do papel se difundiu em grande escala.

13

A escola medieval é principalmente, no seu período áureo, a escola superior, a universidade; utiliza autores especiais, trabalha com os seus textos prediletos. Assim, as auctoritas em teologia é o ensinamento da Igreja, é o texto da Sagrada Escritura são as obras dos Santos Padres e as Atas dos Concílios. Em filosofia, são as obras de Aristóteles, os livros de Boécio e de Santo Agostinho, etc. Na área do direito, a auctoritas são os livros do Corpus Iuris Civilis, e em medicina, as obras de Hipócrates e Galeno, dos médicos árabes e judeus (NUNES, 1979, p.245).

Desta maneira os mestres e autores do período se amparam em textos e defendiam as

suas idéias. Contudo confiavam igualmente no poder da razão. Era por meio da razão que os

estudantes exerciam a quaestio disputata, tornando-se exercício praticado nas universitas14.

Segundo OLIVEIRA (2002), a disputa tinha uma função extremamente importante. A autora

nos coloca que o contexto no qual estava inserido a quaestio disputata, propiciava o estímulo

ao pensar, principalmente quando se tratava das questões teóricas. A autora do Considerações

sobre o caráter histórico da Escolástica, cita que não é por acaso, ou gratuito, pois, para que

os estudantes universitários viessem a tornar-se mestres mais tarde, precisariam discutir as

sentenças de Pedro Lombardo, fazendo com que os alunos deparassem-se com questões

peculiares de um douto escolástico com consistência e aplicações lógicas a doutrina sagrada.

A base para aprender lógica, filosofia, história, teologia, medicina na Idade Média é

clássica. Contudo a escolástica foi um método de pensamento próprio do mundo medievo.

Terezinha Oliveira (2002), afirma que diferente do que se é pensado pelos autores

renascentistas, a Idade Média nunca abandonou os textos das auctoritas clássicas, pelo

contrário, buscaram neles elementos que pudessem permitir aos homens o entendimento dos

fenômenos da natureza e das relações sociais15. Terezinha afirma que:

14 Segundo NUNES (1979), a disputa ou quaestio disputata, nasceu da lectio. A lectio era a primeira forma fundamental de ensinamento, processo básico que consistia na leitura dos textos das auctoritas. As disputas ocorriam preferencialmente no período vespertino, sendo sustentada pelos bacharéis, ou pelo próprio mestre, onde os alunos tinham a possibilidade de proporem objeções. Já a quolibet ocorriam apenas entre as páscoas e os natais. Esse último tipo de disputa era uma ocasião solene onde todos os mestres de teologia ou de artes sustentavam uma disputa em que os temas eram imprevisíveis. 15 De acordo com Terezinha Oliveira (2005), em O caráter histórico da Escolástica, p. 62-63, são dos clássicos que surge a possibilidade de apaziguamento dos conflitos de ordem política que existia no período medieval. Segundo a autora, os governos dos senhores feudais, as suceranias, não conseguem mais ordenar a vida agitada e turbulenta das cidades, tornando-se constantes os conflitos entre os senhores feudais e seus vassalos. Assim, Tomás de Aquino propõe a criação de um único governo para que pudesse intermediar e conduzir as leis. Para esse feito, o Aquinate retoma Aristóteles, defendendo de forma contundente a necessidade de um governo único, assim como existe no mundo um único Deus que tudo criou e tudo ilumina toda a sua criação, para permear e reordenar a vida do presente.

14

[...] a Idade Média não abandonou a sabedoria antiga, como os pensadores do renascimento colocaram, mas buscou recuperá-la. Isto está patente, no período carolíngio, no século X, com as peças de Monja Roswita. Em sua peça Sabedoria, ela retoma Tertuliano, autor pagão do século III. Nos séculos XII e XIII, temos a retomada, no Ocidente, das obras de Platão e Aristóteles (OLIVEIRA, 2002, p.52. Grifos nossos).

Portanto, se ainda se tem em mente o equívoco de que os clássicos se perderam

durante a Idade Média, retornando com vivacidade apenas no período renascentista do século

XVII, é porque autores desse gênero, não veem a história, assim como vemos o tempo que, a

saber, é uno e contínuo, não possuindo choques turbulentos de uma tendência à outra, contudo

possuem períodos de translatio que permeiam e definem ao longo do tempo o período

histórico. Ao contrário, trazem em si uma postura positivista e dogmática quanto ao tempo

histórico.

Enfim, deve-se ver que no período em questão, não há uma ruptura entre a

Antiguidade e a Medievalidade, como também não haverá entre o mundo medievo e o período

renascentista. Entender que o mundo clássico não se desliga totalmente e abruptamente com o

surgimento do medievo, possibilita entender a história a partir de uma visão mais ampla e

menos dogmática as críticas em relação à Idade Média quando a vemos por meio teóricos do

Renascimento, pois, assim também ocorrerá com o último período, não se desligará de forma

assaz dos traços medievais.

REFERÊNCIAS

BOÉCIO, Escritos (Opuscula Sacra) Tradução, estudos introdutórios e notas de Juvenal

Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BLOCH, Marc. Introdução aos Estudos Históricos. Trad. Maria Manuel Miguel e Rui Grácio.

Europa-América, 1886.

BROW, Peter. O fim do Mundo Clássico. Lisboa: Verbo, 1972.

FRANCO, J. Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2005.

LAUAND, J. Luis. (Org.). Cultura e Educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes,

1998.

LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

LE GOFF, Jacques. A História Nova. Lisboa: Edições 70, 1978.

NUNES, Rey. História da Educação na Idade Média. São Paulo: EDUSP, 1979.

15

OLIVEIRA, Terezinha. (Org.) Luzes sobre a Idade Média. In: A Universidade Medieval

(Luís Alberto de Bonni) – Maringá: Eduem, 2002.

VERGER, Jacques. As Universidades na Idade Média. São Paulo: UNESP, 1990.

___________. Homens de Saber na Idade Média. Trad. Carlota Boto. Bauru- SP: EDUSC, 1999.