a jus-humanização das relações privadas

50
A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS: para além da constitucionalização do direito privado PLÍNIO MELGARÉ* Professor de Direito da PUCRS e da Faculdade São Judas Tadeu, e Pesquisador e Orientador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional Sumário: 1- INTRODUÇÃO; 2- ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL; 3- AS CONDIÇÕES CONSTITUTIVAS DO DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; 4- A PESSOA HUMANA E A JUS- HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES; 5- OS DIREITOS DE PERSONALIDADE; 6- CERTAS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE; 7- UM EXEMPLO DE JUS- HUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES JURISPRUDENCIAIS; 8- NOTAS MODERNO- ILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO JURÍDICO; 9- CÓDIGOS JUSRACIONALISTAS; 10- CONCLUSÃO. “Restaurar a primazia da pessoa é assim, dever número um de uma teoria do Direito, que se apresente como a teoria do Direito Civil (...)” - ORLANDO DE CARVALHO * Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e Palestrante de Teoria Geral do Direito Civil na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

Upload: vodan

Post on 08-Jan-2017

215 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES PRIVADAS: para além da constitucionalização do direito privado

PLÍNIO MELGARÉ* Professor de Direito da PUCRS e da Faculdade São Judas

Tadeu, e Pesquisador e Orientador do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional

Sumário:

1- INTRODUÇÃO; 2- ANOTAÇÕES DE

APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL;

3- AS CONDIÇÕES CONSTITUTIVAS DO

DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA; 4- A PESSOA HUMANA E A JUS-

HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE

PARTICULARES; 5- OS DIREITOS DE

PERSONALIDADE; 6- CERTAS

CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DE

PERSONALIDADE; 7- UM EXEMPLO DE JUS-

HUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O

BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES

DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES

JURISPRUDENCIAIS; 8- NOTAS MODERNO-

ILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO

JURÍDICO; 9- CÓDIGOS

JUSRACIONALISTAS; 10- CONCLUSÃO.

“Restaurar a primazia da pessoa é assim, dever número um de

uma teoria do Direito, que se apresente como a teoria do Direito Civil (...)”

- ORLANDO DE CARVALHO

* Mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e Palestrante de Teoria Geral do Direito Civil na Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

1 – INTRODUÇÃO

O objeto deste trabalho é refletir acerca das relações entre a

ética e o direito. E, ao considerar essa circunstância, repercutir as

inexoráveis conseqüências trazidas por essa relação – sobretudo no campo

das relações jurídico-privadas, avistando-se o horizonte normativo

estabelecido pelo atual Código Civil Brasileiro (CCB) e a Constituição

Federal. Poderíamos partir da compreensão de ética apresentada por

VICTORIA CAMPS1, a saber: “La defensa de un ideal de humanidad por

debajo del cual la vida es indigna y carece de calidad. La reivindicación de

la justicia mínima para que la vida merezca el calificativo de «humana».”

Na continuação, a mencionada autora propõe: “el reconocimiento, enfin, de

unos derechos básicos plasmados en la Declaración Universal de Derechos

Humanos o en las Constituciones políticas”.

Particularmente, em relação à última parte citada,

apresentamos uma pequena divergência – que não radical, mas sim uma

distinção a se configurar como um acréscimo, haja vista não nos limitarmos

a reconhecer tão-somente os direitos moldados nas Constituições ou

Declarações de Direitos Humanos. Ademais, vincular a ética com a

mencionada Declaração de Direitos pode acarretar uma visão individualista.

Convergimos com o ideal da dignidade humana, tendo por base o recíproco

reconhecimento dessa condição entre os homens. E, desde logo,

estabelecemos uma idéia a ser desenvolvida no corpo do trabalho: o direito

não se reduz às ordens e às palavras escritas.

2 – ANOTAÇÕES DE APROXIMAÇÃO HISTÓRICA E CONCEITUAL

Inicialmente, ainda que às rápidas, necessário caracterizar

alguns conceitos. Referimo-nos aos conceitos de ética e moral. Uma análise

etimológica dessas duas expressões nos conduz a um ponto de

proximidade. Senão, vejamos: moral decorre do vocábulo latino mos, que

significa costume, uso, enquanto ética origina-se do grego ethos, êthê a 1 Ética y democracia: una ética provisional para una democracia imperfecta. Revista del Centro de Estudios Constitucionales, n.º 06, Madri: 1990, p. 25.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

2

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

significar modo de ser, costume, caráter. Portanto, ambas expressões

firmam suas raízes em um modo de comportamento humano. Dessa

origem comum é que ocorre o uso das expressões como sinônimos.

Todavia, recortamos alguma característica própria de cada

expressão. Conforme leciona MIGUEL REALE2, a ética teria por finalidade

precisar, ordenar os valores que instituem o comportamento humano,

enquanto que a moral refere-se mais à posição do sujeito em face desses

valores, ou ainda o modo pelo qual se expressam objetivamente os valores

de como regras ou mandamentos. A moral reproduziria a materialização

concreta da ética. Em termos de complementares, poderíamos delinear

como objeto da ética o estudo acerca das formas de agir do homem

consideradas por ele valiosas e, para além disso, incontornáveis.

Nos séculos XIX e XX, descortina-se na cultura humana o

advento das teorias dos valores – a axiologia, isto é, a ciência da

apreciação, da estimação. Nesse quadro, aquilo que é valioso também é

assumido como a finalidade da ética. Sem querer adentrar em toda a

complexidade que envolve a temática dos valores, podemos pensá-los

como qualidades que aderem a um ser, a um objeto ou a uma conduta,

alcançadas em função de suas relações com o homem, considerado como

um ser social. Outrossim, podemos perceber que o ser humano é

permeável aos valores – diferentemente de outros seres que compõem o

universo –, sendo a vida humana o campo fértil para a realização daqueles.

O termo valor pode ser considerado a pedra de toque das

ciências humanas. E indicam, em razão da relevância que os homens e os

grupos sociais lhes conferem na orientação das suas relações

intersubjetivas, algo que deve ser realizado. Destarte, prestamos livre

curso a esta definição: A ética é a parte da filosofia que tem por objeto os

valores que presidem o comportamento humano em todas as suas

expressões existenciais. Daí a sua preeminência em relação à moral, à

2 Variações sobre ética e moral, disponível no sítio www.miguelreale.com.br/artigo, acessado em 20/11/2003.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

3

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

política e ao direito, os quais corresponderiam a momentos ou formas

subordinadas de agir.3

Oportuno destacarmos, na marcha da história, uma

precedência dos preceitos normativos éticos de convivência em relação ao

ordenamento jurídico, o qual surgiu, também, ante a necessidade de tornar

imperativas as normas da ética. Nessa linha, podemos dizer que o direito

constitui-se como uma exigência social da ética.4 Por via de conseqüência,

ética e direito, embora com dimensões e contornos próprios, são realidades

que absolutamente não se divorciam, mas, ao contrário, reciprocamente se

complementam. E será a ética a matéria-prima a adensar o direito,

conferindo-lhe a validade fundante exigida para a concretização da justiça.

Ao largo da história, embora possamos até perceber uma certa

invariabilidade dos valores, é nítida uma variação da fundamentação da

ética, bem como de sua função, de sua validade e de seu sentido social.

Grosso modo, encontramos:

a) Consoante à mundividência da Antigüidade grega, o homem

era compreendido como um pequeno cosmos, onde seriam encontrados os

mesmos elementos formais e materiais do cosmos. O mundo em que o

homem vivia era visto como um cosmos e boa seria aquela vida que se

harmonizasse com a ordem cósmica. A lei cósmica da natureza seria

também uma normativa potencial aos costumes. Daí PLATÃO, a reclamar

que a harmonia da ordem dos corpos celestes fosse também alcançada

pelos homens, ou os estóicos, a proclamar como preceito moral a vida de

acordo com a natureza. Encontramos aqui o cosmos como fundamento da

ética.

b) No período medieval, em que há a figura de um Deus

criador do mundo e do homem, a ética assume uma fundamentação

religiosa. Será o bem aquilo que estiver em conformidade com a vontade

3 Idem, ibidem. 4 Assim em António Arnaut. Ética e direito. Coimbra: Livraria Mateus, 1999, p.11.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

4

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

ou a razão de Deus. E seria através de sua palavra revelada que os

homens podem conhecer a verdade ética. Estamos diante de um Deus

criador, onipotente, e legislador, dotado de vontade e/ou de razão, e que

preceitua os mandamentos éticos a serem seguidos pelos homens. A ética

aparece como uma esfera dependente da religião.

c) Tal fundamentação perdura de modo pleno até os fins do

século XVII. A partir desse período, com o racionalismo e a laicização

passando a permear as mais diversas esferas da vida humana, há uma

fundamentação antropológica da ética. A ética arranca do homem, que

pode ser visto por uma perspectiva naturalista ou autônoma. Naquela,

parte-se do que o homem é ou demonstra ser para se atingir um certo bem

que se aspira, que se pretende; nesta, reserva-se à autonomia humana a

exclusividade de determinar o que seja o bem – tal como afirmava KANT.

Os princípios da ética são pensados racionais e universais, alheios a

qualquer crença religiosa. Afirma-se uma maximização dos deveres, o

dever pelo dever, ou melhor dito, o amor pelo dever. Nos passos

kantianos, uma ética do dever.

A observação da realidade evidencia nossa atual sociedade,

consumista e massificada, superando a fase do dever pelo dever. Hoje,

estaríamos na situação caracterizada por GILLES LIPOVETSKY como a

cultura do após-dever ou a sociedade pós-moralista; é dizer, fomentando

mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar individualista, do que o

ideal de abnegação5. Cumpre ressaltar que essa cultura atual não implica

uma negação absoluta dos valores, ou ainda um período de indiferença

moral. Ao contrário, afirma-se um núcleo axiológico consistente que o

homem quer projetar em sua vida, v. g. os direitos humanos.

Por certo que o campo de abrangência da ética é larguíssimo.

Nada obstante, pretendemos apenas referir alguns daqueles princípios

5 A era do após-dever, in A sociedade em busca de valores – para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. org. Edgar Morin e Ilya Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 32-37 passim.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

5

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

éticos – que o jurídico culturalmente assume e assimila – valiosos para

compor o quadro das nossas relações intersubjetivas.

3 – ANOTAÇÕES SOBRE AS CONDIÇÕES CONSTITUTIVAS DO DIREITO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Se antes examinamos notas prévias acerca da ética, agora

faremos algumas observações básicas sobre o direito. E o fazemos

navegando por águas abertas pelo pensamento do Professor ANTÓNIO

CASTANHEIRA NEVES6. Nesse norte, repercutiremos aquelas condições que

constituem o direito, fazendo-o aflorar na realidade humana com um

sentido e uma intencionalidade próprios. E, sinteticamente, seriam:

a) CONDIÇÃO MUNDANAL: a ser expressa pelo fato de nós

homens sermos muitos a viver em um único mundo, isto é, a multiplicidade

de vidas em um único espaço. Com efeito, trazemos à baila uma elementar

e incontornável condição: constituímos uma diversidade de vidas vividas

em um único mundo. Conforme observou HANNAH ARENDT, estamos

diante do fato que não um homem, senão muitos homens vivem sobre a

terra7. Tal situação implica, de modo inexorável, uma circunstância de

convivência, que nos põe frente a outros homens no usufruir e

compartilhar do mesmo mundo, por meio de recíprocas relações.

b) CONDIÇÃO ANTROPOLÓGICO-EXISTENCIAL: se

(con)vivemos, decerto que o fazemos como homens. E, a despeito de

nossa condição de animal político – pois já na expressão de ARISTÓTELES,

o homem é um ser político, um zoon politikon –, somos seres dotados de

uma insociável sociabilidade. Assim, se somos com e por meio dos outros,

com os quais compartilhamos o mesmo mundo, não desconhecemos que

nos é difícil viver com os outros. E, talvez adentrando em um terreno

6 Em especial em O direito como alternativa humana, em Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 1º, Coimbra, 1995, p. 287-310 passim. E também Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito – ou as condições da emergência do direito como direito, in Separata dos Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço. Almedina, p. 837-871 passim. 7 Condition de l’homme moderne. trad. Georges Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1994.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

6

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

íntimo de nossa humana condição, não devamos desconsiderar que

estamos diante de criaturas entre cujos dotes instintivos [há] uma

poderosa quota de agressividade8. Acaso os dias de hoje, nos quais a

violência recrudesce, não seriam a confirmação disso? Seríamos, pois,

seres formados por uma disposição à agressão, a dificultar e abalar nossas

relações.

Tais condições colocam-nos diante de uma situação

problemática: como conciliar, em um espaço singular, uma pluralidade de

seres dotados de uma insociável sociabilidade? A resposta, por certo, passa

pela construção de uma ordem social. Todavia, releva observar que nem

todas as ordens sociais são ordens de direito. Poderia ser considerada de

direito a ordem do apartheid sul-africano? E a ordem dos Gulags? E a

ordem afirmada pelos campos de concentração? A resposta só pode ser

negativa. Não pode igualmente ser considerada uma ordem de direito

aquela em que o poder considera esse troço de matar (...) uma

barbaridade, mas que, ao fim, pensando-se por certo em suas

necessidades, conclui: acho que tem que ser9.

Então, o direito surge apenas como uma opção, uma resposta

possível ao incontornável problema posto pela nossa convivência. E se nos

apresenta como a alternativa comprometida com uma condição ética, que

reconheça cada homem constituído por uma autônoma eticidade, traduzida

superlativamente pela compreensão da dignidade da pessoa humana. Aliás,

não é sem sentido que a Constituição Federal do Brasil insculpe, no inciso

III do seu artigo 1º, a dignidade da pessoa humana como um dos

fundamentos da nossa República. Do mesmo modo, o Código Civil

Brasileiro abre seu Livro I tratando... das pessoas, e proclama no artigo 1º

que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Assim,

independente das especificidades e pormenores que a leitura de tais artigos

proporciona, a pessoa humana emerge como pressuposto essencial, núcleo 8 Cfe. Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 67. 9 Elio Gaspari. A ditadura derrotada. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 319 e seguintes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

7

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

e vértice da normatividade jurídica. É o ser humano, o homem-pessoa, que

se afirma como fundamento ético substancial indisponível da ordem

jurídica, formando a densidade jurídico-axiológica exigida por um efetivo

Estado democrático de direito.

A condição de pessoa há de ser compreendida e afirmada nas

relações concretas que o homem estabelece, tanto com as outras pessoas

(pessoa é re-latio), quanto nas relações estabelecidas com os poderes

públicos. Outrossim, impõe-se ante qualquer contexto social ou

circunstância particular. Nesse sentido, trazemos à baila a posição firmada

pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro, no Processo de Extradição n.º

633, que teve por Relator o Ministro CELSO DE MELLO, em que a República

da China requeria a extradição de um cidadão chinês residente no Brasil:

EXTRADIÇÃO E RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS. - A essencialidade da

cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não

exonera o Estado brasileiro - e, em particular, o Supremo Tribunal Federal

- de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que

venha a sofrer, em nosso País, processo extradicional instaurado por

iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar

a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado

de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente

como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos

fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável

importância, a garantia do due process of law. (...). É que o Estado

brasileiro (...) assumiu, (...) o gravíssimo dever de sempre conferir

prevalência aos direitos humanos (art. 4º, II). EXTRADIÇÃO E DUE

PROCESS OF LAW. O extraditando assume, no processo extradicional, a

condição indisponível de sujeito de direitos, cuja intangibilidade há de ser

preservada pelo Estado a quem foi dirigido o pedido de extradição.(...).

A nossa condição de pessoa ocorre pela justaposição do nosso

ser pessoal em comunicação com a nossa dimensão social. Em uma relação

dialética, a pessoa forma-se alimentada por essas duas dimensões. É como

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

8

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

se a pessoa humana fosse constituída por uma fina rede entretecida por

duas linhas: a linha singular do próprio ser (o eu pessoal) e a linha da

socialidade (o eu social). Se há o enfraquecimento de uma dessas linhas,

ou se uma delas se torna mais forte que a outra, a rede se desfaz,

decompondo substancialmente a pessoa humana. Há de haver uma

simbiose entre o eu pessoal e o eu social, que, em proporções equilibradas,

conjugam-se e forjam a essência da pessoa humana.

Por via de conseqüência, não se trata de algo abstrato ou a-

histórico – como se fosse um fato natural –, decorrente de enunciados

apodíticos. Pessoa existe entre pessoas, na mediação do mundo com o(s)

outro(s) e pelo reconhecimento do outro. Constituímo-nos como pessoa na

medida em que nos relacionamos; fazemo-nos pessoa uns com os outros –

o que implica, por certo, o reconhecimento do direito do outro. Ser pessoa

não é ofício isolado, tarefa de um ser só: é um ato que se forma pelo

reconhecimento do outro – também como pessoa –, igualmente um sujeito

de direito, a impedir sua instrumentalização.

A condição de pessoa não se paga e nem se apaga, afinal, a

pessoa é valor não o tendo.10 A pessoa deve ser distinguida, identificando-

se diante e graças a indicações peculiares e reais que tornam cada ser, no

mundo, único. E isso afasta qualquer tipo de discriminação, ao mesmo

tempo em que possibilita a diversidade na unidade. Ademais, discordamos

de posicionamentos que inserem a pessoa na contingência de uma massa

humana, bem assim de qualquer visão totalitária, que, muitas vezes, sob o

pretexto de organizar as massas, obscurece a pessoa11. Seguindo as

10 Lembramos o poeta ANTONIO MACHADO: por mucho que un hombre valga, nunca tendrá valor más alto que el de ser hombre. 11 A propósito, recordamos a condição daquele prisioneiro de um campo de concentração que, ao ter seu nome perguntado, respondeu: Vier und sechzig, neun, ein und zwanzig. Imre Kertész. Sem destino. trad. Paulo Schiller. São Paulo: Planeta, 2003. p. 136. Não por acaso, o regime nazista tinha por princípio a seguinte afirmação: Tu não és nada; tu Povo és tudo. E, por essa via, anulava-se o sentido humano da pessoa, que deixava de ter sentido em si mesmo. Nesse sentido, ver Hans Hattenhauer. Los fundamentos historico-ideologicos del derecho aleman – entre la jerarquia y la democracia. trad. Miguel Macias-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981, p. 323 e seguintes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

9

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

distinções propostas por MIGUEL REALE12, situamo-nos nos quadros do

chamado personalismo – personalismo ético, se dissermos com KARL

LARENZ, a implicar uma relação jurídica fundamental de respeito mútuo.13

Tudo, decerto, vinculado ao sentido da própria compreensão de seres

humanos, colorida por nossas experiências históricas.

Correlata a essa compreensão de pessoa, que em nenhum

momento se compagina a qualquer visão individualista, emergem dois

deveres: o de solidariedade – v. g. os direitos humanos de segunda

dimensão – e o de responsabilidade – a se traduzir significativamente pelo

dever de sermos responsáveis pelo(s) outro(s) e pelo mundo.

Responsabilidade, portanto, não será apenas responder pelas

conseqüências diretas dos nossos atos, senão cuidar do outro,

reconhecendo-o como uma pessoa; enfim, um dever pela existência da

humanidade – acaso não é isso o proclamado direito das futuras gerações?

Como se as nossas mãos se estendessem, abrissem as portas do futuro

para encontrar, do outro lado, um outro homem – a esperar a continuidade

do mundo que construímos, afirmado pelo direito que queremos. Pelo que,

ser pessoa é ser sujeito de direitos e, também, de deveres.

Ao referirmo-nos ao dever de solidariedade, não o pensamos

como um dever afirmado pelos fins perseguidos pelo Estado, que acabam

por obscurecer totalitariamente a pessoa humana. Tampouco uma

solidariedade buscada para atender fins específicos de algum grupo social,

que queira se sobrepor aos pleiteados pelo amplo desenvolvimento

humano. De fato, nos quadros da normatividade constitucional,

compreendemos o dever de solidariedade como correlato ao princípio da

igualdade e da equivalente dignidade social.14 Postula-se um dispositivo

que conceda a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de ser

12 Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 277-279 passim. 13 Derecho civil – parte general. trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 44 e seguintes. 14 Cfe. Pietro Perlingieri. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991, p. 168.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

10

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

humano, e, além disso, a pretensão de ser posto em condições idôneas a

cumprir as próprias inclinações pessoais assumindo a posição a estas

correspondentes.15

Anotamos, recolhendo a seiva reflexiva de HANS JONAS, o

entendimento segundo o qual a ética – que para nós é uma dimensão a

constituir o direito, oferecendo seu real sentido –, há de se preocupar com

o homem e com a sua vida concreta, reconhecendo que o primeiro dever

de comportamento humano coletivo é o futuro dos homens.16 Com efeito,

essa dignidade constituinte da pessoa é reconhecida no diálogo relacional –

não esqueçamos: pessoa é relação –, na troca de razões e sentidos

experienciados pelos homens no horizonte dinâmico da história. Somos

seres comunicáveis e comunicantes, e, por meio do discurso e da ação,

comunicamo-nos como pessoas, na presença do outro não como mero ob-

jectum, mas desvelando nossa identidade como sujeitos. O diálogo surge-

nos como um dever, constituído pela disposição de compreensão do outro.

Deste modo, subscrevemos a sentença de JULIEN FREUND: Au surplous, il

n’y a pas non plus des liberté et de justice sans reconnaissance de l’homme

par l’homme.17 Nessa atitude, distinguimo-nos e afirmamos nossa

singularidade ante nossa plural coexistência18 – ou, noutras palavras,

afirmamos reciprocamente nossa diferença ante nossa igualdade. Ao fim e

ao cabo, postulamos como sendo uma ordem de direito aquela que

afirmativamente enxerga e compreende o longo mar de rostos que enche a

terra de humanidade.19

4 – A PESSOA HUMANA E A JUS-HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES

15 Idem, ibidem, p. 169. 16 El principio de responsabilidad. trad. Javier Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 227 e seguintes. 17 L’essence du politique. Paris: Sirey, 1965, p. 699. 18 Com Hannah Arendt, diríamos: La parole et l’action révèlent cette unique individualité. C’est par elles que les hommes se distinguent au lieu d’être simplement distincts(...) Sem deixarmos de lembrar, ainda com Arendt, que: C’est par le verbe et l’acte que nous nous insérons dans le monde humain (...). Condition de l’homme moderne. trad. Georges Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1994, p. 232 e seguintes. 19 José Saramago. Os portões que dão para onde?, in A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.72.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

11

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

O situar da pessoa humana como pedra angular do

ordenamento jurídico implica compreender o direito a partir de um núcleo

normativo ético-axiológico fundamental. Esse núcleo – sobre o qual o

direito, em sua integralidade, radica20 – afirma-se como um elevado fator

de justificação, a regular vinculativamente os sujeitos no mundo que

compartilhamos, independente de qualquer condição singular desses

sujeitos. Portanto, há de estremar tanto as relações dos particulares entre

si, quanto as relações destes com o Estado.

Pensamos ser a inteligibilidade desse núcleo ético-axiológico,

desvelado pelo sentido da pessoa humana, que afirma sobremaneira a

confluência do direito público e do direito privado21.

Tradicionalmente, a divisão do direito em público e privado

estabelecia-se:

a) em razão da natureza dos sujeitos da relação jurídica – o

direito público regularia as atividades do Estado, enquanto que o direito

privado disciplinaria as relações entre particulares;

b) em razão da natureza do interesse presente na relação

jurídica – o direito público visaria a proteger os interesses do Estado,

enquanto que o direito privado protegeria os interesses do particular;

c) pela forma da relação jurídica – se a relação fosse de

subordinação, estaríamos diante do direito público, se a relação fosse de

coordenação, em que as partes ocupam um mesmo plano relacional,

falaríamos em direito privado.

Os critérios acima elencados, ante a percepção da realidade,

mostram-se insuficientes. Basicamente, a estrutura e a dinâmica social

20 Benemérito de menção, o estudo sobre a dignidade da pessoa humana e suas implicações no universo jurídico, da Doutora Maria Celina Bodin de Moraes, p105-147, in Constituição, direitos fundamentais e direito privado. org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 21 Sobre a dicotomia público/privado, sublinhamos o relevante estudo de Eugênio Facchini Neto, intitulado Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado, in Constituição, direitos fundamentais e direito privado. org. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

12

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

contemporâneas impuseram alterações no quadro da distinção

público/privado. Em nossas complexas sociedades, torna-se extremamente

difícil distinguir, de modo inequívoco e apriorístico, os interesses

particulares e dos públicos. A dicotomia público/privado acentuou-se em

um período histórico no qual se afirmavam os postulados do absenteísta

Estado liberal22. Com a superação desse tipo de Estado ocorreu,

progressivamente, uma inter-relação entre as esferas públicas e privadas.

De outra banda, o poder imperial do Estado passou a sofrer

limitações23 e, conseqüentemente, as relações travadas com os particulares

cada vez mais passaram a se dar de modo isonômico. A essência da

relação entre os particulares e o Estado contemporâneo não se caracteriza

pela subordinação ilimitada daqueles aos poderes – ou ao arbítrio – deste.

Ao contrário, firma-se um pacto, chancelado pela ordem constitucional, em

torno da promoção e do pleno desenvolvimento autônomo das pessoas. O

Estado assume o papel de tutela dos direitos fundamentais, bem como,

através de políticas públicas, a tarefa de promovê-los – o que, inclusive,

fundamenta e justifica sua intervenção.24

A onda democratizante, vivenciada pelo mundo ocidental no

último século, e que varreu do mapa arcaicas ordens ditatoriais,25

igualmente contribuiu para a aproximação entre o espaço público e o

privado. A idéia veiculada pela democracia, desde suas origens, traz

consigo uma exigência: que a administração dos assuntos públicos seja de

competência pública – ou exercida diretamente pelos cidadãos, ou através

de seus representantes. Mas isso não significa que a vida e os assuntos

particulares enclausurem o indivíduo em torno de si mesmo, como se o

público e o privado constituíssem dois hemisférios incomunicáveis da

22 Ver Francisco Amaral. Direito Civil – introdução. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.. 69. 23 A corroborar o afirmado, observamos o fenômeno da contratualização da lei, ou seja, o fato de, no processo de formação da lei, não mais se constatar um ato de soberania estatal, mas o acordo prévio de grupos organizados da sociedade civil, forjando um tipo de contrato, conforme bem sublinha Ricardo Lorenzetti. Fundamentos do direito privado, trad. Vera Jacob de Fradera, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 58. 24 Sobre esse tema, ver Pietro Perlingieri, op. cit. p. 111 e seguintes. 25 Como exemplo dessa onda, referimos: a Revolução dos Cravos, em Portugal, a queda das ditaduras latino-americanas e dos regimes que dominavam os países do leste europeu.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

13

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

sociedade. Essa circunstância, por promover demasiadamente os interesses

individuais, arriscaria a integridade da nossa tessitura social, possibilitando

a abertura de severas fendas na arquitetura sociodemocrática. Muitas

vezes, os interesses particulares podem afetar bens coletivos, reclamando

a intervenção pública.26 Por conseguinte, as democracias contemporâneas

incorporam em seu campo normativo diversos aspectos da vida

individual.27

Percebe-se, portanto, um suavizar das fronteiras demarcatórias

das áreas do direito, sem suprimir, todavia, a clássica distinção entre o

público e o privado. Por via de conseqüência, não há de ser o direito

exclusivamente público ou privado, pois há apenas uma fluida linha entre

os pólos públicos e privados.

Pelo visto e ponderado, importa que tenhamos o direito

lastrado por uma perspectiva material, a se constituir como uma ordem de

validade – que não é dada apenas pela análise das leis, mas, antes e

sobretudo, pelos princípios constituintes da normatividade jurídica.

Princípios que se encontram, no mais das vezes, reconhecidos pela ordem

constitucional, alcançando a todas as relações intersubjetivas normatizadas

pelo direito – inclusive as relações de direito privado.

Com efeito, aportaríamos no que se tem denominado por

constitucionalização do direito privado, isto é, o recepcionar de certos

direitos em normas fundamentais, reconhecendo-os e tornando-os

indisponíveis ao legislador ordinário. A perpassar tal compreensão está a

superação de um puro liberalismo estatal, bem como a correlata visão

constitucional do Estado liberal. Rigorosamente, queremos dizer a

26 É o caso, por exemplo, do direito ambiental, onde, com base em uma mera suspeita de dano ambiental, sujeita-se o particular à realização de estudo de impacto ambiental. 27 Observamos outro fato que brota em muitas democracias de hoje: atendendo-se ao postulado da transparência, muitos assuntos de ordem privada irrompem a seara pública. Aliás, não foi esse um dos problemas enfrentados pelo personagem Coleman Silk em seu envolvimento com a faxineira Faunia Farley? (Philip Roth. A marca humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002). Para não ficarmos somente na ficção, lembraríamos o suposto caso do Príncipe com o mordomo e o do Presidente com a estagiária.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

14

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

superação de um Estado de direito liberal, a se forjar, acompanhando

sinteticamente o escólio de GOMES CANOTILHO, através da:28

a) minimização do Estado;

b) não-intervenção estatal nos domínios socioeconômicos;

c) submissão das atividades políticas e dos poderes públicos

aos desígnios e interesses da economia.

Outrossim, implica a superação de um paradigma constitucional

perspectivado:

a) apenas pela limitação racional do poder político;

b) pela pretensão constitucional de tão-somente disciplinar e

organizar os órgãos estatais;

c) pela afirmação de direitos e liberdades de caráter individual

a serem opostos pelos cidadãos perante o Estado.29

Em contrapartida, afirma-se um Estado democrático de direito

material, substancialmente comprometido com efetivação da justiça, no

qual a Constituição, expressando um pacto entre a deliberação política e o

propósito do direito, com suas autonomias e especificidades próprias,

afirma-se como um real estatuto jurídico do político,30 consolidando uma

efetiva ordem democrática. O ethos dessa tipologia estatal radica no

postulado de uma existência em harmonia à dignidade humana, pois, em

uma democracia, a sociedade há de ser solidária com os seus integrantes,

28 Direito Constitucional. 5ª ed. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 1992, p. 76. 29 Releva sublinhar que tal modelo de Estado influenciava a compreensão, e, por via de conseqüência, a regulação das relações entre os particulares. Assim, afirmava-se a plena autonomia das partes, não se aceitando a revisão dos contratos, a serem interpretados no sentido da intenção das partes, bem como afirmava soberanamente a responsabilidade civil subjetiva. De fato, pretendia-se uma plena liberdade contratual, cimentada em uma igualdade formal. Contudo, ante a realidade social, tal liberdade contratual do direito converter-se-ia em... escravidão contratual na sociedade. O que, segundo o direito, é liberdade, volve-se, na ordem dos factos sociais, em servidão. (Gustav Radbruch. Filosofia do direito. trad. Luis Cabral de Moncada. 6ª ed. Coimbra: Armenio Amado, 1979, p. 288) 30 Conforme a consagrada expressão do Professor António Castanheira Neves. A revolução e o Direito, em Digesta. v. 1º, Coimbra, 1995, p.234.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

15

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

afirmando-se a exigência che anche il singolo debba garantire ad ogni altro

un’esistenza degna31.

Ora bem, estávamos a falar do reconhecimento de certos

princípios éticos pela ordem constitucional. Sem espaço para dúvidas,

conforme percebeu a inteligência penetrante de PONTES DE MIRANDA, a

passagem dos direitos e liberdades às Constituições representa uma das

maiores aquisições políticas da invenção humana. Invenção da

democracia.32 Contudo, ressaltamos que estamos apenas e tão-somente

perante um processo de reconhecimento de certos valores por um Poder.

Falou-nos PONTES DE MIRANDA de passagem, ou seja, de algo que

transita de um lugar para outro – como se os valores passassem de um

patamar supra-positivo para o estalão constitucional. Quer isso dizer que

não é o Poder a instância criadora de tais princípios e valores superiores.

Pensar de tal forma seria, no mínimo, desconhecer – ou desconsiderar – o

complexo processo histórico de formação dos direitos humanos e dos

direitos fundamentais. Impende, isto sim, observar a harmonia entre

valores ético-culturais caracterizadores uma época, com a expressão do

poder político e a própria positivação do direito.

De fato, referimo-nos a certos princípios – princípios

normativos – que se referem à essencial intencionalidade do direito, ao

essencial núcleo normativo ético-axiológico fundamental que, ao fim e ao

cabo, caracteriza e constitui o direito como direito. Em termos de

exemplos, lembraríamos o princípio da isonomia, da legalidade, da ampla

defesa, da presunção de inocência, da liberdade de expressão, da liberdade

religiosa, do devido processo legal e, sobretudo, o princípio da dignidade da

pessoa humana. Tais princípios enriquecem a experiência humana, tendo

validade por sua própria força normativa,33 independente de qualquer

reconhecimento formal por parte do Poder: são aqueles padrões a serem

31 Cfe. Franz Wieacker, Diritto privato e società industriale. trad. Gianfranco Liberati. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001, p. 58. 32 Democracia, liberdade e igualdade – os três caminhos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 37. 33 Cfe. Paul Ricoeur. O justo ou a essência da justiça. trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 149.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

16

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

observados em razão de alguma exigência de justiça, eqüidade ou alguma

outra dimensão de eticidade.

Nesse sentido, quer nos parecer que a expressão

constitucionalização do direito privado pode dar margem a uma idéia

reducionista da leitura e da concretização exigidas atualmente na seara do

direito privado – o nome não corresponde ao que é nominado, pois a

efetividade de tais princípios independe da vontade do legislador

constituinte em reconhecê-los. Afinal, seriam apenas os valores expressos

pelo legislador constituinte que devem informar o sistema como um todo?34

Sustentamos que não. Para tanto, basta pensarmos o seguinte: e se o

legislador constitucional brasileiro de 1988 não houvesse

constitucionalizado o princípio da isonomia, significaria que tal princípio não

valeria no Brasil? E se não estivesse escrito no inciso III, do artigo 1º que a

dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil? E se no inciso II, do artigo 4º não constasse a

referência aos direitos humanos? Significa que as nossas relações não

estariam fundadas sobre o lastro axiológico da dignidade da pessoa

humana e dos direitos humanos?

Não estamos a negar a existência de um processo de

constitucionalização do direito privado, de um modo geral, e,

particularmente, do direito civil. Um ligeiro passar de olhos sobre a

Constituição brasileira é suficiente para que isso se evidencie. Senão,

vejamos: o inciso X do artigo 5º preceitua a reparação do dano moral, bem

como estabelece a inviolabilidade da vida privada, da imagem e da honra

das pessoas; o art. 226 estabelece os princípios institucionais da família, e,

em seu parágrafo 3º, reconhece a união estável entre o homem e a mulher

como entidade familiar. Com efeito, advogamos, para além da

constitucionalização, uma efetiva e substancial jus-humanização do Direito

Civil, cujo sentido será caracterizado pela densidade material dos princípios

34 Cfe. Maria Celina Bodin de Moraes, op. cit., p. 107.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

17

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

normativos, escritos ou não,35 e que oferecem o sentido axiológico-

normativo da resposta do direito aos casos concretos que postulam a sua

mediação.

Na esteira do considerado, alcançamos o ponto concernente à

legitimidade constitucional. E, nesse terreno, pensamos em um

fundamento de validade material, em que não basta o manto da mera

legalidade ou da simples positivação de um poder. Ao contrário, a

legitimidade constitucional deve fixar-se sobre a correspondência da

Constituição com o estrato axiológico de uma cultura em um certo

momento histórico. Noutros termos, propugnamos que o critério de

validade de uma Carta Magna caracteriza-se pela sua adequabilidade à

respectiva compreensão de justiça de um dado ciclo histórico-cultural.

Decerto que isso nos remete a uma instância que ultrapassa o próprio

texto. Como noutro espaço sustentamos,36 uma Carta Constitucional não se

autofundamenta, mas, antes e sobretudo, envia-nos a um nível axiológico

substancial que a transcende. O que nos leva a posicionar,37 agora em um

âmbito mais específico, a seguinte questão: o direito civil encontra em uma

Constituição o último ou penúltimo critério de sua normatividade?38

De outra parte, não se deve incorrer no equívoco de pensar a

Constituição como diretriz ou fundamento exclusivo da juridicidade39 – ou

ainda critério jurídico-político exclusivo para a atividade jurisdicional. A

história deve sempre nos lembrar – até porque isto não nos é muito

distante – que ordens arbitrárias também possuem Constituições; que é 35 Segundo o magistério de Orlando de Carvalho: o Direito não é simplesmente a letra dos dispositivos (...); é também o que está para além dos dispositivos – quer se trate de princípios informadores das disposições existentes, quer de disposições ainda inexistentes ou não postas. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. 2a ed. Coimbra: Centelha, 1981, p 50. 36 Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 139. 37 A questão acima, embora noutro contexto, é feita pelo Professor António Castanheira Neves, Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 2º, Coimbra, 1995p. 408. 38 Lembramos a palavra de Gustavo Zagrebelsky, no discurso proferido em homenagem ao XX aniversário do Tribunal Constitucional Português, em 28/11/2003: As Cartas Constitucionais são de facto uma garantia, mas não a última, apenas a penúltima. E, citando Joseph De Maistre, lembra: Uma constituição escrita é um concurso sempre aberto a quem escrever uma melhor. 39 Tratamos com mais vagar desse tema em Juridicidade: sua compreensão político-jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003, p. 134 e seguintes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

18

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

formalmente possível a uma Constituição estabelecer o sacrifício de alguma

etnia ou alguma ordem discriminatória que viole os direitos de uma

minoria. Outrossim, há Constituições de ruptura, a expressar, mesmo com

apoio da vontade popular, ordens ideológicas excludentes e totalitárias.

Com efeito, o que sustentamos, portanto, é uma axiologia superior e

transpositiva do direito, em que o absoluto não [seja] a constituição, [mas]

absoluto [seja] o direito.40

5 – OS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Decorrente da jus-humanização supra-referida, que reconhece

a pessoa humana como núcleo axiológico do direito,41 encontramos no

Código Civil Brasileiro, de modo inovador, um capítulo destinado aos

direitos de personalidade. O reconhecimento desses direitos encontra-se

historicamente vinculado à compreensão ética do ser humano como um

sujeito de direitos, portador de uma dignidade intrínseca. Nada obstante a

possibilidade de encontrarmos remotas raízes jurídicas de proteção ao

homem e de sua personalidade, a Segunda Guerra Mundial, a barbárie

produzida pelo nacional-socialismo, bem como o advento de outras

cruentas ordens totalitárias e ditatoriais, evidenciaram o largo horizonte de

possibilidades de desprezo à dignidade humana e à sua personalidade.

Demais disso, descortinou-se, no panorama das relações intersubjetivas,

que essas possibilidades podem igualmente ser efetivadas não apenas pelo

Estado, mas também por parte de sujeitos particulares – e hoje, com o

desenvolver da tecnologia, acentua-se essa possibilidade. Assim, impõe-se

a plena afirmação dos direitos da personalidade e sua ampla tutela jurídica,

a se estender tanto no âmbito das relações do direito público quanto do

direito privado.42

40 Cfe. René Marcic apud Castanheira Neves, op. cit. p. 325. 41 Vale lembrar a alteração do Código Civil de 2002, que em seus dois primeiros artigos substitui a palavra homem, utilizado pelo Código de 1916, pela expressão pessoa. Tal alteração não é apenas de forma, senão que de substância, ante a compreensão da expressão pessoa humana, cuja situação basilar é relacional – se é pessoa entre outra(s) pessoa(s), em lugar do indivíduo isolado em si mesmo e em seus próprios interesses. 42 Assim, por exemplo, dentre tantos, Luis Díez-Picazo e Antonio Gullon. Sistema de Derecho Civil, v. 1, 9ª ed., 2 ª reimpressão, Tecnos: Madri, 2000, p. 324. Como nota de circunstância, vale a lembrança do escólio de Pontes de

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

19

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

Decorrentes, pois, da dignidade da pessoa humana, valor-fonte

do direito, valendo-nos de uma feliz expressão de MIGUEL REALE,43

podemos entender por direito geral da personalidade um certo número de

poderes jurídicos pertencentes a todas as pessoas, por força do seu

nascimento.44 Ou ainda, segundo a tradicional lição de ADRIANO DE CUPIS,

os direitos de personalidade são direitos essenciais, sem os quais a

personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada,

privada de todo o valor concreto.45

Importa sublinhar a presença de um superior patamar

axiológico composto pela incontornável compreensão da pessoa humana e

a substancial realização dos direitos que dela emanam, fundamentante da

ordem jurídico-positiva. Os direitos de personalidade apresentam uma

plena abertura normativa, dúctil, cuja extensão há de permitir o abranger

da complexa pluralidade existencial do ser humano. Por via de

conseqüência, não se esgotam nos enunciados aprioristicamente descritos

nos textos legais, é dizer, não há de se pretender um inventariar exaustivo

dos direitos da personalidade. Inclusive, essa posição – a da não-tipificação

exaustiva dos direitos da personalidade – parece-nos ter sido adotada pelo

Código Civil Brasileiro (CCB), haja vista ali estarem traçados seus princípios

reitores fundamentais.46

A elevação da dignidade da pessoa humana como um dos

fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme referimos, marca

indelevelmente em nossa normatividade jurídica uma cláusula geral da

personalidade, segundo a qual la tutela della personalità si può considerare

Miranda, que o direito da personalidade como tal, que tem o homem, é ubíquo: não se pode dizer que nasce no direito civil, e daí se exporta aos outros ramos do sistema jurídico, aos outros sistemas jurídicos e ao sistema jurídico supra-estatal; nasce, simultâneamente, em todos. Tratado de Direito Privado. Tomo VII. 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi,1971, p. 13. 43 O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 100. 44 Conforme Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil. 3ª ed. Coimbra, 1999, p. 206. 45 Os direitos da personalidade. trad. Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p.17 46 Cfe. Moreira Alves, (...) se abriu um capítulo para os direitos da personalidade, estabelecendo-se não uma disciplina completa, mas os seus princípios fundamentais. A parte geral do projeto de Código Civil. Revista do Centro de Estudos Judiciários – Conselho da Justiça Federal, no. 09, set/dez. 1999, Brasília, p.08.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

20

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

unitaria, non definita, senza limiti, elastica, adattabile quanto piú possibile

alle situazini concrete ed alle condizioni culturali, ambientali nella quali essa

si realizza.47

Da noção geral e aberta do direito de personalidade – cujo

objeto é o seu próprio sujeito, é a Pessoa mesmo,48 que visa a preservar os

bens essenciais e básicos da pessoa concretamente considerada,49 em sua

relação consigo e aquelas estabelecidas com o mundo e a(s) outra(s)

pessoa(s), tanto em sua dimensão psico-física quanto moral, amparando o

seu autônomo desenvolvimento –, desdobram-se alguns direitos especiais

de personalidade, v. g., o direito ao nome (art. 16 do CCB), ao pseudônimo

(art. 19 do CCB), à imagem (art. 20 do CCB e inciso X, art. 5º da

Constituição Federal), à intimidade (art. 21 do CCB e inciso X, art. 5º da

CF).50 Aceita-se, deste modo, um direito geral de personalidade, referente

à proteção da dignidade e individualidade humanas, e direitos especiais de

personalidade, que possuem um objeto específico.51 De fato, estabelece-se

uma relação entre a cláusula geral e os direitos especiais de personalidade,

na qual aquela, como a célula mater dos direitos de personalidade,

fundamenta e oferece o sentido destes.52 Ante a impossibilidade de se

47 Pietro Perlingieri, op. cit., p. 325. 48 Cfe. Orlando de Carvalho, Para uma teoria da pessoa humana, in O homem e o tempo – liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1999, p. 542. 49 Ao referirmos a pessoa concreta, pensamos na superação de um sentido exclusivamente técnico da pessoa (...) quando o sujeito faz parte das relações jurídicas como um elemento, o que significa chegar à própria negação da existência de direitos subjetivos das pessoas. Luiz Edson Fachin. Teoria crítica do Direito civil- à luz do novo Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99. Pensar dessa forma impulsiona a uma separação do direito em relação ao mundo vivido – acaso não seria esse um dos pilares da pandectística? –, como que se a pessoa dependesse do reconhecimento do legislador para ser titular de direitos e ver seus direitos fundamentais assegurados. Pessoa concreta é a pessoa de carne e osso, que vive e sente, e, que, em sua vida, é capaz de amar e de sofrer, el que come, y bebe, y juega, y duerme, y piensa, y quiere: el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano. (...). [Enfim], yo, tú, lector mío: aquel outro de más alla, cuantos pisamos sobre la tierra. Miguel de Unamuno. Del Sentimiento Trágico de la Vida. 3a reimpressão, Madri: Alianza, 2001, p. 21-22. E esse homem, essa pessoa, assim considerado, há de ser o sujeito e a preocupação máxima de todo o Direito e do Estado democrático, comprometido com uma igualdade material. Afinal, com Orlando de Carvalho, diríamos: É o ser humano, é a Pessoa que se tem de tomar a sério. op. cit., p. 545. 50 Desses exemplos, recortamos duas esferas sobre as quais incidem os direitos de personalidade: uma esfera material e outra imaterial. 51 Na mesma direção, e aprofundando a dimensão histórica dos direitos de personalidade, ver Helmuth Coing. Derecho privado europeo. vol. II. trad. Antonio Pérez Martín. Madri: Fundación Cultural del Notariado, 1996, p. 355 e seguintes. 52 Sobre essa relação, vide a obra de Rabindranath Capelo de Sousa. O direito geral de personalidade. Coimbra, 1995 p. 557 e seguintes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

21

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

esgotar na letra da lei o âmbito da personalidade merecedora de tutela, a

cláusula geral de personalidade oferece aos operadores do direito um

elemento seguro e racionalmente justificável para a proteção concreta da

pessoa. Se no caso decidendo não houver a violação específica de um

direito de personalidade, recorre-se ao direito geral de personalidade para

salvaguardar a substancial proteção da pessoa humana.53

À vista do ponderado, a tutela da personalidade exsurge na

constituenda normatividade jurídica perspectivada pela dimensão onto-

axiológica do ser humano. Nesse norte, pleiteia o direito de cada pessoa

constituir uma vida existencial própria – inclusive o direito de ser

diferente,54 de ver reconhecidas as diferenças –, sendo a pessoa o sujeito

do direito em um mundo de inter-relações com outros iguais sujeitos.

Nesse quadro, compete àquele que é chamado a dizer o direito, ante a

problemática suscitada pelo caso concreto, nomeadamente na seara dos

direitos da personalidade, orientar sua decisão no sentido de atender as

53 Sobre o tema, ver Karl Larenz. Derecho Civil – parte general. trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Revista de Derecho Privado, 1978, p. 164-165 passim. 54 Conforme destaca Erik Jayme, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, (...), criou o conceito de direito fundamental da pessoa à protecção do seu estilo de vida. Pós-modernismo e direito da família, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVIII, ano 2002, p.210. Esse entendimento decorre da inteligência das disposições normativas que tutelam a vida privada – tal-qualmente estabelece o inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal brasileira. Assim, nasce o dever de reconhecer o estilo de vida decorrente das autônomas opções de cada pessoa – v. g. as opções sexuais –, afirmando-se o direito das minorias, amparando-o juridicamente e apartando das relações sociais quaisquer traços discriminatórios. Ilustrativo, na esteira do considerado, a seguinte decisão: União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, (...), buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevado sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade.(...). Agravo de Instrumento 70001388982. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Sétima Câmara Cível. Relator: Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis. Data de julgamento: 14/03/2001. O reconhecimento do direito à diferença independe da aceitação social de uma maioria, pois decorre da própria autonomia pessoal e, em última sede, da dignidade humana. Assim, os comportamentos tidos por diferentes, refletindo as opções das minorias, desde que não ofensivos à ordem pública, devem receber a tutela das instâncias jurídicas, sob pena de o direito se transformar em uma barreira à projeção de novos valores na vida social, circunavegando nas paradas águas da insensibilidade. E, por fim, o direito à diferença não pode resultar em uma ... indiferença. Como bem observou o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, é bom lembrar, pois freqüentemente esquecido, a sociedade, o Estado e o Direito existem em função da pessoa humana, de sua felicidade e realização plenas, cuja efetivação só não pode realizar-se com o sacrifício do outro, individual ou coletivo. Embargos Infringentes 70000080325 – 4º Grupo de Câmaras Cíveis. Tribunal de Justiça do RS. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 200/ junho de 2000.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

22

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

singulares e reais especificidades existenciais do titular do direito de

personalidade ameaçado ou lesado.55

6 – CERTAS CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Os direitos de personalidade, distinguindo-se, pois, de outros

direitos subjetivos, apresentam características próprias. Algumas dessas

características são nominadas no próprio art. 11 do CCB.56 Isso posto,

veremos, em duas ou três palavras, os seguintes elementos distintivos dos

direitos de personalidade:

a) Intransmissíveis: em razão da própria essência dos direitos

de personalidade, segundo a qual os bens jurídicos da personalidade

humana física e moral constituem o ser do seu titular,57 nasce uma

incontornável vinculação dos próprios direitos com o seu titular – os

direitos de personalidade não se separam de seu titular. Dessa forma, há,

por princípio, a impossibilidade de se ceder, alienar, onerar, sub-rogar,

transmitir ou outorgar um direito de personalidade. Inerente à idéia de

transmissão, está a de uma pessoa pôr-se no lugar de outra. Logo, caso

fosse possível a transmissão, o direito não seria personalidade,58 porquanto

personalidade não se transmite, não havendo alteração de seu titular.

b) Irrenunciáveis: do mesmo modo que a intransmissibilidade,

a irrenunciabilidade é uma das características dos direitos de

personalidade. Dada a sua essencialidade, não se pode renunciar aos

direitos de personalidade; é dizer, não se pode desistir, nem eliminar os

direitos de personalidade. Os direitos de personalidade não podem ser

perdidos durante a existência de seu titular. Todavia, tanto a

55 Nesse diapasão, modelar a jurisprudência portuguesa que assim pronunciou: O julgador, ao aplicar a lei no âmbito do direito de personalidade, não deve atender a um tipo humano médio, ao conceito de cidadão normal e comum, antes deve ter em conta a especial sensibilidade do lesado, como é na realidade. apud Rabindranath Capelo de Sousa, op. cit., p. 117. 56 Dispõe o citado artigo: Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. 57 Rabindranath Capelo de Sousa, op. cit., p. 402. 58 Cfe. Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo VII, 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p.07.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

23

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

intransmissibilidade quanto a irrenunciabilidade não obstam uma possível

limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade, desde que

não se firam os princípios fundantes da ordem pública.59

c) Indisponíveis: Compreendida a natureza essencial dos

direitos de personalidade, percebe-se que, por regra, a indisponibilidade os

chancela. Assim, ao seu titular não será juridicamente possível estabelecer

uma outra meta ou um outro rumo ao seu direito. Não obstante o

afirmado, há uma abertura, inclusive de ordem legal, que possibilita o

amenizar, o abrandar, dessa característica. Rigorosamente, poderíamos

dizer que há uma indisponibilidade temperada, haja vista aquelas situações

em que licitamente se possibilita ao sujeito ativo do direito de

personalidade dispor sobre o objeto de seu direito, limitando-o. Tal

possibilidade, desde que a disposição não seja ilícita ou contrária aos

princípios instituintes da ordem jurídico-política, resulta da liberdade de

autodeterminação pessoal, de uma razoável flexibilização que o próprio

sujeito pode incorporar à sua personalidade. Assim, e. g., pode haver a

concessão para uso de imagem, ou, ainda, a própria hipótese prevista no

artigo 13 do CCB, dispondo acerca da doação de órgãos ou tecidos para

fins de transplante que não importem diminuição permanente da

integridade física. Ressalte-se, contudo, que isso não elide a

indisponibilidade como elemento caracterizador e constituinte dos direitos

da personalidade: a referida abertura não torna a indisponibilidade uma

característica absoluta, tão-somente a modera. Ademais, a possibilidade de

disposição há de ser sempre voluntária, consciente e livre de qualquer

defeito. Conforme acima referimos, há algumas situações em que a própria

legislação estabelece a licitude de uma certa disposição sobre os direitos de

personalidade. Não há de se pretender que a lei as delimite

exaustivamente. Advogamos que a indisponibilidade dos direitos de

personalidade deve recair sobre aqueles bens jurídicos efetivamente

essenciais e caracterizadores da condição ética da pessoa humana.

59 Nesse diapasão, ver Carlos Alberto da Mota Pinto, op. cit. p. 211 e seguintes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

24

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

Destarte, não se coaduna com a intencionalidade e o sentido do direito um

negócio jurídico no qual uma parte se auto-submeta à escravidão,

renunciando à sua liberdade, bem assim que tenha por objeto a renúncia à

integridade física. Nesses casos, inclusive, mais do que se tratar de uma

impossibilidade jurídica do objeto, estaríamos diante da impossibilidade

jurídica do próprio negócio jurídico – o que o tornaria inexistente e não

inválido.60 Em uma tentativa de sistematização – e sem a pretensão de

sermos taxativos –, a princípio, a disposição dos direitos de personalidade

pode ser considerada lícita quando: a) o objeto não for um bem jurídico

essencial à pessoa humana (ex. exploração de imagem); b) ocorrer em

razão de um justificado interesse de seu titular ou de um terceiro (ex.

intervenção cirúrgica, doação de sangue); c) decorrente de práticas

socialmente aceitas, mesmo pondo em risco a vida ou a integridade física

do sujeito (ex. as lutas de vale-tudo).

d) Absolutos: Com efeito, os direitos de personalidade atribuem

a seu titular uma série de poderes jurídicos. Ora bem, tais poderes, que

recaem imediatamente sobre o bem jurídico tutelado, geram em todos os

demais integrantes da sociedade o dever de um cabal respeito aos direitos

de personalidade, pelo que se diz serem estes oponíveis erga omnes,

válidos perante todos. Conforme escólio de SANTOS CIFUENTES,61 os

poderes jurídicos irradiados pelos direitos de personalidade conduzem a um

directo enfrentamiento com todos los miembros de la comunidad

organizada, para impedir la turbación u ofensa en el goce previsto. Nesse

norte, como acentua CAPELO DE SOUSA,62 a oponibilidade erga omnes dos

direitos de personalidade faz nascer em relação aos sujeitos passivos,

habitualmente, uma obrigação universal negativa, um dever jurídico

abstencionista de observância a esses direitos. Essa observação é

rigorosamente apropriada, e realça um pólo que emerge da oponibilidade

erga omnes dos direitos de personalidade. Noutro pólo, afirma-se um dever 60 Estaríamos ante a categoria dos negócios proibidos. Nesse sentido, ver Marcos Bernardes de Mello. Teoria do fato jurídico – plano da existência. 9ª ed. S. Paulo: Saraiva, 1999, p. 73 e Pontes de Miranda, op. cit., p. 26. 61 Los derechos personalisimos. Buenos Aires: Lerner, 1974, 149. 62 op. cit., p. 401.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

25

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

jurídico positivo, a fim de tutelar o bem protegido pelo direito de

personalidade. Assim, por exemplo, verifica-se na relação entre o Estado e

o particular. Ao lado da limitação, imposta ao Estado, de não lesar os

direitos de personalidade, constitui-se um dever positivo de proporcionar

condições efetivas para o pleno desenvolvimento existencial da

personalidade humana, a gerar, inclusive, uma pretensão em favor do

titular dos direitos de personalidade.

e) Extrapatrimonialidade: Tal característica compagina-se com

a essência dos direitos de personalidade, que concernem ao próprio ser do

ser humano – e não ao seu ter. Por conseguinte, a extrapatrimonialidade

indica a impossibilidade de aos direitos de personalidade corresponder uma

estimativa econômica, isto é, não são suscetíveis de uma apreciação

econômica. A personalidade não é avaliável economicamente. Importa

sublinhar que essa característica não implica que os direitos de

personalidade não produzam efeitos, conseqüências patrimoniais.

f) Vitalícios e Necessários: A vitaliciedade é também uma das

características dos direitos de personalidade. Quer isso dizer que

acompanham o ser humano ao largo de sua existência. E são direitos

necessários porquanto indispensáveis à plena constituição e afirmação do

ser humano em uma comunidade de pessoas.

g) Imprescritíveis: Importante característica que dimana do

amparo geral que recebem os direitos de personalidade diz respeito à sua

imprescritibilidade, isto é, a impossibilidade de extinção pelo não uso. Não

se submetem, pois, à prescrição extintiva. Ao lado dessa impossibilidade,

há igualmente outra: a de não serem objetos de prescrição aquisitiva.

Sublinhe-se, quanto ao instituto da prescrição, a princípio, sua vinculação a

pretensões de natureza patrimonial,63 o que, constitutivamente, exclui os

extrapatrimoniais direitos de personalidade dos efeitos prescricionais.

63 Já nos comentários de Clovis: Precisamente, os direitos patrimoniaes é que são prescritíveis. Não há prescrição senão de direitos patrimoniais. Os direitos que são emanações directas da personalidade e os de família, puros,

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

26

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

7 – UM EXEMPLO DE JUS-HUMANIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O BEM DE FAMÍLIA – LIGEIRAS ANOTAÇÕES DIANTE DE ALGUMAS DECISÕES JURISPRUDENCIAIS BRASILEIRAS

O bem de família, que, grosso modo, trata de destinar a uma

parcela de bens as características da inalienabilidade e da

impenhorabilidade, em proveito de uma moradia para a família, conhece

duas modalidades: a disposta no artigo 1711 do CCB,64 de natureza

voluntária, estabelecida mediante escritura pública ou testamento, e aquela

outra, de regime estatutário, disciplinada pela Lei 8009/1990.65

Especificamente, no curso de nossas modestas reflexões, ainda que às

rápidas, gostaríamos de tratar, à luz de algumas decisões judiciais, de uma

situação: a possibilidade de uma pessoa solteira invocar o amparo da Lei

8009/90 para proteger seu imóvel de uma penhora.

O ponto central reside em saber qual o alcance e a aplicação

dessa legislação. A partir de uma interpretação literal, entende-se

amparado pelo diploma legal só e somente o imóvel da entidade familiar.

Por via de conseqüência, é penhorável o bem de alguém que seja solteiro

ou resida solitariamente. Basicamente, o argumento invocado para

sustentar esse entendimento localiza-se na vinculação do intérprete ao

texto da lei. A título ilustrativo, encontramos a seguinte ementa: Penhora.

Imóvel residencial de pessoa solteira. Incidência da Lei 8009/90 – restando

ao abrigo do referido diploma legal tão-somente o imóvel que serve para

não prescrevem. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. vol. I, 6ª ed. Rio de Janeiro: Rio, 1975, p.443. No mesmo sentido, Humberto Theodoro Júnior: A prescrição é fenômeno típico das ações referentes a direitos patrimoniais. (Comentários ao novo Código Civil, 2ª ed. v. III, t. II, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 170. Santoro-Passarelli, por sua vez, sustenta serem imprescritíveis os direitos de que o sujeito não pode dispor em absoluto. (Teoria geral do direito civil. trad. Manuel de Alarcão. Coimbra: Atlântida, 1967, p. 89.) – como o seriam os direitos de personalidade. Nada obstante, importa referir o asseverado por Pontes de Miranda, no tomo VI, p. 127, 3ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, de seu Tratado de direito privado: A prescrição, em princípio, atinge a tôdas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, quer de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional. 64 Reza o caput do artigo: Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse 1/3(um terço) do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. 65 Dispõe o caput do artigo 1º do dispositivo legal: O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

27

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

residência da família, impende que se mantenha a constrição sobre o bem

de propriedade de pessoa solteira.66

As decisões supra-referidas, além de claros contornos

normativistas, caracterizando um afivelar do juiz à letra da lei, situam-se

nos domínios de uma perspectiva patrimonialista do direito civil, ao

privilegiar o direito de crédito em detrimento do fundamental direito à

moradia.

Decerto que, nos quadros do que estamos a postular – a jus-

humanização das relações privadas – não há de haver concordância com o

teor de tais julgamentos. Ao contrário, há de se buscar uma decisão cujo

sentido radique materialmente na proteção da pessoa e na garantia das

condições mínimas para uma vida digna. Por essa via, irradia-se sobre a

normatividade jurídica a noção de depatrimonializzazione do direito civil.67

Os efeitos dessa irradiação alcançam o próprio manancial

substantivo do direito civil, afirmando-se como uma disciplina orientada

para o estabelecer e o concretizar dos princípios básicos do livre e amplo

desenvolvimento da pessoa. E pessoa não em um sentido abstrato ou

nucleada em uma matriz afirmativa de uma vontade individual. Mas, ao

66 Apelação Cível 197282593. 8ª Câmara Cível. Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor José Francisco Pellegrini. Julgado em 06/05/1998. No mesmo sentido: Penhora. Bem de Família. Executado solteiro. O bem que a Lei n. 8009/90 protege é o da família e não do devedor. Por isso, é penhorável o bem do executado solteiro. Agravo de Instrumento 598305761. 9ª Câmara Cível. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor Tupinambá Pinto de Azevedo. Julgado em 23/02/1999. Bem de família. Não incidência da tutela legal. imóvel habitado por indivíduo só. Não enquadramento de sua condição na necessária entidade familiar. A circunstância de habitar só no imóvel não o habilita à tutela da legislação protetiva do bem de família, que visa à proteção da entidade familiar. Agravo de Instrumento 197125586. 7ª Câmara Cível. Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul. Relator: Doutor Roberto Expedito da Cunha Madrid. Julgado em 27/08/1997. Executado solteiro que mora sozinho. A Lei 8009/90 destina-se a proteger, não o devedor, mas a sua família. Assim, a impenhorabilidade nela prevista abrange o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, não alcançando o devedor solteiro, que reside solitário. STJ – Acórdão Resp. 169239/SP (199800226621), RE 384712, 12/12/2000, 4ª Turma. Relator: Ministro Barros Monteiro. 67 Cfe. a expressão de Pietro Perlingieri, op. cit. p. 55. Impende acentuar, de modo exemplificativo, nessa linha, os estudos promovidos no Brasil por autores como Gustavo Tepedino, Luiz Edson Facchin, Maria Celina Bodin de Moraes.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

28

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

revés, pessoa como sujeito de e do direito, incorporada em uma ordem

social ética, histórica e econômica.68

Sublinhe-se que a noção de despatrimonialização não implica a

desconsideração plena dos aspectos patrimoniais e econômicos da vida

civil. O que está em causa é a não subordinação absoluta das relações

particulares aos valores patrimoniais, hipertrofiados pela concepção

moderno-individualista. Em contrapartida, na órbita do direito civil eleva-se

prioritariamente, como uma medida axiológica constante, a tutela de

valores e elementos não econômicos. Não se negam os aspectos

patrimoniais: apenas se os conjugam aos valores da personalidade

humana, outorgando-se uma primazia destes em relação a aqueles. A

despatrimonialização implica assumir como prius das relações jurídicas os

valores atinentes à pessoa humana e ao pleno desenvolvimento de sua

personalidade, sendo o patrimônio uma via para alcançar a destinação final

da personalidade. Desde logo, tem-se, em síntese, que permeado pela

despatrimonialização el Derecho Civil no actúa por y para el patrimonio,

sino a través del patrimonio.69

De modo paradigmático, ilustrando a noção de

despatrimonialização, recolhemos o exposto na decisão proferida pela 7ª

Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais (Apelação

Cível nº 408.550-5, de 01/04/2004) que reconheceu ao filho o direito à

indenização por danos morais em virtude de uma situação de abandono por

parte de seu pai. Conforme a ementa, a dor sofrida pelo filho, em virtude

do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo

afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da

dignidade da pessoa humana. Como pano de fundo, está o reconhecimento

de as relações familiares serem pautadas, antes e sobretudo, pelo princípio

do afeto e da solidariedade, não se constituindo, pois, a família e as

relações que dela derivam apenas como um instrumento para a satisfação 68 Nesse sentido, ver Eugenio Llamas Pombo. Orientaciones sobre el concepto y el método del derecho civil. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, s.d., p. 88 e seguintes. 69 Llamas Pombo. op. cit. p. 110.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

29

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

material e patrimonial de seus componentes.70 Encontramos nessa linha

jurisprudencial – que segue, ao nosso sentir, a tendência de

despatrimonialização do direito civil – uma tendência contemporânea

caracterizadora do direito de família pós-moderno, salientada por ERIK

JAYME: o regresso dos sentimentos, que se transformam em direito e, ao

fim e ao cabo, como bem conclui o autor, embora possam parecer caótico,

ameaçando a segurança jurídica, correspondem à complexidade da vida de

hoje, e reflecte mais precisamente os desejos da sociedade actual.71

Ao fim e ao cabo, retornando à questão do bem de família,

advogamos, portanto, que a proteção expressa pela Lei 8009/90 alcance a

todas as pessoas, independente de seu estado civil ou modo de vida.72 Em

70 Tudo, decerto, em harmonia com relevantes princípios ético-jurídicos, conforme extraímos da compreensão do próprio acórdão. Senão, vejamos: O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional. (...). No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa concepção, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Assim, depreende-se que a responsabilidade não se pauta tão-somente no dever alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana. 71 op. cit., p. 220. 72 Conforme manifestação do STJ: A Lei 8009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. (...). RE 262568, 19/08/99. 6ª Turma. Relator: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. No mesmo sentido, Impenhorabilidade de bem familiar solteiro. Devedor solteiro. Situação abarcada pela norma protetora. Impossibilidade da penhora. A impenhorabilidade do bem familiar, resguardada pela legislação pátria, abrange o imóvel de indivíduo solteiro. O que o ordenamento quis proteger foi a idéia de lar residencial, não havendo razão para a interpretação restritiva.(...). Agravo de Instrumento nº 70001885466, Primeira Câmara Cível, Tribunal de justiça do RS. Relator: Desembargador Henrique Osvaldo Poeta Roenick. Julgado em 20/12/2000. Na mesma linha argumentativa, esta outra decisão: RESP 315979/RJ. Relator Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (1088). Data da Decisão 26/03/2003. Órgão Julgador: SEGUNDA SEÇÃO. Ementa: BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL LOCADO. IRRELEVÂNCIA. ÚNICO BEM DOS DEVEDORES. RENDA UTILIZADA PARA A SUBSISTÊNCIA DA FAMÍLIA.INCIDÊNCIA DA LEI 8.009/90. ART. 1º. TELEOLOGIA. CIRCUNSTÂNCIAS DA CAUSA. I - Contendo a Lei n. 8.009/90 comando normativo que restringe princípio geral do direito das obrigações, segundo o qual o patrimônio do devedor responde pelas suas dívidas, sua interpretação deve ser sempre pautada pela finalidade que a norteia, a levar em linha de consideração as circunstâncias concretas de cada caso. II – Consoante anotado em precedente da Turma, e em interpretação teleológica e valorativa, faz jus aos benefícios da Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da norma é o de garantir a moradia familiar ou a subsistência da família.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

30

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

causa está o direito à moradia – iniludivelmente um dos fatores a garantir

a dignidade da pessoa humana.73

Sem embargo, não se desconhece o legítimo direito de crédito.

De fato, há uma colisão entre o interesse do credor, que busca a satisfação

de seu direito, e o executado, que visa a assegurar a sua habitação –

garantia mínima para uma condição de vida digna. Diante do referido

conflito, sustentamos que o magistrado não deva se afastar da tutela da

pessoa humana e de sua dignidade.74 Porque esse é o fundamento, a

coordenada axiológica instituinte do direito e que, portanto, deve permear

a sua efetiva realização. A figura da impenhorabilidade, à vista disso,

plenamente se justifica, revelando-se indispensável na realização das mais

primárias exigências que a vida apresenta.

Para alcançarmos a jus-humanização ora postulada –

expressão que ultrapassa os limites impostos pela Carta Constitucional, ao

encontrar o fundamento e a validade do direito em princípios transpositivos

–, importa argumentarmos igualmente na superação das linhas

metodológicas do normativismo jurídico. Fundamentalmente, por tal

modelo de juridicidade associar-se a um contexto histórico não compatível

com o sentido material da normatividade jurídica contemporânea.75

Ademais, propõe uma redução do direito à lei,76 concebendo o sistema

jurídico como axiomático. Por via de conseqüência, limita a função

jurisdicional, amarrando-a as premissas da lógica formal, pretendendo

conferir ao direito uma suposta neutralidade. Tudo, decerto, em harmonia

73 Assim manifestou-se o Ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça: A interpretação teleológica do Art. 1º [da Lei 8009/90] revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia. Embargos de Divergência em RESP 182.223 – SP. Disponível no endereço eletrônico www.stj.gov.br, acessado em 30/01/2004. 74 Digno de lembrança, em conformidade com o que afirmamos, o Acórdão no 62/02, do Tribunal Constitucional de Portugal, da lavra do Relator Paulo Mota Pinto: Será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um mínimo de dignidade. Disponível no endereço eletrônico www.tribunalconstitucional.pt – acessado em 30/01/2004. 75 Sobre esse tema, ver o nosso pequeno trabalho A Ética como dimensão constitutiva do Direito, in Revista Tributária e de Finanças Públicas, ano 10, no 44, São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 18-40. 76 Trazemos à baila o que fora contado em certa história: (...) não creiais que a lei é justa só porque lhe chamais lei. José Saramago. O evangelho segundo Jesus Cristo. 23ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras,1991, p.419.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

31

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

com o postulado político do Estado liberal moderno, ornamentado pelos

ditames de um contratualismo assaz individualista.

Em contrapartida, há de se afirmar o ato de concretização do

direito pela perspectiva de uma prática histórica e circunstancialmente

contextualizada, a se constituir dinamicamente pelo apreciar dos concretos

problemas humanos. Outrossim, a racionalidade jurídica não há de se

compaginar com uma mera racionalidade formal. De fato, há de se iluminar

por uma racionalidade material, rumando para a realização dos valores

instituintes da ordem jurídico-social.

8 – NOTAS MODERNO-ILUMINISTAS E CAUSAS DO POSITIVISMO JURÍDICO

Decerto que o consolidar da perspectiva normativista acima

mencionada encontra uma série de concausas historicamente situadas.

Muitas das quais encontradas a partir do pensamento moderno iluminista.

Como bem destaca o Professor CASTANHEIRA NEVES,77 a nota concludente

do paradigma jurídico construído a partir desse período, do qual ainda

somos legatários, foi a compreensão do direito como uma ordem expressa

do Poder Legislativo. A exigência de uma validade material vê-se

substituída por uma validade formal – especificamente uma validade

política dada pela legitimidade do poder político e a observância do

processo legislativo. Dentre as concausas que levaram a tal situação,

anotamos:

A cultura humana corta os vínculos com quaisquer fatores

transcendentes, passando a ser assumida como de responsabilidade

humana. Tal circunstância decorreu do postulado da autonomia humana,

que estabelecera uma nova compreensão do homem em relação a si

mesmo. O homem moderno volta-se para si, sendo um homem de

liberdade. De fato, tem-se um homem emancipado. E o termo emancipação

fora empregue, primeiramente, com o sentido da liberdade de um povo em

77 Curso de Introdução ao Direito. Coimbra, 1976.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

32

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

se reger. Na Alemanha, em 1792, corresponderia a dizer que o homem

possuía em si próprio o sentido de orientação do seu próprio

comportamento. Posteriormente, assume um caráter extensivo a toda a

humanidade, destinatária de uma acção libertadora, pois não há maior

crime do que manter os homens na condição de animais domésticos.78 Sem

embargo, o período a que fazemos alusão destaca-se por sua forte base

antropológica. Com isso, fazemos menção ao entendimento que o ser

humano passa a fazer de si mesmo. Ressaltamos, nesse âmbito, a

autonomia do homem, é dizer, o corte efetivado com uma pressuposta e

transcendentalmente existente ordem, acentuando a razão79 como

elemento fundamentante da ação e do saber do homem. Por esse iter, a

liberdade como que reencontra sua raiz primitiva, de ato de desvinculação,

de independentizar-se dos vínculos, de negar e refutar toda e qualquer

organização social estribada em uma relação de privilégios entre a

autoridade e a verdade. De fato, a luta da independência individual pela

eliminação dos vínculos de subordinação pessoal, pela autonomização do

indivíduo, é ao mesmo tempo a luta contra a afirmação de uma verdade

pública única e vinculante para todos.80

Rigorosamente, no período que estamos a considerar,

evidencia-se uma radical distinção em relação àquela a postura

conformadora do temperamento humano tão próprio da Idade Média. Lá,

encontrava-se o homem condicionado, vinculado a leis exteriores. O

homem era um ser passivo que ainda não tinha descoberto seu espírito

crítico. Em conformidade com KANT, o Iluminismo corresponderia a uma

crise de crescimento, a uma vontade de afastar-se da infância e, se, nas

78 Baptista Pereira, Miguel. Modernidade e Tempo: para uma leitura do discurso moderno. Coimbra: Editora Livraria Moderna, 1990, p. 95. 79 Assim pode ser entendida a razão iluminista: É como uma soberana que, tendo alcançado o poder, toma a resolução de ignorar as províncias onde sabe que nunca poderá reinar totalmente. (...). Tal é o papel da razão: em presença do obscuro, do duvidoso, lança-se ao trabalho, julga, compara, utiliza uma medida comum, descobre, pronuncia-se. (...). Da razão depende toda a ciência e toda a filosofia. (...). A razão basta a si própria: quem a possui e exerce sem preconceitos jamais se engana: (...) ela segue infalivelmente o caminho da verdade . Paul Hazard. O Pensamento Jurídico Europeu no Século XVIII. Lisboa: Presença, 1989, 35-37 passim). 80 Conforme Pietro Barcellona, Estado de Derecho, Igualdad Formal y Poder Económico: apuntes sobre formalismo jurídico y orden económico. Anales de la Catedra Francisco Suares, nº 29, ano 1989, p. 46.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

33

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

épocas precedentes, o homem se mantivera sob tutela, fora por culpa

própria: não tivera a coragem de se servir da razão; tivera sempre

necessidade de um mandamento exterior.81

É certo, contudo, que o período medievo não teve seu ciclo

terminado gratuitamente, por obra do acaso. Com efeito, salientamos

causas e fatos objetivos determinantes do fim desse período. Elencados,

sem a pretensão de sermos taxativos, os seguintes fatos: a invenção da

imprensa que proporcionou o espraiar das novas idéias; os

descobrimentos, que colocaram o homem em contato com outros povos; e

o natural desenvolvimento comercial, bem como a teoria de Copérnico, a

demonstrar o movimento da Terra em torno do Sol, o qual aquilatamos sua

importância e seus efeitos trazendo à baila as palavras de BRECHT, em seu

texto intitulado Circo de Massas: A descoberta (...) que aproxima o homem

do animal ao afastá-lo dos astros, que manda o homem girar com o seu

globo à volta do Sol, o arranca do centro e o atira para o monte dos

figurantes (...).82

Destarte, sobretudo a partir do período setecentista, forja-se

uma penetrante oposição, contraste com o período histórico antecedente.

Para ilustrarmos tal assertiva, trazemos à baila as expressões de P.

HAZARD: a hierarquia, a disciplina, a ordem, que a autoridade se

encarregara de assegurar, e os dogmas que regulam firmemente a vida,

tais são os valores amados pelos homens do século XVII. Constrangimento,

autoridade, dogmas, tais são, em contrapartida, os valores rejeitados pelos

homens do século XVIII, seus sucessores imediatos. Os primeiros são

cristãos, os outros anticristãos; os primeiros vivem à vontade numa

sociedade dividida em classes desiguais, os segundos sonham apenas com

a igualdade; os primeiros crêem no direito divino, os segundos no direito

natural.83 Sem embargo, duas características marcantes identificaram o

81 Apud Paul Hazard, op. Cit. p. 40. 82 Brecht – Selecção de Poesias, Textos e Teatro, 2ª ed. Lisboa: Edições Dinossauro, 1998, p. 57. 83 apud Antonio Manuel Hespanha. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime – colectânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 253. Parece-nos que o citado autor refere-se, em sua última

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

34

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

período medievo: o domínio da consciência humana por uma revelação

divina e a percepção cristão-ocidental de constituir, sobretudo, uma

unidade religiosa, que também política, mas que tinha por seu fundamento

a religião.84

Igualmente, há o fenômeno, no sentido de algo manifestado à

consciência, da secularização. Aquando da sua primeira utilização,

significava expropriação de bens e domínios eclesiásticos.85 Na verdade,

estávamos frente ao surgimento do poder civil, entendido pela sua

autonomia de ação e, igualmente, a um homem compreendido

autonomamente. Um homem achando-se autor da história, responsável por

ele mesmo, pensando por si próprio, almejando uma razão humana de

caráter universal. Sem embargo, através do processo da secularização, o

mundo passa a integrar a esfera da compreensão racional do ser humano.

A religião e também a Igreja deixam, como fundamento, de ser elementos

que projetam a sociedade.86 O mundo pertence a uma esfera de projeção

racional da compreensão humana.

Temos, agora, um homem responsável por si próprio, pelo seu

destino, reconhecendo e descobrindo sua autonomia, e sendo sujeito da

sua própria existência. Um ser humano com espírito crítico e emancipado.

Os valores componentes do mundo humano deixam de ser vistos como

projeção de uma expressão de vontade suprema, oriunda de uma

divindade, e passam a ser de responsabilidade do próprio homem. Por

distinção, quando fala em «direito natural», ao direito natural moderno, ou seja, àquele que tem como fundamento último a razão, ao jusracionalismo. 84 Nesse sentido, ver Guido Fassò. Storia della Filosofia del Diritto – l´età moderna. 2º volume. Roma: Laterza, 2001, p. 05. 85 Cfe. Baptista Pereira, op. cit., p. 39. 86 Até então, lembramos, a verdade era que a ordem, o poder fundava-se na religião, enquanto que, na cultura secularizada, como fundamento, a antropologia substitui a Religião. Outrossim, a secularização vincula-se ao conceito de soberania e razão-de-Estado e à reforma protestante, que levaram à separação entre Direito e Teologia, segundo o magistério de Celso Lafer. A Reconstrução dos Direitos Humanos. 3a reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras. 1999, p. 38)

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

35

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

certo, o homem distanciou-se de Deus – pois se Deus é transcendente ao

homem, a história é, postuladamente, da responsabilidade deste último.87

O poder e sua vontade constituem uma prerrogativa individual.

A até então organização hierárquica estabelecida na sociedade feudal como

algo natural é abandonada pelo homem, que promove e implementa uma

nova ordem em nome do indivíduo. De fato, a concepção da emancipação

do homem amplia e estende suas conseqüências até momentos

posteriores. Nessa linha, registramos: o pensamento e a acção dos séculos

XIX e XX são governados pela ideia de emancipação da humanidade. (...).

O progresso das ciências, das técnicas, das artes e das liberdades políticas

emancipará a humanidade inteira da ignorância, da pobreza, da incultura,

do despotismo, e não fará apenas homens felizes, mas, nomeadamente

graças à Escola, cidadãos esclarecidos, senhores do seu próprio destino.88

Pois tal é o momento do jusracionalismo, em que o jurídico, assim como o

político e também a moral, apresentam uma redução ao método das

ciências demonstrativas. Houve a preconização de um direito eterno e

imutável, tendo como pilar a razão humana, válido para todos e em todas

as épocas. Delineia-se um conhecimento jurídico consoante um novo

ideário ético, qual seja o de uma sociedade construída e organizada de

acordo com a razão universal e válida para todos e em todos os tempos e

lugares. Encontra-se, pontualmente, uma clara distinção com a

compreensão que se tinha a respeito do direito na Idade Média, onde o

direito assentava e emanava de uma vontade deificada, divina. Por

conseguinte, a idéia primeira e nuclear do direito natural repousava na

idéia de Deus.

Impende acentuar que o direito natural moderno

instrumentalizou o Direito Positivo. A lei natural brotava da razão e

87 Segundo Fernando Bronze, Apontamentos Sumários de Introdução ao Direito. Coimbra, 1997, p. 311.Todavia, convém lembrar a observação feita por Hannah Arendt, ao afirmar que a emancipação e a secularização apresenta um desvio, não necessariamente de Deus, senão de um Deus que era o Pai dos homens no céu. La Condición Humana, 3ª reimpressão. Barcelona: Paidós, 1998, p. 14. 88 Jean-François Lyotard, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, 3ª ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999. p. 101.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

36

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

iluminava as leis emanadas da autoridade civil. De fato, registramos que

natural significava racional, e sobretudo não-sobrenatural; e o chamado a

natureza era em realidade um chamado à consciência crítica do homem

(...), da razão humana, a medida de toda a verdade em todos os campos.89

Uma razão subjetiva e crítica, assim como um racionalismo humanista e

antropocêntrico. A concepção racionalista, na esteira dos ensinamentos de

NORBERTO BOBBIO, pode ser caracterizada por estas duas asserções

fundamentais:

• o mundo é um sistema ordenado regido por leis universais e

necessárias

• o homem é um ser racional, ou seja, dotado de uma

faculdade que lhe permite compreender aquelas leis

Centrado nessas assertivas, prossegue o mencionado autor: A

ciência, em definitivo, consiste no descobrimento e formulação de leis que

estão já na natureza e que como tais são imutáveis e necessárias; em

conseqüência os resultados obtidos, suas verdades, têm caráter de

definitivo.90 Assim, desde logo, temos uma razão referente ao sujeito,

crítica, e um racionalismo com raízes humanistas e antropocêntricas.

Salientando outra característica geral, surge, nesse período, a

concepção individualista e liberal tanto do Estado quanto do direito. O

direito natural apresenta como sustentáculo direitos originários do

indivíduo, nascidos antes mesmo de qualquer vinculação social ou civil. A

idéia que se passa a ter do Estado impõe, como reivindicação, a liberdade

do indivíduo. Em conformidade com CABRAL DE MONCADA, arrolamos duas

causas dessas transformações: ideológicas e políticas. Como ideológica

assinala-se um certo espírito individualista, vicejante desde o

Renascimento e o período barroco, animado pelas guerras religiosas

desenvolvidas nos séculos XVI e XVII. Como causa política, apresenta a

89 Guido Fassò. op. cit. p.. 194. 90 apud Manuel Segura. La Racionalidad Jurídica. Madrid: Tecnos, 1998. p. 35.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

37

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

Revolução Inglesa de 1688, bem como o sentimento de liberdade de

consciência, reclamada pelos dissidentes calvinistas franceses, e sobretudo

ingleses, depois das lutas religiosas dos séculos XVI e XVII.91 Por via de

conseqüência, o individualismo consolidou-se como a condição sociopolítica

da proclamada liberdade moderna. E esse individualismo distingue,

sobremaneira, o homem moderno do homem pré-moderno.

Voltando nossas reflexões à razão, tão caracterizadora do

momento, releva observar que passou a ser a derradeira instância

mobilizada pelo homem, sendo força motora de suas ações. A razão

iluminista seria aquela instância que albergaria as verdades eternas, livre

da sujeição das verdades postas pela revelação teológica, sendo restringida

à experiência. Distingue-se, dentre toda a variável gama de possibilidades

dos princípios fundamentais e indiscutíveis das religiões, das crenças

morais, um termo não sujeito a mudanças, que, em sua unidade e

consistência, afirmam a própria essência da razão. Conforme ERNEST

CASSIRER, encontramos que a razão do século XVIII perde a característica

de ser uma idéia inata e, por via de conseqüência, anterior a experiência,

podendo ser mais bem compreendida se pensada como uma maneira de

aquisição – e não propriamente uma posse. Dessarte, torna-se o poder

original e primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a

verdade.92 Essa razão, genuína e intensamente potencializada no campo

das ciências naturais, contudo, foi trazida para o pensamento jurídico-

político. É, portanto, um racionalismo originário do modelo utilizado pelas

ciências naturais.

Isso posto, salientamos a construção de sistemas racionais e

logicamente coerentes, estruturados em cadeias meramente dedutivas. A

raiz dessa origem, baseada na referida ciência natural, trouxe relevantes

conseqüências e influências para o pensamento jurídico.93 Com efeito, o

91 Luis Cabral de Moncada. Filosofia do Direito e do Estado, Coimbra: Coimbra, 1995,p. 202 e 203. 92 A Filosofia do Iluminismo. 3ª ed. trad. Álvaro Cabral. Campinas: Unicamp, 1997.p. 32. 93 A corroborar nossa afirmação, registramos: Séduits par les premiers succés des sciences physiques et éblouis par la perfection des raisonnements logiques et mathematiques, les hommes (...) poursuivent activement le projet

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

38

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

mesmo pensamento demonstrativo utilizado para as ciências naturais foi

transposto para o universo jurídico. A ciência jurídica integrou-se ao

universo das matérias alheias à experiência, vinculando-se àquelas

dependentes de definições. O direito não dependeria dos fatos, mas de

provas e demonstrações racionais. Acreditava-se que, permeado por

postulados últimos da razão, fosse possível edificar sistemas prontos,

acabados, para qualquer campo do saber humano. Nesse aspecto, reside

outra significativa distinção posta pelo projeto iluminista com a maneira de

pensar anterior.

Exsurge um sistema jurídico marcadamente axiomático,

racional, pleno. E o modo invocado pelo pensar estrutura-se em um

silogismo formal, onde a lei passa a ser a premissa maior, o fato a

premissa menor, alcançando-se, dedutivamente, a sentença. É o processo

de aplicação subsuntiva da lei a imperar e coordenar o raciocínio jurídico,

acarretando um racionalismo divorciado completamente das questões

práticas.94 Criava-se, prévia e especulativamente, um sistema para, em um

segundo momento, ser aplicado na resolução dos concretos casos que

emergiam da vida quotidiana.

Sem embargo, o homem moderno-iluminista impunha sua

liberdade racional implementando seus interesses. Por certo que haveria

interesses divergentes e antagônicos entre si, tornando-se necessário o

estabelecer de uma certa ordem. O paradigma vislumbrado para estremar

uma sociedade calcada no indivíduo deveria respeitar e afirmar a liberdade

e a igualdade dos indivíduos, determinando-se pela vontade dos próprios

indivíduos componentes da sociedade. Então, sobressai o modelo

contratualista. Importa ressaltar essa nuança do período iluminista para

de construire une science naturelle du droit, qui atteindrait à un degré de certitude égal, et peut-être même supérieur, à celui des mathématiques. Benoit Frydman e Guy Haarscher. Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1998, 41. 94 Por todo o visto e ponderado, adotamos as seguintes palavras: Le casus n’est plus le point de départ de toute discussion, mais au contraire le point d’arrivée d’une longue chaine de syllogismes Qui conduit successivement de la simple raison au droit naturel, de celui-ci aux lois positives générales, et enfin de ces derniéres à leurs applications particulières, conforme e Benoit Frydman e Guy Haarscher, op. cit. p. 44.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

39

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

chegarmos a idéia conformadora da lei da época, e, igualmente, a

compreensão acerca do direito. Pois, somente será considerado direito

aquele que for determinado pelo contrato social. Conseqüentemente, o

direito encarregar-se-ia de harmonizar as liberdades de todos e de cada

indivíduo. E às leis caberia o papel definidor das regras de convivência dos

elementos integrantes desta nova sociedade. Delineada por esse contorno,

a lei visava tão-somente a compatibilização dos mais variados interesses

daqueles atores sociais. Eram, portanto, regras formais, abstratas e gerais,

não definindo o conteúdo das liberdades individuais, nem fazendo

referências materialmente éticas.95

O racionalismo iluminista enxergava no indivíduo um elemento

destinado a compor e operacionalizar uma estrutura maior, qual seja a

sociedade. E, para efetivar o adequado funcionamento da estrutura social,

faz-se necessário o posicionamento correto de cada indivíduo. Assim,

encontramos JOSÉ VIRÍSSIMO ALVARES DA SILVA a pronunciar-se: a

sociedade he uma máquina complicada, que trabalha com tantas moles

quantos são os indivíduos de que se compõem, e, prosseguindo, mais

precisa huma razão iluminada que saiba guiar tudo a seus justos fins.96

Nessa direção, surge a legislação como sendo uma obra que sintetiza toda

a sabedoria para o ofício de governar. Partindo-se desses enunciados,

decerto que duas questões se nos aparecem, a saber: o que é esta razão

iluminada a guiar tudo a seus justos fins e qual o elemento volitivo a

ordenar a legislação?

95 Para uma melhor e mais precisa definição conceitual do que sejam regras gerais, abstratas e formais, consignamos: a expressão geral relaciona-se ao fato da lei ser igual para todos, uma vez não mais existir a anterior diferenciação social entre nobres e plebeus, mas sim a existência de cidadãos; são abstratas as leis porque só na abstracção é que pode haver dedução. Na verdade, só abstraindo do individual, do singular, do particular, é que pode pretender-se que a lei se aplique do mesmo modo a todos, conforme leciona Fernando Bronze, op. cit. p. 324. Enquanto que a dimensão formal caracteriza-se pela despreocupação do conteúdo material da própria lei, que somente determinava as regras do jogo e estabelecia a esfera de cada indivíduo em relação aos demais. Dentro dessa fronteira de atuação conformada pela lei, o indivíduo, dono de sua liberdade, pode administrar, dirigir seus interesses. 96 apud Nuno Gomes da Silva, História do Direito Português, 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.p. 340.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

40

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

Para encontrarmos a resposta, convém ter em nosso horizonte

que esta é a época do despotismo esclarecido,97 do déspota iluminado.

Nela, o ente estatal é concebido como um corpo invocado e mobilizado

para a realização e o espraiar das regras que alcancem a felicidade dos

povos. Nesse sentido, anotamos: a ética racionalista (...) concebia a função

do soberano como um serviço técnico prestado ao Estado, tendo-se

tornado conscientemente num instrumento coadjuvante nesse sentido,

instrumento que – com o enorme poder do monarca, embora muitas vezes

contra a resistência do povo, dos estados e das igrejas – impôs mesmo aos

juristas os seus novos padrões axiológicos.98 Com efeito, a autoridade e a

razão convergem para a figura do déspota esclarecido, a atuar diretamente

na reforma da sociedade setecentista. E, quanto aos aspectos jurígenos do

Iluminismo, identificamos duas posturas: uma referente ao direito natural,

e de cunho racionalista; e outra, de caráter voluntarista, referindo-se ao

direito positivo. As duas posturas complementam-se e, justapondo-as,

forja-se uma síntese do direito: o dimanar, o derivar de uma expressão de

vontade, posta em função de uma razão.

9 - CÓDIGOS JUSRACIONALISTAS

O fenômeno das codificações constituiu-se numa verdadeira

revolução do pensamento jurídico. Suas conseqüências foram sentidas para

muito depois de seu início. Inevitável nos parece a referência ao ano de

1804, o ano do Código Civil Napoleônico. Contudo, salientamos que, antes

mesmo dessa data, já haviam sido elaborados alguns códigos, como o

prussiano, por exemplo.

O processo de codificação que ocupou o território europeu

refletiu e expressou notadamente o espírito racionalizante da época,

representando claramente o produto do que anteriormente mencionamos:

97 Apenas com o intuito ilustrativo, elencamos alguns nomes que se encontram presentes no momento do despotismo esclarecido: LUÍS XIV e LUÍS XV, na França, FREDERICO II da Prússia, JOSÉ II e LEOPOLDO II, representantes da monarquia austríaca, CATARINA II, na Rússia e em Portugal, D .JOSÉ e D. MARIA I. 98 Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno, 2ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.p. 367.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

41

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

a simbiose entre o poder e a razão promovido pelo despotismo esclarecido.

Buscava-se, por meio das codificações, a construção de um sistema

completo, um corpo de leis perfeitas. Baseado em tais postulados, chega-

se a outro, preocupado tão-só com aspectos formais: a submissão do

intérprete à lei, registrando que esse postulado preocupava-se tão-só com

aspectos formais.

As codificações notabilizaram-se como o espelho de uma

cultura superior, evoluída, não só pelo estilo utilizado, mas, igualmente, se

pensado pelo prisma do conteúdo. Ademais, representava um projeto de

edificação, organização do Estado.

Os códigos da época – e descortina-se em nossa visão

especialmente o da Prússia – denotam os preceitos caracterizadores do

Iluminismo. A cega fé numa razão, instalada no homem, possibilitaria a

existência de um direito totalmente justo e, portanto, conduziria o

legislador a elaboração de regras que norteariam plenamente a sociedade,

disciplinando, todas as situações possíveis. Importa ressaltar um efeito que

transparece da crença jusracionalista: uma certa dificuldade imposta a um

potencial avanço natural que um código pode ter, e que, muitas vezes, seu

próprio autor desconhece.99 Outrossim, no período do direito natural

estremado pela razão, a par da independência e da autonomia do

legislador, desvela-se uma certa descrença frente à jurisprudência. E

valemo-nos da expressão certa descrença não gratuitamente, pois alguns

códigos admitiam a sua não-plenitude, com a conseqüente possibilidade de

uma integração – precisamente uma heterointegração. O campo, a esfera

para a manutenção, mesmo que um tanto mais restrita, da jurisprudência,

da atividade judicial, permanecia.

Nada obstante a importância dos códigos precedentes,

direcionamos o foco de nossas apreciações ao Código Civil Francês de

99 Precisamente esse entendimento encontra-se em Franz Wieacker, História do direito privado moderno...., pág. 379.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

42

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

1804. Originariamente, a promulgação desse código encontra suas raízes

no umbral do período revolucionário. Destacam-se, de plano, duas idéias

nucleares: a de uma nação una e indivisível e a imposição da substituição

do particularismo do período feudal por um direito geral do povo francês

fundado na razão.

Essencialmente, salvo melhor juízo, a codificação francesa

distingue-se das demais por não ser fruto daquele ethos racionalista – a

prever como sendo função do soberano prestar um ofício técnico ao Estado

–, fruto do despotismo esclarecido, mas por ter arrimos claramente

iluminados por luzes acendidas pelo farol do movimento revolucionário e

pela exponencial importância napoleônica.100 Contudo, o cariz

revolucionário em nada afasta a indigitada obra – o Code Civil – da crença

jusracionalista na lei escrita. Ao contrário, na esteira dos ensinamentos de

MANUEL CALVO GARCÍA, consignamos: en este punto, para ser justos (y

también precisos), quizá haya de reconocerse que el exponente máximo de

esa fe absoluta en la letra escrita se encuentra en la Revolución francesa y

no en la codificación propiamente dicha. (...). La Revolución francesa nace

vinculada y proyecta sobre la realidad una auténtica fe en la letra

escrita.101 De fato, o que destacamos nesse parágrafo é, estrutural e

espiritualmente, um código que se encontra colorido pelas fortes tintas da

participação dos cidadãos e da então nova soberania popular conquistada.

100 Outro traço, não menos importante, de distinção entre os códigos não-revolucionários – como os bávaros e o austríaco, por exemplo – e codificação francesa, diz respeito a admissão às lacunas jurídicas, implicando um corte radical com a tradição anterior. Assim: é certo que os códigos de Setecentos, ou moderno-iluministas não revolucionários (...) estavam longe, não obstante seu jusnaturalismo, de uma total ruptura com a tradição histórica, nem deixavam de admitir expressamente a sua incompletude, ao reconhecerem-se com lacunas(...). Outro tanto não acontecia com o Code Civil (...). Que tanto é dizer: um código que recusava a história e que, na sua axiomática racionalidade, se bastaria a si próprio. António Castanheira Neves, Digesta, 2º vol. Coimbra, 1995, p. 182. 101 Para reforçar a idéia, o referido autor assevera que o fato de plasmar por escrito los derechos con el fin de hacerlos reales y efectivos es una de las razones fundamentales del constitucionalismo, de la misma forma que el plasmar por escrito un orden político tiene bastante que ver con la creencia de que ello promueve su consolidación. Los Fundamentos del Método Jurídico: una revisión crítica, Madrid: Tecnos, 1994. p. 69. Aqui, para se evitar um equívoco juscoparatístico, há de se anotar que essa afirmação não traduz qualquer lei universal, pois há países que não apresentam a tradição de uma constituição escrita e, nem por isso, deixam de ter seus direitos fortemente consolidados.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

43

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

De outra banda, impende salientar que os fatores

caracterizadores do direito codificado influenciaram sobremaneira a

metodologia jurídica. Assim, fruto das profundas transformações

sociopolíticas da época – nomeadamente as ocorridas no século XVIII –, o

mobilizar de uma racionalidade formal, tanto na criação do direito quanto

em sua aplicação, vincula-se, então, ao princípio da igualdade, que

consagra este novo Estado emergente. Decerto, a isonomia pensada na

época restringir-se-ia a um escopo meramente formal, isto é, de uma mera

igualdade formal perante a lei. Caracteriza-se o plano formal por

dimensionar todos os cidadãos como submetidos aos mesmos

procedimentos e órgãos jurisdicionais; as leis são postas para um sujeito

em abstrato, não existindo uma particularização no que concerne ao

destinatário da norma jurídica. Deste modo, todas as pessoas colocam-se

como receptores das mesmas normas, merecendo e devendo, então,

receber o mesmo tratamento também na aplicação da lei. Para tal

exigência de igualdade ser implementada, mister se superar as

contingências, as questões pontuais que cada caso porventura

apresentasse, buscando-se um método garantidor de uma certeza e

segurança na aplicação da lei. A lei a ser codificada deveria, para tanto,

além de escrita, ser clara, de tal maneira a dispensar a interpretação do

juiz, objetivando a figura de um juiz autômato. É o postulado da abstração

e generalidade tendo seu início. E o Código, com sua pretensa plenitude

oriunda de uma razão universal e absoluta, consolida o direito como a

ciência do direito escrito, afastando-se de uma dimensão criadora e

assumindo como seu objeto único o direito positivo.

10 - CONCLUSÃO

Em sede de últimas palavras, acentuamos a compreensão do

direito privado tendo por núcleo os aspectos existenciais do ser humano.

Assim, percorremos algumas caracterizações acerca da ética e da sua

ineludível relação com o direito. Nesse aspecto, cimentamos um

entendimento segundo o qual os fundamentos do direito repousam em

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

44

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

princípios de natureza ética – válidos independente do reconhecimento do

legislador –, revelando a intencionalidade prática que o direito assimila e

quer projetar em nossa vida comunitária. Ao fim e ao cabo, postulamos o

descortinar, no horizonte da prática e do pensamento jurídicos, uma ordem

normativa que racionalmente se constitua pela opção da pessoa. E que,

observando-se as exigências axiológicas do caso concreto, o direito seja o

porto seguro a amparar e proteger o ser humano, cumprindo com as

exigências apresentadas por um Estado democrático de direito.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Francisco. Direito Civil – introdução. 4ª ed. Rio de

Janeiro: renovar, 2002.

ARENDT, Hannah. Condition de l’homme moderne. trad.

Georges Fradier. Paris: Calmann-Lévy, 1994.

ARNAUT, António. Ética e direito. Coimbra: Livraria Mateus,

1999.

BARCELLONA, Pietro. Estado de Derecho, Igualdad Formal y

Poder Económico: apuntes sobre formalismo jurídico y orden económico.

Anales de la Catedra Francisco Suares, nº 29, ano 1989, página 45 a 62.

BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.

vol. I, 6ª ed. Rio de Janeiro: Rio, 1975.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

45

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

BODIN DE MORAES, Maria Celina. O conceito de dignidade

humana: substrato axiológico e conteúdo normativo, in Constituição,

direitos fundamentais e direito privado. org. Ingo Wolfgang Sarlet. Livraria

do Advogado: Porto Alegre, 2003.

BRECHT, Bertold. Brecht – Selecção de Poesias, Textos e

Teatro, 2ª ed. Lisboa: Edições Dinossauro, 1998.

BRONZE, Fernando José Pinto. Apontamentos Sumário de

Introdução ao Direito. Coimbra: Coimbra, 1997.

CABRAL de MONCADA, Luís. Filosofia do Direito e do Estado,

Coimbra: Coimbra, 1995.

______________ . Conceito e Função da Jurisprudência

Segundo Verney. Boletim do Ministério da Iusticia, Nº 14, Setembro, ano:

1949.

CALVO GARCÍA, Manuel. Los Fundamentos del Método Jurídico:

una revisión crítica, Madrid: Tecnos, 1994.

CAMPS, Victoria. Ética y democracia: una ética provisional para

una democracia imperfecta. Revista del Centro de Estudios

Constitucionales, n.º 06, Madri: 1990.

CAPELO DE SOUSA, Rabindranath. O direito geral de

personalidade. Coimbra, 1995

CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. 3ª ed. trad. Álvaro

Cabral. Campinas: Unicamp, 1997.

CASTANHEIRA NEVES, António. Digesta – escritos acerca do

direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 1º,

Coimbra, 1995.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

46

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

_______. Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento

jurídico, da sua metodologia e outros. v. 2º, Coimbra, 1995.

_______. Curso de Introdução ao Direito. Coimbra, 1976.

CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu

sentido e limites. 2a ed. Coimbra: Centelha, 1981.

_______. Para uma teoria da pessoa humana, in O homem e o

tempo – liber amicorum para Miguel Baptista Pereira. Porto: Fundação Eng.

António de Almeida, 1999.

COING, Helmuth. Derecho privado europeo. vol. II. trad.

Antonio Pérez Martín. Madri: Fundación Cultural del Notariado, 1996.

DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. trad. Adriano

Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Livraria Morais, 1961.

DÍEZ-PICAZO, Luis e GULLON, Antonio. Sistema de Derecho

Civil, v. 1, 9ª ed., 2 ª reimpressão, Tecnos: Madri, 2000.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito civil- à luz do novo

Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

FASSÒ, Guido. Storia della Filosofia del Diritto – l´età moderna.

2º volume. Roma: Laterza, 2001.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. trad. José Octávio

de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

FREUND, Julien. L’essence du politique. Paris: Sirey, 1965.

FRYDMAN, Benoît e HAARSCHER, Guy. Philosophie du Droit.

Paris: Dalloz, 1998.

GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. 1ª reimpressão. São

Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

47

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional. 5ª

ed. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 1992.

GOMES DA SILVA, Nuno J. Espinosa. História do Direito

Português, 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.

HATTENHAUER, Hans. Los fundamentos historico-ideologicos

del derecho aleman – entre la jerarquia y la democracia. trad. Miguel

Macias-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981.

HAZARD, Paul. O Pensamento Jurídico Europeu no Século XVIII.

Lisboa: Presença, 1989.

HESPANHA, António Manuel. Poder e Instituições na Europa do

Antigo Regime – colectânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1984.

JAYME, Erik. Pós-modernismo e direito da família, in Boletim

da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVIII, ano

2002.

JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. trad. Javier

Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995.

KERTÉSZ, Imre. Sem destino. trad. Paulo Schiller. São Paulo:

Planeta, 2003

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. 3a

reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

LARENZ, Karl. Derecho civil – parte general. trad. Miguel

Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editorial Revista de Derecho Privado,

1978.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do após-dever, in A sociedade em

busca de valores – para fugir à alternativa entre o cepticismo e o

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

48

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

dogmatismo. org. Edgar Morin e Ilya Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget,

1998.

LLAMAS POMBO, Eugenio. Orientaciones sobre el concepto y el

método del derecho civil. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, s.d.

LORENZETTI, Ricardo. Fundamentos do direito privado, trad.

Vera Jacob de Fradera, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno Explicado às Crianças,

3ª ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999.

MELGARÉ, Plínio. Juridicidade: sua compreensão político-

jurídica a partir do pensamento moderno-iluminista. Coimbra, 2003.

MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de

Código Civil. Revista do Centro de Estudos Judiciários – Conselho da Justiça

Federal, no. 09, set./dez. 1999, Brasília.

MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria Geral do Direito Civil. 3ª

ed. Coimbra, 1999.

PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costituzionale.

Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1991.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Democracia,

liberdade e igualdade – os três caminhos. Rio de Janeiro: José Olympio,

1945.

_______. Tratado de Direito Privado. Tomo VII. 3ª ed. Rio de

Janeiro: Borsoi,1971.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. trad. Luis Cabral de

Moncada. 6ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979.

REALE, Miguel. Variações sobre ética e moral, disponível no site

www.miguelreale.com.br/artigo.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

49

A Jus-humanização das Relações Privadas: para além da constitucionalização do direito privado

_______. Filosofia do direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

_______. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das

Ideologias. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. trad. Vasco

Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

ROTH, PHILIP. A marca humana. trad. Paulo Henriques Britto.

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SANTORO-PASSARELLI, Francesco. Teoria geral do direito civil.

trad. Manuel de Alarcão. Coimbra: Atlântida, 1967.

SARAMAGO, José. Os portões que dão para onde?, in A

bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_______. O evangelho segundo Jesus Cristo. 23ª reimpressão.

São Paulo: Companhia das Letras,1991.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código

Civil, 2ª ed. v. III, t. II, Rio de Janeiro: Forense, 2003.

UNAMUNO, Miguel de. Del Sentimiento Trágico de la Vida. 3a

reimpressão, Madri: Alianza, 2001.

WIEACKER, Franz. Diritto privato e società industriale. trad.

Gianfranco Liberati. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2001.

_______. História do Direito Privado Moderno, 2ª edição,

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.

Texto fruto do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional da PUCRS.

50