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A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM CLASSES DO 9º
ANO: UMA TENTATIVA DE COMPREENDER AS TENSÕES DO PROCESSO
ENSINO/APRENDIZAGEM
Edna Gomes Roriz
Programa de Pós-graduação – Doutorado
PUCMinas
RESUMO
A pesquisa que desenvolvemos e cujos resultados encontram-se na nossa dissertação de
Mestrado: O Currículo e a Sala de Aula: desafios da escola contemporânea revelados
através de aulas de ciências, orientada pela Profa Dra Rita Amélia Teixeira Vilela,
baseia-se em pressupostos teóricos do campo do currículo e do campo da teorização
social sobre a função da escola no mundo atual. O princípio que nos orientou foi a
certeza da necessidade de se entender a sala de aula, espaço de materialização do
currículo escolar, para poder desvendar a escola. Tomamos como ponto de partida o
projeto educacional da Modernidade, primeiro sob a perspectiva de Comenius, que
defendia a existência da escola como o espaço do ensinar e do aprender, desde a
infância, sem distinção de classe ou de gênero. Essa premissa da educação foi
consolidada no Iluminismo sendo defendida, inegavelmente, até hoje. Partindo dessa
premissa, a implantação da instituição escola teve uma função clara e específica que, no
entanto, não se concretiza nos nossos dias, pois acaba por excluir a maioria dos que a
procuram. Como o currículo é o grande ordenador do que se faz na escola, foi em torno
dele, e mais especificamente do currículo de Ciências, que trabalhamos, embora
reconheçamos que, em educação, há outros fatores a serem considerados para trazer
respostas aos nossos questionamentos. As aulas foram gravadas e analisadas utilizando-
se a hermenêutica objetiva de Oevermann. Para a discussão, buscamos apoio no campo
do currículo com os estudos de Apple, Moreira, Silva, Goodson e Forquin e na Teoria
Crítica da Sociedade, pelos escritos de Adorno, Horkheimer, Oevermann e seus leitores
como Pucci, Duarte, Zuin, Leo Maar e Vilela.
Palavras chaves: sala de aula, currículo, hermenêutica objetiva, teoria crítica.
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Em nossas pesquisas, temos buscado desenvolver discussões sobre a necessidade de
conhecimento real da escola como condição para orientar seu trabalho efetivo na
preparação das novas gerações para a vida social plena no seu tempo e na sociedade.
Para isso, consideramos necessário confrontar a realidade aparente da escola com o que
ela realmente é, colocando como imperativo conhecer e explicar os problemas
existentes na prática pedagógica que é materializada no currículo real. Além de
apoiarmos nossos estudos nas Teorias de Currículo, buscamos, na Teoria Crítica da
Sociedade, o pensamento de Adorno para o qual ―a crítica da sociedade é a crítica do
conhecimento sobre ela e vice-versa‖ (ADORNO, 1995, p.189). Desta forma, a crítica
da escola é a crítica do conhecimento sobre ela, e esse é o desafio para se desvendar o
que efetiva o currículo. Tentamos esclarecer as reais possibilidades de a escola ocupar
um lugar central no processo de educar pessoas, abordando a educação numa
perspectiva muito mais ampla do que apenas ensinar e disciplinar para o que está
estabelecido. Para isso, fundamental tem sido o apoio na teoria pedagógica que explica
e reforça a função social da escola. Portanto, na perspectiva da Teoria da Educação,
partimos do pensamento de Comenius, isto é, situamo-nos a partir do século XVII, sem
qualquer pretensão de uma revisão de cunho cronológico da história das idéias
pedagógicas, mas buscando, ao longo da História da Educação, quais funções foram
atribuídas à escola de acordo com o contexto histórico e social. Procuramos, em
especial, conhecer o pensamento de estudiosos da educação, cuja preocupação maior,
em seus projetos educacionais, foi a de considerar, como função da escola, promover a
concretização da tríade Educação, Ensino (Instrução) e Formação como meta principal
do processo educacional. Buscamos contextualizar, histórica e socialmente, o conceito
de Bildung (Formação), como a dimensão última do processo pedagógico,
especialmente na visão de José Fernandes Weber (2006) e de Ilan Gur-Ze’ev (2006).
Assistimos a aulas de Ciências ministradas aos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental
em uma escola da rede estadual de ensino situada em Belo Horizonte, Minas Gerais. As
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aulas foram gravadas e rigorosamente transcritas, criando assim um protocolo a ser
analisado por grupos de professores de áreas diversas, incluindo sempre, pelo menos,
um da área de Ciências. Utilizamo-nos da hermenêutica objetiva, metodologia
desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann, da Universidade de Frankfurt.
Essa metodologia foi construída sob os princípios da dialética negativa de Theodor
Adorno, da sociologia hermenêutica e da sociologia estruturalista, possibilitando
confrontar o aparente com o real e fazendo emergir as estruturas que dão sentido às
práticas sociais. Essa abordagem permite reconstruir o processo pedagógico que se deu
na sala de aula, através da análise cuidadosa de cada parte do protocolo gerado, tanto ao
longo de cada aula (análise horizontal), quanto em um conjunto de várias aulas (análise
vertical). Buscamos, assim, esclarecer os problemas e reconhecer os desafios que
surgem no processo educacional, desvelando a sala de aula, para tentar compreender a
escola. Ao decidirmos analisar a sala de aula, e entendê-la através das relações que
professores e alunos estabelecem não somente entre si, mas entre o currículo prescrito e
o real, optamos por delimitar o estudo da sala de aula no âmbito do processo
pedagógico porque este corresponde à natureza da escola. Assim, nossa opção é pelo
estudo da sala de aula como espaço concreto de realização da educação escolar, uma
vez que nos interessava reconstruir de forma analítica o processo pedagógico
materializado pelo currículo e explicar como a dinâmica de entrelaçamento desses
elementos se apresenta na escola. Esperamos que, com os resultados obtidos, possamos
contribuir não só para uma reflexão sobre os processos educacionais vivenciados no
Ensino Fundamental, mas também para a formação dos docentes. Especialmente,
esperamos chamar a atenção para a necessidade de compreendermos o currículo como
peça fundamental nas relações de mediação nas salas de aulas, possibilitando entender,
tanto a realidade escolar, quanto os papéis da educação, do ensino e da formação na
significação da escola na sociedade de hoje e do futuro.
Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da
Modernidade, procuramos soluções modernas para desafios contemporâneos, pois
sabemos que formar pessoas coloca os educadores em uma realidade imersa em
perplexidades, crises, incertezas, pressões sociais e econômicas, relativismo
moral, dissoluções de crenças e utopias. [...] Talvez a ressonância mais
problemática disso se dê na sala de aula, onde decisões precisam ser tomadas
e ações imediatas e pontuais precisam ser efetivadas visando promover
mudanças qualitativas no desenvolvimento e na aprendizagem dos sujeitos.
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[...] Isso envolve necessariamente uma tomada de posição pela
pedagogia. Nenhum investigador e nenhum educador prático poderá, pois,
evadir-se da pedagogia, pois o que fazemos quando intentamos
educar pessoas é efetivar práticas pedagógicas que irão constituir sujeitos e
identidades. Por sua vez, sujeitos e identidades se constituem
enquanto portadores das dimensões física, cognitiva, afetiva, social, ética,
estética, situados em contextos socioculturais, históricos e institucionais.
Buscar saber como esses contextos atuam em processos de ensino e
aprendizagem de modo a formar o desenvolvimento cognitivo, afetivo e
moral dos indivíduos com base em necessidades sociais é uma forte razão
para o cotejamento entre o ―clássico‖ da pedagogia e as novas construções
teóricas lastreadas no pensamento ―pós-moderno‖. (LIBÂNEO, xxxx, p.16).
Conscientes de que uma das ações mais claras do fazer docente é proporcionar ao
indivíduo uma formação geral básica, buscamos na Modernidade, mais exatamente na
Didacta Magna de Comenius, os primeiros passos do ―ensinar tudo a todos‖, como um
importante momento da ação pedagógica. De acordo com Comenius,
nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, uma arte universal de
ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de
ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e discentes se molestem ou
enfadem, mas, ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo
sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à
verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda.
Finalmente, demonstramos essas coisas a priori, partindo da própria natureza
imutável das coisas, como se fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos
perenes, que se unissem depois num único rio para constituir uma arte
universal, a fim de fundar escolas universais. (COMENIUS, 2006, p.13).
Em Comenius, encontramos a defesa de que o aprender e o ensinar só se harmonizariam
se alguns princípios fossem seguidos, isto é, Comenius faz referência à necessidade do
ser humano de receber conhecimento para saber como sobreviver (Ensino), “... a
caridade ordena (como declara Lubin em sua Didática) que nada se esconda ao gênero
humano, mas que se divulgue tudo o que Deus ensinou para a salvação do gênero
humano)” (COMENIUS, 2006, p.18); também mostra a importância de conhecer a
respeito de solidariedade e respeito ao próximo (Educação), “por lei da natureza
humana, quem souber a maneira de prestar socorro a alguém em dificuldade não
deverá deixar de prestá-lo: sobretudo quando (como em nosso caso) não se tratar de
um homem apenas mas de muitos...” (COMENIUS, 2006, p.18). Eis aqui presentes os
dois pilares Ensino ou Instrução e Educação como condição fundamental para se
alcançar a plenitude da Formação.
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A palavra educar, isto é, o ato pedagógico, tem sua origem em dois termos latinos:
educare, que significa ―conduzir de um estado a outro‖ no sentido de algo que se dá a
alguém para conduzi-lo numa certa direção, e educere, que traz a idéia de conduzir para
fora, sugerindo a liberação de algo que está latente e dependendo de estimulação para
aflorar. Podemos, então, definir esse ato pedagógico como uma ação exercida entre
sujeitos, visando provocar mudanças extremamente eficazes, de forma a torná-los ativos
da própria ação exercida. Portanto, a educação não pode ser compreendida
independentemente de um contexto histórico-social concreto em que esses sujeitos
estariam inseridos, não podendo ser considerada como uma simples transmissão de
saberes intergeracionais, mas sim como um processo que torna possível o aparecimento
do novo e a ruptura com o velho.
O Vocabulaire Téchnique et Critique de la Philosophie, publicação da Société
Française de Philosophie, na edição de 1997, página 520, define a palavra Instrução
(do latim instruere, ou seja, construir) como a ação de comunicar conhecimentos a
outrem, opondo-se ao significado de Educação, que se aplica ao desenvolvimento de
hábitos de conduta e da moralidade, ou seja, do caráter.
Percorrendo os caminhos da Teoria Pedagógica, partindo da utopia de Comenius de
ensinar tudo a todos; seguindo pelo romantismo de Rousseau, ao propor um
aprendizado guiado pelas leis da natureza; da educação do esclarecimento (Aufklãrung)
com o postulado do uso libertador da razão como uma saída para a formação moral dos
homens, defendidos por Kant; no pensamento de Durkheim, que considerava a escola
como espaço fundamental do aprendizado necessário para viver em sociedade; passando
por Humboldt, para quem a formação deveria ser para todos os indivíduos
independentemente de sua origem social e assim deveria estar em todas as escolas, não
importasse o ramo e grau de ensino; chegando, finalmente, na reivindicação de Adorno
de educação para autonomia, tal como ele concebe o projeto educacional. Todas as
concepções acima demonstram que a plenitude do processo educacional deve-se apoiar
no tripé Educação (condução do outro para a aprendizagem) / Ensino (instrução) /
Formação. Por tudo isso, não apenas consideramos a escola como o lugar de
transmissão do saber, mas da realização do processo pedagógico que culmina com a
formação plena do indivíduo. Essa formação realizar-se-á somente através do processo
de ensino e da educação verificado na sala de aula. Daí vem a nossa opção de trabalhar
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com uma metodologia que permite a reconstrução desse processo na sala de aula, não
através do que ela aparenta ser, mas do que é revelado por ela mesma.
Optamos, então, pela utilização da metodologia denominada Hermenêutica Objetiva,
desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann, de uso muito recente no Brasil
(VILELA 2008, 2010; NOACK – Nápolis, 2008; WELLER, 2007, 2009). Na
Alemanha, a Hermenêutica Objetiva é um dos mais utilizados métodos de investigação
sociológica que opera com a reconstrução lógica de acontecimentos e relações sociais.
Ela se aplica de modo especial àqueles estudos que se interessam pelo entendimento dos
processos lógicos de interação, o que explica sua apropriação para os estudos dos
intramuros da escola e da sala de aula, procurando desvendar como se dão as relações
estruturais de todos os elementos da aula e das interações da disciplina com o contexto
escolar e social (FLICK, 2009). De acordo com Pflugmacher, pesquisador da
Universidade de Frankfurt,
A aula é sempre, em primeiro lugar, uma forma específica de práxis social que tem
uma lógica pedagógica própria e que, por isso, se diferencia, com suas regras, de
outras práticas. Outra consideração importante, que podemos comprovar
empiricamente, é que essas três normas do processo pedagógico: educação, ensino
e formação, não acontecem de uma forma harmoniosa e nem isolada numa aula,
mas sim demarcam o que é a aula, num processo permanente de tensão.
(PFLUGMACHER, 2010, p.3)
Essa reconstrução empírica é processada segundo a orientação epistemológica da Teoria
Crítica de Adorno, mais especificamente segundo um postulado da dialética negativa.
“Apenas na contradição daquilo que aparenta ser com aquilo que realmente é, é que a coisa
deixa de fato reconhecer o que ela realmente é”. (PFLUGMACHER, 2010).
De acordo com Vilela (2010), uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a utilizar a
metodologia da Hermenêutica Objetiva, se a relação entre Educação, Ensino e Formação,
respectivamente,
Erziehung, Didaktik, Bildung é determinada historicamente dando sentido à
escola, entender essa relação é condição para o conhecimento daquilo que a
escola é e isso só se torna possível no desvendamento das contradições entre
suas aspirações e possibilidades. Dessa forma, ao desvendar de forma crítica
a presença ou a ausência dessa relação na escola de hoje, ou melhor, como
essas dimensões estão dentro da aula num processo contraditório, às vezes
latente, às vezes explícito, chega-se a um conhecimento crítico sobre a escola
e assim torna-se possível alcançar o conhecimento de fato sobre ela, ou, a sua
verdade. A pretensão do grupo de Frankfurt, como foi dito, é formular uma
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teoria sobre a escola de hoje sem negar a sua dimensão histórica e, sobretudo,
referendada empiricamente. (VILELA, 2010b).
É na dimensão desta orientação de pesquisa que nosso trabalho foi inserido, isto é,
buscando analisar e, então, compreender a constante tensão inerente ao processo
pedagógico. Tensão esta que será encontrada em vários momentos, tais como: o
educador deve formar o aprendiz para a autonomia, contemplando necessidades
individuais, mas sem perder de vista as necessidades sociais, tratando cada um como se
fosse único, mas não permitindo seu isolamento do todo, enfatizando a importância da
obediência às normas sociais, mas preparando-o para criticá-las; contextualizando os
saberes no cotidiano dos alunos, mas sem permitir que se instale o ―senso comum‖. A
sala de aula, nessa perspectiva torna-se o locus no qual os sujeitos devem receber o
conhecimento teórico e científico para o desenvolvimento da razão que permitirá o
exercício da autonomia e da liberdade, acolhendo-os nas suas diferenças, tornando
possível a construção de suas identidades. Com a união dessas ações pedagógicas, eles
serão formados para o exercício da cidadania na qual sua liberdade não irá ferir ou
limitar a liberdade dos outros.
Em todas as aulas a que estivemos presentes, o início foi marcado pela falta de cortesia
entre a professora que chega e os alunos que a recebem. Não há um cumprimento ou um
convite para que se estabeleça qualquer elo de cordialidade entre aqueles que vão iniciar
um processo, no qual a interação é essencial para a construção de significado nas ações
que virão a seguir. Essa falta de um sinal afetivo pode ser uma das causas das
dificuldades de relacionamento entre professores e seus alunos, muitas relatadas como
situações de violência na sala de aula. Assim, a dimensão educativa, a condução do
processo por alguém imbuído dessa tarefa, no caso, a professora, não se instala.
Após a chegada da professora, são necessários, invariavelmente, cerca de 10 a 15
minutos a fim de que a sala fique organizada para o início da aula propriamente dita. Há
casos em que 25 minutos transcorreram sem qualquer sinal do motivo que reuniu, em
um mesmo espaço físico, professora e alunos. Além disso, as interrupções são
frequentes e não justificadas. Como não há, por parte da professora, o estabelecimento
de que aquele é o momento de se iniciar uma atividade, fato, como vimos, representado
pela ausência de um cumprimento, ou mesmo, em seguida, de uma exposição do que
deveria ser feito naquele instante, novamente não se instala o processo educativo, para a
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concretização do que, supostamente, deveria ser realizado. Nota-se que os alunos não se
sentem convidados a participarem da aula e, dessa forma, continuam a conversar como
se ainda estivessem no intervalo que antecede a aula.
Pudemos observar que o mais importante para a professora é o cumprimento da tarefa e,
muitas vezes, passou-se o transcurso de mais da metade do tempo de aula sem que nem
soubéssemos, através da leitura da transcrição, de que assunto deveria tratar a aula. Em
uma aula de Ciências, onde os temas tratados são de especial importância para o
adolescente que desperta para a sexualidade, as questões sobre contracepção, prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce, transtornos de alimentação,
entre outros, são tratadas de forma superficial, ou não são tratadas. Há, muitas vezes, o
discurso de que os alunos já deveriam saber esse ou aquele conteúdo, por ter sido
trabalhado em um ano anterior, ou de que o assunto não será estudado naquele
momento, nem naquele lugar, porque dentro de alguns meses virá um representante de
um laboratório para explicar.
A professora não assume seu papel de despertar o interesse pelo conteúdo e, também, o
de usar da sua competência, esperada pela sua função, para explicitar os elementos do
conhecimento, sempre pedidos pelos alunos. Nas aulas, ela não conduziu qualquer
reflexão para que os alunos superassem sua situação de não conhecimento. Dúvidas
foram ignoradas, várias respostas dadas pela professora foram carregadas de equívocos,
tais como, reforço ao senso comum e até mesmo erros conceituais, como podemos ver
no exemplo abaixo:
FRAGMENTO 1 DA AULA DE CIÊNCIAS em 16/04/2009
A16♂: Ó professora.
Profa: Oi.
A16♂: Professora, o DIU.
A17♂: É, o DIU. Explica prá nós.
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(Trata-se de uma aula de Ciências, cujo tema é ―Aparelho reprodutor masculino e
feminino.‖)
Observa-se que a professora está sendo abordada por dois meninos, que parecem
interessados em aprender mais sobre métodos contraceptivos.
Consideramos digno de nota que jovens do sexo masculino estejam interessados
em aprender sobre como prevenir a gravidez, tarefa muitas vezes delegada
apenas às mulheres.
A faixa etária dos alunos — 14 a 16 anos — é condizente com questionamentos
dessa natureza, uma vez que a atividade sexual, em nossa sociedade está cada
vez mais precoce.
Será que os alunos estão questionando a respeito do dispositivo intrauterino, em
função da divergência existente entre os médicos sobre o papel do mesmo?
O professor de Biologia, que faz parte do nosso grupo de análise, esclarece que
há controvérsias a respeito do funcionamento do DIU. Alguns médicos dizem
que ele impede a passagem dos espermatozóides pelas trompas, evitando a
fecundação do óvulo, sendo, por isso, um método contraceptivo. Outra corrente
defende que o DIU não impede a fecundação e sim a nidação, ou seja, impede
que o óvulo fecundado seja fixado na parede uterina; dessa maneira, o DIU
atuaria como abortivo.
Existindo a controvérsia se o DIU seria ou não abortivo, é possível que os alunos
tenham sido motivados a questionar seu uso, levando-se em conta as
divergências que permeiam o tema.
Profa: Porque o DIU é um aparelhinho que vai ser colocado lá dentro do útero e ele
vai provocar uma inflamação no útero. Quando a gente tem qualquer inflamação no
corpo não tem células do sangue que vão lá prá proteger o organismo, fazer a
proteção, que são os leucócitos? Aí caso o embrião queira implantar lá eles vão lá e
vão comer, entre aspas. São os leucócitos que fazem essa fagocitose, não é isso? Então
o embrião não sobrevive. Mata o bichinho.
Por que a professora, ao dirigir-se a uma classe de adolescentes, tratando de uma
temática tão importante, dirige-se aos alunos utilizando o diminutivo?
Seria uma tentativa de esquivar-se de tratar do assunto de uma forma científica?
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Seria uma tentativa de infantilizar a classe e, com isso, minimizar a importância
do tema?
Chama a nossa atenção os graves erros cometidos na explicação acima. O DIU
feito de cobre é considerado como espermatecida, impeditivo da fecundação por
imobilizar ou matar os espermatozóides. O DIU feito de outros materiais,
inclusive plástico, seria um corpo estranho no útero cuja presença provocaria
uma contratilidade uterina excepcional e a irritação de secreções anormais da
decídua (onde deve ocorrer a implantação) que favorecem a expulsão do ovo, até
então livre na cavidade uterina. Por isso ele é considerado, por muitos, como
causador de um micro-abortamento que ocorrerá assintomático.
Observamos, a partir do texto acima, que o conhecimento científico não esteve
presente na sala de aula. Consideramos que a Instrução tem que ser uma das
funções da escola e, nesse caso, ela não se concretizou. O tema, ao ser tratado de
forma vaga e superficial não contribuiu para o aprendizado dos alunos no que
diz respeito à conduta em sociedade. Dessa forma, a aula, nesse momento, não
contribuiu para a Educação dos alunos. Assim sendo, não se realiza a Formação
(Bildung).
Embora, muitas vezes, ouçamos o discurso de que os alunos não se interessam pelo
conhecimento, não querem saber de estudar e que, por mais que os professores se
esforcem para motivarem-nos, eles nada querem, nossas observações têm mostrado uma
realidade muito diferente. Não há dúvidas que, em muitos momentos, as falas dos
alunos registram a vontade dos mesmos de aprenderem. O que observamos é que a
professora, muitas vezes, responde às questões que ela mesma propõe, não permitindo
ao aluno refletir para, ele mesmo responder. Há outras ocasiões em que o aluno quer
saber mais e a professora ridiculariza suas colocações ou responde utilizando o senso
comum. Assim se evidencia que outra dimensão do processo pedagógico, o ensino
propriamente dito, também está ausente. Observemos o exemplo abaixo:
FRAGMENTO 2 DA AULA DE CIÊNCIAS em 16/04/2009
A20♂: Professora?
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Profa: Oi.
A20♂: E as doenças?
Profa: Da mesma maneira que tá aqui. Só uma pincelada. Não aprofundou porque isso
vocês já viram nos anos anteriores.
O conhecimento está sendo negado, naquele momento, e a justificativa é o fato
de que os alunos já teriam debatido esse assunto em anos anteriores.
Desconsidera-se, aqui, a necessária retomada de vários temas em momentos
diversos da vida dos aprendizes.
Destacamos, mais uma vez, a ausência da Instrução e da Educação nessa aula.
A20♂: É, isso daqui eu sei tudo também. Mas eu tô querendo saber...
O aluno insiste que gostaria de saber mais alguma coisa.
Vemos que ele foi interrompido e de forma brusca como constatado no texto que
se segue.
Profa: É, da maneira que tá aqui. Só essa visão mais superficial. É porque lá no sexto
ano vocês viram reprodução nas plantas. As doenças eu não vou cobrar nessa prova
não porque a menina da Schering vem fazer um trabalho com vocês sobre isso. Aí, eu
vou cobrar parte de reprodução humana sem falar das doenças. Porque aí, em agosto,
ela vem pra fazer isso.
A20♂: Nem da AIDS?
O aluno insiste, certamente pelo saber naquele momento e não meses depois.
Ele pede que o conhecimento venha através da professora e não que seja
delegado a um representante de um laboratório.
Se o processo pedagógico deve ser instaurado com a relação ensino e educação como
condição para que o aluno se desenvolva plenamente, alcançando o mais elevado grau
de desenvolvimento pessoal, para conhecer, pensar, refletir e tomar decisões, esse
processo não ocorreu nessas aulas de ciências. Isto é, se os componentes da tríade,
Educação e Ensino não estão presentes, não há como se concretizar a Formação
Integral, Bildung, do educando.
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A palavra Bildung se revela como um dos conceitos básicos do Humanismo, destacado
desde a época de Goethe até os nossos dias. A Bildung se fez presente, histórica e
ideologicamente, na transformação da sociedade alemã que se encontrava movida por
um intenso nacionalismo, no momento em que se dava a chegada da industrialização e
do progresso na Alemanha (WEBER, 2006). Na Língua Portuguesa, o significado mais
próximo da expressão Bildung é Formação, formação plena do indivídulo naquilo que
designa sua humanidade e condição de vida em sociedade; portanto, que ele seja pleno
de conhecimento, que aja com plena autonomia e que se enxergue na relação social
sempre tendo o outro como referência. Isso se identifica com o conceito de sujeito
emancipado de Kant (KANT, 2006) e Adorno (ADORNO, 2006).
Adorno deu grande importância à autonomia, conquistada através da Formação do
sujeito, à liberdade de decidir a respeito dos caminhos a serem seguidos, à capacidade
de se autodisciplinar e viver de forma independente. Por isso, sempre que se refere à
educação, Adorno mostra-se contrário a qualquer processo de coisificação, de
modelagem das pessoas, à “mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de
coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência
verdadeira”. (ADORNO, 2006, p.141). Para Adorno, o conceito de educação para a
autonomia é complexo, já que supõe uma orientação, um guiamento como condição de
se chegar à autonomia, sendo essa a condição para a vida emancipada. Com isso, ele
quer nos dizer que, para se chegar à condição de exercer plena autonomia, o indivíduo
precisa viver um processo educativo que lhe possibilite internalizar normas e valores
sociais do seu tempo e seu lugar, mas esse processo, adverte ele, não pode se dar pela
via da imposição, pois essa retira do homem sua liberdade de poder discernir e decidir.
Viabilizar que a autonomia se processe como uma autoeducação, mas centrada na
realidade social, é o grande desafio para a tarefa educativa a ser exercida pela escola.
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