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A invenção da italianidade no Brasil: contribuição para um olhar descontínuo
Carlos Eduardo Bao1
Resumo:
A italianidade é um fenômeno em evidência no Brasil, especialmente após a década de 1980.
No entanto, tal identificação étnica remonta a relações sociais e tramas históricas prenhes de
ações de invenção, instituição e consagração de determinado conjunto de valores morais,
usos e costumes atribuídos aos italianos/as imigrados e seus descendentes. Tais ações
precipitaram representações muitas vezes destoantes e desencontradas entre si acerca de uma
suposta “italianidade”, evidenciando não apenas as heterogeneidades, fragmentos e
descontinuidades do contingente populacional que foi identificado e identificou-se
historicamente como de ítalo-brasileiros, mas igualmente os agentes envolvidos na invenção e
fomentação dessa representação. Entre eles, veículos da imprensa, consulado italiano, igreja
católica, instituições escolares e associações étnicas, encontros das chamadas “parentelas” e
obtenção da dupla-cidadania foram/são algumas das ações e espaços sociais fomentados no
sentido da instituição e consagração do imaginário da italianidade no Brasil, mormente nas
ditas colônias do sul.
Palavras-chave: Italianidade; Identificações étnicas; Representações sociais.
Introdução
A proposta do texto é apresentar subsídios que contribuam para uma abordagem crítica
da representação de “italianidade”, (re)inscrevendo os elementos de heterogeneidade
constituintes da experiência histórica da invenção da italianidade no Brasil – especialmente
nas três unidades federativas que compõem o sul2 – e evidenciando os principais agentes na
invenção histórica da italianidade, assim como seus respectivos espaços de ação.
Especialmente a partir da segunda metade do século passado assistimos ao fragor de
um sem número de “identidades culturais”, propagadas em geral pelos meios de comunicação
abrangentes e sofisticados que imperam na contemporaneidade. Essas “novas identificações”
1 Autor do presente artigo. Doutorando no PPG em Sociologia Política - UFSC. Bolsista CAPES. 2 “Historicamente, as regiões podem ser pensadas como a emergência de diferenças internas à nação, no tocante
ao exercício do poder, como recortes espaciais que surgem dos enfrentamentos que se dão entre os diferentes
grupos sociais, no interior da nação. A regionalização das relações de poder pode vir acompanhada de outros
processos de regionalização, como o de produção, o das relações de trabalho e o das práticas culturais, mas estas
não determinam sua emergência” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 25-26).
2
representam os mais variados grupos sociais, podendo em alguns casos assumir aspectos
políticos explícitos como o chamado movimento negro e o feminismo.
Em termos antropológicos a “italianidade” corresponde à “identidade étnica” atribuída
aos italianos/as e seus descendentes – nesse caso, no Brasil. Como tal, também é uma
construção social, sobretudo discursiva inserida nesse amplo movimento de constituição,
valorização e positivação de identidades culturais promovidas por diversos grupos nas últimas
décadas. Por outro lado, em termos sociológicos, a italianidade também pode ser
compreendida como “[...] um movimento de defesa e de conservação do complexo
sociocultural econômico-político da sociedade colonial, além de ser uma tentativa de manter
laços afetivos, políticos e econômicos com a metrópole de origem” (apud OTTO, 2006, p.
30).
Segundo Colognese (2004) há três elementos centrais nas representações identitárias
dos imigrantes italianos e seus descendentes no sul do Brasil: a família (patriarcal), a religião
(católica) e o trabalho (como ética da dignidade moral e ascensão social). Bíscoli (2004, p.
54) destaca que nas chamadas colônias de imigrantes de Santa Catarina e do Rio Grande do
Sul “criou-se um determinado estilo de vida, baseado em valores calcados no catolicismo, na
ética do trabalho, na propriedade de terra, e na família como determinante das práticas
sociais”. Esses elementos contribuíram decisivamente para a conformação do imaginário3
identitário da italianidade entre os imigrantes. A ascensão social, desejada sempre para si e
para as próximas gerações, viria através da coesão da família como unidade produtiva e na
ética do trabalho como fonte de promoção da subsistência e na moral religiosa católica,
caracterizando o que Bhabha (2003) chama de uma ação “pedagógica”, voltada para a
inculcação de determinadas concepções de mundo.
De acordo com Hall (2000) os sujeitos são suscetíveis aos mecanismos de pensamento
e de ação típicos do tempo-espaço no qual se encontram inseridos. Nesse sentido, as
3 Para efeitos desse texto considero os conceitos de “representação” e de “imaginário” como sinônimos, pois
“trata-se de um conjunto de discursos e enunciações que formam imagens, símbolos, sonhos, aspirações,
fantasias e emoções que são compartilhadas por determinado grupo de pessoas para ativar certas representações
e estabelecer sentidos comuns acerca dos fatos que atravessam a vida cotidiana. Nesse sentido [...] o ‘imaginário
social’ pode ser considerado como ‘um campo de disputas pelo poder’, sobretudo nos momentos de ‘mudança
política ou social’, quando ‘os projetos identitários estão se diversificando’”. (CARNIEL, 2013, p. 129)
3
identidades culturais referem-se a “[...] concepções mutantes do sujeito humano, visto como
uma figura discursiva” (HALL, 2000, p. 23). Isso também ocorre com as identidades étnicas,
sempre pautadas em valores que versam acerca de supostas “origens comuns” e muitas vezes
também em tradições inventadas no forjar do Estado-nação (HOBSBAMW; RANGER,
1997).
As classificações dos vários grupos sociais, suas identificações próprias, o discurso
sobre elas e suas respectivas nomeações são consideradas um fenômeno fundamentalmente
social. Portanto, situado no tempo e no espaço, não essencialista e sujeito à constante
negociação no interior dos mais diversos espaços de poder que eventualmente compõem a
ordem social de cada grupo, comunidade ou sociedade em particular. Tanto “italiano” como
“brasileiro” assim como “árabe” ou “americano” são construções sociais que delimitam
fronteiras, inclusões e exclusões entre os vários grupos que se relacionam.
Os grupos étnicos (BARTH, 1998) constituem memória ancorada numa narrativa de
fundo histórico, onde os fatos e acontecimentos são apropriados e significados, isto é, passam
a fazer sentido dentro de certa ordem discursiva e realimentam as representações de mundo
dos sujeitos. Como salienta Ecléa Bosi (1987, p.17), “a lembrança é uma imagem construída
pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que
povoam nossa consciência atual”.
Entre as ações sociais historicamente voltadas para a promoção e consagração de uma
“italianidade” temos as associações étnicas de italianos, as escolas italianas (como a Dante
Alighieri), os jornais italianófilos, a igreja católica – sobretudo os franciscanos – e o
consulado italiano no Brasil. São todas elas tentativas mais ou menos organizadas de
promover o engendramento de uma “italianidade” no Brasil, com maior ênfase no sul do país.
Por meio dessas ações criou-se a representação de que à italianidade corresponderia
determinado conjunto de valores, usos, costumes e práticas específicas atribuídas a certa
população com características socioculturais em comum, isto é, aqueles que podem ser
considerados como italianos ou descendentes por nascimento (jus soli) ou sangue (jus
sanguinis). Acontece que esses grupos amiúde não são homogêneos como quer o discurso
sobre eles, como é o caso dos imigrantes italianos e sua prole no Brasil.
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Em geral os imigrantes não se reconheciam entre si como italianos durante a grande
imigração em fins do século 19. Eram trentinos, vênetos, piemonteses, sardenhos, toscanos
(etc.), emigravam de um Estado recém unificado. Generalizados no estereótipo “italianos” no
Brasil, passaram a se reconhecer como tais e desenvolver formas de solidariedade étnica e
associativismo facilitados pela proximidade linguística e cultural (COLOGNESE, 2004).
Portanto, em um primeiro momento, a italianidade no Brasil foi fruto do contato entre
determinados grupos e da consequente criação de fronteiras simbólicas entre eles.
De acordo com Barth (1998) essas identificações são o resultado da relação entre as
hetero-identidades (definidas pelos outros) e as auto-identidades (definidas por si mesmo),
onde a etnogênese dos grupos étnicos é marcada pela criação e convencionalização de sinais
diacríticos próprios.
Portanto a etnicidade, compreendida como expressão de pertencimento a determinado
grupo étnico, demarca fronteiras que permitem a diferenciação das pessoas segundo
determinado imaginário social. Essas fronteiras são erigidas por meio da apropriação de
sentidos que demarcam os limites do “dentro” e do “fora”, como o local de nascimento e a
“consanguinidade” ou o parentesco. De acordo com Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p. 38),
podemos considerar a etnicidade, meio de identificação cultural que remonta às supostas
origens comuns de um “povo”, como
[...] um tipo particular de grau social que se alimenta de características
distintas e de oposições de estilos de vida, utilizadas para avaliar a honra e
o prestígio segundo um sistema de divisões sociais verticais. Mas essas
características distintivas só têm eficácia na formação dos grupos étnicos
quando induzem a crer que existe, entre os grupos que existem, um
parentesco ou uma estranheza de origem.
No caso do Brasil a invenção da italianidade é um fenômeno histórico dotado de
peculiaridades regionais. Abaixo discorro acerca do histórico da italianidade e alguns de seus
contrastes sociais, culturais, econômicos e políticos fundamentais para a configuração de suas
fronteiras internas, com ênfase nas peculiaridades que constituem a chamada região sul do
país.
5
Apontamentos históricos acerca da italianidade
Os séculos 19 e 20 assistiram a grandes deslocamentos internacionais de população,
sobretudo dos países que compõem a Europa para outros continentes. No período que vai do
século 19 – basicamente após 1822 – até 1974, de acordo com Ianni (2004, p.140), o Brasil
recebeu em torno de 5 milhões de imigrantes, dos quais um milhão e meio provenientes da
Itália.
No que tange aos motivos que promoveram a “grande imigração” de italianos no
Brasil temos, por um lado, a procura por melhores condições de vida causada pela instável
situação social, econômica e política da Itália devido à expansão do capitalismo; por outro
lado, as demandas nacionais brasileiras que poderiam supostamente ser sanadas com a
inserção desses estrangeiros, como a diversificação das atividades de trabalho nas cidades, o
emprego da força de trabalho no campo e a instalação de colônias de imigrantes (pequena
propriedade rural), em sua maioria no sul. Além disso, a política imigratória nacional também
continha uma forte tendência eugenista, onde os imigrantes europeus representavam um
branqueamento da população nacional e sua possível redenção do “atraso” causado pela
miscigenação4.
Houve forte propaganda brasileira na Itália onde “os imigrantes haviam sido movidos
a emigrar pelo imaginário de uma vida edênica existente na América e pela fortuna prometida
pelos agentes de Caetano Pinto” (OTTO, 2005, p. 226). De acordo com Santos (1998, p. 75),
o decreto n° 5.663 de 17 de junho de 1874 firmou contrato entre o Governo Imperial do Brasil
e o senhor Caetano Pinto Júnior:
O contrato em seu teor era claro, no tocante à origem dos contingentes que
deveriam ser contatados: “alemães, austríacos, suíços, italianos do norte,
bascos, belgas, suecos, dinamarqueses e franceses” e quanto às suas
qualidades, exigia que fossem agricultores sadios, laboriosos e moralizados,
chefes de família, maiores de 45 anos.
4 Em termos biogenéticos a eugenia é compreendida como o controle das faculdades físicas e mentais dos seres
humanos a partir de técnicas científicas. Em termos sociológicos, é um processo de segregação e genocídio de
determinados grupos sociais. Para informações gerais acerca do eugenismo, especialmente no caso brasileiro, cf.
MACIEL (1999).
6
O mito da “terra prometida” e do paese di cucagna também aguçavam os ânimos
sociais com relação à emigração. O mito da cocanha, ou do “[...] 'mundo novo' incorpora a
ideia de uma nova realidade, de um espaço novo e diferente […], sem regras e controles, onde
tudo é permitido” (SANTOS, 1998, p. 72-73). No imaginário dos emigrantes a cucagna, ou
“cocanha” é tida como um mito não no sentido de algo ilusório, mas como um fato que
ocorreu num tempo imemorial.
O Império pretendia dar sequência – pois já havia imigrantes alemães assentados
desde os anos 1820 – à obra de “colonização” das ditas “terras devolutas” no sul do país, isto
é, garantir a soberania sobre aqueles territórios, assim como mesclar a estrutura fundiária do
grande latifúndio com a pequena propriedade devido a interesses da própria elite. De Boni e
Costa (1979, p. 223) ressalvam que a pequena propriedade no Sul não foi uma conquista
popular, mas “[...] uma concessão das classes dominantes, latifundiárias para com os
estrangeiros, tendo como finalidade salvar os interesses da grande lavoura”. Além disso, havia
interesse na força de trabalho desses indivíduos nas lavouras de café e (posteriormente) nas
emergentes indústrias do país. Não menos importante foi a política de eugenia praticada pelo
governo imperial e legitimada por intelectuais brasileiros (e estrangeiros, como o Conde de
Gobineau):
[…] pretendia-se criar novas condições econômicas, políticas e sociais,
formando uma mentalidade que permitisse ao país superar todos os
obstáculos decorrentes de sua formação inicial, sustentada pelo tripé:
latifúndio, monocultura e escravidão. (HERÉDIA, 2005, p. 298)
Embora tenham emigrado com o sonho da prosperidade na bagagem muitos
imigrantes se viram, aqui, desiludidos. Além das péssimas condições enfrentadas nas viagens
ultramarinas, da morte de familiares e companheiros e do desamparo experimentado por esses
sujeitos durante o trajeto internacional, ao desembarcarem no Brasil, muitos se perdiam dos
familiares e eram enviados a regiões geográficas diferentes e distantes. Entre a América
imaginada e a experiência concreta da imigração italiana houve espaço para muitos
descontentamentos e frustrações. A emigração para o Espírito Santo, por exemplo, foi
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proibida na Itália em 1895 devido às más condições do transporte, da recepção e da instalação
dos/as imigrantes (DADALTO, 2005, p. 317).
Houve diferenças significativas entre a imigração para força de trabalho nas lavouras,
nos centros urbanos e para o povoamento de territórios nas matas. No caso do sul, os/as
imigrantes destinados às colônias agrícolas integraram uma dinâmica social distinta daquela
experimentada por aqueles instalados nas fazendas de café e/ou nas cidades. Esses últimos
viviam como estrangeiros em meio à multidão, em contato direto e intenso com o “outro”
não-italiano. Assim como os trabalhadores das fazendas, compartilhavam em grande medida o
desejo de acumular dinheiro e retornar para o local de origem após algumas temporadas.
Já o imigrante colonizador que obteve terras não viveu esse contato cultural intenso na
cidade, assim como não alimentava a esperança de retornar à Itália com a família toda em
definitivo. Em alguns casos havia adquirido altas dívidas com empresas colonizadoras e/ou
com o governo brasileiro; em outros, carregava o carimbo de “sem retorno” em seu
passaporte, condição prévia para aprovação de sua saída da pátria mãe. Portanto esses
pensavam, isto sim, em “criar raízes” no Brasil – ou, em todo caso, de fixar-se nesse território
–, em colônias cujo complexo cultural desses sujeitos seria reintegrado à vida ordinária e
cotidiana neste novo contexto (o que marcaria distinções radicais de identificações entre os
próprios “italianos”). Para Herédia (2005, p. 301), no que diz respeito ao Brasil, “a grande
diferença entre as políticas do processo de imigração e de colonização era que do primeiro
alterava o regime de trabalho e do segundo o regime de propriedade”.
Além de alterar a estrutura econômica do país, esse modelo imigratório moldou
profundamente a subjetividade coletiva de duas ou três gerações de imigrantes italianos e seus
descendentes. Não menos afetados foram os imigrantes dirigidos a São Paulo, Minas Gerais,
Espírito Santo, e aos estados do norte em geral5.
Enquanto os imigrantes destinados às lavouras de café e, mais intensamente, os
instalados nos centros urbanos inseriam-se paulatinamente na sociedade nacional, a
concentração de grupos em colônias agrícolas contribuiu para seu quase isolamento da
população nacional. Essa trama torna múltiplas e desiguais as experiências da italianidade no
5 Para maiores informações acerca da participação de italianos em outras regiões do Brasil, assim como na
esfera política do país, conferir a obra de Trento (1988).
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Brasil. Embora o discurso da italianidade remeta a um conjunto de valores a uma suposta
origem comum, como veremos adiante, na realidade tenciona o forjamento de uma
homogeneidade absolutamente discutível.
A “colônia italiana” no Brasil foi desde sempre bastante fragmentada e relativamente
heterogênea. As diferenças entre os/as italianos imigrados referem-se não apenas aos
“dialetos” que falavam e aos usos e costumes mais cotidianos, mas também aos espaços de
inserção social e, não menos, aos pertencimentos de classe. Por isso, desde o início “[...] as
hipóteses favoráveis à formação de 'baluartes da italianidade' partiam de premissas
absolutamente inexistentes e irrealizáveis, ou seja, da negação e qualquer tipo de conflito no
seio da colônia” (TRENTO, 1988, p. 159).
Os vilarejos de Conde D'Eu (atual Garibaldi) e de Dona Isabel (Bento Gonçalves) “[...]
foram as primeiras colônias provinciais [de italianos] a serem organizadas no ano de 1870,
criadas pelo Ato de 24 de maio daquele ano pelo presidente da província João Sertório”
(HERÉDIA, 2005, p. 302).
Não obstante, as colônias agrícolas de imigrantes italianos no sul mantiveram certa
estrutura comum de sociabilidade e “economia étnica” devido ao isolamento desses núcleos
coloniais. Ainda assim não havia, mesmo nesses núcleos, uma unidade étnica completamente
coesa devido a outras formas de distinção vigentes como a política, a religião, a classe social,
o gênero, as gerações e mesmo a língua, subdividida em “dialetos”. A própria representação
da “italianidade” não é concisa, dependendo das posições sociais dos sujeitos envolvidos. As
representações sobre a “Itália”, por exemplo, estavam associadas a qual país: a Itália na pré-
unificação ou já unificada? Nesse sentido, seria uma cultura “tradicional” ou “moderna”
(etc.)? A língua standard, promovida com a unificação política italiana, acaso era a língua
falada pelos diversos emigrantes durante o século 19 assim como passou a sê-la no 20?
Com a instauração da República o governo brasileiro passou a incentivar a imigração
espontânea, que não era tão financeiramente onerosa quanto a dirigida. No Rio Grande do Sul,
entre 1908 e 1914, o Estado firmou acordo com a União, interessado em regularizar essa
corrente imigratória. Todavia, com o encerramento do convênio, voltava “[...] ao regime de
imigração e colonização espontânea, sendo pago um lote de 25 hectares, um terço à vista e o
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restante no prazo de cinco anos” (CENNI, 2003, p. 154), fazendo com quê os imigrantes
fossem para outras regiões em Santa Catarina e no Paraná.
Durante o século 20 a imigração e mesmo a migração de italianos e seus descendentes
se mantém regular até 1937, quando se inicia uma repressão aberta do Estado Novo contra a
liberdade de sujeitos que expressassem alguma origem ligada aos países do Eixo (Alemanha,
Itália, Japão). Após o fim da Guerra e da repressão interna, no ano de 1948 o Brasil restaurava
a liberdade imigratória total. Porém, embora tenha havido um determinado contingente de
imigração de italianos/as, suas características já não eram as mesmas. Os novos imigrantes
italianos apresentavam consciência política mais acentuada. Não aceitavam as condições
impostas aos imigrantes do passado. Em muitos casos isso causou animosidade por parte dos
antigos imigrados, especialmente devido a certa desconfiança com relação aos compatriotas
italianos, mais céticos e individualistas que os de outrora.
Com a redemocratização do país, após o período ditatorial, percebe-se uma
“efervescência étnica” entre os descendentes de italianos voltada, sobretudo, para a
fomentação de atividades culturais que promovam a valorização da italianidade. Ações como
o encontro de parentelas italianas, a obtenção da dupla cidadania ítalo-brasileira e a criação de
diversas associações étnicas de italianos/as e descendentes, entre outras atividades, são
evidência disso (COLOGNESE, 2004; COLOGNESE; ROSSI, 2007; COLOGNESE; ROSSI,
2009).
Indícios de invenção da italianidade
As representações sociais constituem-se em espaços de negociação entre os sujeitos
envolvidos em determinadas tramas históricas. As realidades sociais configuram-se (também)
por meio de processos de elaboração e institucionalização de determinadas representações que
surgem num dado ponto do tempo/espaço e são (re)apropriadas ao longo das gerações. As
representações convencionalizam e tendem a naturalizar determinadas realidades, servindo
como reguladoras e condicionantes das trocas sociais e atingindo o efeito de “verdade” sobre
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os sujeitos. Por isso é possível afirmar que “[...] as representações constituem, para nós, um
tipo de realidade” (MOSCOVICI, 2009, p. 36).
A invenção da italianidade deixou indícios na história, por isso é possível mapearmos
determinados espaços e tempos em que os discursos acerca dessa representação étnica
aparecem com certo relevo e contribuem para evidenciar as estratégias de consagração dessa
representação e as intersubjetividades envolvidas na trama. Segundo Bourdieu (2008, p. 100):
a instituição de uma identidade, que tanto pode ser um título de nobreza ou
um estigma [...], é a imposição de um nome, isto é, de uma essência social.
Instituir, atribuir uma essência, uma competência, é o mesmo que impor um
direito de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a
alguém o que ele é, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem de se comportar
em função de tal identidade.
Historicamente podemos perceber de que maneira a italianidade foi sendo
paulatinamente inventada, especialmente no sul do Brasil, por parte de pessoas interessadas
em sua consagração e notoriedade. Entre os segmentos sociais mais evidentes destacamos a
imprensa italianófila, as associações étnicas, o consulado italiano no Brasil e a Igreja católica.
A imprensa italiana no Brasil foi atuante nas tentativas de engendramento de uma
unidade étnica entre os imigrantes ítalos. Não há dúvida sobre a extensa lista de periódicos
italianófilos orientados desde meados do século 18 nesse sentido6. Entretanto, a quantidade de
informativos da imprensa italiana foi tão vasta e sortida quanto efêmera. A maioria dos
periódicos logo desaparecia.
Nesse sentido, os jornais italianófilos produzidos e destinados aos núcleos
coloniais italianos veicularam discursos cujo objetivo era a construção de
um imaginário social acerca da grandeza e do valor da pátria italiana, bem
como de seus heróis, principalmente no período da Primeira Guerra
Mundial. (OTTO, 2006, p. 100)
6 Segundo consta em Trento (1988, p. 184), o primeiro jornal italiano editado no Brasil “[...] apareceu pela
primeira vez no Rio de Janeiro” em 1765. Era uma publicação religiosa chamada “La croce del sud” (Cruzeiro
do Sul).
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Embora a pátria italiana tivesse desassistido aos imigrantes durante toda a primeira
fase da imigração (1870-1914), o período entre guerras foi prenhe de ações nacionalistas por
parte da Itália, que procurava instituir uma ideologia fascista entre os italianos no Brasil.
Surgiu e expandiu-se um sentimento de redenção da Itália, projetando certa correlação entre a
italianidade e o fascismo. Isso chamou a atenção do governo brasileiro que, já preocupado
com a questão étnica estrangeira em solo nacional, passou a decretar leis para conter essa
expansão ítala nas fronteiras internas do Brasil. Exemplo disso é a nacionalização (e/ou
fechamento) das escolas estrangeiras no Rio Grande do Sul em 1937 e, no ano seguinte, a
proibição do ensino de línguas estrangeiras (leia-se italiano e alemão) nas escolas para
crianças com menos de quatorze anos, assim como a proibição da fala da língua italiana.
No período que antecede a repressão durante o Estado Novo a educação escolar foi
bastante atuante como mecanismo de invenção da italianidade. Tanto as escolas paroquiais
dirigidas pelos padres franciscanos quanto as escolas laicas, caso da Dante Alighieri, eram
espaços de invenção da italianità. Mesmo após a proclamação da República, quando o
catolicismo deixa de ser a doutrina religiosa oficial do Estado, há “o empenho dos padres
estrangeiros em manter as escolas paroquiais e moldar as novas gerações [...] contrapondo-se
às escolas estatais” (OTTO, 2006, p. 61).
As escolas voltadas à “cultura italiana” serviam como núcleo extra familiar de
socialização dos indivíduos, ou seja, eram espaços de inculcação de valores morais, de gostos,
visões de mundo, representações... Em uma palavra: de identificações, no caso, o que se
nomeia por “italianidade”.
Todavia, é necessário ressaltar a existência de divergências na
compreensão do significado de italianidade. […] A elite italiana tinha em
mente a Itália unificada, ao passo que os padres italianos, assim como os
colonos, tinham em mente os lugarejos natais que os vinculavam à
lembrança de um modo de prática do catolicismo, ou seja, de ser italiano.
(OTTO, 2006, p. 80)
Além dos padres os agentes consulares investiam já naquela época, como ainda hoje,
em estratégias de invenção e engendramento da italianidade no Brasil. Não obstante, nesse
quesito de importação da italianidade pelas autoridades consulares no Brasil, houve um hiato
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entre a fomentação de uma italianidade em moldes nacionais italianos e a recepção entre
coletividades regionais, desconhecedoras dos símbolos eleitos como centrais para a
constituição de uma exclusiva italianidade nacional-moderna-liberal. Frequentemente os
padres e os agentes consulares entravam em conflitos com relação aos valores “reais” da
italianidade. Dessa forma, assim como os jornais (imprensa), as escolas e os padres, o
consulado foi pródigo em suas “tentativas da fazer italianos” (OTTO, 2006, p. 99).
Acerca disso é curioso lembrar que em 1889 houve uma maciça campanha de
concessão da nacionalidade brasileira para todos os estrangeiros. Entre os italianos apenas 5%
não aderiram à cidadania brasileira, número que foi ainda mais baixo entre os imigrantes
situados nas colônias do Sul (TRENTO, 1988). Os imigrantes já em fins do século 19
passaram por um processo de integração na sociedade nacional, iniciando-se com o
reconhecimento de seus direitos políticos e sociais, sua cidadania. Culturalmente, entretanto,
as representações desses sujeitos continuaram a ser moldadas no interior de uma lógica
identitária vinculada ao país de origem. Isso pode ser visto no termo “ítalo-brasileiro” que,
assim como o “teuto-brasileiro”, trata-se de uma invenção (VOIGT, 2008).
Outro espaço de invenção e consagração da italianidade foram/são as associações
étnicas. De acordo com Colognese (2004), num primeiro momento histórico as associações,
mais comuns em grandes centros como São Paulo, foram marcadas pela dinâmica da ajuda
mútua entre os imigrantes. Eram as chamadas casi di beneficenza (casas de beneficência).
Essas associações foram todas fechadas durante o período da Segunda Grande Guerra devido
à repressão do Estado Novo e respectivo nacionalismo. As que foram reabertas após a
restauração da paz e as que passaram a surgir então mudaram sensivelmente suas atividades,
agora não mais no sentido de uma ajuda mútua, mas no de promoção da italianidade –
possivelmente uma consequência direta da repressão. Entretanto, já enfraquecidas devido à
opressão dos anos de guerra, as tentativas de engendramento de novas ordens associativas não
obtiveram êxito em engendrar uma unidade étnica. Mesmo os grupos organizados em torno
das associações nunca promoveram de fato ações relevantes nesse sentido. Prova disso é o
fato de nunca ter havido uma “confederação nacional de italianos” no Brasil.
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A partir da década de 1980 houve uma retomada nas manifestações de italianidade,
especialmente devido à abertura política do Brasil e à concessão do jus sanguinis pelo Estado
italiano. Essa nova dinâmica social e política gerou uma efervescência étnica (COLOGNESE,
2004) entre os descendentes de italianos e reinseriu a italianidade na pauta das identidades
culturais em evidencia no interior das fronteiras do Estado Nacional Brasileiro e daquele
movimento contemporâneo de afirmação de identidades culturais apresentado na introdução
do texto.
Os fatos apresentados evidenciam indícios de que a identidade étnica é uma invenção,
sujeita a disputas, negociações e relações de poder, isto é, que como representações são fruto
de relações sociais, nunca uma essência verdadeira e imutável, mas sempre formas de
interação, consenso, conflito e intersubjetividades. Em suma, que não há identidades, mas
identificações.
A italianidade foi constituída por meio de experiências sociais e históricas marcadas
por diferenças e conflitos internos, consonâncias, dissidências continuidades e
descontinuidades. Procurei destacar que, em suma, “[...] os agentes da italianidade exerceram
um poder simbólico, isto é, tentaram fazer grupos com palavras [utilizando] […] o discurso
acerca da etnia como estratégia nas disputas pela construção de sujeitos” (OTTO, 2006, p.85).
Contudo, creio que seja mais prolífico pensarmos em italianidades no plural,
evidenciando sempre o movimento de invenção da etnicidade em questão e reconhecendo
seus fragmentos internos, seus conflitos constituintes e sua contemporaneidade, isto é, sua
existência como algo atrelado ao presente e não à narrativa de um passado romantizado ou de
uma origem comum reveladora.
Consideração finais
Indicar as descontinuidades no processo de instituição e consagração de determinada
representação exige uma inflexão histórica aguçada. Como o pensamento científico não
prescinde à classificação e à ordenação para poder explicar há uma proporcional tendência à
generalização e, algumas vezes, à essencialização e naturalização das relações sociais e das
narrativas históricas. Pensar o descontínuo é tomar as identificações não como uma essência,
14
ou como um processo linear que tem uma base sui generis garantida por elementos como
consanguinidade, fenótipo, língua e demais elementos culturais, mas como construções
sociais dispostas no tempo-espaço.
Nesse sentido, a italianidade é uma invenção e, como tal, precisa ser constantemente
realimentada, pois (re)apropriada pelos sujeitos no tempo presente com base em discursos
voltados ao passado – processo da memória. Além disso, muito embora o discurso sobre a
italianidade o proponha, tal representação não pode ser homogênea, especialmente no
contexto de um país como o Brasil, como procurei apresentar.
Evidenciar as negociações sociais envolvidas e os elementos residuais que explicitam
a conformação social de qualquer identificação por meio da evidenciação de seus fragmentos
internos, de suas saliências, rupturas e descontinuidades proporciona um potencial heurístico
acentuado, permitindo-nos investigar as italianidades no plural e na trama histórica.
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