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Ive Seidel de Souza Costa Panóptica, ano 1, n. 8, maio – junho 2007 169 A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE ANENCEFALIA. Ive Seidel de Souza Costa Bacharelanda em Direito pela FDV. 1. INTRODUÇÃO. A prática do aborto sempre foi tema muito controvertido, tendo sempre provocado muita polêmica e controvérsias em nossa sociedade. É assunto remoto, mas que, de épocas em épocas, ressurge discutindo situações que estremecem os ditames sociais. A interrupção da gravidez de feto portador da anencefalia fez retornar ao panorama nacional as aventadas discussões acerca da legalidade ou ilegalidade da prática abortiva. Diante da propositura, em 2004, da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Conselho Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, a polêmica e as discrepâncias de idéias existentes acerca do tema em análise voltaram a figurar na sociedade brasileira. Questiona-se: deve-se sempre proibir a prática abortiva quando o feto não possuir qualquer viabilidade de vida extra-uterina? Uns optam pela liberalidade, integral e indiscriminada. Outros, fervorosamente, clamam pela tipificação total e incondicional, mormente respaldados pelos apelos religiosos e morais. Sabe-se que o Direito, contudo, visa à realização do bem comum, que seria o bem individual de cada pessoa, enquanto esta pertence a um todo. Desta forma “o indivíduo colima o bem da comunidade, na medida em que ela

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Ive Seidel de Souza Costa

Panóptica, ano 1, n. 8, maio – junho 2007

169

A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE ANENCEFALIA.

Ive Seidel de Souza Costa

Bacharelanda em Direito pela FDV.

1. INTRODUÇÃO.

A prática do aborto sempre foi tema muito controvertido, tendo sempre

provocado muita polêmica e controvérsias em nossa sociedade. É assunto

remoto, mas que, de épocas em épocas, ressurge discutindo situações que

estremecem os ditames sociais.

A interrupção da gravidez de feto portador da anencefalia fez retornar ao

panorama nacional as aventadas discussões acerca da legalidade ou

ilegalidade da prática abortiva. Diante da propositura, em 2004, da Ação por

Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Conselho Nacional dos

Trabalhadores na Saúde - CNTS, a polêmica e as discrepâncias de idéias

existentes acerca do tema em análise voltaram a figurar na sociedade

brasileira. Questiona-se: deve-se sempre proibir a prática abortiva quando o

feto não possuir qualquer viabilidade de vida extra-uterina? Uns optam pela

liberalidade, integral e indiscriminada. Outros, fervorosamente, clamam pela

tipificação total e incondicional, mormente respaldados pelos apelos religiosos

e morais.

Sabe-se que o Direito, contudo, visa à realização do bem comum, que seria o

bem individual de cada pessoa, enquanto esta pertence a um todo. Desta

forma “o indivíduo colima o bem da comunidade, na medida em que ela

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representa o seu próprio bem” 1, segundo as noções da justiça social e

solidária. Para tanto, faz-se mister reunir os anseios controvertidos e resolvê-

los de forma equilibrada. Haverá o Direito, de fato, bem como a justiça,

conseqüentemente, sempre que a sociedade, organizadamente, sopesar seus

valores e guiá-los a um fim comum, o qual será essencial para a harmonia do

coletivo.

Assim sendo, é necessário que o tema aqui proposto receba um respaldo

jurídico equilibrado. Os extremos são perigosos. Deve haver um contrapeso

entre as idéias alvitradas, para que nem as tendências religiosas que marcam a

personalidade de alguns profissionais de direito, nem os ideais anárquicos, que

alguns juristas carregam consigo, se sobreponham indiscriminadamente um

ante o outro diante da discussão da prática abortiva, mais precisamente, o

aborto em casos de anencefalia. Discutir-se-á a justiça e o Direito, não o

moralismo.

O objetivo do presente escrito, desta forma, incide em analisar nomeadamente

a prática do aborto em casos de anencefalia sob uma perspectiva jurídica,

social e humanitária. Para tanto, buscar-se-á por meio de uma pesquisa teórica

e bibliográfica, coletar as informações mais atinentes à matéria e coordená-las

em um pensamento que possa servir como sugestão à conjuntura jurídica

atual.

Utilizaremos, igualmente, o método dialético e hipotético-dedutivo, na medida

em que será necessário contrapor e harmonizar idéias e normas, para que o

problema possa ter uma solução juridicamente aceitável.

1 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 48, dez. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11>. Acesso em: 01 out. 2006.

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2. A PROBLEMÁTICA DO ABORTO.

Primeiramente, a palavra aborto provém do latim ab-ortus, ou seja, “privação

do nascimento” 2. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),

abortamento é “a morte do embrião ou feto antes que seu peso ultrapasse

500g, atingido antes das primeiras 22 semanas de gravidez”3. Por tratar-se de

tema polêmico, houve a necessidade de aperfeiçoarem-se os conceitos,

utilizando termos menos pejorativos e menos agressivos. O aborto, neste caso,

seria a interrupção da gravidez, espontânea ou provocada, de um embrião ou

de um feto antes do final de seu desenvolvimento normal, com a conseqüente

destruição do produto da concepção.

As mais remotas notícias sobre métodos abortivos datam do século XXVIII a.C,

na China, de acordo com Célia Tejo4. No antigo Império Romano, lembra José

Maria Marlet5, por considerarem ser o feto parte do corpo da mulher e de suas

vísceras, o ato em questão não era considerado crime. Foi o apogeu do

Cristianismo que influenciou fortemente as concepções do mundo antigo, por

meio das severas punições atribuídas pela Bíblia Sagrada àqueles infiéis que

praticassem ou se permitissem praticar o aborto. Desde então, o abortamento

foi erigido à categoria de crime na maior parte do mundo.

Assim sendo, a transformação cultural e histórica comparece no quadro causal-

explicativo do problema do aborto, na medida em que se questionam tradições,

alteram-se costumes, criam-se novos conceitos e normas e leis se modificam e

2 WIKIPEDIA, Contribuidores da. Interrupção da Gravidez. Wikipédia: a enciclopédia livre, 2006. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Interrup%C3%A7%C3%A3o_da_gravidez> Acesso em 14 out. 2006. 3 Ibid. 4 TEJO, Célia. Aborto Eugênico. Datavenia, Paraíba, Ano 3, n.17, julho de 1998. Disponível em:<http://www.datavenia.net/opiniao/celia.html> Acesso em 03 out. 2006. 5 MARLET apud CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplantes. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p 23.

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propõem. A polêmica é motivada, sobretudo, pelos diversos ângulos de visão

existentes e possíveis sobre o assunto.

A questão ético-religiosa, imperativamente, é crucial em relação ao aborto,

posto que cruza com as noções de contracepção, um dos temas mais

delicados da Igreja, em que são registradas graves posturas de

transponibilidade extremamente difícil. Isto se explica pela forte influência que a

religião possui e sempre possuiu perante os homens, e pelo posicionamento de

subordinação que estes mantêm ante esta Instituição. A Igreja é a responsável

pela formação do caráter moral do indivíduo, influenciando cegamente e

interferindo na liberdade de reflexões de cada um, convertendo-o sempre em

favor de seus dogmas. Tal intocabilidade e incondicionalidade são, no entanto,

inaceitas por correntes que se opõem a esse tipo de argumentação. Surge,

assim, a disputa, pois os legisladores são suscetíveis às paixões e influências

religiosas, éticas e filosóficas, sendo praticamente impossível agirem de forma

neutra em suas criações normativas.

Belíssima é a posição da teóloga Ivone Gebara, a favor da descriminalização e

legalização do aborto como forma de abrandar a violência contra a vida:

Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar

emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade

abortiva. [...] Uma sociedade que silencia a

responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as

mulheres, desrespeita seus corpos e sua história é uma

sociedade excludente, sexista e abortiva. [...] Nessa linha

de pensamento, concentrar a defesa do inocente

somente no feto, é uma maneira de [...] não denunciar a

morte de milhares de mulheres inocentes vítimas de um

sistema que aliena seus corpos e as pune

impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de

tomar uma decisão ajustada a suas reais condições.

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Em seqüência, sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro se posiciona

absolutamente contrário ao aborto, admitir tão só duas exceções: o aborto

necessário e o sentimental ou humanitário, admitindo que em algumas

situações a proteção à vida do embrião ou do feto não é absoluta, existindo

outros bens jurídicos que a ela se sobreponham.

Desta forma, no aborto sentimental, ao se pautar na justificativa de que não é

humano exigir da mulher que uma gestação venha a lhe recordar

continuamente o sofrimento que a gerou, o bem jurídico a ser defendido é o

livre arbítrio dela, sobrepondo-se ao direito à vida. Diante de tal ciência, a juíza

Matilde Josefina6 tece críticas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro

em permitir um aborto do produto de um estupro, e não aceitar aquele em que

o feto não terá condições de sobreviver.

3. O ABORTO EUGÊNICO.

Esta é uma análise superficial, mas essencial para o entendimento do assunto

que pretendemos abordar: a prática do aborto em casos de anencefalia. O

grande problema, segundo Célia Tejo7, reside no ponto da disponibilidade da

vida humana.

O aborto eugênico, segundo Ricardo Henry Marques Dip8, “é o aborto fundado

em indicações eugenésicas, equivalente a dizer, em indicações referentes à

qualidade da vida”. A eugenia ocorre quando há comprovação de que o feto

nascerá com má-formação congênita. Neste sentido, os casos de anencefalia

são, a princípio, sua espécie.

6 JOSEFINA apud CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplantes. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p 31-32. 7 TEJO, Célia. Op Cit. 8 DIP, Ricardo Henry Marques. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico – alvará para matar. Revista dos Tribunais, São Paulo, Ano 85, v. 734, Fasc. Pen, p. 520, dez 1996. p 4.

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Francis Galton foi o primeiro a discorrer sobre a eugenia, correlacionando-a a

necessidade de haver uma seleção forçosa da raça, pois, segundo ele9

a seleção natural já não se realizava entre os homens

porque os governos e as instituições de caridade

passaram a proteger os fracos, os doentes, os

incapazes, o que levou e ainda leva a decadência da

raça humana e ao surgimento de toda a espécie de

doenças que contaminaram a sociedade. Para

interromper esse declínio, deveria impedir-se a

propagação dos degenerados, dos débeis mentais, dos

alcoólatras, dos criminosos, em resumo, de todas as

pessoas indesejadas na sociedade.

Este princípio pode ser considerado como sendo o pressuposto inspirador para

o terrorismo que o alemão Adolf Hitler instaurou no século 20, ao pretender a

realização do arianismo, uma raça pura onde apenas os alemães fortes

mereceriam sobreviver.

Todavia, ainda hoje algumas características da teoria galtoniana fazem parte

do cenário mundial, ainda existindo sociedades que permitam a prática de

eliminação dos fetos com má-formação. Entretanto, imperativo ressaltar que a

anencefalia não encontra respaldo nessa linha de argumentação. Não seria a

anencefalia meramente uma má-formação física, mas a inexistência de um

importante órgão do encéfalo, o cérebro, sem o qual a viabilidade existencial

extra-uterina fica comprometida. Trata-se de uma má-formação irreversível e

gravíssima, em razão da qual o feto não sobreviverá. É condicionante de

sobrevida, não podendo, para nós, ser confundida com a discriminação em

razão de deformidade física ou mental, posto não se poder falar em viabilidade

de vida.

9 Ibid, p 521.

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Em seguida, parece-nos repugnante a idéia de se admitir indiscriminadamente

o aborto eugênico. A vida humana não pode ser mensurada segundo critérios

indefesos de proveito à coletividade. A má-formação física ou mental não pode

servir de justificativa para se sobrepor ao direito, universalmente reconhecido,

de que todos possuem gozo a vida. A Declaração Universal dos Direitos do

Homem reconheceu em seus artigos 1º e 2º que todos os homens nascem

livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos têm capacidade para gozar

os direitos e as liberdades sem distinção de raça, cor, sexo, entre outros. No

mesmo sentido a Constituição Brasileira elevou o princípio da dignidade da

pessoa humana como pressuposto para a realização do Estado Democrático

de Direito (art. 2, II, CF).

Assim sendo, o nosso presente propósito reside na tentativa de defender a

legalidade da pratica do aborto eugênico em casos que envolvam, tão

somente, fetos anencefálicos, porquanto em virtude desta má-formação o feto

não conseguirá sobreviver.

4. A ANENCEFALIA.

A anencefalia é uma má-formação congênita em decorrência de um defeito no

fechamento do tubo neural10. Também chamada de acefalia, pode ser

diagnosticada precocemente através de um exame de ultra-sonografia. O

grande ponto dessa questão reside na falta de consenso acerca da precisão de

qual momento o feto ou embrião é considerado vivo, se no nascimento, na

concepção ou em período intermediário. Por isto, freqüentemente este debate

está combinado com concepções religiosas e morais.

Segundo a Sociedade Mineira de Pediatria, “a anencefalia impede que o feto

tenha atividade elétrica cerebral, por este não possuir os hemisférios cerebrais

constituídos, em parte, pela estrutura funcional mais importante: o córtex

10 O tubo neural é a estrutura embrionária que dará origem ao cérebro e à medula espinal. WIKIPEDIA, Contribuidores da. Tubo Neural. Wikipédia: a enciclopédia livre, 2006. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Tubo_neural> Acesso em 15 out. 2006.

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cerebral. Conseqüentemente, tem apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual

não mantém relação com o mundo exterior e não conscientiza a dor”.

De acordo com o presidente do Conselho Federal de Medicina, Dr. Edson de

Oliveira Andrade11, um feto anencefálico tem chance estatística de

praticamente cem por cento de estar morto durante a primeira semana após o

seu nascimento. Assim, para que haja uma relativa prolongação de seu estado

vegetativo, nesse sentindo, questão de horas ou dias, inevitavelmente dever-

se-á recorrer aos aparelhos mecânicos, opção esta nem sempre possível para

todos por demandar um gasto exorbitante e por nem sempre o feto resistir, na

medida em que a sua existência se mantém em razão da sua ligação ao

organismo materno.

Se determinar o momento de vida não é matéria fácil, precisar o instante de

morte também não é tranqüilo. Há na doutrina dois tipos de morte: a morte

encefálica e a morte clínica. Segundo Dilío Procópio Drummond de

Alvarenga12, a morte encefálica consiste na cessação da atividade elétrica

desse principal órgão do corpo humano, mesmo que o tronco cerebral esteja

temporariamente funcionando; a morte clínica, por sua vez, tem um conceito

mais rígido, exigindo a mais, a parada irreversível da atividade cardíaca. A lei

vigente - Lei 9.434/97 - adotou o primeiro conceito, o de morte cerebral ou

encefálica, para autorizar a extração de tecidos, partes e órgãos do corpo

humano destinados a transplante ou tratamento. A lei que anteriormente

tratava tal matéria adotou o outro critério. Percebe-se, assim, a instabilidade

que há na doutrina diante do tema.

A Resolução nº. 1480, de 8 de agosto de 1997, referenciada pela Lei 9434/97,

contudo, temporariamente, põe fim ao debate ao dispor que a morte encefálica

deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Assim

11 ANDRADE, Edson de Oliveira. A grande diferença. Provida Anápolis: Goiás, 2003. Disponível em <http://www.providaanapolis.org.br/agrandif.htm>. Acessado em 22 set 2006. 12 ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. Anencefalia e aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 324, 27 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5167>. Acesso em: 10 out. 2006.

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sendo, se a falta do córtex cerebral não é condição suficiente para ser

reconhecida a morte encefálica, a irreversibilidade desta condição e a certeza

absoluta de que o feto não conseguirá sobreviver em razão desta deficiência

servem como atestado de que a morte é certa, ainda que o feto consiga

sobreviver por algumas horas após desligar-se do útero materno.

Além disso, o mesmo documento dispõe que a morte encefálica será

comprovada se for demonstrada, de forma inequívoca, que o cérebro não mais

possui atividade elétrica (art. 6º, a), característica esta permanente nos fetos

anencéfalos.

Em seguida, a Resolução 1752/2004 do Conselho Federal de Medicina

aprovada em 08 de setembro de 2004, veio a permitir a retirada dos órgãos de

recém-nascidos anencéfalos, para fins de transplantes. Se o próprio CFM, que

é órgão cuja especialidade lhe confere competência e credibilidade para dispor

sobre o fim da vida, permite que fetos anencefálicos possam ser alvos de

transplantes de órgãos, então o tema está esgotado. Importante é que a morte

encefálica não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos,

contudo atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo.

Esta resolução confirma o Parecer n. 24, de 9 de maio de 2003, do conselheiro

Marco Antônio Becker13, que traz a seguinte recomendação:

Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico

poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo

após a sua expulsão ou retirada do útero materno, dada

a incompatibilidade vital que o ente apresenta, por não

possuir a parte nobre e vital do cérebro, tratando-se de

13 BRASIL. Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer nº 24, 2003. Parecer sobre os atos anestésicos simultâneos. Relator: José Albertino Souza. Disponível em: <http://www.cremers.com.br/cremers/Interface/show_new.action?beanNew.idNew=487> Acesso em 14 out. 2006.

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processo irreversível, mesmo que o tronco cerebral

esteja temporariamente funcionante (grifo nosso)".

5. A LEGALIDADE DO ABORTO EUGÊNICO EM CASOS DE

ANENCEFALIA.

Em julho de 2004, o Min. Marco Aurélio de Mello deferiu medida liminar

autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia. Baseou-se

para tanto nos princípios constitucionais da liberdade e preservação da

autonomia da vontade, da legalidade, do direito a saúde e da dignidade da

pessoa humana14. A decisão foi um avanço para o processo civilizatório, e

ainda que a medida tenha sido recentemente derrubada pelo Plenário do

Supremo Tribunal Federal, a atitude do ministro foi louvável por fazer retornar

discussão tão necessária à conjuntura jurídica atual.

Em primeiro lugar, consoante a Resolução de 2004 do CFM, já citada, o

anencéfalo foi erigido à categoria de natimorto cerebral. Assim sendo,

confirmou-se ausência de viabilidade de vida quando o feto não possuir

atividade elétrica cerebral. Deste modo julga-se injustificável submeter a mulher

aos riscos de uma gravidez e aos traumas psíquicos que dela podem advir,

quando não houver qualquer expectativa de que seu filho nascerá com vida.

Segundo a FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de

Ginecologia e Obstetrícia15, a gravidez do feto anencéfalo pode resultar em

inúmeros problemas maternos durante a gestação. O puerpério da mulher

também pode ser intensificado em decorrência de hemorragias por falta de

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Deferimento de pedido de medida cautelar. ADPF 54. Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Relator: Marco Aurélio. 01 jul. 2004. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=ADPF&s1=anencefalia&u=http://www.stf.gov.br/Processos/adi/default.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=ADPFN&p=1&r=1&f=G&n=&l=20> Acesso em 3 out. 2006. 15 FREASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), Rio de Janeiro. 2006. Disponível em <www.febrasgo.org.br/> Acesso em 22 set. 2006.

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contratilidade uterina, o que pode levar a uma maior incidência de infecções

pós-cirúrgicas.

Acrescente-se ainda que, de acordo com a médica Ana Clélia de Freitas16,

cerca de 30% dos anencéfalos apresentam outras más-formações congênitas

graves, principalmente defeitos cardíacos. Tudo isso fará com que a mulher

tenha gestação seja mais penosa para a mulher, e certamente a manutenção

deste tipo de gravidez, principalmente quando for indesejada, ocasionará

graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da tortura sofrida e

do tratamento degradante, por vezes necessário para tais tipos de gestação.

Se a morte encefálica atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo, por

que compelir a mulher a submeter-se a esse tipo de gestação?

Conforme as preleções do professor Antônio Chaves17, cada vez mais estão

sendo ampliadas, no panorama internacional, as indicações de se admitir o

aborto em fetos com má-formação cerebral, baseadas no papel que “a nova

medicina deve desempenhar na sociedade como forma de valorizar o indivíduo

e democratizar as disponibilidades médicas em seu favor”.

Em uma pesquisa realizada pelo IBOPE18, em 2005, 76% da população

brasileira dizia-se favorável à prática do aborto quando o feto padecer de

acefalia. Isso, somado ao infindável número de clínicas de abortos

clandestinas, bem como a existência de inúmeras fórmulas abortivas, reflete a

insatisfação de muitas mulheres ante a legislação atual, a qual, enquanto

pertencente a um Estado Democrático de Direito, não tem cumprido com os

seus fins representativos.

Sabe-se que os procedimentos empregados para a interrupção da gravidez

possuem alta capacidade degradante no organismo da mulher, em razão de

16 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello et al. Existe aborto de anencéfalos? . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6467>. Acesso em: 23 set. 2006. 17 CHAVES, Antônio. Op Cit. p 36. 18 ÉPOCA, Revista. A Igreja Dividida, n 355. 07 mar 2005. São Paulo: Globo, 2005. p. 72.

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ser o útero um órgão muito vascularizado, o que aumenta a possibilidade de

inflamação generalizada, se porventura o processo não for concluído

devidamente. Não tendo pessoas capacitadas para tanto, o número de casos

de aborto desastrosos é assustador, envolvendo desde a morte materna, até

os casos em que o aborto não tenha sido consumado, tendo o bebê resistido e

ficado com seqüelas irreparáveis.

No Brasil cerca de três milhões de abortos ilegais são praticados por ano,

sendo que 340 mil mulheres são internadas por complicações advindas deste

procedimento. Segundo a OMS, o aborto é, na América Latina, a causa de 30 a

50% da morte das mulheres que engravidam19. Isso tudo se deve pela total

falta de higiene dos ambientes clandestinos que intervém indevidamente na

gravidez. Os especialistas afirmam que toda a problemática ocorre,

principalmente, devido às condições sócio-econômicas das gestantes. Desta

forma, não nos parece eficaz para que a situação seja controlada, concentrar

as discussões no campo tão-somente da moral. Há que serem discutidas

questões éticas, jurídicas e, sobretudo, humanitárias.

Em junho de 2002, o Parlamento Europeu adaptou ao relatório “Lancker”, que

“aconselhava a tornar o aborto legal, seguro e acessível, apelando aos países

para que não perseguissem mulheres que tivessem feito um aborto ilegal” 20.

As Nações Unidas, no ano de 1995, ao mesmo tempo, defenderam durante a

“Quarta Conferência Mundial da Mulher”, em Beijing, que os governos

deveriam, a partir daquele instante, lidar melhor com os impactos que a prática

abortiva clandestina provocava às mulheres e à Saúde Publica, devendo

fortalecer o seu compromisso com o bem estar das mesmas. E, não diferente,

a Organização Mundial de Saúde defendeu, em 1997, que as nações deveriam

reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de qualidade sobre o

tema, bem como enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base o

19 CHAVES, Antônio. Op Cit. p 24. 20 WOMAN ON WAVES, Amsterdam. 2006.<http://www.womenonwaves.org/index.php?lang=pt > Acesso em 03 out. 2006.

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compromisso com a saúde das mulheres e não com base nos seus códigos

criminais21.

Desta forma, é necessário que as mulheres que desejem pôr termo à gravidez

passem a ter acesso a um aconselhamento prévio, devendo ser prestados os

serviços devidos para a sua total informação a respeito das condições de vida

do feto que carrega consigo, para que, de acordo com suas convicções morais,

religiosas e éticas, ela possa decidir por si só se quer persistir com a gestação

ou não. Assim, perquire-se uma liberdade de escolha à gestante, pautada no

principio do seu livre-arbítrio.

Em seguida, é incompreensível o posicionamento do ordenamento jurídico em

permitir o aborto em casos em que a gravidez tenha advindo de estupro,

mesmo que este ato ponha em risco a higidez do feto, o qual, a princípio, é

saudável. Os legisladores atenuaram o art. 128 do Código Penal justificando-se

no fato da não aceitação da mulher em carregar um filho fruto de um trágico

momento de sua vida. Ora, isso é no mínimo injusto. Afinal, como pode uma

mulher pôr termo a vida de um filho, a princípio saudável, pelo simples fato de

rejeitar a forma como ocorreu a gravidez, e não poder uma outra abortar um

feto que não terá qualquer expectativa de vida? Por vezes este último é tão

mais indesejado que o primeiro, por, neste caso, a mulher carregar em seu

ventre um filho que não terá condições de viver.

Insistir no prosseguimento de uma gravidez sem possibilidade de êxito, quando

há vontade contrária da mulher, segundo o Juiz Corregedor da Polícia

Judiciária da Capital Paulista, Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “representa

capricho irresponsável do legislador e da sociedade que o apóia, pois este

sofrimento poderá evoluir para um grave comprometimento psicológico” 22. Há,

21 Ibid. 22 FRANCO, Geraldo Francisco Pinheiro apud SÃO PAULO. Comarca de Campinas. Autorização de Interrupção de gravidez. Processo nº 000/1999. Maria Maria Maria e Ministério Público. Relator: José Henriques Rodrigues Torres. 23 abr 1999. Disponível em: <http://www.jep.org.br/downloads/JEP/Abortamento/voto_aborto_maria_maria_maria_torres.htm> Acesso em 22 out. 2006.

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ainda, a possibilidade de risco à saúde da mulher, como já mencionado, com

eventual reflexo em suas condições de vida. E isso deve ser impedido, no

mínimo, por razões humanitárias.

A ausência de cérebro mata o feto durante a gestação ou, no máximo, nos

primeiros minutos após o parto. É má-formação incurável e qualquer

intervenção é em vão. O diagnóstico, neste caso, segundo Antônio Chaves23,

servirá apenas para a preparação psicológica dos pais. Isto porque, a

responsabilidade que lhes cabe é manifestadamente maior, exigindo-lhes mais

maturidade, além de recursos econômicos, pois se porventura o bebê

conseguir vir ao mundo de forma vegetativa, o prolongamento desta “vida

artificial” por alguns dias, demandará um gasto considerável, tendo em vista a

falência do atendimento público e os caros recursos disponíveis.

Desta forma, qual seria o sentido então, fora das preleções religiosas, de

obrigar uma mulher a manter uma gestação que terá um desfecho trágico? O

Estado teria o direito de punir uma mulher, inocente, com o sofrimento

psicologicamente torturante? Em nome de que? O ex-procurador-geral da

República, Cláudio Fonteles, diz que a gravidez deve ser conservada em nome

da vida. É lindo isso. Contudo, de acordo com as palavras do jornalista André

Petry, a única vida que estaria em discussão é a da gestante, pois o feto não

possui qualquer possibilidade de completar dez minutos fora do útero. Assim,

deve-se falar na defesa de vida da futura ex-mãe, que, não tendo nenhuma

escolha feliz possível, tem o direito ao menos de poder escolher sobre

prolongar ou encurtar o seu sofrimento. Nesse mesmo sentido, o jornalista diz

que:

Quando se combate o aborto de um feto sem cérebro

não se está defendendo a vida - defende-se só um

dogma religioso pelo qual a interrupção de uma vida,

23 CHAVES, Antônio. Op Cit. p. 32.

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mesmo em estágio intra-uterino, mesmo sem chance de

sobrevivência, só pode ocorrer por obra divina24.

Submeter a mulher ao sofrimento psicológico, mediante o emprego de violência

simbólica dos dogmas religiosos, configura-se uma prática torturante. Posto

isso, a Carta Constitucional erigiu a tortura à categoria de crime inafiançável e

insuscetível de graça ou anistia (Art. 5º,XLIII). Assim sendo, ninguém poderá se

submeter a um tratamento degradante por qualquer motivação, inclusive

religiosa. Assim, quando se contesta a medida liminar deferida pelo Min. Marco

Aurélio, legitima-se a posição de subordinação do Estado perante a Igreja,

possibilitando submeter cidadãos que professam religiões diversas ou

nenhuma aos dogmas daquela imperada no Estado, desrespeitando-se, assim,

a liberdade de crença e o laicismo estatal.

Para que a lei penal fosse legítima além de legal far-se-ia a necessidade de

reformulá-la. A legitimidade da norma emana da idéia que a sociedade faz do

justo. E, certamente, a sociedade brasileira hodierna tem os seus conceitos de

justiça alterados, desde o ano de 1940, quando o atual Código Criminal surgiu.

Neste sentido, a modificação da lei é necessária para reajustar a expectativa

da norma aos anseios dos sujeitos que por meio dela realizam o Direito. A

eficácia da norma, nós sabemos, depende do consenso social em observá-la, o

que ocorrerá quando esta refletir as vontades do seu público.

A anencefalia já é tema resolvido em grande parte do globo, tendo a Alemanha,

a Áustria, o Reino Unido, a França, já se posicionado favoráveis a sua

liberalização. Felizmente, no Brasil cada vez mais se avultam juristas com o

pensamento semelhante ao do Min. Marco Aurélio, como é o caso de Luís

Roberto Barroso25 que defende a necessidade de haver a defesa da saúde da

mãe, posto que esse tipo de gravidez pode acarretar perigos a sua salubridade.

24 PETRY, André. A favor do aborto – e da vida. Revista Veja. São Paulo, ed. 1862, jul 2004, p 108. 25 GUERRA, Gustavo Rabay. O aborto dos fetos anencefálicos na ordem constitucional. Jurista.com.br, João Pessoa, a.I, n.1, 22/12/2004. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/revista/coluna.jsp?idColuna=5> Acesso em 17 Out. 2006

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Neste sentido, o jurista pede a aplicação do instituto do periculum in mora, a

fim de resguardar a saúde da mãe de um dano irreparável, enquanto não há

consenso sobre a matéria no ordenamento que a proteja.

Atualmente têm-se buscado diversas interpretações da lei penal para se

possibilitar a antecipação do parto do anencéfalo. Fala-se em acrescer ao Art.

128, do Código Penal, um novo inciso que estendesse a exclusão da ilicitude

aos casos em que o aborto eugênico se consumasse. Foi temendo esta última

hipótese que o STF derrubou a liminar autorizadora do abortamento em feto

anencefálico, através do voto condutor elaborado pelo Min. Eros Roberto Grau,

para quem a manutenção da liminar poderia ensejar uma pretensa intenção da

Suprema Corte em reescrever o Código Penal26. Compreensível a justificativa,

embora não aceitável, principalmente pelo fato de o tema abranger muito mais

que políticas normativas.

Interessantíssima a corrente de juristas que busca afastar a tipicidade do

aborto eugênico em casos de fetos anencefálicos através da tese de que, em

fato, não há o tipo aborto em tal conduta. O nascituro possui expectativa de

direitos, conforme a Lei de Introdução do Código Civil de 2002. Desta maneira,

em se diagnosticando a morte cerebral do feto, não mais haveria bem jurídico a

ser tutelado. Conforme o Min. Marco Aurélio, justificando a liminar que

concedeu, a interrupção da gravidez no caso de feto anencefálico não

caracterizaria aborto, porque não há que se falar em expectativa de vida fora

do útero. Concordamos com esta posição.

O Estado, quando autoriza a prática do aborto em gravidez oriunda de estupro,

explicita que o feto pode ser sacrificado para garantir os direitos constitucionais

e, em especial, a honra da mãe. Conclui-se daí, que nem sempre a vida está

26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Deferimento de pedido de medida cautelar. ADPF 54. Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Relator: Marco Aurélio. 01 jul. 2004. Disponível em: <http://gemini.stf.gov.br/cgi-bin/nph-brs?d=ADPF&s1=anencefalia&u=http://www.stf.gov.br/Processos/adi/default.asp&Sect1=IMAGE&Sect2=THESOFF&Sect3=PLURON&Sect6=ADPFN&p=1&r=1&f=G&n=&l=20> Acesso em 3 out. 2006.

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acima dos princípios constitucionais, bem como, manter um ser morto no útero

materno prolonga inultimente o sofrimento da mãe, sem nenhum benefício à

vida, contrariando o princípio bioético da beneficência27, que garante a

autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo. Nestes

moldes, o direito à vida, em nosso ver, amparados pelo ponto de vista do

advogado Manuel Sabino Pontes28, seria conseqüência lógica da dignidade da

pessoa humana. É justamente este o fundamento invocado pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores na Saúde, autora da ADPF 54, para quem a

impossibilidade do aborto eugênico em feto anencefálico violaria a dignidade

da condição feminina.

O filósofo norte-americano Ronald Dworkin refere-se à criminalização do aborto

como algo antes de indesejável, ser igualmente terrível. Justifica a atitude das

mulheres que contrariam a ordem estatal e tomam qualquer atitude para evitar

o prolongamento da gravidez, no fato de que o trauma que irá persegui-las e o

dano ao seu amor próprio são incomensuráveis, só podendo ela própria ser

capaz de mensurar a extensão dessas dores, jamais um terceiro.

A libertação da ordem jurídico-estatal das visões moralistas e religiosas,

conforme Gustavo Rabay Guerra29, representou a elevação do Estado à

condição de Democrático de Direito. A Carta Constitucional previu o laicismo

do Estado, garantindo a cada cidadão a liberdade de crença e assegurando-o

que ninguém será privado de direitos por motivo de opção religiosa (Art. 5º,

VIII, CF). Assim sendo, é desumano proibir que a mulher retire de seu ventre o

feto, quando já está morto, forçando-a a persistir na gestação. O direito à vida

seria sempre absoluto e instransponível? O ordenamento brasileiro não pensou

27 “A beneficência é entendida como (...) a autonomia do paciente em decidir o que é melhor para si mesmo (...)”. Cf. DRUMOND, José Geraldo de Freitas. O princípio da beneficência na responsabilidade civil do médico. Montevidéu, Uruguai. 2000.<http://www.ibemol.com.br/sodime/artigos/BIOETICA_DIREITO_MEDICO.htm> Acesso em 16 out. 2006. 28 PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto: atipicidade por ausência de lesividade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 859, 9 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7538>. Acesso em: 14 out. 2006. 29 GUERRA, Gustavo Rabay. Op. Cit.

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desta forma quando priorizou o livre-arbítrio da mulher ante o direito de viver do

feto, nos casos de aborto humanitário.

6. CONCLUSÃO.

As turbulências existentes sobre o aborto residem, principalmente, no fato de

não haver um consenso jurídico internacional acerca dos conceitos de vida e

morte. O próprio ordenamento brasileiro absorveu esta inquietude ao manter-se

instável perante o tema, mudando de tempos em tempos o seu entendimento a

respeito e permitindo-se influenciar pelas concepções religiosas.

Como já mencionado, a modernidade jurídica é resultado do desvencilhamento

dos aspectos religiosos, pelas normas estatais. É de se esperar, que o tema

abordado disponha de um discurso pautado na ética humanista e respeitosa

dos valores que circundam a sociedade. Todavia, não devem os argumentos

ser baseados em ideais pretensamente moralistas e ligados às convicções

religiosas pessoais do feitor da norma. Afinal, Michel Villey já dizia que ser

jurista não significa exercer o sacerdócio da justiça, nem seguir ao Evangelho,

mas servir ao bem-estar dos homens.

Os religiosos têm todo o direito de manifestar suas opiniões e orientar seus

fiéis para que sigam os seus ensinamentos, afinal, o Brasil é um Estado

Democrático laico, podendo qualquer cidadão professar a crença que almejar.

Estamos livres juridicamente dos dogmas das igrejas. Assim, não se concebe

que os julgamentos se pautem em crenças e misticismos, tampouco que os

aplicadores das leis se deixem mover por suas convicções religiosas. Estar-se-

ia legitimando o poderio da Igreja e assentindo a subsunção das normas às leis

das mesquitas e igrejas.

O direito à vida é tão inviolável quanto o direito à liberdade do homem, estando

a própria Carta Constitucional concordante quanto a isso, ao dispor ambos na

mesma linha de importância (art. 5º, caput). Assim, havendo conflito entre os

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dois direitos, necessário será que haja uma conjugação e sopesamento dos

valores abordados, não devendo admitir querer fazer com que a mãe suporte

toda a carga de uma gravidez, cujo desfecho será trágico.

Inúmeras teorias acerca do tema existem, entretanto todos concordam com a

certeza de que, ao final, a má-formação encefálica ensejará na morte da

criança, ainda no útero ou dias após o nascimento. Isto posto, diante do fato

abordado, deve-se permitir liberdade a cada mulher de decidir se quer ou não

prosseguir com a gestação, segundo as suas convicções, pautadas nos

princípios da liberdade, da dignidade e da autonomia da vontade.

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