a invencao do nordeste (intro e conclusao)- durval

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~ - ; I ' I ~ I I ' :  I ~ S T U D O S  E PESQUISAS, 104 Durval Muniz de Albuquerque Jr. N'IO cnconlrando este livro nas livrarias, favor dirigir-se a: hillora Massangana RU<lS Dois Irrnaos, 15 - A pi pu co s ')2071-449 - Recife - Pernambuco - B ra si l TL'1cfone (081) 441-5900, rarnais 240, 241 e 242 Tclcrax: (081) 441-5458 End. etel.: http://www.fundaj.gov.br E-mail: [email protected] Cortez Editora Rua Bartira, 387 - Perdizes 05009-000 - Sao Paulo - SP A INVENCAO 'I'd: (011) 864-0111 - Fax: (011) 864-4290 E-mail: [email protected] DO NORDESTE . ~  Foi feito 0 deposito legal e outras artes 'I 1'1  ,,,p3 ~ ~ > C 4  Albuquerque Junior, Durval Muniz de A invenc;ao do Nordeste e outras artes 1 Durval Muniz de Albuquerque JCmior; prefacio de Margarcth Rago. Recife: FJN, Ed. Massangana; Sao Paulo: Cortez, 1999. 340p.il. (Estudos e pesquisas, 104) lnclui bibliografia ISBN 85-7019-323-8 Massangana ISBN 85-249.0705-3 Corlez I. IIISTOR1A SOCIAL-BRASIL, NORDESTE. I. Titulo IT. Scrie ('I){ I 308(091)(812/814) Prefacio de ,'- Margareth Rago &¥J' Recife Funda<;ao Joaquim Nabuco Editora Massangana Sao Paulo Cortez Editora ~ ' " : ' C I / J 1 ' , . . } ~  , , ~  - - . . ~  ~ , ~ /  ~ - 1999

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~ - ; I ' I ~ I I ' :   I ~ S T U D O S   E PESQUISAS, 104

Durval Muniz de Albuquerque Jr.N'IO cnconlrando este livro nas livrarias, favor dirigir-se a:

hillora Massangana

RU<lS Dois Irrnaos, 15 - Apipucos

')2071-449 - Recife - Pernambuco - Brasi l

TL'1cfone (081) 441-5900, rarnais 240, 241 e 242

Tclcrax: (081) 441-5458

End. etel.: http://www.fundaj.gov.br

E-mail: [email protected]

Cortez Editora

Rua Bartira, 387 - Perdizes

05009-000 - Sao Paulo - SP A INVENCAO' I 'd: (011) 864-0111 - Fax: (011) 864-4290

E-mail: [email protected]

DO NORDESTE. ~   Foi feito 0 deposito legal

e outras artes'I 1'1  ,,,p3 ~ ~ > C 4  

Albuquerque Junior, Durval Muniz de

A invenc;ao do Nordeste e outras artes 1 Durval Muniz de

Albuquerque JCmior; prefacio de Margarcth Rago. Recife: FJN,

Ed. Massangana; Sao Paulo: Cortez, 1999.

340p.il. (Estudos e pesquisas, 104)

lnclui bibliografia

ISBN 85-7019-323-8 Massangana

ISBN 85-249.0705-3 Corlez

I. IIISTOR1A SOCIAL-BRASIL, NORDESTE. I. Titulo IT. Scrie

( ' I ) { I 308(091)(812/814)

O· Prefacio de, '-

Margareth Rago&¥J'

Recife

Funda<;ao Joaquim Nabuco

Editora Massangana

Sao Paulo

Cortez Editora

~ ' " : ' C I / J 1 ', . . } ~   .. , , ~  - - . . ~  ~ , ~ /  ~ -

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Sumario

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Prefacio: Sonhos de Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Introdw;ao 19

I. GEOGRAFIA EM RUINAS 39

() olhar regionalista 40

() novo regionalismo 471\ literatura regionalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 51

Norte versus Sui . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 57

1/. ESPA<;:OS DA SAUDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

1'llIcdos da tradi<;ao 65

1\ inven<;ao do Nordeste 68

1';'lginas de Nordeste 106

l'inceladas de Nordeste 145

1\ Il1lisica do Nordeste 151

(\'nas de Nordeste 164

III. TERRITORIOS DA REVOLTA 183

1\ inversao do Nordeste 183

() s argumentos da indigna<;ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 207

()lIadros de miseria e dol' . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 242

lillagcns que cortam e perfuram 251

NI)VOS pianos do olhar 263

( 'one lusao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 305

l\ihliogral'ia 319

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I n t r o d u ~ a o  "Pelos mundos nossa lenda. Mesmo que nunea se

aprenda. Eu te ensino a faze renda. Que mais posso

te ensinar. Eu que nao porto outra prenda. Que s6 seidar vida a trama vii."

Tenda (Caetano Yeloso).

Liguemos a televisao. Urn "careca do ABC", de aproximada

mente 1,65m de altura, olha fixo para a camera e dispara: "Voce

ji l viu urn nordestino com 1,80m de altura e inteligente?". 0 que

l.'le se considerava, obviamente. Mudemos de canal. Em cidade

nordestina, a pretexto de cobrir as festas juninas, dois humoristas

procuram insistentemente por alguem que tivesse visto 0 cangaceiro

AntOnio Silvino; aproximam-se de urn velho e a queima-roupa

pcrguntam: "Antonio Silvino era cabra macho mesmo?". Continuemos

assistindo, pois e urn programa de humor. Na feira da cidade ressurge

Antonio Conselheiro, com urn aspecto enlouquecido, vocifera uma

prega<;ao desencontrada, vestido com urn roupao branco e trazendo

lim enorme bordao de madeira, com que amea<;a as pessoas. Es

quecidos da cidade e da festa que vieram cobrir, procuram ceguinhasi l'antadoras de embolada e uma procissao em louvor a Santo Antonio.

Tcrmina 0 programa com Lampiao e Maria Bonita, no Rio de

Janeiro, atirando para todo lado, para acabar com a imoralidade na

praia e porque e born ver gente cair. Mudemos outra vez de canal.

A novela das oito horas e mais uma vez sobre 0 "Nordeste", pois

I{, estao presentes 0 coronel, muitos tiros e tocaias, 0 padre, a

l'idadezinha do interior e todos os personagens falam "nordestino",

lima lIngua formada por urn sotaque posti<;o e acentuado e um

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conjunto de expressoes pouco usuais, safdas do portugues arcaico,

de uma determinada linguagem local ou de dicionarios de expressoes

folcloricas, de preferencia. Mudemos de canal, aprocura do noticiario.

Esta havendo seca no Nordeste. Que born, temos a terra gretada

para mostrar, a caatinga seca com seus espinhos e c r i a n ~ a s   brincando

com ossinhos, como se fossem bois, chorando de fome, da ate para

o reporter chorar tambem e quem sabe promover mais uma campanha

eletr6nica de solidariedade. E, parece que a nossa escritora, defensorai!, da "nordestinidad", Rachel de Queiroz, tern razao: a mfdia tern 0

"

i olho torto quando se trata de mostrar 0 "Nordeste", pois eles so

querem miseria. Mas sera que nossa escritora tern mesmo razao?l

o que podemos encontrar de comum entre todos os discursos,  vozes e imagens que acabamos de arrolar, e a estrategia da este

r e o t i p i z a ~ a o .   0 discurso da estereotipia e urn discurso assertivo,

repetitivo, e uma fala arrogante, uma linguagem que leva aestabilidade

I acrftica, e fruto de uma voz segura e auto-suficiente que se arroga

o direito de dizer 0 que e 0 outro em poucas palavras. 0 estereotipo

nasce de uma c a r a c t e r i z a ~ a o   grosseira e indiscriminada do grupo

estranho, em que as multiplicidades e as d i f e r e n ~ a s   individuais sao

apagadas,em

nome des e m e l h a n ~ a s  

superficiais do grupO.2Podemos, entao, concordar com nossa escritora quando afirma

ill!que a mfdia nao ve 0 Nordeste como ele e? Nao, porque is so seria

pleitear a existencia de uma verdade para 0 Nordeste, que nao existe.

E esquecer que 0 estereotipo nao e apenas urn olhar ou uma fala

torta, mentirosa. 0 estereot ipo e urn olhar e uma fala produtiva, eleIII tern uma dimensao conCl'eta, pOl'que, alem de lanc;ar mao de materias

e formas de expressao do sublunar, ele se materializa ao ser

subjetivado por quem e estereotipado, ao criar uma realidade para

o que toma como objeto. Nao podemos cair, como faz nossa escritora,I no discurso da d i s c r i m i n a ~ a o   do Nordeste e dos nordestinos. 0 que

este livro interroga nao e apenas por que 0 Nordeste e 0 nordestino

" sao discriminados, marginalizados e estereotipados pela p r o d u ~ a o  cultural do pals e pelos habitantes de outras areas, mas ele investiga

por que ha quase noventa anos dizemos que somos discriminados

com tanta seriedade e i n d i g n a ~ a o .   Par que dizemos com e x a l t a ~ a o  e rancor que somos esquecidos, que somos menosprezados e vftimas

da historia do pafs? Que mecanismos de poder e saber nos incitam

a colocarmo-nos sempre no lugar de vftimas, de colonizados, de

miseraveis ffsica e espiritualmente? Como, por meio de nossas

praticas discursivas, reproduzimos urn dispositivo de poder que nos

20

reserva 0 lugar de pedintes lamurientos, produzimos e reproduzimos

urn saber em que sentimos prazer de dizer e mostrar que somos

pobres coitados? Que masoquismo e esse que faz nos orgulharmos

dessa d i s c r i m i n a ~ a o ,   que faz aceitarmos felizes 0 lugar de derrotados,

de vencidos? E, principalmente, 0 que leva uma classe dominante

a se deleitar em afirmar sua impotencia e se assumir como subordinada

e dependente?

o Nordeste e0

nordestino miseravel, seja na midia ou foradela, nao sao produto de urn desvio de olhar ou fala, de urn desvio

no funcionamento do sistema de poder, mas inerentes a este sistema

de f o r ~ a s   e dele constitutivo. 0 proprio Nordeste e os nordestinos

sao i n v e n ~ o e s   destas determinadas r e l a ~ o e s   de poder e do saber a

elas correspondente. Nao se combate a d i s c r i m i n a ~ a o   simplesmente

tentando inverter de d i r e ~ a o   0 discurso discriminatorio. Nao e pro

curando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se passa

a formular urn discurso que parte da premissa de que 0 discriminado

tern uma verdade a ser revelada. Assumir a "nordestinidad", como

quer Rachel, e pedir aos sulistas que revejam seu discurso sobre 0

nordestino, porque ele e errado, por ter nascido de urn desconhecimento

do nordestino verdadeiro, vai apenas ler 0 discurso da d i s c r i m i n a ~ a o  com 0 sinal trocado, mas a ele permanecer preso. Tentar superar

este discurso, estes estereotipos imageticos e discursivos acerca do

Nordeste, passa pela procura das r e l a ~ o e s   de poder e de saber que

produziram estas imagens e estes enunciados cliches, que inventaram

este Nordeste e estes nordestinos. Pois tanto 0 discriminado como

o discriminador sao produtos de efeitos de verdade, emersos de uma

luta e mostram os rastros dela. 3

Nos, os nordestinos, costumamos nos colocar como os cons

lantemente derrotados, como 0 outro lado do poder do SuI, que nos

oprime, discrimina e explora. Ora, nao existe esta exterioridade as

r e l a ~ i 5 e s   de poder que circulam no pafs, porque nos tambem estamos

no poder, por isso devemos suspeitar que somos agentes de nossapropria d i s c r i m i n a ~ a o ,   opressao ou e x p l o r a ~ a o .   Elas nao sao impostas

de fora, elas passam por nos. Longe de sermos seu outro lado,

ponto de barragem, somos ponto de apoio, de t1exao. A resistencia

que podemos exercer e dcntro dcsta propria rede de poder, nao fora

dLla, com seu desabamento completo. 0 que podemos provocar sao

deslocamentos do poder que nos impoem urn determinado lugar,

que reserva para nos urn certo e s p a ~ o ,   que foi estabelecido histori

('amente, portanto, em movimento. Ate que ponto a melhor forma

21

 

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de provocar urn deslocamento nesse dispositivo e nesse saber enos

postarmos como 0 outro do poder, assumir a posi<;ao de sujeito

vencido e discriminado? Nao seria melhor se negar a ocupar este

lugar?4

Mas a grande questao e: existe realmente este nos, esta identidade

nordestina? Existe realmente esta nossa verdade, que os estereotipos

do cabe<;a-chata, do baiano, do parafba, do nordestino, buscam

traduzir? 0 Nordeste existe como essa unidade e essa homogeneidade

imagetica e discursiva propalada pela mfdia, e que incomoda a quem

mora na propria regiao? Se existe, desde quando? 0 que faremos

neste texto e a hist6ria da emergencia de urn objeto de saber e de

urn espar;o de poder: a regiiio Nordeste. Buscaremos estudar a

forma<;ao historica de urn preconceito, e isto nao significa previamente

nenhum sentido pejorativo. 0 que queremos estudar e como se

formulou urn arquivo de imagens e enunciados, urn estoque de

"verdades", uma visibilidade e uma dizibilidade do Nordeste, que

direcionam comportamentos e atitudes em rela<;ao ao nordestino e

dirigem, inclusive, 0 olhar e a fala da mfdia. Como a propria ideia

de Nordeste e nordestino impoe uma dada forma de abordagem

imagetica e discursiva, para falar e mostrar a "verdadeira" regiao.5

Trata-se de pensar como a regiao se tornou uma problematica,

que pniticas discursivas e nao-discursivas fizeram esta questao emergir

e a constitufram como objeto para 0 pensamento. Como emergiram

estas questoes prementes as quais se devia dar uma resposta: 0 que

e a regiao? Qual sua identidade? 0 que particulariza e individualiza

o Nordeste? Esse livro pretende levantar as condi<;oes historicas de

possibilidade dos varios discursos e praticas que deram origem ao

recorte espacial Nordeste. Longe de considerar esta regiao como

inscrita na natureza, definida geograficamente ou regionalizada "pelo

desenvolvimento do capitalismo, com a regionaliza<;ao das rela<;oes

de produ<;ao", que e outra forma de naturaliza<;ao, ele busca pensar

o Nordeste como uma identidade espacial, construfdaem

urn precisomomenta historico, final da primeira decada deste seculo e na

segunda decada, como produto do entrecruzamento de pniticas e

discursos "regionalistas". Esta formula<;ao, Nordeste, dar-se-a a partir

do agrupamento conceitual de uma serie de experiencias, erigidas

como caracterizadoras deste espa<;o e de uma identidade regional.

Essas experiencias historicas serao agrupadas, fundadas num discurso

teorico que pretende ser 0 conhecimento da regiao em sua essencia,

em seus tra<;os definidores, e que articula uma dispersao de expe

riencias cotidianas, sejam dos vencedores, sejam dos vencidos, com

fragmentos de mem6rias de situa<;oes passadas, que sao tomadas

como prenunciadoras do momenta que se vive, de "apice da consciencia regional".6

o nosso objetivo e entender alguns caminhos pOI' meio dos

quais se produziu, no ambito da cultura brasileira, 0 Nordeste. 0

nexo de conhecimento e poder que cria 0 nordestino e, ao mesmo

tempo, 0 oblitera como ser humano. 0 Nordeste nao e recortado

so como unidade economica, polftica ou geografica, mas, primor

dial mente, como urn campo de estudos e produ<;ao cultural, baseado

numa pseudo-unidade cultural, geografica e etnica. 0 Nordeste nasce

onde se encontram poder e linguagem, onde se da a produ<;ao

imagetica e textual da espacializa<;ao das rela<;oes de poder. Enten

damos pOI' espacialidade as percep<;oes espaciais que habitam 0

campo da linguagem e se relacionam diretamente com urn campo

de for<;as que as institui. Neste trabalho, 0 geografico, 0 linglifstico

e 0 historico se encontram, porque buscamos analisar as diversas

linguagens que, ao longo de urn dado processo historico, construfram

uma geografia, uma distribui<;30 espacial dos sentidos. E preciso,

para isso, rompermos com as transparencias dos espa<;os e das

linguagens, pensarmos as espacialidades como acumulo de camadas

discursivas e de pr<iticas sociais, trabalharmos nessa regiao em que

linguagem (discurso) e espa<;o (objeto historico) se cncontram, em

que a historia destroi as determina<;oes naturais, em que 0 tempo

da ao espa<;o sua maleabilidade, sua variabilidade, seu valor explicativo

e, mais ainda, seu calor e efeitos de verdade humanos.7

Nao podemos esquecer que dis-cursus e, originalmente, a a<;ao

de correr para todo lado, sao idas e vindas, demarches, intrigas e

que os espa<;os sao areas reticulares, tramas, retramas, redes, desredes

de imagens e falas tecidas nas rela<;oes sociais. As diversas formas

de linguagem, consideradas neste trabalho, como a literatura, 0

cinema, a music a, a pintura, 0 teatro, a prodw;ao academica, 0 sao

como a<;oes, praticas insepaniveis de uma institui<;ao. Estas linguagens

nao apenas representam 0 real, mas instituem reais. Os discursos

nao se enunciam, a partir de urn espa<;o objetivamente determinado

do exterior, sao eles proprios que inscrevem seus espa<;os, que os

produzem e os p ressupoem para se legitimarem. 0 discurso regionaJista

nao e emitido, a partir de uma regiao objetivamente exterior a si,

c na sua propria 10cu<;3.0 que esta regiao e encenada, produzida e

pressuposta. Ela e parte da topografia do discurso, de sua institui<;3.o.

232

 

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Todo discurso precisa medir e demarcar urn e s p a ~ o   de onde se

enuncia. Antes de inventar 0 regionalismo, as regi6es sao produtos

deste discurso. Este trabalho tematiza, pois, 0 estabelecimento de

uma nova forma de dizer ever 0 regional, que abre caminho para

novas formas de sentir e de conhecer. Estas novas formas de ver

e dizer estao relacionadas, pOitanto, com outras series de priiticas,

desde as econ6micas, as sociais, as polfticas, ate as artfsticas, que

nao estabelecem entre si qualquer d e t e r m i n a ~ a o ,   apenas se conectam,

se afastam ou se aproximam, formando uma teia de pniticas discursivasou nao-discursivas; r e l a ~ 6 e s   de f o r ~ a   e de sentido, que, seguindo

Foucault, chamaremos de dispositivo, para ressaltar seu cariiter es

trategico. 8

Quando falamos na emergencia de uma nova visibilidade e

dizibilidade, falamos da emergencia de novos conceitos, novos temas,

novos objetos, figuras, imagens, que permitem ver e falar de forma

diferenciada da forma como se via e dizia 0 sublunar, anteriormente.

Que permitem OIganiza-Io de uma nova forma, que colocam novos

problemas, que, pOI sua vez, ilurninam este sublunar com novos

focos de luz, que iluminam outras dimens6es da trama hist6rica, da

rede de r e l a ~ 6 e s   que comp6em a trama do e s p a ~ o .   Tanto na

visibilidade quanto na dizibilidade articulam-se 0 pensar 0 e s p a ~ o   e

o produzir 0 e s p a ~ o ,   as priiticas discursivas e as nao-discursivas que

recortam e produzem as espacialidades e 0 diagrama de f o r ~ a s   que

as cartografam. Definir a regiao e pensa-la como um grupo de

enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em

diferentes discursos, em diferentes epocas, com diferentes estilos e

nao pensa-la uma homogeneidade, uma identidade presente na

natureza. 0 Nordeste e tornado, neste texto, como i n v e n ~ a o ,   pela

r e p e t i ~ a o   regular de determinados enunciados, que sao tidos como

definidores do cariiter da regiao e de seu povo, que falam de sua

verdade mais interior. Uma espacialidade, pois, que esta sujeita ao

movimento pendular de d e s t r u i ~ a o l c o n s t r u ~ a o ,   contrariando a imagem

de eternidade que sempre se associa ao e s p a ~ o .   Nossa p r e o c u p a ~ a o  com 0 poder nao implica, no entanto, uma analise do que esta

oculto sob os textos ou imagens, mas, ao contrario, do que elas

criam em sua exterioridade e da propria diferenp com que descrevem.

Nao tomamos os discursos como documentos de uma verdade sobre

a regiao, mas como monumentos de sua c o n s t r u ~ a o .   Em vez de

buscar uma continuidade hist6rica para a identidade de nordestino

e para 0 recorte espacial Nordeste, este livro busca suspeitar destas

24

continuidades, pondo em questao as identidades e fronteiras fixas,

introduzindo a duvida sobre estes objetos hist6ricos canonizados.9

Em nenhum momento, as Jronteiras e territ6rios regionais

podem se situar llum plano a-hist6rico, porque sao criar;oes emi

nentemente hist6ricas e esta dimensao hist6rica e multiforme, de

pendendo de que perspectiva de espar;o se coloca em Joco, se

visualizado como espar;o ecollomico, politico, juridico ou cultural,

ou seja, 0 espar;o regional e produto de uma rede de relar;oes entre

agentes que se reproduzem e agem com dimensoes espaciais diferentes.

Alem disso, devemos tomar as r e l a ~ 6 e s   espaciais como r e l a ~ 6 e s  polfticas e os discursos sobre 0 e s p a ~ o   como 0 discurso da polftica

dos e s p a ~ o s ,   resgatando para a polftica e para a hist6ria, 0 que nos

aparece como natural, como nossas fronteiras espaciais, nossas regi6es.

o e s p a ~ o   nao preexiste a uma sociedade que 0 encarna. E atraves

das priiticas que estes recortes permanecem ou mudam de identidade,

que dao lugar a d i f e r e n ~ a ;   e nelas que as totalidades se fracionam,

que as partes nao se mostram desde sempre comprometidas com 0

todo, sendo este todo uma i n v e n ~ a o   a partir destes fragmentos, no

qual 0 heterogeneo e 0 descontfnuo aparecem como homogeneo e

contfnuo, em que 0 e s p a ~ o   e urn quadro definido por algumaspinceladas.lO

A n o ~ a o   de regiao, antes de remeter a geografia, remete a

uma n o ~ a o   fiscal, administrativa, militar (vern de regere, comandar).

Longe de nos aproximar de uma di visao natural do e s p a ~ o   ou mesmo

de urn recorte do e s p a ~ o   econ6mico ou de p r o d u ~ a o ,   a regiao se

liga diretamente as r e l a ~ 6 e s   de poder e sua e s p a c i a l i z a ~ a o ;   ela remete

a uma vi sao estrategica do e s p a ~ o ,   ao seu esquadrinhamento, ao seu

recorte e a sua analise, que produz saber. Ela e uma n o ~ a o   que

nos envia a urn e s p a ~ o   sob domfnio, comandado. Ela remete, em

ill tima instfmcia, a regio (rei). Ela nos p6e diante de uma polftica

de saber, de urn recorte espacial das r e l a ~ 6 e s   de poder. Pode-se

dizer que ela e urn ponto dec o n c e n t r a ~ a o  

der e l a ~ 6 e s  

que procuramt r a ~ a r   uma linha divis6ria entre elas e 0 vasto campo do diagrama

de f o r ~ a s   operantes num dado e s p a ~ o .   Historicamente, as regi6es

podem ser pensadas como a emergencia de d i f e r e n ~ a s   internas a

n a ~ a o ,   no tocante ao exercfcio do poder, como recortes espaciais

que surgem dos enfrentamentos que se dao entre os diferentes grupos

sociais, no interior da n a ~ a o .   A r e g i o n a l i z a ~ a o   das r e l a ~ 6 e s   de poder

pode vir acompanhada de outros processos de r e g i o n a l i z a ~ a o ,   como

o de p r o d u ~ a o ,   0 das r e l a ~ 6 e s   de trabalho e 0 das priiticas culturais,

25

 

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Illas estas nao determinam sua emergencia. A regiiio e produto de

ullla batalha, e ullla segmenta(,:iio surgida no espa(,:o dos litigantes.

As regioes sao aproveitamentos estrategicos diferenciados do espar;o.

Na luta pela posse do espa<;o ele se fraciona, se divide em quinh6es

diferentes para os diversos vencedores e vencidos; assim, a regiao

e 0 botim de uma guerra. ll

Trata-se, neste livro, de desnaturalizar a regiao, de pr oblematizar

a sua inven<;ao, de buscar a sua historicidade, no campo das pniticas

e discursos. Tentar fazer com que este espa<;o cristalizado estreme<;a,

rache, mostrando a mobilidade de seu solo, as for<;as tect6nicas que

habitam seu interior, que nao permitem que a vejamos como efeito

da sedimenta<;ao lenta e permanente de camadas naturais ou culturais,

buscando apreender os terremotos no campo das pn'iticas e dos

discursos, que recortam novas espacialidades, cartografam novas

topologias, que deixam vir a tona, pelas rachaduras que provocam,

novos elementos, novos magmas, que se cristalizam e dao origem

a novos territ6rios. Longe de ver a regiao como urn terreno firme,

em que se pode apoiar 0 fervilhar, 0 movimento da hist6ria, mostra-Ia

tambem como solo movente, pantano que se mexe com a hist6ria

e a faz mexer, que traga e e tragado pela historicidade. 12

A regiao nao e uma unidade que contem uma diversidade,

mas e produto de uma opera<;ao de homogeneiza<;ao, que se da na

luta com as for<;as que dominam outros espa<;os regionais, por isso

ela e aberta, m6vel e atravessada por diferentes rela<;6es de poder.

Suas fronteiras sao m6veis e 0 Estado pode ser chamado ou nao a

colaborar na sua sedimenta<;ao. 0 Estado e, na verdade, urn campo

de luta privilegiado para as disputas regionais. Ele nao demarca os

limites politico-institucionais das regi6es, mas pode vir a legitimar

ou nao estas demarca<;6es que emergem nas lutas sociais.

Este livro e mais uma hist6ria de conceitos, de temas, de

estrat6gias, de imagens e de enunciados, do que de homens. Claro

que estes estao presentes, como uma condi<;ao de possibilidade destasmudan<;as conceituais acontecerem, al6m de que esta hist6ria afeta

tanto estes conceitos quanto estes homens, que veem seu solo

epistemol6gico se mover, que veem sua visibilidade abrir-se para

novos horizontes e sua linguagem ter acesso a novos enunciados,

para falar do mundo e compor 0 real. Este trabalho 6 a hist6ria da

luta em torno dos conceitos de na<;ao e de regiao, em torno dos

eonceitos de cultura nacional, regional e internacional. E a hist6ria

26

da luta, em torno da ideia de identidade nacional e regional, de

idcntidade cultural. Foi em torno destas id6ias mestras que emergiu,

no Brasil, urn conjunto de regras de enuncia<;ao que chamamos de

jimnar;iio discursiva nacional-popular e todo 0 dispositivo de poder

que a sustentou, que chamamos de dispositivo das nacionalidades,

( ' · I l l torno dos quais, por sua vez, se desenvolveu grande parte da

Ilistoria brasileira, ent re as d6cadas de vinte e sessenta. 0 que

I"azemos e a hist6ria das priiticas e enunciados que deram conforma<;ao

a estas ideias, que Ihes deram uma visibilidade e uma linguagem.

Pri vilegiamos , no entanto, neste debate, aquele que s e trava espeei

I"ieamente em torno da ideia de Nordeste, como ele foi inventado,

no eruzamento de priiticas e discursos e os sucessivos deslocamentos

que a imagem e 0 texto desta regiao sofreram, ate a sua mais radical

contesta<;ao com os tropicalistas, no final da d6cada de sessenta.

I\uscamos perceber como determinados enunciados audiovisuais se

produziram e se cristalizaram, como "representa<;6es" deste espa<;o

regional, como sua essencia. Perceber que rede de poder sustentou

L ~   e sustentada por essa identidade regional, par este saber sobre a

r l ~ g i a o ,   saber estereotipado, que reserva a este espa<;o 0 lugar do

gueto nas rela<;5es sociais em nfvel nacional, regiao que e preservada

('O\l]O elabora<;ao imagetico-discursiva como 0 lugar da periferia, da

Imrgem, nas rela<;6es econ6micas e polfticas no pafs, que transforma

sells habitantes em marginais da cultura nacional.

Questionamos a propria id6ia de identidade, que e vista par

n6s como uma repeti<;ao, uma semelhan<;a de superffcie, que possui

110 seu interior uma diferen<;a fundante, uma batalha, uma luta, que

e preciso se r explicitada. A identidade nacional ou regional e uma

('onS(Tu<;ao mental, sao conceitos sinteticos e abstratos que procuram

dar conta de uma generaliza<;ao intelectual, de uma enorme variedade

de experiencias efetivas. Falar ever a na<;ao ou a regiao nao 6, a

rigor, espelhar estas realidades, mas cria-Ias. Sao espa<;os que se

institucionalizam, que ganham foro de verdade. Essas cristaliza<;6esde pretensas realidades objetivas nos fazem falta, porque aprendemos

a viver por imagens. Nossos territ6rios existenciais sao imag6tieos.

I ~ I c s   nos chegam e sao subjetivados por meio da educa<;ao, dos

('ontatos sociais, dos habitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar

o real como totaliza<;6es abstratas. Por isso, a historia se assemelha

ao teatro, onde os atores, agentes da historia, so podem criar a('ondi<;ao de se identificarem com figuras do passado, de representarem

pap6is, de vestirem mascaras, elaboradas permanentemente.13

27

 

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Pretendemos, com este livro, questionar urn olhar e uma fala

regionalistas, que ora aparecem como urn olhar e uma fala novos,

surgidos recentemente, como querem fazer crer varias analises sobre

os separatismos regionais que afloram com intensidade periodicament e

no pals, ora como formas de ver e falar que sempre existiram na

hist6ria do pals. Este trabalho busca perceber as int1ex6es ocorridas

no discurso regionalista, mas particularmente no discurso nordestino,

afirmando a sua novidade e seu carater de descontinuidade na hist6ria

brasileira. 0 regionalismo e muito mais do que uma ideologia declasse dominante de uma dada regiao. Ele se ap6ia em pniticas

regionalistas, na prodUl;ao de uma sensibilidade regionalista, numa

cultura, que sao levadas a efeito e incorporadas por varias camadas

da populagao e surge como elemento dos discursos destes varios

segmentos. Por isso, procuramos nos afastar de fazer a chamada

"Hist6ria Regional", porque esta, por mais que se diga crftica do

regionalismo, do discurso regionalista, esta presa ao seu campo de

dizibilidade. Longe de constituir uma ruptura com esta dizibilidade,

suas crfticas sao apenas deslocamentos no interior do pr6prio campo

do regionalismo. Ao criticar 0 regionalismo, mas assumir a regiao

como uma "proposigao concreta", como uma conscrigao hist6rica, e

fazer dela urn referente fixo para seu discurso, de onde retira suapr6pria legitimagao, esta Hist6ria esta presa a dizibilidade regionalista

e a rede de poderes que sustenta a ideia de regiao como referencial

valido para instituir urn saber, urn discurso hist6rico. A "Hist6ria

Regional" vern contribuir, sim, para colocar a ideia de regiao em

outro patamar, legitima-Ia, atribuir-Ihe veracidade, dando a ela uma

Hist6ria, tentando Ihe dar, inclusive, uma base material. Em vez de

questionar a pr6pria id6ia de regiao e a teia de poder que a institui,

ela questiona apenas determinadas elaborag6es da regiao, pretendendo

encontrar a verdadeira. 14

A "Hist6ria Regional" participa da construgao imagetico-dis

cursi va do espago regional, como continuidade hist6rica. Ela padece

do que podemos chamar de uma "ilusao referencial", por dar estatuto

hist6rico a urn recorte espacial fixo, estatico. Mesmo quando historiciza

este espac;o, valida-o como ponto de partida para recortar a histo

ricidade. Ela faz uso de uma regiao "geografica" para fundar uma

regiao epistemol6gica no campo historiografico, justificando-se como

saber, pela necessidade de estabelecer uma hist6ria da origem desta

identidade regional, afirmando a sua individualidade e sua homoge

neidade. Por isso, 0 questionamento da regiao, como uma identidade

fixa, passa pela crftica desta "Historia", que participou desta crista

lizac;ao identitaria, e passa pela retirada das fronteiras do campo

historiograf ico. 0 nacional e 0 regional nao sao criterios de validac;ao

de uma produc;ao historiografica, nao sao referencias pertinentes para

fundar uma epistemologia. Uma hist6ria serial nao se pode ater a

estas divis6es, visto que as series historicas desconhecem estas

fronteiras. A unidade que interessa ao historiador e a unidade de

enredo, de trama, nao estas unidades identitarias forjadas no proprio

processo hist6rico e que sao elas tambem pluralidades de serieS. 15

o procedimento que preside a "Hist6ria Regional", 0 de definir

uma regiao, urn espac;o geografico ou urn espago de produc;ao, como

um a priori, que 6 anacronicamente remetido para antes de sua

pr6pria constituigao, sendo transformado numa transcendencia, natu

ralizado, nao leva em conta 0 fato de que uma epoca ou um espago

nao preexistem aos enunciados que os exprimem, nem as visibilidades

que os preenchem. A "Hist6ria Regional", nesse sentido, pode ser

vista como urn modo de existir, como urn modo de visao e estudo

regularizado, dominado por perspectivas e imperativos ostensivamente

adequados a reprodugao do Nordeste. 0 Nordeste e pesquisado,

cnsinado, administrado e pronunciado de certos modos a nao romper

com 0 feixe imag6tico e discursivo que 0 sustenta, realimentando

() /loder das forgas que 0 introduziu na cultura brasileira, na "cons

ciencia nacional" e na pr6pria estrutura intelectual do pais. A "Hist6ria

Regional" e produto de certas forgas e atividades polfticas, as vezes,

antagonicas, mas que se encontram na reproduc;ao dessa ideia de

regUlo. 0 Nordeste passou a ser, assim, objeto de uma tradigao

academica que 0 ajuda a se atualizar.

Ocampo historiognifico, como campo de produc;ao do saber,

L ~ s t a   rccortado pOl' relag6es de poder que incidem sobre 0 discurso

historiografico. Ele e a positividade de urn lugar no qual 0 sujeito

se articula, sem, no entanto, se reduzir a ele. Ele e produto de urn

lugar antes mesmo de 0 ser de urn meio ou de urn indivfduo. E 6

cste Iugar que deve ser questionado constantemente pelo especialista

em hist6ria. A operagao historiografica deve se constituir tambem

desta volta crftica sabre si mesma. A "Hist6ria Regional" nao faz

cste questionamento do lugar de produc;ao do saber historiografico.

Os historiadores que trabalham com esta perspectiva aceitam participar

da divisao entre hist6ria nacional (Hist6ria do Brasil) e historia

regional (Hist6ria do Nordeste), que al6m de significarem 0 estabe

lecimento de lugares hierarquicamente diferenciados no campo his

298

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toriografico, conectam-se e reproduzem as relac;6es desiguais de

poder entre as diferentes areas do pais; reproduzem uma sUbordinac;ao,

no campo academico, que diz da propria subordinaC;ao do espac;o

que representam em nivel nacionaL

Ao se colocarem como historiadores regionais, eles estariam

reconhecendo sua incapacidade de fazer Historia do Brasil ou 0

carater limitado desta produc;ao? Por que os historiadores paulistas

e, em menor numero, os historiadores cariocas podem fazer historianacional e os das outras areas apenas "Historia Regional"? Conti

nuamos presos, assim, a uma hierarquia de saberes e de espac;os

que se definiu no inicio do seculo. Nao e se colocando como vitimas

do "imperialismo paulista" ou reivindicando 0 direito de tambem

fazer Historia do Brasil que romperemos com 0 lugar que foi

reservado para nos historiadores de outras areas do pais, nesta

configurac;ao de saber-poder. Nao e tambem proliferando 0 numero

de "historias regionais", sempre que determinado grupo de historia

dores se sente marginalizado no campo historiografico, que conse

guiremos romper com esta posiC;ao de inferioridade no campo his

toriogriifico, mas sim se negando a ocupar estes lugares, questio

nando-os e rei vindicando 0 direito de apena s pro duzir sa ber emhistoria, sem mais adjetivos,

Utilizamos diversas fontes: desde 0 discurso academico, passando

pelas publicac;6es em jornais de artigos ligados ao campo cultural,

a produC;ao li teraria e poetica de romancistas e poetas nordestinos

ou nao, ate musicas, filmes, pec;as teatrais, que tomaram 0 Nordeste

por tema e 0 constituiram como objeto de conhecimento e de arte.

As obras de arte sao tomadas, neste trabalho, como discursos, como

produtoras de realidade, ja que como historiador nao temos conhe

cimento especffico destes varios campos que trilhamos. Este e 0

enorme risco que corremos e que procuramos suprir pela leitura de

um a bibliografia especializada em cada area, procurando trazer as

informac;6es no campo da estetica, sempre e somente quando j ulgamos

que estas interessavam para a compreensao da problematica que

estava em discussao. As obras de arte tern ressonancia em todo 0

social. Elas sao maquinas de produc;ao de sentido e de significados.

Elas funcionam proliferando 0 real, ultrapassando sua naturalizac;ao.

Sao produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma

dada forma de ver e dizer a realidade. Sao maquinas historic as de

saber.

30

Estas varias pniticas discursivas foram, sempre que possivel,

cruzadas com praticas nao-discursivas, sem que estabelecessemos

nenhuma especie de hierarquia ou determinac;ao entre elas. 0 que

procuramos ver foi 0 nivel de interferencia destas muitas praticas,

na instituic;ao e no deslocamento da ideia de Nordeste, e a sua

relac;ao com a ideia de nac;ao. Embora nos detenhamos em analises

esteticas, ja que nao se pode separar forma de conteudo, e a propria

forma e significante, nossa preocupac;ao central foi tomar tais prfiticas

culturais como produtoras de textos, imagens, sons, que formaramum agregado sensivel em tomo da ideia de Nordeste. Elas tomam

possivel ver-se e falar-se de Nordeste como uma materialidade, como

uma identidade, como uma homogeneidade, ou, ao contrario, elas 0

contestam.

Talvez 0 leitor estranhe 0 fato de encontrar poucas citac;6es

textuais e a colocac;ao de notas no final de praticamente todos os

paragrafos e, so no seu final, alem cle encontrar poucas aspas,

denotanclo citac;6es alheias. Isto se deve ao metoclo que adotamos:

o de tomar estas fontes nao como documento, nem como fonte de

prova, mas toma-Ias como material de trabalho, como monumentos

a serem destruidos e reconstrufdos, ou seja, construimos os paragrafos

com enunciados e imagens retirados dos pr6prios textos em analise,

tomando-os para nos, utilizando-os como nossos, pelo metodo de

bricolagem e de torc;ao, dessacralizando estas fontes, pondo estes

enunciaclos para funcionarem de outro modo. 0 trabalho tambem

nao se prencle a urn dado sistema de pensamento, nem busca a

coerencia absoluta entre suas partes. A hist6ria e incoerencia, lanc;a

mao de fragmentos cle discurso, pOl'que, longe de querer afirmar

identiclacles discursivas, ela quer destrui-Ias. Nao queremos construir

sistemas discursivos, mas clespedac;a-Ios, ordenanclo-os de outra forma.

Os autores e artistas escolhidos para analise cle suas obras 0 foram,

a medida que se constituiram em grande emissores cle signos, que

deram textos e imagens a regiao. POl' isso, pouco se levou em conta

a trajetoria cle cacla urn como individuo, a nao ser aquelas informac;6es

que tiveram r e s s o n ~ m c i a   em suas obras e interferiram nessa forma

de vel' e dizer a realiclade regionaL 16

o que procuramos ressaltar foram as condic;6es que se impuseram

a estes sujeitos, que os introcluziram e fizeram funcionar como tal

em determinado momento; como, ao meSI110 tempo que inventavam

o Nordeste, iam se inventando como sujeitos norclestinos. Procuramos

ve-Ios como um no, num rendilhaclo cle series historicas, como

31

 

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,I

i : l ~  

la<;adas na variada rede de rela<;6es que atravessam 0 social. Nao

os consideramos como alguem que se colocasse fora da trama, da

renda da hist6ria, para tece-Ia com suas maos e agulhas soberanas

da consciencia transcendental, mas os consideramos como alguem

que tecesse uma rede de dentro dela mesma, como se fosse urn dos

seus fios, como urn n6 em que varios fios do processo hist6rico

viessem se encontrar. Tanto para se pensar a emergencia do objeto

Nordeste, como para se pensar a emergencia dos sujeitos que tomaram

este objeto como tema, tern de se estar atento ao fato de que 0

que permite a emergencia de objetos e sujeitos hist6ricos sao as

rela<;6es estabelecidas entre institui<;6es, processos econ6micos e

sociais, formas de comportamento, sistemas de normas, tecnicas,

tipos de classifica<;ao, modos de caracteriza<;ao, ou seja, uma dispersao

de pr:iticas e enunciados coexistentes, laterais, como fios soltos de

diferentes cores que VaG se encontrando em determinados pontos e

VaG dando origem a um desenho sem que para isso seja necessaria

a convergencia de todos para 0 meSillO ponto; que todos estejam

interligados. A historia aqui ta'i da, como uma renda, e Jeita de

jios, nos, lar;adas, mas tambem de lacunas, de bllracos, que, no

entallto, Jazem parte do proprio desenho, sao partes da propria

trama.!'?

o leitor pode achar estranho neste trabalho, tambem, 0 usa

constante de metaforas e a nao preocupa<;ao em definir rigorosamente

os conceitos utilizados. Defendemos 0 ponto de vista de que os

conceitos, em historia, nao podem ser passfveis de defini<;ao. Eles

apenas servem para melhor configurar, tecer a urdidura do passado,

ja que nao se pode defmir nem esquematizar a trama historica,

porque 0 conceito em historia e apenas urn conector de uma serie

de eventos. As metaforas, pOl' sua vez, nao sao sujeiras num discurso

que se queria rigoroso e lfmpido. Elas funcionam no sentido de

abrir 0 pensamento para a ambivalencia, mostrando a sua androginia;

no sentido de abrir 0 pcnsamento para novas rela<;6es, chegando ao

mais abstrato, atraves do mais concreto. E a imagem a servi<;o do

pensamento. As metaforas no discurso historiografico podem servir

mais do que os conceitos para dar conta das transforma<;6es e

intera<;6es do concreto. 0 conceito como abstra<;ao tende a estabelecer

uma identidade e urn ser que se dizem num so sentido. As metaforas

nos permitem captar as mudan<;as de sentido desse ser e as diferen<;as

em detrimento das identidades. Reconemos, pois, neste trabalho, a

conceitos ou metaforas, dependendo do que nos possibilite melhor

32

compreender a trama hist6rica que se esta abordando; isso faz parte

de nossa estrategia de narra<;aO. 18

o uso de meUiforas em hist6ria permite que esta nao seja

apenas representa<;ao, analogia de urn real que serviria de referente,

mas uma hist6ria produtora de sentido, de reaIidade. Elas desfazem

os objetos familiares, com urn golpe de for<;a que e 0 trabalho do

historiador. Neste discurso metaf6rico tudo significa e, no entanto,

tudo e surpreendente. Elas for<;am a pensar 0 diferente, destroem as

familiaridades dos conceitos consagrados, surpreendem a seriedade

do discurso academico. Elas podem ate fazer rir; e que descentramento

maior em rela<;ao a verdade institufda do que uma gargalhada? As

metaforas proliferam sentido, pOl'que interiorizam diferen<;as. Elas

sao inseparaveis de uma hist6ria que se quer antropofagica, porque

interrogam a rela<;50 entre dois objetos diferentes, ressaltando esta

justaposi<;ao de contrarios. As metaforas sao risos dos conceitos, sao

dobras, dissonancias, rompendo com a conceito como unico lugar

da verdade. Elas sao formas de comunicar 0 "real" em sua com

plexidade de slgnifica<;ao, que nos falam da impossibilidade do

conhecimento do mundo somente por meio do conhecimento empfrico

ou conceitual, superando a rela<;ao direta entre sujeito e objeto,

propondo, pois, uma nova "metodologia" de conquista da "realidade".19

Buscaremos, sempre que possfvel, fazer a hist6ria dos pr6prios

conceitos e categorias que emergiram em cada momenta hist6rico

aqui abordados, que fundamentaram a pr6pria explica<;ao do momento.

Se questionamos os conceitos de identidade, cultura, civiliza<;ao,

na<;ao, regiao, nao abandonamos 0 seu usa, ao contr<lrio, fizemos

questao de utiliz<l-Ios para explicitar a que maquinaria discursiva

pertencem, de que estrategias sao pe<;as. Entendemos que a crftica

da linguagem, em hist6ria, se faz pelo usa dos conceitos emersos

em cada epoca, conservando como instrumento aqueles conceitos

cujo valor se critica, pondo-os para funcionar em novos sentidos,

dando a eles novos lugares, fazendo bricolagens, questionando a

validade permanente destes. Nao se pode fazer uma crftica a ideia

de regiao permanecendo preso a esta armadilha de sentido que e 0

pr6prio conceito. Produzir 0 seu desgaste pelo usa revelador de seus

limites e a unica possibilidade. Tomar a pr6pria ideia de regiao

como inven<;ao hist6rica, e nao apenas a ideia de uma dada regiao.

o que est<l pOl' tras destas mascaras nao e 0 rosto serio de uma

origem verdadeira, mas 0 riso do disparate, da disc6rdia, do embate

surdo que possibilitou a emergcncia de tais verdades. Ao se tomar,

33

 

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por exemplo, 0 capitalismo como causa unica e determinante da

regionaliza<;ao, significa pressupor que, antes da regiao, existia uma

unidade anterior que se dissolveu, quando, na verdade, tanto esta

ideia da existencia de uma unidade anterior, que seria a nayaO, como

a ideia da regionalizayao posterior, sao efeitos de rela<;5es discursivas

que se estabeleccm, pOl' volta do infcio do seculo XIX, e se estendem

ate 0 nosso seculo.20

Os documentos foram, antes de tudo, desierarquizados; nao sefez diferen<;a entre urn filme, uma poesia, uma musica ou urn artigo

de jomal, todos foram tomados como discursos produtores de realidade

e, ao mesmo tempo, produzidos em determinadas condi<;oes hist6ricas.

Eles foram tomados como formas em debandada, materialidade do

sonhado, como obras a serem fecundadas pela imagina<;ao, retirados

de sua cobertura de inocencia. Tomaremos urn quadro, um livro,

um filme, para analisa-los, tao amorosamente quanto um canibal

prepara para si um bebe. Nao nos preocuparemos em usaI' os

documentos como prova, mas como materias de expressao, como

material a ser trabalhado, despeda<;ado em sua inteireza de sentido.

Queremos apenas problematizar 0 estatuto de verdade de cada urn,

levantando, ao mesmo tempo, 0 significado consagrado que esteadquiriu, fazendo uso para isso de uma gama de comentadores, de

cr(ticos, de trabalhos academicos, que consagraram urn dado lugar

para cada artista, para cada autor e sua obra e, a partir de entao,

tentaremos provocar um deslocamento nestas leituras consagradas,

tomando-as para funcionar em outra estrategia discursiva. Nao nos

deteremos a fazer permanentemente uma crftica explfcita abibliografia

utilizada. Esta crftica procuraremos deixar implfcita, na pr6pria forma

como usamos 0 texto, com amor, humor e terror.

Dividi 0 livro em tres capftulos: "Geografia em Rufnas",

"Espa<;os da Saudade" e "Territ6rios da Revolta". No primeiro

capftulo, acompanharemos as transforma<;oes hist6ricas que possibi

litaram a emergencia da ideia de Nordeste, desde a emergencia do

dispositivo das nacionalidades, porque sem as na<;oes e impossfvel

se pensar as regi5es, passando por uma mudan<;a na sensibilidade

social em rela<;ao ao espayo, a mudan<;a da rela<;ao entre olhar e

espa<;o trazido pela modernidade e pela sociabilidade burguesa, urbana

e de massas. Estas mudan<;as permitem a emergencia deste novo

regionalismo, nao mais provinciano no campo polftico e pitoresco

no campo art(stico, que possibilitou a inven<;ao do Nordeste.

34

No segundo capftulo, abordaremos esta inven<;ao regional; 0

surgimento do Nordeste como um novo recorte espacial no pafs,

rompendo com a antiga dualidade Norte/Sui, estabelecendo uma

redistribui<;ao das espacialidades no pafs, que acompanhava, por sua

vez, as pr6prias redefini<;oes na estrutura de for<;as sociais no ambito

nacional, com a crise da sociabilidade pre-industrial e 0 desenvol

vimento de c6digos burgueses, notadamente, nas cidades. A dester

ritorializa<;ao das for<;as sociais do Norte do pafs, processo que se

arrasta, pelo menos, desde a metade do seculo XIX e atinge, nocome<;o do seculo, 0 seu cume com as altera<;oes trazidas pelo fim

da escravidao, pela crise da produ<;ao a<;ucareira, e pelo surgimento

das usinas, que poem os bangiiezeiros em processo falimentar. Tudo

isso acompanhado da emergencia de urn novo p610 de poder no

pars: 0 SuI, com a Proclama<;ao da Republica. Os discursos polfticos

dos representantes dos estados do Norte, antes dispersos, come<;am

a se agrupar em tomo de temas que sensibilizam a opiniao publica

nacional e podem CatTear recursos e abrir locus institucionais no

Estado. A seca, 0 canga<;o, 0 messiallismo, as lutas de parentela

pelo controle dos Estados, sao os temas que fundarao a pr6pria

ideia de Nordeste, uma area de poder que come<;a a ser demarcada,

com fronteiras que servirao de trincheiras para a defesa dos privilegiosamea<;ados. A elabora<;ao da regiao se da, no entanto, no plano

cultural, mais do que no polftico. Para isso contribuirao decisivamcnte

as obras sociol6gicas e artfsticas de filhos dessa "elite regional"

desterritorializada, no esfor<;o de criar novos territ6rios existenciais

e sociais, capazes de resgatar 0 passado de gl6ria da regiao, 0 fausto

da casa-grande, a "docilidade" da senzala, a "paz e estabilidade" do

Imperio. 0 Nordeste e gestado e institufdo na obra sociol6gica de

Gilberto Freyre, nas obras de romancistas como Jose Americo de

Almeida, Jose Lin3 do Rego, Rachel de Queiroz; na obra de pintores

como Cfcero Dias, Lula Cardoso Ayres etc. 0 Nordeste e gestado

como 0 espa<;o da saudade dos tempos de gl6ria, saudades do

engenho, da sinha, do sinha, da Nega Fula, do serrao e do sertanejopuro e natural, for<;a telurica da regiao.

No terceiro capftulo, abordaremos uma serie de reelabora<;5es

da ideia de Nordeste, feitas por autores e artistas ligados ao discurso

da esquerda. Nordestes gestados, a partir dos anos trinta, por meio

de uma opera<;ao de inversao das imagens e enunciados consagrados

pela leitura conservadora e tradicionalista que dera origem a regiao.

Nordestes onde nao mais se sonha com a volta ao passado, mas

35

 

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"

corn a constrU(,;ao do futuro, e que guarda com aquele farniliaridades,

como a nega\iao da modernidade e do sistema capitalista, em nome

da c o n s t r u ~ : a o   de uma nova sociedade. Obms como as de Jorge

Amado, Graciliano Ramos, Portinari, Joao Cabral de Melo Neto

produzem Nordestes vistos pelo avesso; Nordestes como regiao da

miseria e da injustic;;a social; 0 locus da reac;;ao a transformac;;ao

revolucioTI<.iria da sociedade. Nordestes dos coroneis e comendadores

II

discricionarios e dos Fabianos e Severinos amarelos, servis, quase

animais a grunhir em seu estado absoluto de aliena<;ao. Nordestesque, mesma assim, fundamentavam com seus mitos populares 0

sonho de se constituir em terdtorios de revolta contra a explorac;;ao

e a domina<;ao burguesas. Estes Nordestes, construfdos pelo avesso,

ficam presos, no entanto, aos mesmos temus, imagens e enunciados

consagrados e cristalizados pelos discursos tradicionalistas. Aprofunda,

de certa forma, a propria elaborac;;ao regional, feita pelos discursos

tradicionaJistas, que haviam escolhido 0 lugar de vftimas, de coita

dinhos, de pedintes, de injustic;;ados, para ocuparem nacionalmente.

I

Estes "revolucioTI<.'irios" ajudam os "reacionarios" a consagrarem uma

dada imagem e um texto da regiao, que se imp5em, ate hoje, como

verdade; uma visibilidade e uma dizibilidade das quais poucos, como

os tropicalistas, conseguiram fugir.

Notas

I. Programa DOC1lll/ento Especial (Sistema Brasileiro cle Televisao); Prograllia Legal

(Recle Globo); as novebs Tieta do Agreste, PN!r" so/Jre Pedra, Renascer (Rede Globo);

Globo Repc5rler (Recle Globo). Ver Rachel cle Queiroz, "Os olhos tonos da midia", 0

El'rado de S. Paulo (OESP), 17/06/1988, sip.

2. Vcr Roberto da Malta, 0 Que Faz 0 brasil, BrasiL?, p. 13; Dante Moreira Leite,

o CarateI' Nucional BrasiLl'iro, pp. 96 e segs.; Roland Barl1Jcs, "A escritur:t do visivel",

in () c5bvio e 0 Obiuso, p. 9 e Fragmenlos de 11111 Discurso Amoroso, p. 24.

3. Sobre a r c l a ~ a o   enlre pocler e saber. vcr Michel Foucault, lIis({Jria da Sexualidude

I (A Vontode de Saber), pp. 88 e segs.

4. Para esla visiJo das r e l a ~ 6 e s   cle pocler, vcr Michel Foucault, Mil'mfc"im do Poder,pp. 209 a 228.

5. Sobre os conceitos de visibilidadc e dizibiliclade, vel' Gilles Deleuze, Foucault,

e Michel Foucault, A Arljueologia do Saber.

6. Sobre a r e l a ~ a o   entre pnilieas cliscursi vas e nao,discursivas no pensamento cle

Foucault, ver Roberto Machado, Cicncia e Saber (A Trajetciria da Arqueologill de

Foucault).

7. Para a n o ~ a o   cle espacialiclade, vel' Michel Foucault, "Sobre a Geografia", in

Micrl!fCI'itll do Poder, pp. 153 a 166; Eni I'ulcinelli Orlancli, Terra a Vista, pp. 55 e

segs.; Femand Brauclel, "0 c s p a ~ o   e 0 tempo", OESP, 29/07/1947, p. 6, c. 5.

8. Ver Michel Foucault, Mii'ro/isica do Poder; Roland Barthes, Fragmentos de lllll

Disi'urm Amoroso, p. 1; Haraldo de Campos, "I'ara[ernalia para Helio Oiticica", Fol!w

de S. Paulo (FSP), Folheti11l, 13/05/1984. p. 11; Dominique Maingucneau, Novas Tendencias

emAlliilisedeDisi.ur.lo; Eni Puleinelli Orlandi, Op. cit., pp. 25 e scgs.

9. Vcr Paul Ve)'ne. 0 Illvelltario das Di/erenCas; Luiz B. Orlandi, "Do cnullciado

em Foucault it teoria da multiplicidacle cm Deleuze" in Foucault Vi\'o cftalo Tronca,

org.), pp. 11 a 42.

10. Vcr Celiua Albino & Nfsia Werneck, " A n o t a ~ 6 e s   sobre e s p a ~ o   e vida eotidiana",

in E.lpaco e Debates nO 17, ano VI, pp. 33 a 43; Margareth Rago, Os Prazeres da

Noire, p. 23.

II . Ver Michel Foucault. "Sobre a Geografia", in Mi('J"oF,ica do Poder, pp. 153a 166.

12. Idem, ibidcm.

13. Sobre a r e l a ~ a o   cntre iclenliclade c diferenp, vcr Gilles Deleuze, Diferell('a e

RepeliCGo, pp. 71 e segs. e 185; Lui7 Carlos Maciel, "0 esvaziamento da realiclade",

Folfla de S. Paulo, Folhetim, 27/02/1977, p. 23.

14. Vcr Ademir Gebara, Histc5ria Regional: uma disCUSSGO; Rosa Maria Goclo)'

Silveira, () RegiollalislI/o Nordestil1o; Francisco cle Oliveira, Elegia pam 1III1a Re(li)gi!7o.

IS. Para a n o ~ a o   cle ilusao rcfcrencial, vel' Paul Ve)'ne, Como se E"i'J'{'I'e a lIistciria,

p. II .16. A u t i l i z a ~ a o   do metoclo de l o r ~ a o   cle enunciaclos c imagens nos foi sugerido

pela leitura clo hvro cle Roberto Machado, Deleuze e a Filosojia. pp. 250 e scgs.

17. Sobre a r e l a ~ a o   entre sujeitos e c o n d i ~ 6 e s   cle possibilidacle hist6ricas, ver Michel

Foucault, As Palal'ras e as Coisas, pp. 384 e scgs.

18. Vcr Jeanne Marie Gagncbiu, "Origem cia alcgoria, alegoria cia origem", Folfla

de S. Paulo, Folhetim, 09/12/1984, p. 8; Jose Americo Mota Pessanha, "Bachelarcl: as

asas da i m a g i n a ~ a o " .   Folfla de S. Paulo, Folhctinl, 10/06/1984, p. 9; Walter Benjamin,

"As imagens de Prousl" ill Magia e Tknica, Ane e Polilica (Obras Escolhidas, vol. I),

p. 36.

19. Vel' Roland Ban!Ics, "A escritura clo visivel". in 0 Obl'io e 0 Obtuso, p. 9;

Scarlett Marlon, "Foucault leilor cle Nietzsche" in Remrdar Foucault (Rcnalo J8nine

Ribeiro, org.).

20. Vel' Michel Foucault, Microjlsica do Poder, pp. IS c segs.; Roberto Machado,

Cifncia e Saber (A Trajell5ria da Ar!fueologia de Foumult).

36 37

 

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f

Conclusao

A primeira conclusao deste trabalho e a de que 0 Nordeste e

uma inven<;ao recente na historia brasileira, nao podendo ser tornado : como objeto de estudo fora desta historicidade, sob pena de se

cometer anacronismos e reduzi-Io a urn simples recorte geognifico

naturalizado. A ideia de Nordeste se gestou no cruzamento de uma

serie de pniticas regionalizantes, motivadas pelas condi<;5es pal"ti

I, culares com que se defrontam as provfncias do Norte, no momentoem que 0 dispositivo da nacionalidade, que passa a funcionar entre

nos, apos a Independencia, coloca como tarefa, para os grupos

dirigentes do pafs, a necessidade de se construir a na<;ao. Grupos

que, inicialmente dispersos, provincianos, aferrados aos seus interesses

particulares e locais, se veem progressivamente obrigados a se

aproximar, a se unir, em defesa do seu espa<;o, em franco declfnio

econ6mico e polftico e, paulatinamente, alijado das benesses do

Estado. Praticas dispersas, como aquelas vinculadas ao combate a

seca, apos esta ter se tornado 0 problema do Norte, ao combate ao

canga<;o, as manifesta<;5es messianicas, aos blocos polfticos formados

no Parlamento para enfrentar os representantes de outras areas, a

reuniao das novas gera<;5es de grandes proprietarios de terra, em

torno da vida cultural e intelectual de Recife, van sedimentando aideia de uma regionalidade, da existencia nao so de interesses comuns,

em nfvel de economia e de polftica, mas como la<;os historicos e

culturais comuns, 0 que proporciona 0 surgimento de varios encontros,

congressos, simp6sios, em nome da solidifica<;ao da solidariedade

regional e da cultura regional.

Estas prMicas regionalizantes come<;am a se cruzar, assim, com

uma serie de discursos, sejam polfticos ou culturais, que sedimentam

305

 

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a ideia de uma regiao Nordeste, que deixa de ser simplesmente a

area seca do Norte, para se tomar uma identidade racial, econonlica,

social e cultural a parte. Os intelectuais, ligados as for<;as dirigentes

desta area, sao chamados a produzir urn saber, urn conhecimento,

que dessem a regiao fala e imagem. Inventar 0 Nordeste passa a

ser a tarefa destes discursos, que falam da amea<;a de declinio da

area em nivel nacional, tanto quanto os discursos ligados aos setores

economicos e polfticos. E e com muita arte que estes intelectuais,

ligados a sociedade pre-industrial em declinio, elaboram textos eimagens para este espa<;o, ancorando-o, no entanto, na contramao

da hist6ria; construindo-o como urn espa<;o reacionario as mudan<;as

que estavam ocorrendo na sensibilidade social e, mais ainda, na

sociabilidade, com a emergencia de urn espa<;o burgues no Brasil.

A pr6pria inven<;ao do Nordeste nasce de uma mudan<;a na rela<;ao

entre olhar e espa<;o, da desnaturaliza<;ao deste, passando a ser

pensado nao mais como urn simples recorte natural ou etnico, mas

como urn recorte sociocultural.

o Nordeste e, portanto, filho da modemidade, mas e filho

reacionario, maquinaria imagetico-discursiva gestada para conter 0

processo de desterritorializa<;ao por que passavam os grupos sociais

desta area, provocada pela subordina<;ao a outra area do pais quese modemizava rapidamente: 0 SuI; alem das pr6prias mudan<;as

intemas, provocadas pelo crescimento das cidades, pela emergencia

de padr6es urbanos de sensibilidade e sociabilidade, pela separa<;ao

progressiva das novas gera<;6es dos padr6es de vida rurais, pela

subordina<;ao destes grupos rurais ao capital industrial e aos padr6es

mercantis que este imp6e. Portanto, este livro, longe de afirmar a

existencia de uma identidade regional, de uma regiao, desde sempre,

mostra as suas condi<;6es de possibilidade. Ele procura retratar como

o Nordeste se tornou a elabora<;ao regional mais sofisticada do pais.

Regiao que se gesta em rela<;ao a questao da na<;ao, da identidade

nacional; quest6es que se cruzarao, permanentemente, mas sempre

de maneira nova. Podemos afirmar que sao questionaveis tanto as

abordagens que consideram a regiao como urn recorte sempre existente

e sempre possivel, desde a Colonia, quanto aqueles que hoje descobrem

o regionalismo como inven<;ao recente. 0 regionali smo nasce estrei

tamente ligado ao nacionalismo, porque sempre caminharam juntos,

como condi<;ao de possibilidade urn do outro. A questao da na<;ao

no Brasil, desde que emerge no seculo XIX, esta atravessada de

regionalismos, que antecedem e criam as regi6es, ao contrario do

que comumente se pensa.

o Nordeste, assim como 0 Brasil, nao sao recortes naturais,

polfticos ou economicos apenas, mas, principalmente, constru<;6es

imagetico-discursivas, constela<;6es de sentido. Este trabalho procurou

mostrar os varios sentidos em que foram lidos e vistos 0 Brasil e

o Nordeste; como eles se cruzaram, como estes sentidos na sua

errfmcia iam desenhando estes espa<;os, configurando-os de diferentes

maneiras. Eles tern urn repert6rio linlitado, no entanto, pelas regras

de significa<;ao existentes em cada momento, pelos limites do dizer

e do ver, pelas dizibilidade e visibilidade. Estes espa<;os surgemcomo diferen<;as sem fundo, porque se dispersam em multiplos

sentidos. Base territorial da organiza<;ao do Estado, da polftica oficial,

do dominio social, eles surgem nas teias dos discursos, nas rendas

que estes tecem, como cruzamento de diferentes imagens e enunciados,

como produto das artes do dizer e do mostrar. Pensar a regiao como

uma entidade e perpetuar uma identidade forjada por uma dada

domina<;ao. Devemos pensa-Ia, sim, como uma constru<;ao historica

em que se cruzaram diversas temporalidades e espacialidades, cujos

mais variados elementos culturais, desde eruditos a populares, foram

domados por meio das categorias da identidade, como: mem6ria,

carMer, alma, espirito, essencia. 0 Nordeste, na verdade, esta em

toda parte desta regiao, do pais, e em lugar nenhum, porque ele euma cristaliza<;ao de estereotipos que sao subjetivados como carac

teristicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereotipos que sao

operativos, positivos, que instituem uma verdade que se imp6e de

tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas

regionais, em nome de urn feixe limitado de imagens e falas-cliches,

que sao repetidas ad nauseum, seja pelos meios de comunica<;ao,

pelas artes, seja pelos pr6prios habitantes de outras areas do pais e

da pr6pria regiao.

o olho torto da midia, como quer Rachel de Queiroz e para

o qual contribuiu, 0 preconceito em rela<;ao ao Nordeste e ao

nordestino nasceram de uma dada visibilidade e dizibilidade da

regiao, que nao foi gestada apenas fora dela, mas por seus pr6prios

discursos e reproduzida pOl' seu proprio povo. Este Nordeste nada

mais e que a regularidade de certos temas, imagens, falas, que se

repetem em diferentes discursos. Nao existe urn modo de ser nordestino

ou urn estilo brasileiro, a nao ser que se tome a identidade pelo

negativo, ou seja, 0 que identificaria 0 Brasil ou 0 Nordeste seria

a coexistencia de diferentes modos de ser, de diferentes estilos de

vi ver, a enorme fissura entre as classes, as diferen<;as culturais

30706

 

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I

!1

Ii

:1111

a na<;ao e a regiao nao tenham existencia "real". Elas possuem uma

positividade, elas se materializam em cada atitude, em cada com

portamento, em cada discurso que fazemos em nome delas. Elas

existem enquanto linguagem e enquanto produto do uso que desta

se faz pelo poder. A na9ao e a regiao sao vistas e ditas de formas

diferentes, dependendo do lugar que se ocupa na sociedade, na teia

de poder que a atravessa e na rede de saberes que a esta se vincula.

Mostramos, neste trabalho, como diferentes sujeitos, submetidos a

condir;6es historicas dadas, ocupando lugares especfficos nas rela9 6es

de poder, produziram diferentes textos e imagens para a regiao

Nordeste, e como 0 que parece 0 Mesmo surge assim como 0

Multiplo. 0 Nordeste, inventado no discurso sociologico de Gilberto

Freyre, e retomado pelo romance de Jose Lins do Rego que, ao

mesmo tempo, 0 repete e 0 diferencia, por pequenos dcslocamentos

que provoca, pela propria diferen9a do regime de discursos de que

participam: urn faz urn discurso "cientffico"; 0 outro, um diseurso

ficcional. Freyre tambem inspira os quadros de Cfcero Dias, que,

ao mesmo tempo, podem ser vistos como a materializar;ao das

308

acentuadas, ate dentro das mesmas classes; seriam sociedades que

se identificariam pela variedade das formas de fazer as coisas. Mas,

acontece que esta variedade nao e caracterfstica do Brasil ou do

Nordeste, e da humanidade. Formula<;oes de identidade nacional ou

regional, como a empreendida por Roberto da Matta, sao um

contra-senso, posto que vacilam entre a aceita<;ao de uma multipli

cidade como caracterfstica nossa e a atualiza9ao por nos de uma

pseudonatureza humana de canlter universal. Serfamos, para 0 an

trop610go, uma singularidade da natureza humana. Achamos que a

procura de universais no comportamento humano, seja de base

fisiol6gica ou psicol6gica, e reduzir a historicidade do homem em

todas as suas dimensoes, inclusive corporais, a natureza. 0 perigo

do discurso identitario e, exatamente, 0 de rebaixar 0 hist6rico ao

natural, reificando determinados elementos e aspectos da vida social,

desconhecendo que cada gesto humano, cada forma de usar seus

sentidos, cada fibra de sua musculatura, cada calo em suas maos

conta uma historia, assim como cada sentimento, cada paixao, cada

medo, cada sonho recolhe elementos desta historicidade.

Estes discursos identitarios quase sempre confundem as elabo

rar;oes discursivas, que nos criam como identidades, com "0 quc

real mente somos", v ivendo a procura constante de reconciliar um

ser empfrico com urn ser transcendental. Isto nao significa dizer que

imagens freyreanas ou como nao, porque as imagens de Cfcero

possuem uma marca particular, so dele, a marca de seu estilo.

Da mesma forma, quando os intelectuais nordestinos de esquerda

procuram inverter a imagem oficial da regiao, procuram aborda-Ia

a partir "do ponto de vista dos dominados, do povo", provocam um

deslocamento nas imagens e enunciados tradicionais ligados a regiao,

mas, ao mesmo tempo, a eles permanecem presos e os reproduzem,

porque nunca poem em questao a existencia da propria regiao, como

farao mais tarde as tropicalistas, questionando apenas 0 seu modo

de existencia. Esta prisao das esquerdas as fronteiras demonstra a

propria crise do enunciado internacionalista, no interior de um

dispositivo nacionalista. Oswald, nos anos quarenta, ja chamara

atenr;ao para 0 que significava 0 stalinismo e sua teoria da "revolur;ao

nacional", que transformou as linhas imaginarias das fronteiras em

linhas de tiro, para quem delas tentasse fugir; transformou 0 trar;ado

imaterial da clausura nacional em clausura de fato, eercada por

muros, por fronteiras de arame farpado e eletrificado. As fronteiras

de pontilhados tenues se transformaram em cortina de ferro. Desde

a decada de sessenta, falar em nome da nar;ao parece, cada vez

mais, anacr6nico. Assistimos, desde entao, a crise do dispositivo das

nacionalidades, que gera como conseqliencia movimentos crescentes

de internacionaliza9ao em todos os setores e, ao mesmo tempo,

rear;oes nacionalistas extremadas e fragmentadoras das proprias "na

90es historicas". Os regionalismos explodem como rea9ao conserva

dora a este processo de globaliza9ao. Os nacionalismos e regionalismos

sao anacr6nicos e reacionarios, embora em determinado momenta

hist6rico eles tenham possibilitado conquistas sociais e polftieas

importantes, bem como ineentivado a criatividade artfstica e cultural.

Mas estes parecem esgotados na sua potencialidade criativa, visto

que se fossilizaram no mesmo momento em que um dado feixe de

imagens e de enunciados, de sons e de sentidos foram escolhidos

como representativos da nar;ao ou da regiao; no mesmo momenta

em que esta sedimentar;ao de saberes se ap6ia numa rede de poderesque se quer perpetuar como defensora da nar;ao ou representante daregiao.

Parece, hoje, ser preciso ultrapassar as na95es au as regi5es

para permitir a emergencia do novo, porque a nar;ao, tanto quanta

a regiao, se tornaram maquinarias de captura do novo, do diferente,

e por isso vivem permanentemente em crise. No Brasil estamos

sempre carentes de na9ao, e no Nordeste somos sempre de uma

309

 

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reglaD carente. Quanto mais os golpes de Estado, as ditaduras, as

concilia<;oes dos vencedores nos prometem salvar a na<;ao e a regiao,

mais a carencia de na<;ao e a carencia da regiao parecem se agravar.

Discursos como os da dependencia, do subdesenvolvimento como

parte do desenvolvimento, da explora<;ao colonial como causas ex

plicativas de nossa situa<;ao enquanto pafs, parecem estar cada vez

mais desgastados, porque partem de uma prernissa de fundo, que e

a de nossa vitimiza<;ao enquanto pafs; a culpa por nosso atraso e

dos outros, nao nosso, enquanto vencedores e vencidos. 0 mesmose pode dizer dos discursos que giram em torno da denuncia do

colonialismo interno, das desigualdades regionais, da explora<;ao do

Nordeste pelo SuI e vice-versa. Sao discursos presos a essa logica

da vitirniza<;ao, da culpa sendo posta sempre no "outro", criando

um "eu" descomprometido com sua propria condi<;ao. 0 discurso

das desigualdades regionais, por exemplo, traz em sua base a falsa

prernissa de que um dia existiu ou poderao existir regioes iguais,

al6m de partir da naturaliza<;ao e homogeneiza<;ao das regioes que

poe em compara<;ao. Na verdade, existem repercussoes tanto em

nfvel nacional, como regional, dos mecanismos diferenciados de

reprodu<;ao do capital em nfvel internacional e dos interesses impe

rialistas, mas tais rela<;oes nao sao hoje externas a nos; clas nosatravessam; sao constitutivas de nos; nos as reproduzimos. Nao

existem, portanto, 0 externo e 0 interno.

Se afirmamos, neste livro, que 0 conhecimento do Nordeste 6

 

o Nordeste, isso nao significa que 0 conhecimento e a cultura devam

ter fronteiras, devam se aferrar a uma dada tradi<;ao, inventada como

representativa de qualquer espa<;o. A questao que se coloca 6 como

produzir cultura, lan<;ando mao das mais diferenciadas informa<;oes,

mat6rias e formas de expressao, seja de que procedencia for e, ao

mesmo tempo, nao se submeter as centrais de distribui<;ao de sentido.

nacionais ou internacionais, como ser global e singular. E preciso,

para isso, se localizar criticamente dentro destes fluxos culturais e

nao tentar barra-los. E preciso produzir uma permanente crftica das

condi<;oes de produ<;ao do conhecimento e da cultura no pafs e em

Ii I suas diversas areas. E preciso ter um olhar crftico em relaC;ao a estc

I olho grande que nos espia; ter uma voz dissonante em rela<;ao a

estas grandes vozes que tentam nos dizer. Nao se trata, pois, de

buscar uma cultura nacional ou regional, uma identidade cultural ou

nacional, mas de buscar diferenc;as culturais, buscar sermos semplG

diferentes , dos outros e em nos mesmos. 0 discurso historiogni fico

310

pode contribuir sobremaneira para a rufna das tradi<;oes e identidades

que nos aprisionam enos reproduzem como esta na<;ao sempre a

procura de si mesma, ou esta regiao sempre carente de que os

outros a ajudem. Para isso e necessario, como procUl'amos fazer

neste texto, que cada obra historiografica seja, ao mesmo tempo,

uma reflexao sobre a escritura da historia, sobre sua linguagem, sua

narrativa, que tamb6m estao comprometidas com a reprodu<;ao ou

nao de uma dada imagem ou texto do "real". A historia deve deixar

de ser apenas um discurso sobre 0 passado ou sobre 0 futuro, parase debru<;ar sobre 0 presente, descobrindo este presente como mul

tiplicidade espa<;o-temporal, pensando os varios passados que se

encontram em nos, e os varios futuros que se pode construir.

Devemos nos debru<;ar, criticamente, sobre as formas como foram

narrados os eventos historicos, nao como uma representa<;ao verdadeira

ou falsa do passado, mas como partfcipe da inven<;ao deste para

nos. Narrativas que construfram um dado universo e uma memoria,

que continuam funcionando em nos e dirigindo nossos passos.

Devemos sempre libertar as imagens e enunciados do passado,

os temas que 0 constitufram, os conceitos que 0 interpretaram, de

seu sentido obvio, problematizando-os. Este texto procurou mostrar

como 0 Nordeste, que hoje nos parece ter uma existencia obvia,nasceu num momenta de perigo para uma domina<;ao; como seu

rosto foi sendo montado por atitudes e discursos que, longe de terem

sido sempre conscientes, 0 foram tambem, em certa medida, aleatorios,

porque a historia nao tern propositos, e os muitos propositos de

seus agentes nem sempre se efetivam da forma esperada. Em nenhum

momenta de sua produ<;ao literaria Graciliano Ramos pretendeu

realimentar uma imagem e urn texto da regiao Nordeste, que repro

duzem, exatamente, a dornina<;ao que abominava e queria extinguir.

Por outro lado, a crftica que ele empreende aos mecanismos da

memoria e a linguagem possibilita questionar-se radicalmente a

cria<;ao do Nordeste, como texto e como imagem. Ele inicia, na

literatura brasileira, a suspeita de que nao ha rela<;ao direta entre aspalavras e as coisas, de que a palavra mata tudo que e fixo e tudo

que e fixo mata, fazendo da arte uma inimiga do embrutecimento,

do costume e da repeti<;ao.

o que afirmamos e que 0 Nordeste quase sempre nao 6 0

Nordeste tal como ele e, mas 6 0 Nordeste tal como foi nordestinizado.

Ele e uma maquinaria de produ<;ao, mas, principalmente, de repeti<;ao

de textos e imagens. Nao se pode ligar esta reproduc;ao de imagens

311

 

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e textos apenas a classe dominante. Nao existe nela uma simples

logica de classes; estas imagens e textos alcan<;aram tal nfvel de

consenso e foram agenciadas pelos mais diferentes grupos, que se

tornaram "verdades regionais". E preciso, pOl' exemplo, reconhecer

que 0 subdesenvolvimento economico e a estrutura de classes da

regiao nao sao suficientes para explicar a dificuldade em transformar

este espa<;o em espa<;o moderno. Esta verdadeira aversao ao moderno

nao se localiza apenas em setores dominantes, mas em setores de

varias classes sociais. As ideias, as imagens, os enunciados associadosao Nordeste, que 0 inventaram, sao urn componente decisivo dessa

"falta de capacidade modernizadora". Existe uma verdadeira falta de

legitimidade social do valor da inova<;ao, das novidades, uma falta

de aspira<;ao a mudan<;a, urn acentuado apego ao tradicional, ao

antigo, fazendo com que a moderniza<;ao atue no Nordeste no sentido

de mudar 0 menos possfvel as rela<;6es sociais, de poder e de

cultura. A moderniza<;ao nordestina seria uma "moderniza<;ao sem

mudan<;as", bloqueando a necessidade e a legitimidade da inde

pendencia do indivfduo, levando a aceita<;ao da hierarquia e da

prote<;ao pessoal como meios de se protegeI' do carateI' corrosivo

das mudan<;as, dificultando a emergencia de qualquer cidadania. Esta

falta de legitimidade social do novo faz do Nordeste esta poderosamaquinaria de djssolu<;ao da novidade. Torna-a uma regiao que serve,

nao apenas aos vencedores, mas a parcelas de outras classes sociais,

como escudo contra a radicalidade da modernidade; como maquinaria

que cega 0 gume da novidade, que moderniza sem alterar radicalmente

as rela<;6es que sustentavam 0 antigo.

A regiao Nordeste se construiu como urn dos principais mo

mentos de recusa da modernidade no pafs, no qual 0 avan<;o da

sociedade de consumo, de moda, da sociedade de massas, e obsta

culizado pela convivencia com interesses corporativistas, com ()

imobilismo dos interesses particularistas e das vantagens adquiridas,

aprofundando 0 proprio atraso, a medida que as positividades da

i ~ I i   modernidade e do capitalismo parecem ser insistentemente bloqueadas.i Bloqueando 0 fmpeto de mudan<;a nas rela<;6es sociais, surgem as

lutas para a conquista ou defesa de vantagens muito particularizadas;

surge a pulveriza<;ao da propria consciencia ou ideologia das classesI dominantes e a preponderfmcia do egofsmo categorial sobre a bUSCI

de urn processo social conjunto. 0 regiona lismo dissolve as identidadcs

de grupos e classes, avan<;ando no sentido da manuten<;ao doc;

interesses segmentar ios. 0 sistema de circula<;ao de sentido, ell I

,"312

nossa sociedade, funciona como obstaculo sistematico ao devil' de

novas significa<;6es sociais. Sacralizando a regiao, a na<;ao, 0 povo,

a ordem, a falllllia ou a revolu<;ao, os discursos polfticos cristalizam-se

em doutrinas e dogmas, que esterilizam a possibilidade de inven<;ao

de novas configura<;6es polfticas. 0 povo, 0 cidadao, sao quase

sempre para as elites brasileiras algo ainda inexistente e que devern

ser criados pOl' uma interven<;ao sabia. Do alto de sua sabedoria,

ela imporia a "essa massa amorfa" uma forma safda de suas ideias.

o povo real, na sua multiplicidade e diferen<;a, e desconhecido,quando nao desprezado, substituindo-o pOl' uma cria<;ao abstrata, pOl'

uma constru<;ao imaginaria que se quer autoritariamente decalcar na

realidade. Esta pode ser outra conclusao deste livro, ou seja, a de

que tanto os vencedores de direita quanta os de esquerda tiveram,

ate agora, uma visao abstrata e autoritaria do povo, exatamente pOl'

operaI' com categorias identitarias que 0 transformam em meia duzia

de assertivas, em imagem de povo amorfo ou massa de manobra,

ou seja, em algo a ser dirigido, visto e dito sempre pOl' intermedin

dos outros.

Este texto procurou apenas fornecer uma visao, de longo

alcance, das problematicas que se colocam no presente, como os

separatismos regionais e os preconceitos regionalistas. Ele tentou

apenas definir os pontos frageis e os pontos fortes da rede de

poderes que sustentam tais praticas e discursos; tentou ser uma

interpreta<;ao que abra novas possibilidades de interpreta<;ao, de

significa<;ao. Ele nao busca, a partir dos sinais deixados pelo passado,

construir uma verdade definitiva, pois nao seria tiranico 0 detentor

da verdade? 0 autoritarismo e 0 totalitarismo se alimentam da

historia das certezas e solapam qualquer perspectiva democratica que

nasce do respeito as diferen<;as e nao a uma hierarquia de identidades

institufdas. Se este livro puder estimular urn novo tipo de rela<;ao

entre Nordeste e Sui, se contribuir na verdade para se pensar na

destrui<;ao destas fronteiras, destas identidades cristalizadas, te d

ajudado urn pouco para 0 desaprendizado dos mecanismos hegemo

nicos de domina<;ao. Se este trabalho conseguir nos tornar mais

estranhos a nos mesmos, se ele conseguir tornar nossa atualidade

urn pouco mais distante dessa regiao, ao mesmo tempo, proxima de

nos, regiao que fora de nos nos delimita; se conseguir surgir como

urn discurso que come<;a a suspeitar da familiaridade dos discursos

regionais, que come<;a a nos ajudar a dissipar estas continuidades,

que levanta suspeitas sobre as identidades espa<;o-temporais enos

313

 

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desliga de qualquer fio de teleologia; se ele conseguir nos distanciar

I destas figuras historicas da na<;;ao e da regiao, ja tel'a cumprido 0

seu pape!.

Nao se trata, neste texto, de superar a modernidade em nomeIIde uma pos-modernidade, mas de levar as ultimas conseqiiencias a

propria modernidade, concedendo a historia 0 lugar central que ocupaII em nossa epistcme. A historicidade de todo 0 sublunar, a hist6ria

como 0 modo de ser de tudo que nos e dado a experiencia, como

o incontormlvel de nosso pensamento. Trata-se de revolver as camadas

deste sublunar que ainda permanecem "naturalizadas"; trata-se de

deglutir todos os objetos que parecem ainda fugir da corrosao do

tempo; trata-se de derrubar os mitos que ainda sustem uma dada

constru<;;ao das espacialidades em nivel nacional; uma hierarquia

espacial, que funciona para reprodu<;;ao de uma hierarquia de saberes

e de poderes; urn espa<;;o dominado pOl' for<;;as que pouco aceitam

e desejam 0 perigo do moderno; que prestigiam mais 0 passado do

que 0 presente; que reconhecem muito pouco 0 direito a novidade,

a diferen<;;a, em que os codigos de singulariza<;;ao e individualiza<;;ao

burgueses convivem com rigidas normas coletivas tradicionais, que

buscam barrar 0 processo de despersonaliza<;;ao das rela<;;6es sociais.

a que se chama hoje de "cultura nordestina" e urn complexo

cultural, historicamente datave!' E fruto de uma cria<;;ao politico-cul

tural, que tende a diluir as proprias diversidades e heterogeneidades

existentes neste espa<;;o, em nome da defesa "de seus interesses e

de sua cultura" regionais, contra 0 processo de dilui<;;ao no nacional

I, ou no internaciona!' Areas diversas cultural mente como 0 Rec6ncavo

' Baiano, 0 litoral pernambucano e paraibano, 0 sertao cearense ou a

parte amazonica do Maranhao, passam a ser pensadas como uma

unidade, desde geogrMica, etnica, ate cultural. U rna unidade politi

II camente defensiva em rela<;;ao ao desprestigio em nivel nacional eIii rei vindicativa de parcelas permanentes de investimentos. Quanto

menos regional era a regiao, do ponto de vista economico, social

e cultural, mas se reafirmava e se reafirma a sua pseudo-unidade e

a sua pseudo-identidade, a ponto de ingenuamente falar-se numa

separa<;;ao do restante do pais, que a devolveria a liberdade e traria

o desenvolvimento e a riqueza, proposi<;;6es risiveis, se nao tragicas,

diante do quadro de internacionaliza<;;ao e nacionaliza<;;ao de nossos

mercados e de nossas culturas. A nossa tese e de que precisamos,

sim, renunciar a todas as continuidades irrefletidas, sobretudo a

termos como tradi<;;ao, identidade, cultura regional e nacional, de:1111

314Il!I

senvolvimento, subdesenvolvimento, evolu<;;ao, para sermos capazes

de pensar 0 diferente e, ao pensa-Io, fazer diferente. Diferen<;;a que,

longe de ser origem esquecida e recoberta, e a dispersao que somos

e que fazemos.

Nao e pretensao deste livro se posicionar dentro da gritaria

regionalista que se apodera do pais nos 61timos anos. Ele nao e urn

manifesto em defesa da nordestinidade. Nao assumimos nele 0

discurso do outro, do menosprezado, do discriminado. Nao queremos

ficar do "Iado coneto". a que pretendemos foi deixar surgir algunsdos mecanismos de saber e poder que produziram estas fraturas

regionais e deram a elas suas identidades. Nao queremos defender

uma regiao contra a outra, OU os nordestinos dos preconceitos dos

sulistas, mas sim queremos e questionar a existencia destas regi6es,

desse Nordeste, desse nordestino ou essa nordestinidade que aparecem

na midia, nas discuss6es regionalistas e nas teses academicas. Nao

queremos ocupar nele 0 lugar esperado, seja enquanto "nordestino"

ou enquanto historiador "nordestino". Queremos nos deslocar desses

mecanismos aprisionadores e denunciar tanto urn lado como 0 outro,

como parte das artimanhas de nossa domina<;;ao e poder tel' outras

artimanhas, outras artes, outras manhas, outras manhas.

Nao quer este livro defender 0 Nordeste, mas ataca-Io; ele naoquer sua salva<;;ao, mas sua dissolu<;;ao enquanto esta maquinaria

imagetico-discursivo de reprodus;ao das rela<;;6es economico-sociais

e de poder que fazem com que sejamos habitantes de uma das areas

mais pobres e de pessoas mais ricas do pais. Este trabalho quis

questionar esta representa<;;ao regional e a prisao dos discursos a

este dispositi vo de for<;;as que a sustentou e a sustenta. POI' mais

que os discursos se considerem criticos, "revolucionarios", falando

de outro lugar, estes discursos estarao domados em seu poder de

corte se continuarem submetidos a logica que preside as ideias de

regiao/na<;;ao, que nao deixam emergir uma realidade muito mais

complexa e polimorfa. POI' que perpetuarmos este Nordeste que

significa seca, miseria, injusti<;;a social, violencia, fanatismo, folclore,atraso cultural e social? E preciso fugir do discurso da suplica ou

da denuncia da miseria; e preciso novas vozes e novos olhares que

compliquem esta regiao, que mostrem suas segmenta<;;6es, as cum

pI icidades sociais dos vencedores com a situa<;;ao presente deste

espa<;;o. Se 0 Nordeste foi inventado para ser este espa<;;o de barragem

da mudan<;;a, da modernidade, e preciso destrui-Io para poder dar

lugar a novas espacialidades de poder e de saber.

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5/11/2018 A Invencao Do Nordeste (Intro e Conclusao)- Durval - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/a-invencao-do-nordeste-intro-e-conclusao-durval 19/19

Assumir a nordestinidade e assumir estas varias r e p r e s e n t a ~ o e s  excludentes, sobre este espa90 e este povo; e emitir urn discurso

presQ a 16gica da submissao; e ocupar 0 lugar que esperam para

nossa voz e para nosso olhar: voz para pedir, suplicar, denunciar;

olhar para, banhado de lagrimas, comover a quem se dirige. Nao e

assumindo a nordestinidade e usando-a como se fosse urn enunciado

revolucionario que denunciaremos a teia de poder que exclui grande

parte dos chamados nordestinos, que estereotipifica como marginais

socioculturais a grande parte daqueles que nele habita. Mas enosafirmando como nao-nordestinos, no sentido consagrado, e mostrando

que existem diferentes formas de ser nordestino e que algumas nao

sofrem nenhum processo de d i s c r i m i n a ~ a o .   E preciso questionar as

lentes corn que os nordestinos sao vistos e se veem e corn que

enunciados os nordestinos sao falados e se falam. Esperamos ter

mostrado que 0 combate aos preconceitos, ern r e l a ~ a o   ao Nordeste

e ao nordestino, nao se fara pOl' urn discurso regionalista ou separatista,

que tente inverter 0 sinal do que se diz, atribuindo uma falsidade

ao que se fala e ve e procurando colocar outra verdade ern seu

lugar. Nao e voltando os mesmos preconceitos contra os sulistas ou

contra 0 SuI, que sao tambem a b s t r a ~ o e s .   Temos de c o m e ~ a r   pOl'

destruir 0 Nordeste e 0 nordestino, assim como 0 SuI e 0 sulista,como estas abstra90es preconceituosas e estereotipadas, buscando

conhecer as diversidades constitutivas de cada area e de cada parcela

da p o p u l a ~ a o   nacional e, a mais importante, nos preparando para

suportar a d i f e r e n ~ a ,   para respeita-Ia.

Devemos critical', por exemplo, a postura da midia, nao pOl'

que nao ve nossa verdadeira face, ou mostra nossa verdadeira fala,

mas porter uma postura negadora da hist6ria, da m u d a n ~ a ,   pOl'

estar presa a uma visibilidade e dizibilidade do Nordeste que faz

corn que venham a regiao sempre ern busca do folcl6rico, da m i s e r i ~ l .  da violencia, da seca, ate de cangaceiros, beatos e coroneis ainda

no final do seculo XX. Nao que a mfdia nao deva mostrar tais

aspectos, mas tambem se perguntar pOl' que ela nao consegue enxergarou escutar outras coisas na regiao. Nao sao ainda resquicios de uma

visibilidade e de uma dizibilidade que segmentavam 0 pais ern dois

palos antagonicos, representando 0 Nordeste todas as negatividades

do pais e 0 SuI, as suas positividades? Este olhar e esta fala d:J

midia reproduzem, ern grande parte, as hierarquias espaciais, as

hierarquias identitarias, que realimentam as desigualdades sociais,

economicas e culturais no pais. Operando corn estere6tipos, cle

316

"I

demonstra toda a sua pretensao de deter urn saber previo sobre 0

outro; urn saber atento apenas as d i f e r e n ~ a s   externas, mais superficiais;

as d i f e r e n ~ a s   tipicas, d i f e r e n ~ a s   que, em vez de questionar as

identidades cristalizadas, as repoem. As reportagens sobre 0 Nordeste

nao sao feitas para descobrir algo novo a seu respeito, mas reafirmar

a sua imagem ja estabelecida, que significa, ao mesmo tempo,

r e f o r ~ a r   a imagem construida para Sao Paulo, para 0 SuI etc.

E preciso, pais, continuarmos amando a hist6ria, nao pelas

certezas que nos revela, mas pelas duvidas que levanta, pelosproblemas que coloca e recoloca; nao porque os resolve e descobre

inscrita em si mesma, uma panaceia teleol6gica que viria a suprimir

todos os nossos sofrimentos. A hist6ria nao e urn ritual de apazi

guamento, mas de d e v o r a ~ a o ,   de d e s p e d a ~ a m e n t o .  Ela nao e balsamo,

e fogueira que reduz a cinzas nossas verdades estabelecidas, que

solta fagulhas de duvidas, que nao torna as coisas claras, que nao

dissipa a f u m a ~ a   do passado, mas busca entender como esta fuma9a

se produziu. 0 problema, antes de ser coberto pelas cinzas de uma

r e s o l u ~ a o   te6rica, deve ser soprado para que a p a r e ~ a   ern todo 0 seu

ardor de brasa. Ele deve voltar a queimar, a incomodar. E preciso

que a i n v e n ~ a o   do Nordeste deixe de ser uma questao adormecida,

para voltar a ser reposta ern nome do amor a vida que ainda epossivel, em nome do amor aos homens, que ainda nos deixa ern

duvida, certos de que nao ha nada mais inumano que a certeza,

parente da morte. Se a vida e amiga da arte, e possivel com arte

inventarmos outros Nordestes, que signifiquem a supressao das

clausuras desta grande prisao que sao as fronteiras.

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