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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RENATO ALMEIDA MOLINA
A MENTE PERDIDA NA EDUCAÇÃO
CUIABÁ-MT
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RENATO ALMEIDA MOLINA
A MENTE PERDIDA NA EDUCAÇÃO
CUIABÁ-MT
2011
RENATO ALMEIDA MOLINA
A MENTE PERDIDA NA EDUCAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Educação na
Área de Concentração Cultura, Memória e
Teorias em Educação, Linha de Pesquisa
Didática, Filosofia e Formação do Educador.
Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro
Cuiabá-MT
2011
M722m
Molina, Renato Almeida.
A mente perdida na educação. Renato Almeida Molina. -- Cuiabá
(MT): Instituto de Educação/IE, 2011.
122 f.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato
Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós - Graduação em
Educação.
Orientador: Prof. Dr. Silas Borges Monteiro.
Inclui bibliografia.
1. Educação - Filosofia. 2. Mente - Educação. 3. Antimentalismo -
Educação. I. Título.
CDU: 37.01
RENATO ALMEIDA MOLINA
_____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Paula Natalino Carvalho Rangel Examinadora Externa (UNIC)
____________________________________________
Prof. Dr. Roberto de Barros Freire Examinador Interno (UFMT)
___________________________________________
Prof. Dr. Silas Borges Monteiro Orientador (UFMT)
DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Silas Borges Monteiro, pela abertura e pela
generosidade, por receber ‘um estranho no ninho’ e por me ensinar tantas coisas sobre
a filosofia e a vida.
Àqueles que me receberam e apoiaram logo na chegada e estiveram sempre dispostos a
ajudar e tirar todas as dúvidas: Dani, Lilian, Márcia, Marlene e Reinaldo.
Àqueles que estiveram juntos o tempo todo, se tornaram apoio, encorajamento, risadas,
muito trabalho e acima de tudo, amigos: Gra, Lidia (quem poderia dizer que eu iria
encontrar uma irmã no mestrado!!!), Poly e Wes – vocês são o melhor grupo de
mestrado que alguém poderia ter selecionado! (Silas, não dá mesmo para abrir cinco
vagas para o doutorado?).
Àquelas que chegaram e sempre se interessaram e encorajaram: Alessandra, Cati, Josi
e Regina – o interesse e disponibilidade de vocês sempre me fez crescer.
Aos membros da banca examinadora, Prof.ª Dr.ª Paula Natalino Carvalho Rangel e
Prof. Dr. Roberto de Barros Freire, pelos comentários preciosos e pelo interesse com
que se dedicaram à leitura e realização de comentários sobre o projeto.
Aos meus pais, João Luís e Moema, com quem ainda sinto que não consegui aprender
todas as lições que eles têm para me ensinar. Espero ainda ter tempo.
Aos meus irmãos, João André e Camila, por fazerem, dos poucos momentos que
estivemos juntos neste ano, motivos de constante alegria (inclusive com o nascimento
de minha primeira sobrinha, Alice).
Aos meus filhos, Giulia e Enrico, por compreenderem (ou aceitarem, eu acho) minhas
respostas afirmativas para cada vez que me perguntavam: ‘Mas pai, você ainda tem
que trabalhar?’
À Fernanda, minha esposa, guerreira que assumiu muitos de meus papéis,
especialmente com as crianças, enquanto eu precisava me dedicar às muitas tarefas do
mestrado e dos trabalhos.
RESUMO
O trabalho aqui proposto busca algumas das origens filosóficas da formação de
educadores. Mais especificamente, buscou examinar a construção filosófica da ‗mente‘
e compreender o modo como este conceito se concretiza no plano educacional. A
hipótese central deste trabalho é que o uso indiscriminado do conceito remete ao
cartesianismo. A análise aqui proposta busca promover a interação entre saberes de
diferentes áreas do conhecimento, como a filosofia, a psicologia e a educação. São
abordados modelos contemporâneos de dualismo e também as perspectivas materialistas
da mente. Em seguida opera-se no sentido da desconstrução da mente, passando por
diferentes autores que contribuem nesta direção. Nesse trecho do presente estudo são
abordadas as propostas teóricas de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Richard Rorty
(1931-2007) e B. F Skinner (1904-1990). A proposta utilizada para abordar o tema é a
da realização de entrevistas semiestruturadas, para as quais foram escolhidos
professores atuantes nas áreas de pedagogia e licenciatura, docentes na Universidade
Federal de Mato Grosso – UFMT. Os temas abordados de acordo com o roteiro
previamente elaborado foram: a) homogeneidade e rigor conceitual no uso de termos de
caráter mental na formação de professores; b) vinculação das teorias pedagógicas às
teorias formais da mente; c) consequências da (não) vinculação às teorias da mente e do
modo como os conceitos mentais são tratados e (não) abordados; d) considerações sobre
um modelo antimentalista para à Educação. Ficou evidente ao longo das entrevistas o
modo como o referido tema passa despercebido na formação de professores. Algumas
das causas e consequências da ausência deste debate e formação conceitual foram
apresentadas pelos educadores entrevistados da seguinte forma: prática pedagógica
construída como ‗sopa de letrinhas‘; falta de rigor científico na formação do educador;
adesão pura e simples ao conhecimento do senso comum, com ausência de debate
epistemológico; questionamento acerca da supostamente indiscutível relação entre
‗teoria e prática‘; maior urgência de outros debates e aspectos práticos na formação do
educador latino-americano. Conclui-se que aquilo que se espera é que à adesão a
qualquer teoria pedagógica, tenha ela caráter mentalista ou não, seja acompanhada por
uma discussão vasta sobre suas bases e princípios, exatamente para que não se corra o
risco das construções de uma prática baseada na experiência comum e que se desvincule
de uma formação conceitual sólida, algo que pode decorrer da falta de um debate
epistemológico acerca dos fundamentos com os quais se trabalha ao longo da formação.
Palavras-chave: Mente, antimentalismo e formação do educador.
ABSTRACT
The work proposed here seeks some of the philosophical origins of teacher training.
More specifically, we sought to examine the philosophical construct of 'mind' and
understand how this concept is materialized in the educational level. The central
hypothesis of this paper is that the indiscriminate use of the concept is linked to
cartesianism. The analysis proposed here seeks to promote the interaction between
wisdom from different fields of knowledge such as philosophy, psychology and
education. Contemporary models of dualism are addressed, and also the materialistic
prospects of the mind. Then we work towards the deconstruction of the mind through
different authors who contribute in this sense. In this excerpt from the study we deal
with the theoretical proposals of Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Richard Rorty
(1931-2007) and B. F Skinner (1904-1990). The proposal to approach the subject is
through conduction of semi-structured interviews, where professors working in the
areas of education and degree course at Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
were chosen. Topics covered in accordance with the previously prepared outline were:
a) homogeneity and conceptual rigor in the use of mental character in terms of teacher
training; b) linkage of pedagogical theories to formal theories of the mind; c) the
consequences of (non) linkage with mind theories and how mental concepts are treated
and (not) addressed d) consideration of an anti-mentalist model for education. It has
become apparent during the interviews the degree to which the theme goes unnoticed in
teacher training. Some of the causes and consequences of the absence of debate and
conceptual training were presented by the interviewed educators in the following
manner: teaching practice built as 'alphabet soup'; lack of scientific rigor in teachers'
education; pure and simple adoption of common sense knowledge, with no
epistemological debate; questioning of the supposedly indisputable relationship between
'theory and practice'; greater urgency for discussions and other practical aspects of
teacher training in Latin America. We conclude that what is expected is that the
adherence to any pedagogical theory, regardless of its mentalist character, be
accompanied by an extensive discussion on its foundations and principles, precisely so
there are no risks of building a practice based on common experience and divest
yourself of a solid conceptual training, which may result from the lack of an
epistemological debate about the fundamentals with which to work throughout the
training.
Keywords: Mind, anti-mentalism and training of educators.
Sumário 1 – INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8
2 – INTRODUÇÃO AO PROBLEMA DA MENTE E SEU USO NA EDUCAÇÃO .................................. 13
2.1 – Breve história da mente ............................................................................................. 15
2.2 – Mente: alguns modelos .............................................................................................. 20
2.2.1 – Dualismo: o debate contemporâneo .................................................................. 22
2.2.2 – Materialismo: a mente como atividade cerebral ............................................... 28
2.3 – O problema da mente na educação ........................................................................... 33
3 – PERSPECTIVAS ANTIMENTALISTAS E SUAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO ....................... 38
3.1 – Desconstrução da mente: desafios e perspectivas .................................................... 38
3.1.1 – Gilbert Ryle: a doutrina oficial como erro gramatical ........................................ 43
3.1.2 – Materialismo eliminativo: a falência da mente ontológica ................................ 45
3.2 – Perspectivas antimentalistas ...................................................................................... 46
3.2.1 – Ludwig Wittgenstein: linguagem, pensamento e discurso sobre o ser ............. 46
3.2.2 – O ‘primeiro’ Witgenstein: linguagem, lógica e metafísica – a inviabilidade
representacional da mente ............................................................................................ 50
3.2.3 – O ‘segundo’ Wittgenstein: significado como uso – a mente desnecessária ..... 57
3.3 – Richard Rorty: do materialismo eliminativo à impossibilidade representacional –
contribuições para a educação ........................................................................................... 63
3.3.1 – O problema mente-corpo na filosofia de Rorty ................................................ 64
3.3.2 – Rorty: razão, epistemologia, hermenêutica e educação .................................... 67
3.4 – O behaviorismo radical de B. F. Skinner e a aplicação da análise do comportamento
para a educação .................................................................................................................. 75
3.4.1 – O rompimento com as dicotomias clássicas e a proposta behaviorista radical
para a interioridade ....................................................................................................... 79
3.4.2 – Análise do comportamento: alguns princípios ................................................... 85
3.4.3 – Algumas contribuições da análise do comportamento para a educação .......... 90
4 – ANÁLISE DAS ENTREVISTAS E TRATAMENTO DOS DADOS .................................................... 97
4.1 – Discussão sobre as entrevistas e algumas conclusões ............................................. 111
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................... 117
ANEXO ...................................................................................................................................... 122
8
Capítulo I – Introdução
Este trabalho se situa no campo de investigação voltado à filosofia. Mais
especificamente no modo como um conceito filosófico, tomado de modo absoluto,
parece influenciar sucessivas gerações de educadores ao longo de seu processo de
formação. Por formação aqui, entende-se não apenas aquela voltada à academia, mas
sim toda aquela voltada para o conjunto de crenças, princípios, valores, mesmo morais,
que afetam, de algum modo, sua prática educativa. A pesquisa aqui proposta busca
algumas das origens filosóficas desta formação.
O enfoque mentalista tem predominado há séculos no estudo de questões
relativas ao ser humano, e tem sido traço distintivo do pensamento filosófico e
psicológico da cultura ocidental (Lampreia, 1992). A própria noção do conceito de
mente nos remete à história da filosofia grega, e seu estabelecimento formal pode ser
identificado de acordo com as perspectivas cartesianas do século XVII. Estabelece-se
aqui, inicialmente, a compreensão do caráter mental com base em uma formação
cultural que se confunde com a própria história das ideias ou do conhecimento.
Lampreia (1992) completa afirmando que ―noção do psicológico foi, portanto,
formulada nessa tradição cartesiana, aderindo a sua visão dualista de homem‖.
A hipótese aqui investigada é de que a formação de educadores se encontra
impregnada pela ‗mente‘, ou melhor, pelo conceito de mente, em especial pelo
cartesiano, que não pode e não deve ser tratado como o único. Não é simples a
pretensão de investigar uma origem. Talvez seja possível encontrar na história das
ideias os momentos que delineiam o surgimento ou a invenção da mente. Mais difícil,
provavelmente, é compreender a forma com que o conceito se concretiza e tem seu
status alterado, deixando de ser meramente conceito e se tornando ‗agente causal‘ de
uma série de atividades humanas. Não tenho aqui a pretensão de ir tão longe.
A origem comum de muitos dos problemas encontrados no âmbito educacional –
ao menos naquilo que se refere à aprendizagem – parece residir no já referido conceito.
Este problema parece habitar a educação em formatos e metáforas variadas: construção,
desenvolvimento, criação, memória e uma lista extensa de conotações internalistas.
Talvez já não pareça tão absurdo o questionamento, dentro do plano
educacional, daquilo que historicamente passou, ao menos de acordo com seus
propositores, a caracterizar a condição humana. Ou, mais precisamente, talvez este
questionamento possa ser útil para oferecer uma perspectiva alternativa a tantos
9
problemas que parecem, ao longo da história, apenas ter seu nome de batismo alterado.
O exame da origem do conceito e o modo como este passa a habitar a educação deve
elucidar um pouco mais a questão.
Este é o ponto escolhido para o início: apresentar breve história da mente. É
preciso esclarecer de antemão que a história como apresentada aqui, em uma linha
aparente que liga Aristóteles (384-322 A.C) ao filósofo francês Renée Descartes (1596-
1650), não é consensual. Desse modo, a abordagem inicial destes autores tem como
principal objetivo explorar um dos possíveis rumos – provavelmente o mais conhecido
deles – da constituição de uma visão dualista do sujeito. Esta é uma concepção basilar
daquilo que mais tarde seria abordado na forma do problema mente-corpo e que
originaria, já no século XX, o debate no campo da filosofia da mente.
A trajetória longa, divergente e pouco elucidativa fez com que o interesse pelo
tema aumentasse de modo significativo no século XX. O dualismo já não é mais
desfilado como modelo homogêneo e se torna necessário à apresentação de alguns de
seus modelos: o dualismo substancial e o dualismo de propriedades. Maior enfoque é
dado a este último, especialmente por manter relações com aspectos materiais, o que
parece ter garantido certa proximidade histórica e conceitual com o modelo dualista
original. Estas semelhanças parecem assumir a possibilidade de que mudanças físicas
no cérebro possam resultam em alterações na mente, o que talvez o tenha tornado um
modelo dualista dominante nos dias atuais. São exploradas algumas nuanças deste
modelo, no caso a do filósofo norte-americano Thomas Nagel (1937-) e do australiano
David Chalmers (1966-).
Ainda dentro da perspectiva mental, modelos materialistas de mente são
abordados. Este ponto parece ter se consolidado com maior força na década de 1990,
especialmente acompanhado pela crença das ciências modernas de que é possível
explicar tudo o que desejamos sobre o mundo. A relação mais explícita aqui e que
parece ser generalizada em algum nível é a associação de que a mente se relaciona
diretamente com estados ou manifestações cerebrais. O limite e a amplitude com que
essa relação se dá, no entanto, variam de modo significativo entre teorias. Assim, as
teorias de identidade trabalham com uma noção de equivalência entre estados mentais e
cerebrais. As teorias reducionistas, por sua vez, trabalham com a noção de que estados
mentais podem ser reduzidos a estados cerebrais, o que limitaria termos psicológicos a
descrições físicas e químicas do funcionamento do cérebro. Um modelo mais extremo é
o materialismo eliminativo, que afirma o problema da mente como falso problema
10
decorrente de um vocabulário impreciso que se deslocará e deixará de existir
naturalmente, à medida que o conhecimento neurocientífico avançar. O terreno parece
fértil e tem continuidade com o emergentismo que afirma uma dependência completa
entre os estados mentais e os materiais, sendo os primeiros o produto emergente dos
estados físicos. Há assim uma superveniência do mental sobre o físico, pois, apesar da
base material, os produtos mentais não poderiam ser entendidos estritamente nestas
bases.
Já há modelos suficientes para que, na subseção seguinte, seja proposta uma
analogia: o problema da mente e da consciência é tratado de modo equivalente ao
problema da aprendizagem. Assim, são explorados conceitos de aprendizagem e seus
limites. Na articulação entre diferentes modelos de mente e as possíveis implicações
para a educação, procuro mostrar que esta área teria de pagar um preço elevado demais
pela adesão pura e simples a qualquer modelo de mente que não o modelo cartesiano já
vigente.
É em função deste problema e também do modo como ele parece emergir em
uma série de debates, que, apesar de realmente interessantes, parecem estéreis e mesmo
de difícil compreensão que a seção seguinte, a mais longa deste trabalho, dá início ao
estudo dos teóricos que, de alguma forma, contribuíram para a desconstrução e o desuso
do conceito de mente.
Esta é uma trajetória árdua e aparentemente de poucas glórias, pois, não obstante
a reconhecida importância dos teóricos que resolveram segui-la, a ideia aparentemente
nunca gozou de popularidade que sequer arranhasse o status de sua opositora. A escolha
da apresentação dos autores se fez em função de uma sequência que buscou certa lógica
para a defesa das ideias presentes neste trabalho. Assim, foi feita a opção por se iniciar
por Gilbert Ryle (1900-1976), filósofo britânico apontado por alguns como o semeador
do debate da filosofia da mente no século XX. Ryle trata o problema da mente como um
erro gramatical, em clara influência recebida do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), seu professor. Ele parte do princípio que a mente, como conhecida pelo
senso comum e a partir de então analisada pelos teóricos, incorre em um erro de
categoria. Assim, seu argumento toma por base a análise gramatical em que mostra que
é possível descobrir um erro no uso filosófico dos termos mentais. Para ele, um dos
principais equívocos da concepção filosófica de mente se encontra em sua inspiração
cartesiana, na qual seria mantida a suposição de que é possível enxergar algo que está
além de todo um conjunto de comportamentos e disposições que podem ser observados.
11
Seu projeto, que envolvia uma adequação dos termos mentais para um sistema
categorial distinto, não conseguiu se concretizar sem produzir elevados paradoxos.
Dessa forma, o filósofo britânico parece não ter obtido êxito em sua proposta de
desconstrução da mente ontológica.
O interesse por Ludwig Wittgenstein neste trabalho se deve à variedade e à
originalidade de sua filosofia. O filósofo austríaco parece tratar de uma metafísica que
não pode ser descrita. Embora aborde o tema da linguagem como forma única de
descrever os fatos do mundo, trata esta como inadequada para lidar com qualquer
instância metafísica aí presente. Sua filosofia inicial – apresentada no Tractatus –
aponta para os limites da representação do mundo e das coisas com base naquilo que
pode ser alcançado pela linguagem, e qualquer tentativa em ir além deste ponto estará
fadada a contrassenso. Esta sua primeira posição é apresentada aqui em uma condição
de quem aceita a presença de entidades metafísicas, que, no entanto, nega a
possibilidade de conhecê-las, restando assim a possibilidade de abordar ‗a totalidade
dos fatos‘, devendo-se calar sobre aquilo o que não se pode afirmar. O avanço de sua
filosofia é apresentado com rascunhos pragmáticos, pois passa a investigar em suas
Investigações Filosóficas o modo como a linguagem funciona e a forma com que dela
fazemos uso. Afirma o problema da representação como um falso problema, dado que
as relações entre linguagem e mundo são estabelecidas arbitrariamente. A aposta aqui
está nos jogos de linguagem, nos quais o significado de algo só poderia ser encontrado
em seu uso. Esta compreensão tornaria qualquer agente intermediário desnecessário,
incluindo a mente. Nesta sequência, Wittgenstein parece ter resolvido o problema da
mente ontológica, mas alguns de seus problemas epistemológicos permaneceriam.
O filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) empreendeu um trabalho
com envergadura para a desconstrução da mente tanto em seu caráter ontológico quanto
epistemológico. Sua obra mais conhecida, A Filosofia e o Espelho da Natureza (1979),
é uma crítica severa à noção de conhecimento como representação, como espelhamento
mental de um mundo externo à mente. Ele explora o problema mente-corpo e
igualmente os problemas da razão e da epistemologia. Sua aposta é de que estas possam
ser substituídas pela hermenêutica. Suas propostas são estudadas de modo a oferecer ao
leitor o argumento utilizado por ele para a desconstrução da mente em todos os seus
níveis. Sua aplicabilidade à educação, além do conceito de hermenêutica já citado,
encarta também o conceito de solidariedade. É preciso ser justo com o autor norte-
americano, pois ele não apresenta uma teoria pedagógica propriamente dita, mas,
12
mesmo com breves incursões pelo tema educacional, era esperável que sua formação
pragmatista agisse tendente a edificar crenças que orientassem práticas educacionais
antirrepresentacionistas, tese que defendeu ao longo de sua vida. Essa edificação não
ocorre, no entanto.
É esse o ponto que nos leva ao último autor abordado nesta longa seção, o
psicólogo estadunidense B. F. Skinner (1904-1990). Seus princípios antimentalistas e
pragmáticos o acompanharam ao longo de toda a sua vida acadêmica. Através de sua
doutrina filosófica – o behaviorismo radical – negou a mente e se propôs estudar
aqueles eventos tipicamente conhecidos como mentais, tomando-os comportamentos
como outros quaisquer. Manteve sua ênfase de análise, portanto, em entender o modo
pelo qual estes fenômenos ocorriam ou podiam ser descritos, tomando por base a
interação entre o organismo e seu ambiente. Para desenvolver seu sistema filosófico,
elaborou e aplicou na psicologia e em diversas de suas áreas de atuação uma série de
conceitos, muitos deles baseados nos resultados obtidos em seu laboratório. Optou por
um método indutivo, em contrapartida ao modelo hipotético dedutivo presente na
psicologia até então. Seus estudos sobre aprendizagem em laboratório formaram a base
para aquilo que pode ser chamado de um método pedagógico ou uma tecnologia
comportamental: as máquinas de ensinar. Outras propostas semelhantes foram
desenvolvidas por autores seguidores de suas ideias. A originalidade de Skinner e a
extensão com que é aqui abordado são justificadas por este autor ter levado ao ponto
extremo o abandono das posições mentalistas: não apenas trabalhou com novos
conceitos através da operacionalização descritiva das interações entre o organismo e o
ambiente, mas elaborou e formulou propostas para o uso cotidiano de suas ideias –
ainda que seja natural, como em qualquer outro caso – que possam ser mal
compreendidas ou ainda passíveis de críticas.
A seção final investiga o modo como a mente se encontra perdida na educação.
A opção por entrevistar formadores de educadores se origina exatamente no objetivo de
identificar como o conceito de mente e sua possível relação com a aprendizagem
circulam no curso de pedagogia. Buscou-se ainda identificar a adesão a algum modelo
de mente e o modo como este poderia orientar a prática dos educadores. Os resultados
evidenciaram que este é, ao menos nesse momento, um debate praticamente inexistente
neste espaço. A noção de mente ou razão apresentada ao longo das entrevistas mostrou
um grande vínculo com o conhecimento do senso comum, atrelado ainda às
13
perspectivas cartesianas. As conclusões preliminares desfilam novas questões oriundas
dos resultados obtidos, fomentando assim amplo caminho para novas pesquisas.
Capítulo II – Introdução ao problema da mente e seu uso na educação
Esta é uma exposição que procura investigar, minimamente que seja, quais os
modelos de mente dos quais o campo educacional tem se apropriado. Apropriação aqui
não é termo exagerado, pois, como mencionado, parece incomum, ao menos entre a
maioria dos educadores, apresentar questionamento vasto sobre a existência ou não de
uma entidade metafísica que ampara o processo de aprendizagem. Infelizmente não é
possível esgotar, nem sequer exibir com elevado grau de detalhamento todos os
conceitos e propostas já desenvolvidos para um tratamento da mente na condição de
objeto. É preciso fique claro, nesse sentido, que o trabalho em seu todo enfeixa
pretensões modestas. Deste modo, o que se descortina aqui nada mais é do que um
convite. Convite para a análise de um conceito e do modo como este é utilizado em um
campo específico. Não será apresentada aqui qualquer proposta para a modificação do
termo, nem mesmo uma forma de revisar seu uso. Parece certo não haver a
possibilidade de que um processo social1 tão bem estabelecido seja abalado pela
pesquisa acadêmica. Esta afirmação se torna ainda mais pertinente quando se analisa a
envergadura de autores que já trataram o tema, como Ludwig Wittgenstein2, Richard
Rorty3 e B. F. Skinner
4. É interessante notar que, partindo do texto de Wittgenstein,
escrito em 1921, passando pelos contemporâneos Rorty e Skinner – em especial este
último pela extensão do tratamento que oferece ao tema desde a década de 1930 a de
1990 – que se opuseram ao conceito até a entrada do século XXI (caso de Rorty),
aparentemente pouco mudou em relação ao fascínio exercido pelo tema.
1 O conceito de processo social é apresentado pelo sociólogo alemão Norbert Elias em seu livro Escritos e
Ensaios: Estado, processo, opinião pública (1986/2006) e faz referência a transformações amplas,
contínuas e de longa duração, em geral, não aquém de três gerações. 2 Em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921/2001), Ludwig Wittgenstein cuida do alcance
representativo da linguagem através da reflexão lógica. Esta é apontada com uma das principais obras
filosóficas do século XX, pois incorpora duas das principais vertentes filosóficas: a incorporação da
questão crítica à tradição lógica ou a incorporação do estilo lógico de reflexão à tradição crítica. 3 No clássico A filosofia e o espelho da natureza (1979/1994), Richard Rorty trata da impossibilidade de a
mente atuar como um espelho representacional dos eventos. Desse modo, o autor substitui a noção de
conhecimento como conjunto de representações por uma noção pragmatista, eliminando o contraste entre
contemplação e ação, entre representar o mundo e lidar com ele. 4 A postura antimentalisma e contrária a uma ideia de representação ou mesmo da existência de uma
entidade mental parece acompanhar toda a obra deste autor, sendo apresentada de modo evidente em
diversos de seus trabalhos, como Ciência e comportamento humano (1953), Comportamento verbal
(1957), Sobre o behaviorismo (1974), sendo ratificada em seu artigo final intitulado Pode a psicologia ser
uma ciência da mente? (1990).
14
Talvez, numa análise mais atenta acerca das produções e do momento sócio-
histórico em que o conceito ganha força e praticamente se mistura a condição humana
se entenda parcialmente o caráter sedutor do constructo. No entanto, aquilo que desperta
maior curiosidade – ao menos neste trabalho – diz respeito ao modo como o conceito
tem sido abordado/utilizado na área da educação, bem assim algumas implicações deste
uso de modo superficial e até leviano. Qual o modelo de mente presente nas práticas
educativas? Esta questão já permite elucidar um ponto crucial nesta análise: o modo
como o conceito é discorrido de forma heterogênea dentro do campo da filosofia da
mente, bem como no eixo das ciências psicológicas.
Buscar uma definição clara e unificada para o conceito já denuncia o modo
como este campo está recheado de polaridades e dicotomias. Aparentemente, o dilema
que se entreabre desde o início respeita à compreensão da mente com base em aspectos
e dimensões físicas – o que se apresenta na forma do materialismo. Por igual, seu ponto
de oposição que delineia a mente como instância ou entidade metafísica e, neste caso,
como um conjunto de estados imateriais compreendido apenas com base em nossas
representações e no modo como estas parecem influenciar nossas ações – ponto
característico do dualismo cartesiano. Por si só, este ponto já permite ampla
problematização para qualquer um dos lados, como patenteia Teixeira em seus
ensinamentos sobre Como ler a filosofia da mente (2009): ―Em outras palavras: a
interpretação física de fenômenos mentais não participa de nossas experiências
subjetivas; no máximo, podemos traçar algumas correlações, mas estas não explicam a
passagem entre o físico e o subjetivo. Não podemos, de dentro da nossa mente, saber o
que a produz‖. De imediato, entremostrando o contraponto, o autor complementa: ―O
dualista não enfrenta problemas menores. Se as mentes não têm nenhuma propriedade
material – não têm peso, nem massa, nem localização espacial –, como poderíamos
supor que nossos pensamentos influenciam nossas ações? Se estados mentais são
imateriais, como eles podem afetar os nossos comportamentos?‖ Neste sentido não
parece incomum que a educação – assim como outras áreas do conhecimento como a
psicologia, a linguística e a própria filosofia – flerte em alguns momentos com um
modelo de mente imaterial, que busca ‗promover a reflexão‘,‗consciência crítica‘,
‗criatividade‘ e que se agrupam a uma série de outros vazios explicativos; ou ainda a
mente material, especialmente nos casos em que ‗transtornos‘ ou ‗défices de
aprendizagem‘ se fazem presentes; não são descartados ainda os casos em que alguma
tentativa de paralelismo psicofísico parece ser o objetivo, como naqueles em que se
15
investiga a inteligência através da velocidade do processamento da informação5 ou
ainda na busca de evidências neurológicas das inteligências múltiplas6. Em comum,
entre as abordagens parecem restar as lacunas explicativas deixadas por um ou outro
ponto e ainda seu caráter internalista, que atribui a uma parte do sujeito – seja ela
material, seja imaterial, ou mantendo uma relação de dependência entre físico e não
físico – as dimensões fundamentais de suas ações. Os possíveis problemas aduzidos por
estes pontos em comum serão discutidos em outro momento neste trabalho, uma vez
que esta discussão constitui parte de seus objetivos.
A introdução feita até aqui pretendeu apenas situar o leitor na amplitude e na
abrangência da filosofia da mente, lançando mão de alguns de seus dilemas e conflitos
centrais. Alicerçado nesses, já se torna possível a tentativa de apresentar alguns dos
possíveis conceitos e formas de mente desde a inauguração formal do campo com Ryle7,
em 1949.
2.1 – Breve história da mente
Para o leitor desavisado, quando não para o público leigo, pode parecer a
princípio que a mente ‗sempre esteve no mesmo lugar‘, ainda que pouco seja dito sobre
ela, especialmente quando se idealiza uma definição mais acurada. De qualquer modo, o
termo aparentemente se mistura com a própria condição humana, e uma análise de seu
‗surgimento‘ – melhor seria dizer invenção? – permite compreender um pouco melhor
este entrelaçamento que já se alonga por mais de dois mil anos.
A proposta feita por Aristóteles em seu De Anima estabelece uma relação direta
entre a posse de alma e a presença de vida. A definição de alma engloba, de modo mais
amplo, as ‗funções nutritivas, perceptivas, intelectuais e pelo movimento‘ (Aristóteles
5 Ver a descrição feita por R. J. Sternberg (1996/2000) sobre os experimentos propostos pelos psicólogos
cognitivos Ted Nettelbeck, que busca relacionar o tempo de inspeção com o desempenho inteligente;
Arthur Jensen é apresentado em sua tentativa de relacionar o tempo de reação para escolha com este
mesmo constructo; e por fim Earl Hunt tem sua teoria que relaciona o desempenho inteligente a
velocidade de acesso léxico e processamento simultâneo de informações. Em todos estes casos parece
haver alguma busca por uma relação paralela entre um constructo cognitivo – a inteligência – e as bases
materiais do funcionamento cerebral 6 Gardner (1983) apresenta uma série de fatores que buscam relacionar o desempenho inteligente a
características biofisiológicas, como o isolamento potencial por dano cerebral, no qual um modelo de
inteligência poderia ser afetado, enquanto outros permaneceriam intactos. 7 Teixeira (2005) cita a obra de Ryle, The Concept of Mind, frequentemente apontada como marco inicial
da filosofia da mente contemporânea. Teixeira, no entanto, afirma que estas citações são insuficientes
para que se situe o início da filosofia da mente no século XX, tendo em vista o passado extenso do tema.
16
1986, citado por Matthews)8. De imediato, torna-se possível uma identificação com a
mente através da matriz chamada por Aristóteles de intelectiva, dado que, a esta é
atribuída a capacidade de pensar, raciocinar, de refletir e mesmo de desenvolver certas
abstrações. Eis um elemento que começa a misturar as definições de homem e mente,
pois, de acordo com Aristóteles, apenas os seres humanos possuíam esta alma com
capacidades racionais, ainda que, em sua concepção, os outros animais e mesmo as
plantas também possuíssem alma. Desse modo, a primeira distinção de um elemento
que caracterize a condição humana parece se fazer presente na história da filosofia,
portanto na história do conhecimento. A mente – ainda que nomeada como alma –
passa, daí, a definir a condição humana. Aristóteles não separa a mente do corpo, não
estabelecendo assim aquilo que talvez já pudesse ser nomeado como dualismo, mas
atribui a esta entidade propriedades especiais. Para ele, qualquer coisa que exista
individualmente é uma substância que precisaria de forma e matéria. Em suma,
potencialmente, tem vida (Aristóteles 1986, citado por Matthews)9. Ao dizer que a alma
é a substância, estaria ele dizendo que por si só ela existe individualmente? A resposta é
negativa, uma vez que, eu seu pensar, a substância é o ser humano, no qual a matéria é o
corpo, e a forma é a alma; a alma é inseparável do corpo. Ao dividir corpo e alma com
propriedades diferentes – ainda que complementares –, Aristóteles parece finalmente
abrir caminho para a construção de uma visão dualista do ser humano. A menção sobre
análise, ‗a alma é a substância como a forma de um corpo natural‘, para o qual, ‗abrir
um caminho‘ é importante, pelo simples motivo de o próprio filósofo grego não
apresentar convicções plenas sobre esta análise, como afirma Matthews (2007) em seu
fechamento sobre o tema:
As partes da alma nas quais ele parece interessado são as partes
racionais, e a incerteza que ele parece expressar é a dúvida quanto
à separabilidade dessas partes, pois elas não dependem (não são
atualizadas em) de qualquer parte específica do corpo – algo que,
diz ele, ainda ser incerto. Se a alma racional fosse separável
dessa forma, a união da alma e do corpo ao constituir uma
8 Em seu livro Mente: conceitos chave em filosofia, Matthews apresenta esta análise recorrendo a
Aristóteles e citando as seguintes publicações: a) Da Alma: livros I, II e III (Traduzido e com notas de
Maria Cecília Gomes dos Reis, publicado pela Editora 34 no ano de 2006); b) Da alma (com tradução do
grego e introdução feitas por Carlos Humberto Gomes, publicado em Lisboa pela Editora Edições 70, no
ano de 2001). 9 Idem.
17
pessoa seria destruída: como ele diz, a alma estaria no corpo
‗como um marinheiro em um barco‘. (itálico acrescentado)
Deste modo, a não separação parece incorrer apenas por não encontrar uma solução para
a dissolução ou destruição do corpo – reforçando novamente a ligação que estabelece a
relação de identidade entre alma e ser humano –, mas a permanência da dúvida
permitirá que esta exploração seja feita em passagem posterior por outros autores.
A questão da separação entre matéria e pensamento se torna particularmente
problemática a partir da obra de René Descartes (1596-1650), à medida que ela envolve
saber como seria possível a relação entre uma alma imaterial e um corpo físico, e como
ambos poderiam se influenciar, apesar de serem radicalmente diferentes (Teixeira,
2008). É Descartes quem oficializa a separação mental-material de modo explícito.
Neste momento, parece ser importante contextualizar o pensamento cartesiano para
buscar entender o modo como o filósofo francês deduz a existência da mente e a
questão da separabilidade entre esta e o corpo.
Os séculos XVI e XVII se encontram na história das ideias e do próprio
conhecimento como aqueles em que as bases da ciência moderna estão sendo fundadas.
Trata-se de época em que as antigas crenças e atitudes dominantes da Idade Média se
encontram abaladas, incitando a construção de um corpo de conhecimentos que
solucione a insatisfação diante das concepções geradas no período precedente. A
instabilidade do período que lentamente dissolve o conjunto antigo de crenças exige, em
sua contrapartida, que novos sistemas de conhecimento sejam expostos e superem
algumas das incertezas instauradas.
O argumento pró-científico emerge logo na introdução do Discurso sobre o
Método (1637/2006), escrito por Descartes, e talvez possa fornecer uma dimensão
inicial com a preocupação vívida à época de buscar nova forma de conhecer. A frase
inicial do livro de Descartes, muitas vezes utilizada como uma espécie de seu subtítulo,
ei-la: ‗Para bem dirigir a razão e buscar a verdade nas ciências‘. Descartes passa então a
perseguir a verdade partindo do princípio da razão, e este é um ponto fundamental para
que, operando com suas deduções iniciais, passe a duvidar de todas as coisas. É a crença
absoluta nos poderes da razão como instrumento para se chegar a um conhecimento
seguro (Teixeira, 2008).
Descartes parte de um princípio basilar que é possível duvidar de todas as coisas,
até mesmo da existência do mundo, de nossas sensações. Em suma, a dúvida levada ao
extremo como uma forma de chegar ao conhecimento perfeito: ‗não há tanta perfeição
18
nas obras compostas de várias peças, e feitas pelas mãos de diversos mestres, como
naquelas em que um só trabalhou‘ (Descartes, 1637/2006). O filósofo francês
estabelece, portanto, a dúvida como a primeira grande expressão do poder da razão. A
dúvida atua como uma espécie de demolidora de certezas habituais, que
progressivamente inviabiliza a ordem consensual sobre tudo aquilo que existe. O
caminho sequencial apresenta a dúvida como certeza única. É possível duvidar da
existência de todas as coisas, exceto da existência da dúvida carregada por aquele que a
produziu. A dúvida que, levada ao extremo, em uma relação de lógica dedutiva, mostra
a impossibilidade de o sujeito duvidar que ele duvide. Sendo ela uma forma de
pensamento, e sua presença algo incontestável, a proposição fundamental da filosofia
cartesiana está posta: Penso, logo existo10
. Neste sentido, Descartes parece empreender
dois grandes projetos articulados para a filosofia e que serão extremamente influentes
em todo o ocidente até os dias atuais: uma noção de razão metafísica e uma noção de eu.
Quem pensa? Eu. Parece possível que eu duvide que todos pensam, que todos existam,
mas esta dúvida não pode se estender ao próprio sujeito que pensa: eu.
À medida que é possível duvidar das sensações produzidas pelo corpo, mas não
é possível duvidar dos pensamentos, a separação entre o mental e o material está
fundada. Corpo e mente são substâncias com propriedades diferentes. E mente se
transforma em um legítimo problema filosófico, pois é daqui que seu conceito deve ser
empreendido. Teixeira (2008) estampa algumas das características da mente cartesiana
que demonstram a descontinuidade entre esta e o corpo. De acordo com o autor, a
mente, como proposta por Descartes, encarta elementos como a ‗indivisibilidade‘ e a
‗não espacialidade‘. Neste caso – ao contrário daquilo que acontece com substâncias
materiais, que podem ser divididas infinitamente – a mente não pode ser dividida. Não é
possível cortar ou dissecar um pensamento, exceto metaforicamente. Do mesmo modo,
pensamentos são apresentados como coisas extensas, que ocorrem no espaço e por isso
não podem ser localizados em nenhum ponto com precisão, nem mesmo no próprio
corpo. Há um trecho em que Descartes é explícito sobre o tema:
...depreendi de tudo isso que eu era uma substância cuja essência
ou natureza consiste exclusivamente em pensar e que, para existir,
não precisa de nenhum lugar nem depende de nada material, de
forma que eu, isto é, a alma pela qual eu sou o que sou, é
10
Discurso sobre o método (1637/2006, pág. 42)
19
inteiramente distinta do corpo e até mais fácil de conhecer do que
este, e, mesmo que o corpo não existisse, ela não deixaria de ser
tudo o que é11
.
Retomando o contexto do surgimento do modelo cartesiano – o histórico momento da
organização das ideias científicas – Teixeira (2008) afirma um dos princípios
fundamentais deste modelo filosófico que busca a verdade a partir da razão. De acordo
com este autor, Descartes apresentava uma fé absoluta na veracidade do princípio de
causa e efeito. É em busca de um universo mecânico que permita o estabelecimento de
relações entre causa e efeito que a filosofia cartesiana se situa. Nesse sentido, a mente
ganha status de agente causal, separado do corpo. Este último apenas obedece. Aquilo
que o corpo faz deriva da mente. O estabelecimento desta interação entre mente e corpo
como substâncias separadas insere para a filosofia, nos dias atuais mais especificamente
para a filosofia da mente, ciências psicológicas e neurociências, um problema ainda sem
solução aparente: é possível uma instância não física determinar algo físico? Esta
questão será um pouco mais discutida em outra passagem, quando se tratar de diferentes
conceitos de mente. Este certamente está distante de ser o único problema. O modo
como o cogito cartesiano instaura também uma noção de ‗eu‘ parece conferir problemas
para a própria noção moderna de sujeito presente nas ciências psicológicas12
, pois este
passa a ser entendido com uma autonomia individualista que contraria qualquer noção
de interdependência. Tourinho (2009) faz uma análise bastante elucidativa desses
princípios ao afirmar que estas noções refletem uma autoimagem do homem moderno
como capaz de realizar-se à parte das relações com outros homens. Este mesmo autor
continua a demonstrar alguns pontos de seu entendimento sobre o impacto da filosofia
cartesiana para esta invenção do homem moderno: ‗São as virtudes e faculdades do ou
no homem particular que começam a ser vistas como base de suas realizações, quer
materiais, espirituais, cognitivas ou de qualquer outra ordem‘ (itálicos no texto original
do autor). Em resumo, Descartes funda não apenas a mente, mas também a separa do
corpo físico e, com isso, instaura uma noção de indivíduo autônomo – paradoxalmente
dividido.
A preocupação do filósofo francês do século XVII é a de estabelecer um método
que possa ser aplicado às ciências e assim permita chegar à verdade. Seu método
11
Idem 12
Ver Figueiredo (2010), em seu livro ―Matrizes do pensamento psicológico‖, publicado pela Editora
Vozes, 16ª edição.
20
proposto parte da razão, pois esta é a única coisa da qual não se pode duvidar. Parte da
razão para então verificar a possibilidade de conhecer, ter o conhecimento confirmado
ou refutado. O modelo dedutivo estabelecido sobre o indutivo – este no qual se partiria
da experiência para então raciocinar sobre ela. É curioso notar como o modelo dedutivo
de Descartes chega a uma conclusão assentado em uma experiência – ainda que pessoal
– e o modo como esta acaba por ser ignorada em sua própria análise que lhe permite o
desenvolvimento de seu axioma fundamental. A dedução feita por Descartes – Penso,
logo existo – parte de um conjunto de experiências que, de acordo com o próprio autor,
lhe serviram apenas para mostrar que nenhuma obra pode ser tão perfeita quanto aquela
desenvolvida por um único homem. Mas a negação da experiência não é uma forma de
reconhecimento de um princípio de interação ainda que seja para afirmar à
independência em relação aquilo que se experienciou.
Parece não restar qualquer dúvida sobre a fertilidade da filosofia cartesiana,
ainda tão comentada, passados 300 anos. Suas propostas são fundamentais para o
estabelecimento da consciência filosófica presente no paradigma dominante nas ciências
modernas13
. As lacunas estabelecidas por seu modelo filosófico têm permitido
questionamentos contínuos, crises, revisões e questionamentos, atendendo ao modelo
científico como proposto por Khun14
e permitindo provocações como a feita por
Teixeira (2008), quando diz: ‗Descartes estabelece essa cadeia de raciocínios dedutivos
a partir do Cogito. Embora nunca tenha dito o que é pensar e muito menos o que é
existir‘.
2.2 – Mente: alguns modelos
O próprio desenvolvimento histórico do conceito de mente com as divergências
presentes entre a proposta aristotélica – de inseparabilidade entre substância e forma – e
a cartesiana – enfática na crença de substâncias distintas – apresentam o tom do que
seria a discussão nos mais de três séculos posteriores. Nesta altura dos acontecimentos,
já parece razoável supor que não se chegou ao consenso sobre o conceito, seu
funcionamento, estrutura, composição e mesmo sua função. Desta forma, parece
importante trafegar por alguns dos conceitos discutidos, buscando examinar algumas
13
Ver Boaventura de Souza Santos em seu livro Um discurso sobre as ciências, publicado pela editora
Afrontamentos, 15ª edição. 14
Livro: A estrutura das revoluções científicas (1962/2003).
21
propostas existentes na tentativa de encontrar um modelo com o qual a educação tem se
afeiçoado com maior proximidade. Por igual, buscar identificar se estas proximidades
não estão presentes de nenhum modo – o que neste caso estabeleceria a presença da
mente na educação de um modo informal, baseando-se assim em resquícios de
conhecimento filosófico apropriados pelo senso comum e estabelecidos como um
processo social.
A seção anterior exibiu algumas das características que delineiam o modelo de
mente como proposto por Descartes. Fundamentalmente, a mente cartesiana pode ser
entendida como um modelo baseado na razão, dotado de substância imaterial e, ainda,
com propriedades mecânicas que estabelecem as causas das ações promovidas pelo
corpo. A razão primeira, como prova da existência e, portanto, do eu é o princípio do
processo de conhecimento em seu modelo dedutivo. Já apresentadas algumas de suas
bases fundamentais, talvez valha a pena destacar aqui apenas o impacto desta proposta
para a filosofia e para a cultura de modo geral. Teixeira (2009) resume esta importância
em um parágrafo de seu livro Como ler a filosofia da mente, em capítulo que trata do
filósofo francês:
A grande marca deixada pelo cartesianismo foi a divisão do
mundo em duas partes: de um lado, há uma imagem de mundo e
da mente vistos pelo lado subjetivo, interior, e, de outro, uma
imagem do mundo e da mente vistos pela ciência, algo objetivo e
externo (público). Essas seriam imagens irreconciliáveis. A
herança cartesiana de um problema não resolvido – talvez
insolúvel nos termos em que foi formulado – e de uma série de
soluções consideradas insatisfatórias atravessou a história da
filosofia até os dias de hoje.
O autor conclui dizendo que esta separação entre mente e corpo se transformou em um
horizonte de nossa cultura, impregnando nossa vida cotidiana. Este ponto será discutido
de modo mais extenso no momento oportuno: quando se investigar com a pergunta
sobre qual é o modelo de mente com que a educação tem trabalhado. Por agora, a visita
a outros modelos de mente será necessária.
Fica claro que os primeiros modelos de mente expostos são marcados pela
caracterização dualista – a presença de duas substâncias distintas, uma material e outra
imaterial –, corpo e mente separados, porém enlaçados em um tipo de relação mecânica
22
causal. No entanto, mesmo entre o dualismo parece não haver concordância absoluta
sobre seu funcionamento.
No tocante aos pontos polêmicos da proposta, encontra-se justamente a noção de
causalidade como identificada por Descartes. Refutações foram apresentadas ainda nos
séculos XVII e XVIII por filósofos como Nicolas Malebranche (1638-1715) e
Whilhelm Gottfried Leibniz (1646-1716)15
. Em comum, as relações causais como
compreendidas por estes autores incluem uma intervenção divina permanente, trazendo
assim a necessidade de uma noção de Deus para sustentar as propostas. No
‗ocasionalismo‘ como proposto por Malebranche, há um deslocamento de uma noção de
intencionalidade ou mesmo de qualquer fator ‗cognitivo‘ – como uma decisão – sobre
os movimentos e ações. Neste caso, seria Deus quem, diante da decisão de um
movimento ou ação, organizaria as coisas para oferecer uma ocasião propícia para que
os atos acontecessem. Leibniz parece recorrer a Deus a priori, sendo este o responsável
por organizar as coisas desde o início, de modo a estabelecer que o que se dá na mente
seja semelhante àquilo que ocorre no corpo, havendo desse modo uma ‗harmonia
preestabelecida‘ entre as partes. Uma análise mais próxima dos modelos dualistas que
ainda exercem alguma influência atinente ao debate filosófico parece necessária.
2.2.1 – Dualismo: o debate contemporâneo
O dualismo, apesar de andar praticamente na contramão das ciências,
especialmente no final do século XX, no qual a década de 1990 foi nomeada como a
década do cérebro, mantém seus seguidores. Teixeira (2008) singulariza um capítulo de
seu livro somente para analisar as variedades de dualismo contemporâneas. O autor
divide estes modelos em dois grandes grupos: o dualismo substancial e o dualismo de
propriedades.
O dualismo substancial propõe a existência de uma substância mental, com
propriedades totalmente distintas e incompatíveis com o mundo material. Assim como
nos modelos identificados nos séculos XVII e XVIII, o entendimento parece trazer
algum caráter metafísico de ordem transcendental. Nessa perspectiva, a relação mantida
pelo substrato imaterial é postulada pelo conceito de ‗identidade‘. Não há uma
apresentação explícita sobre o modo como aqui haveria a interação entre a mente o
corpo. O substancialismo recorre à sobrevivência após a morte, à alma ou ao espírito a
15
Para um detalhamento mais extenso acerca destas propostas, ver Matthews, Eric. Mente: conceitos
chave em filosofia, Ed. Artmed, 2007.
23
manutenção de uma entidade imaterial como forma de preservar as entidades não físicas
em sua relação com o mundo físico. Este parece ser um ponto de vista pouco popular
nos dias que correm, especialmente em função de ter aberto mão de uma explicação, em
qualquer nível, do modo como as substâncias materiais e imateriais podem interagir.
Não há solução aparente para este problema sem que prejuízos muito grandes, para
qualquer sistema explicativo, sejam minimamente razoáveis. Dessa forma, ou o
dualismo substancial deve abandonar qualquer busca explicativa por uma noção de
causalidade, ou se contenta em dissociar completamente a mente e o comportamento.
Em qualquer um dos casos, a visão científica do mundo contemporâneo certamente
ficará prejudicada.
Uma ideia bem mais promissora é apresentada pelo dualismo de propriedades.
Oferece como pressuposto fundamental o entendimento de que os estados mentais são
uma propriedade especial ou um atributo específico de algumas proporções da matéria
da qual o universo é composto. Nesse sentido, esta propriedade especial irá emergir da
substância material. Há, assim, uma rejeição ao fisicalismo, mas não a sustentação de
uma ideia de substância adicional. Estas propriedades emergentes não poderiam ser
descritas em termos físicos. Nessa esteira a mente se torna algo mais do que aquilo que
o cérebro faz, despontando de suas propriedades físicas, mas se constituindo em algo
que vai para além delas.
O problema da causalidade parece afligir de modo mais brando os dualistas de
propriedades, simplesmente pelo fato de, ao lidar com uma propriedade emergente,
manter aberta a possibilidade de que mudanças físicas no cérebro possam resultar em
alterações na mente. Desse modo, alguma relação de causalidade mecânica parece ser
preservada. O problema maior, de acordo com os teóricos desta área, parece residir na
impossibilidade de que uma descrição física do mundo contemple todos os aspectos da
vida mental, e é exatamente isso que torna os aspectos da vida mental e da subjetividade
algo que está para além das propriedades físicas. Teixeira (2008) resume de modo
extremamente adequado com o seguinte trecho: ‗Em outras palavras, o dualista de
propriedades aposta na desesperança de se encontrar uma interpretação física dos
estados subjetivos e conscientes‘.
De certo modo, este é um ponto incômodo para o dualismo de propriedades,
simplesmente por não haver nenhuma segurança de que os correlatos físicos da
consciência e da subjetividade jamais sejam encontrados. Esta é uma busca contínua das
neurociências e mesmo um dos grandes segredos das ciências modernas. Se, em algum
24
momento, isso ocorrer, o dualismo de propriedades perderá seu status para um modelo
de materialismo eliminativo. Há um dilema a ser resolvido pelos teóricos da área: ou se
admite que existem propriedades físicas do cérebro que podem estar diretamente
relacionadas com a mente e com os aspectos da subjetividade, o que inviabilizaria sua
proposta inicial; ou se admite que qualquer elemento do mundo material, com
propriedades físicas que se assemelhem ao cérebro, poderia produzir uma mente.
Teixeira (2008) dá a conhecer brevemente as propostas daqueles que parecem
ser os maiores defensores do dualismo de propriedades no século XX, de acordo com
ele: o filósofo norte-americano Thomas Nagel (1937-) e o também filósofo, australiano,
David Chalmers (1966- ).
O argumento utilizado por Nagel, em dois de seus principais artigos, de 196516
e
197417
em defesa do dualismo de propriedades, pode ser agrupado da seguinte forma, de
acordo com Teixeira (2008): a) Alguns estados mentais não podem ser descritos por
suas propriedades específicas a partir de um vocabulário fisicalista por uma limitação da
própria linguagem, que, como fator intersubjetivo, não alcançaria as especificidades das
relações possíveis entre os elementos físicos e não físicos; b) Neste sentido, nada pode
se assemelhar aos pontos de vista subjetivos, pois estes são irredutíveis e únicos.
A construção do argumento apresentado pelo filósofo norte-americano parte do
princípio que a experiência consciente possui um caráter imediato. Neste sentido, a
experiência consciente revela um caráter paradoxal, pois é possível experimentá-la,
concebendo-a como uma ordem momentaneamente consciente, sem que, no entanto,
seja possível afirmar com clareza ‗o que é ser consciente‘. Dessa forma, a experiência
consciente não pode ser transposta para outras pessoas ou mesmo para outras criaturas,
já que seria impossível ocupar as mesmas perspectivas ocupadas por aquele outro
organismo em sua experiência consciente. Assim, cada indivíduo possuirá uma
perspectiva tão específica acerca de sua experiência consciente que esta jamais poderá
ser vivenciada por outra pessoa. Eis o componente da intransponibilidade. Isto significa
que qualquer descrição da experiência será sempre necessariamente incompleta – ou
seja, a descrição da verdadeira natureza da subjetividade é apenas resvalada pela
linguagem (Teixeira, 2008). Parece explícito, assim, que a linguagem ainda não foi
configurada de modo adequado para descrever objetivamente todas as coisas, o que
justificaria o uso de termos com caráter dualista para um entendimento entre pares. As
16
Physicalism (O fisicalismo) 17
What is like to be a bat? (O que é ser como um morcego)
25
polêmicas em torno do tema parecem de tal modo sem solução aparente que Nagel, em
seu artigo de 199818
, chega mesmo a sugerir o desenvolvimento de novos conceitos
como forma de abordá-lo. Diz o autor:
Para resumir. A conjectura é essencialmente esta: que apesar de
não ser possível uma explicação transparente e direta entre o
fisiológico e o fenomenológico, mas apenas uma correlação por
extensão estabelecida empiricamente, nós podemos esperar e
devemos tentar como parte de uma teoria científica da mente, para
formar uma terceira concepção que implique diretamente tanto ao
mental quanto ao físico e através do qual a sua real necessária
conexão entre um e outro possam, então, se tornar claras para nós.
Tal concepção terá de ser criada; nós não iremos encontrá-las
espalhadas por aí. Todos os grandes sucessos reducionistas na
história das ciências dependeram de conceitos teóricos, não os
naturais – conceitos cuja totalidade justificativa é que eles nos
permitem substituir correlações brutas por explicações redutivas.
Atualmente, tal solução para o problema mente-corpo é
literalmente inimaginável, mas pode não ser impossível19
. (grifo
no original).
Partindo de um ponto de vista otimista, Nagel poderia ter razão e, neste caso,
somente através da construção de novos conceitos é que será possível uma abordagem
do tema para que este possa ser tratado pela ciência de maneira menos incômoda. Numa
perspectiva menos otimista, a probabilidade de criar outra metateoria da mente que
multiplique significativamente as possibilidades de análise arrastando consigo o ranço
cartesiano se fará presente.
18
Nagel, Thomas. Conceiving the impossible and the mind-body problem. Philosophy vol. 73 no. 285,
July 1998, pp 337-352. Acessado pela página pessoal do autor no seguinte endereço eletrônico:
http://philosophy.as.nyu.edu/object/thomasnagel, através do seguinte link:
http://philosophy.as.nyu.edu/docs/IO/1172/conceiving.pdf. 19
O trecho como no texto original: ―To summarize. The conjecture is essentially this: that even though
no transparent and direct explanatory connection is possible between the physiological and the
phenomenological, but only an empirically established extensional correlation, we may hope and ought to
try as part of a scientific theory of mind to form a third conception that does directly entail both the
mental and the physical, and through which their actual necessary connection with one another can
therefore become transparent to us. Such a conception will have to be created; we won‘t just find it lying
around. All the great reductive successes in the history of science have depended on theoretical concepts,
not natural ones -- concepts whose whole justification is that they permit us to replace brute correlations
with reductive explanations. At present such a solution to the mind-body problem is literally
unimaginable, but it may not be impossible‖.
26
Outro tipo de dualismo contemporâneo pode ser contemplado na obra do
australiano David Chalmers. O projeto geral de sua proposta filosófica pode ser
resumido da seguinte forma: opor-se a ideia de que estados conscientes podem ser
reduzidos a uma base neurofisiológica ou física. Para ele, não é possível que uma teoria
explique detalhadamente como cada sinal cerebral pode se relacionar com a experiência
consciente. Em sua teoria, a consciência deve ser tomada como ponto de partida, e não
como ponto de chegada para qualquer teoria da mente. Neste sentido, Chalmers toma a
experiência consciente como parte fundamental do mundo, sendo assim um elemento
primitivo e fundamental dentro de uma ordem explicativa. Em um sentido mais amplo,
sua abordagem parte do princípio que a experiência consciente deve ser entendida como
um fenômeno natural em si, instaurando aquilo que será um modelo de dualismo
naturalista. Desse modo, princípios físicos poderão ser conectados a elementos da
experiência consciente, mas esta última, apesar de sua relação contingente aos estados
físicos, se revela fator suplementar em relação aos primeiros. Chalmers é explícito em
um trecho do seu livro20
sobre o tema:
A consciência é uma característica surpreendente do universo.
Nossos fundamentos para a crença na consciência derivam
exclusivamente a partir de nossa própria experiência sobre esta.
Mesmo que soubéssemos de todos os detalhes sobre a física do
universo – a configuração, nexo de causalidade e evolução entre
todos os campos e partículas na multiplicidade tempo-espacial –
esta informação não nos levaria a postular a existência de uma
experiência consciente. Meu conhecimento da consciência, em
primeiro lugar, vem de minha experiência pessoal, não de
qualquer observação externa. É minha experiência pessoal de
consciência que faz com que o problema ganhe força para mim.21
Apesar da diferença adotada por Chalmers ao eleger a experiência consciente como um
fenômeno natural, tomá-la como ponto de partida, especialmente pela ênfase em
aspectos da consciência que possuem uma ordem de experiência subjetiva e singular,
20
Chalmers, David. The Conscious mind: In search of a fundamental theory. Oxford University Press,
1996. 21
O trecho no original: "... consciousness is a surprising feature of the universe. Our grounds for belief in
consciousness derive solely from our own experience of it. Even if we knew every last detail about the
physics of the universe - the configuration, causation and evolution among all the fields and particles in
the spatiotemporal manifold - that information would not lead us to postulate the existence of conscious
experience. My knowledge of consciousness, in the first instance, comes from my own case, not from any
external observation. It is my first-person experience of consciousness that forces the problem on me."
27
não parece algo extremamente original quando comparado ao modelo cartesiano, que
adotava como ponto de partida a sua própria razão e o modo como desta não se poderia
duvidar.
Como forma de enfatizar o caráter singular da experiência consciente, Chalmers
adota uma postura antifuncionalista. Para ele, aquilo que é tipicamente interpretado
como dado empírico da consciência – habilidade para reagir a estímulos ambientais,
integração da informação, controle deliberado do comportamento, direcionamento dos
recursos de atenção, descrever a ocorrência de aspectos internos ou mentais, entre
outros – não retrata exatamente seu problema fundamental. Em seu entender, todos estes
aspectos poderão ser tomados como aspectos funcionais da consciência, podendo até
mesmo ter encontrado, de modo absoluto, seus correlatos físicos. No entanto, nenhum
destes aspectos poderá resolver o problema filosófico da consciência, ou seja, o aspecto
subjetivo envolvido em todo o processamento da informação.
Enfim, como parece possível notar, o debate acerca do dualismo talvez não
possa ser chamado propriamente de ‗contemporâneo‘, pois, em qualquer de suas
abordagens, o tema parece resgatar resquícios do modelo cartesiano. Seja na proposta de
Nagel – através da elaboração de novos conceitos e formas de abordagem do tema, o
que, em última instância, constituiria o desenvolvimento de uma nova teoria da mente –;
seja pela ideia de consciência como um fenômeno natural que supervém aos estados
físicos, como proposto por Chalmers, que se equipara ao modelo racional cartesiano em
muitos aspectos que podem ser percebidos simplesmente ao se substituir a ‗alma‘
cartesiana pela ‗experiência consciente‘ de Chalmers.
No polo oposto deste diálogo, ganham força, a partir da década de 1950, as
propostas materialistas ou fisicalistas, postulantes da existência de uma única substância
para o estudo e entendimento dos chamados fenômenos mentais, sendo esta substância
de natureza física. Nessa ordem, a mente é transformada na manifestação das atividades
do cérebro. Uma forte relação com as neurociências é estabelecida, e suas propostas têm
ganhado força na mesma proporção em que há um aumento da tecnologia para as
pesquisas sobre o funcionamento do cérebro. Uma maior aproximação das teorias
materialistas será relevante para o entendimento mais amplo possível do modo como a
educação tem dialogado com as diferentes teorias da mente.
28
2.2.2 – Materialismo: a mente como atividade cerebral
O materialismo continua sendo associado à crença na ciência moderna e à sua
capacidade de explicar tudo o que possamos desejar sobre o mundo e sobre nós próprios
(Matthews, 2007). A apresentação de Matthews parece deixar claro o posicionamento
atual das ciências em relação às teorias da mente. A busca da relação entre experiência
consciente e atividades cerebrais parece ser o grande desafio estabelecido. É importante
se diga aqui que os modelos materialistas não são teorias antimentalistas, mas sim
teorias que reduzem os estados mentais às atividades cerebrais, por isso são chamadas
de teorias reducionistas; ou que buscam estabelecer relações de identidade entre
atividades cerebrais e formulações mentais estabelecendo-os como fenômenos
idênticos. Neste sentido – para qualquer uma das abordagens materialistas – toda a
nossa vida mental nada mais seria do que grande variação dos estados químicos e
físicos de nosso cérebro. Nossas angústias, desejos e intenções seriam apenas um
produto do cérebro e supor que tenham existência autônoma não passaria de uma ilusão
(Teixeira, 2008). Nessa mesma linha de raciocínio, será que o mesmo poderia ser dito
acerca dos processos de aprendizagem? Este ponto poderá ser abordado em outro passo.
Para o presente momento, parece importante uma atenção maior aos modelos
materialistas de mente.
Fundamentalmente, as teorias de identidade propõem uma equação que
estabelece a seguinte ordem: estados mentais são equivalentes a estados cerebrais. Neste
sentido, todos os estados mentais poderiam, se observados de modo mais detalhado e
com conhecimento profundo acerca dos fatores neuroquímicos envolvidos, ser descritos
nos termos destes últimos. Uma analogia possível se refere à sensação que temos da
água: as sensações visuais, táteis, gustativas e olfativas que temos da água não se
vinculam em nada à análise das moléculas de hidrogênio e oxigênio que a compõe.
Nesta comparação, as sensações visuais, táteis e demais seriam apenas um produto
extensivo das sensações produzidas por moléculas de hidrogênio e oxigênio quando em
contato com nossos olhos, pele, boca, etc. Este é o papel das manifestações mentais:
uma extensão produzida a partir de atividades neuronais. A forma, cor e cheiro da água
estão intimamente vinculados nada mais do que a um agrupamento de partículas de
hidrogênio e oxigênio que não podem ser percebidas em um espaço visual comum. O
estabelecimento e a identificação destas diferenças é mero fator de refinamento
científico – ponto este que as neurociências ainda pretendem alcançar. Haveria aqui
29
uma prevalência das teorias físicas sobre as psicológicas, pois estas descreveriam
apenas aparências, ilusões.
Algumas objeções podem ser feitas às teorias de identidade, especialmente
quando as considerações acerca desta identidade a estabelece na qualidade de fato
comum, ou seja, de que os estados mentais são idênticos aos estados cerebrais. Na
elaboração do argumento filosófico, Teixeira (2008) expressará algumas questões: se
estas identidades apresentam contingências de fato e são, portanto, idênticas, é possível
atribuir a estas relações de simetria? Se a atividade mental é de fato idêntica às
propriedades neurais, é possível atribuir à primeira características físicas, como
‗umidade‘ ou ‗temperatura‘? É possível uma angústia úmida ou ainda um pensamento
quente? Outro aspecto apontado pelo autor pelo estabelecimento desta relação de
identidade problematiza o fato de que, ao supor que estados cerebrais são coisas físicas
e que acontecem no espaço, o mesmo deveria poder ser dito sobre os estados mentais.
Neste sentido, sonhos, angústias, desejos, intenções e qualquer outra atividade mental
deveriam apresentar localizações muito específicas e precisas no cérebro. Este é o
caminho trilhado pelas neurociências desde os anos 1990 e se há um ponto de chegada
ao qual todos os fenômenos estarão mapeados, apenas o futuro das pesquisas na área
poderá responder. Há, ainda aqui, no entanto, um ponto de assimetria: os estados
mentais são descritos como estados intensionais – no sentido de aumentar a tensão –, à
medida que uma mesma intenção pode ser descrita de modos diferentes e, ainda que
seja possível localizá-la com precisão como manifestação cerebral, não será possível
identificar qual a intenção presente na manifestação. Desse modo, é possível que a
manifestação do conteúdo mental ‗água‘ seja equivalente àquela produzida pela
representação H2O em termos neuronais, sem que, no entanto, seja possível identificar
qual delas está sendo manifesta.
Ainda mais radical em sua perspectiva organicista são as chamadas teorias
reducionistas. Estas consideram que a vida mental humana pode ser reduzida a estados
cerebrais. Neste sentido, uma ciência como a psicologia poderia ser considerada
meramente ramificação de uma ciência mais fundamental, como a neurofisiologia22
. É
interessante notar que alguns autores caracterizam as teorias reducionistas como teorias
de identidade23
, ao passo que outros apontam as possíveis diferenças existentes entre as
áreas. Teixeira (2008), por exemplo, afirma que enquanto as teorias de identidade
22
Matthews, Eric. 23
Idem.
30
afirmam que estados mentais são estados cerebrais, as teorias reducionistas afirmam que
estados mentais podem ser reduzidos a estados cerebrais. De uma forma ou de outra, o
reducionismo apresenta a ideia de que os termos psicológicos tradicionais podem ser
reduzidos a descrições químicas e físicas do cérebro. A ênfase em propriedades físicas
se sobrepõe, portanto, aos aspectos psicológicos e biológicos, em uma relação que
estabelece a ordem de que estados mentais são equivalentes a estados cerebrais e estes,
em última instância, são equivalentes a estados físicos. Apesar de este projeto ser cada
vez mais considerado pelos modelos atuais de ciência, não está livre de problemas de
ordem filosófica. Fundamentalmente, parece possível questionar de imediato quais são
os pontos em comum entre um conjunto de ligações neuronais, sinapses e
neurotransmissores quando equiparados a um pensamento ou mesmo a qualquer outro
tipo de estado mental? O grande dilema para a ampliação do projeto reducionista parece
estar presente neste problema de tradução de termos: seria possível determinado tipo de
conexão ou combinação de sinais elétricos produzirem uma ‗culpa‘? Ou mais
especificamente no caso das análises educacionais, como traduzir esta combinação em
um processo de aprendizagem?
Este tipo de problema não afeta os teóricos do materialismo eliminativo. Isso se
deve, de certo modo, a uma solução aparentemente simples nos termos com que lida
com o problema: elimina-os, afirmando-o como pseudoproblema. Representado
principalmente pelo casal Paul e Patricia Churchland, norte-americanos e professores do
departamento de filosofia da University California, San Diego. Na apresentação feita
por Paul Churchland (2004), em seu artigo ‗O materialismo eliminativista e as atitudes
proposicionais‘24
, a abordagem do tema pode ser vista logo em seu início:
O materialismo eliminativista é a tese de que nossas concepções
de senso comum sobre os fenômenos psicológicos constituem
uma teoria radicalmente falsa, uma teoria tão fundamentalmente
defeituosa que ambos os princípios e a ontologia desta teoria
eventualmente se deslocarão, ao invés de serem reduzidos
suavemente, pela neurociência consumada.
Nesse sentido, a abordagem do tema na forma da consciência ou outros estados mentais
estaria completamente inutilizado e a explicação apropriada para estes problemas
deveria vinculá-los diretamente a seus correspondentes físicos. Deste modo, não se
24
Citado por Matthews.
31
falaria mais em dor, medo, consciência ou aprendizagem. O discurso deveria ser
dirigido tão somente pelas conexões, sinapses, correntes elétricas ou ativação de
neurotransmissores. Os termos psicológicos tradicionais desta forma seriam substituídos
pelos termos neuroquímicos com base no tratamento recebido destes pela ciência
eliminativista.
Nesse tom, caberá a estes teóricos mostrar como o conjunto de conhecimentos
psicológicos se equipara ao senso comum criando meramente uma rede de conceitos,
que vem sendo aceitos ao longo de sucessivas gerações. Teixeira (2008) sintetiza a
proposta teórica de modo preciso. De acordo com o autor, o materialismo eliminativo
decreta, desde o início, a falência da ontologia da mente, sendo necessário o
reconhecimento da inadequação do vocabulário psicológico cotidiano nas descrições
sobre o conteúdo mental. Assim, a imagem comumente apresentada pelos discursos
psicológicos – incompatíveis com um discurso científico – deveria ser substituída pela
imagem científica das neurociências.
Teixeira afirma ainda que o materialismo eliminativo pode ser entendido como
uma espécie de radicalização dos discursos reducionistas, tendo o objetivo de superar
algumas das dificuldades encontradas pelas tentativas de redução. A proposta
eliminativista parte de um ponto que envolve, portanto, a eliminação, por inteiro, da
linguagem psicológica utilizada habitualmente para explicar o comportamento humano.
De acordo com estes teóricos, a substituição desta linguagem é fator eminente para
avanço nas explicações sobre o tema, por um motivo muito simples: esta linguagem está
errada e equivocada. A folk psychology25
-- como chamam este tipo de linguagem social
utilizada para a explicação não científica do comportamento – seria uma teoria habitual
e tácita que todos nós utilizamos para estabelecer relações causais entre a atividade
interna e o comportamento.
Dessa forma, os termos psicológicos tradicionais, que descrevem ‗crenças‘,
‗desejos‘, ‗intuições‘, ‗intenções‘ e uma infinidade de outras conotações, se
enquadrariam nesta categoria. Não sendo adequadas às explicações científicas,
deveriam ser simplesmente eliminadas e substituídas por uma neurociência rigorosa e
precisa. Não se trata de eliminação do mental, mas sim de eliminação da linguagem
descritiva de eventos mentais. É importante destacar que o projeto eliminativista não
descarta a presença de uma ciência psicológica, mas demanda, sim, uma reconfiguração
25
As traduções variam entre ‗psicologia folclórica‘ ou ainda ‗psicologia popular‘.
32
desta, como forma de se adequar e acompanhar teoricamente o desenvolvimento das
neurociências.
Não são poucos os problemas enfrentados por uma perspectiva materialista
eliminativista. É certo que seu principal problema reside em sua própria dependência da
perspectiva fisicalista. Seu sucesso na eliminação de uma folk psychology depende, in
totum, do mapeamento global das funções cerebrais. Caso essa interação entre mental e
cerebral não ocorra, o projeto em seu conjunto estará em risco. Eis que, na melhor das
hipóteses, parece distante o dia em que o projeto poderá vigorar. O número de neurônios
e de sinapses, assim como suas possíveis relações, possui caráter astronômico. Não se
considera, neste caso, que a atuação dos neurônios ou mesmo as conexões sinápticas
podem variar de acordo com o tipo de interação que o organismo portador do cérebro
possa ter com o ambiente físico e social, o que daria a esta tarefa um caráter numérico
praticamente infinito. O argumento filosófico parece não ter solução direta ou mesmo
simples, pois, à medida que as proposições eliminativistas avançassem, a coerência
teórica exigiria que sua veracidade também fosse descrita em termos cerebrais, dado
que, proposições remeteriam a uma lógica da psicologia popular.
Outra versão materialista e de complexidade crescente estabelece o
emergentismo e a superveniência do mental sobre o físico. De acordo com este modelo,
todos os fenômenos naturais apresentarão uma relação de dependência no que toca às
suas propriedades físicas, isso se deve, simplesmente, à sua constituição por elementos
com propriedades físicas. De fato, parece difícil conceber uma alteração biológica ou
química de qualquer natureza sem que o substrato físico também tenha sido alterado de
alguma maneira. Neste sentido, haveria uma dependência entre os diversos níveis
identificáveis na observação de determinado fenômeno (Teixeira, 2008). É a alicerçado
nessa relação interdependente que propriedades destes fenômenos poderiam emergir,
concebendo outro conjunto de fatos ou propriedades que anteriormente não estavam
presentes, passando a existir apenas com base na combinação destes elementos. O
exemplo típico de uma relação superveniente que resulta da combinação de seus
elementos físicos ocorre quando a água é resfriada a zero grau, provindo assim uma
propriedade sólida. Ser sólido deriva tão somente fundado na alteração do estado físico
de algumas das propriedades da água através de seu resfriamento. Essa relação revela
dependência e também covariação, pois, na medida em que a temperatura a que a água,
em seu estado sólido, está exposta, retomará seu estado líquido. A grande vantagem na
proposta emergentista está em compreender que os fenômenos mentais não precisam ser
33
reduzidos ou mesmo eliminados de um entendimento psicológico ou filosófico.
Estabelece-se a busca por propriedades emergentes a partir da alteração de combinações
físicas presentes na relação cérebro-mente. Deste modo, um problema científico e
metodológico estaria resolvido, mas não o filosófico. Conceber que propriedades
derivam de substratos físicos poderia exigir a busca por uma replicação de um cérebro
humano original, que deveria exigir, portanto, que este artifício funcionasse com as
mesmas propriedades emergentes em relação ao original, ou seja, a replicação perfeita
de um cérebro humano deveria produzir atividade mental.
Parece fácil concluir nesse momento sobre a heterogeneidade, fragilidade
conceitual, teórica e metodológica presentes na investigação concernente à vida mental.
O problema parece não ter solução aparente, ao menos uma que possa ser apresentada
brevemente. Neste momento, revela-se interessante discutir, brevemente que seja, como
algumas destas teorias formulariam os problemas presentes no campo educacional.
2.3 – O problema da mente na educação
De imediato, é preciso esclarecer que esta discussão pretende abordar uma
problemática, a saber, o modelo de mente – se é que há algum – utilizado pelos sistemas
educacionais, sem esclarecê-la. É certo que uma investigação acadêmica acurada
poderia identificar diferentes características de teorias da mente muito distintas em cada
uma das propostas pedagógicas vigentes. Não há espaço suficiente e nem é esta a
pretensão da presente pesquisa. O problema maior aqui exibido levanta a hipótese de
que modelos e teorias da mente são utilizados de modo indiscriminado pela educação. O
modelo educacional vigente – e não se aborda qualquer teoria pedagógica específica
aqui, pois dificilmente alguma delas escapará por inteiro da mesma armadilha – ainda
sobrevive da herança cartesiana: as ideias de intencionalidade e as perspectivas em
primeira pessoa, sendo ainda reféns deste mesmo modelo de mente. A educação parece
explorar ainda de modo muito superficial as teorias contemporâneas da mente, e o que é
possível discutir neste momento se relaciona com alguns dos possíveis motivos para
este distanciamento.
Soma-se aos fatores citados em tópico anterior um paralelo aqui proposto: o
modo, mesmo informal, com que a mente é abordada na educação deveria ao menos
resvalar a relação entre este conceito e outros comuns à área, como os de ensino e de
aprendizagem. A continuidade desta seção ousa buscar alguns dos problemas
34
encontrados quando diferentes modelos de mente são relacionados numa analogia entre
o problema da consciência e o da aprendizagem.
Para todos os efeitos, é útil que algumas visitas a estes conceitos possam ser
realizadas de modo a permitir mais facilmente a construção da analogia. De forma a
manter uma linha nesta proposta, iniciaremos pelo conceito de ‗aprendizagem‘. A
palavra ‗aprender‘ deriva do latim apprehendere que, de acordo com o dicionário26
,
quer dizer: ficar sabendo, reter na memória, tomar conhecimento de. Seu sentido
etimológico varia entre: pegar, agarrar, tomar posse de alguma coisa. Seu sentido
metafórico pode perfeitamente ser utilizado como agarrar com a mente ou com o
conhecimento. A origem da palavra na língua inglesa também pode ser interessante,
especialmente quando se tem em vista que boa parte da literatura em filosofia da mente
circula nesta língua. Assim, a palavra inglesa learning (aprendizagem), deriva do radical
indo-europeu, leis-, que significava pista ou pegada. De acordo com Catania (1999),
antes de atingir sua forma atual, a palavra pode ter passado por muitas transformações:
laestan, leornian, lernen. Assim, em diferentes períodos de evolução da língua inglesa,
ela pode ter sido entendida como seguir uma pista, continuar, vir a saber ou até mesmo
entrar nos trilhos. O autor ainda alerta para o fato de que do mesmo radical veio o verbo
last (durar). Neste ponto, já não parecerá surpreendente a aparente dependência do
conceito de aprendizagem com qualquer agente interno ou mediador. Afinal de contas,
muitas das pistas oferecidas pela origem da palavra remetem a uma noção de retenção
ou apropriação de algo que está fora e que deverá se perpetuar, formando um espaço
para a noção de armazenamento.
Justificada a analogia proposta, especialmente em função do modo como os
termos são utilizados, nos deteremos, em um momento oportuno, para apresentar a
forma com que estes conceitos podem ser explorados com um viés antimentalista. Por
ora, parece importante explorar as possíveis consequências e dificuldades do uso dos
modelos de mente apresentados em passagem já vista. Quanto às dificuldades, estas que
sustentam aqui a aposta na esquiva do debate conceitual e na perpetuação do modelo de
mente cartesiano aplicado à educação.
A começar pelo dualismo substancial, seus problemas em termos de
aplicabilidade à educação seriam tão variados que, de fato, sua consideração aqui pode
26
Consulta realizada no Dicionáro Michaelis em sua versão eletrônica, no seguinte endereço web:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=aprender , no dia 03-12-2011
35
apresentar vieses pitorescos. A consideração de uma substância mental como
completamente independente e separada de qualquer dimensão física de imediato parece
inviabilizar um projeto educacional unificado. O que será educado? A mente ou o
corpo? Se físico e não físico não interagem e também não mantêm relações de
causalidade, o projeto pedagógico que se amparar neste modelo deverá se constituir pela
dicotomia ‗educar para o público (físico)‘ e ‗educar para o privado (mental)‘? A base
educacional fundamental neste modelo provavelmente deveria incidir em uma
aprendizagem transcendental. Mas, nesse caso, o conteúdo, vivências ou experiências
aprendidas seriam utilizados quando e de que modo? Parece difícil pensar em um
modelo educacional vinculado a esta teoria da mente sem estabelecer relações
caracterizadas por alguma religiosidade ou mesmo espiritualidade. Heranças tardias da
filosofia cartesiana.
O dualismo de propriedades, por sua vez, parece a ideia mais próxima daquilo
que tipicamente é operacionalizado em termos educacionais, apesar de não haver
nenhum tipo de estabelecimento formalizado entre estas relações. A noção da atividade
mental como propriedade especial de atributos relacionados com a matéria parece
harmonizar tanto com a ilusão cartesiana do eu e sua crença ou fé na autodeterminação,
quanto com o modo como este modelo influencia o contexto sociocultural e educacional
através do uso de termos psicológicos vagos e imprecisos. Nesse sentido, a
aprendizagem seria uma propriedade especial, inescrutável, advinda de processos
físicos, mas configurada como um elemento adicional e não identificável, ou mesmo
traduzido em relação às atividades cerebrais, ao menos até o momento. Aliás, este é o
ponto que garante a preservação de um dualismo de propriedades, mantendo-o, ainda
que informalmente, em sua relação próxima com o cartesianismo: a esperança de que
um mapeamento completo das atividades cerebrais não será encontrado. Parece
colaborar ainda para que este modelo encontre ressonâncias o fato de haver conexões
causais entre a mente e o cérebro, característica esta que, além de resguardar um contato
com as teorias materiais e biológicas, conserva o caráter de propriedades especiais do
aparato mental e, consequentemente, a noção de sujeito autônomo.
Considerando o dualismo de propriedades conforme proposto por Nagel,
especialmente naquilo que tange à importância dada ao caráter imediato da experiência
consciente, alguma discussão desta aplicabilidade na educação se faz pertinente. Seria a
aprendizagem considerada uma experiência consciente para o dualismo de
propriedades? No caso de uma resposta afirmativa para esta questão, um problema está
36
posto: dado o caráter inescrutável da experiência consciente, não parece ser possível que
se entenda, de modo preciso, o modo ou o momento em que alguém toma consciência
de que aprendeu algo. Parece possível, isso sim, identificar que alguma aprendizagem se
fez presente, assim como se identifica que alguém realizou uma tarefa e, portanto, pode
se inferir que algum nível de aprendizagem ocorreu. Mas a aprendizagem em si parece
carregar a típica intransponibilidade como experiência subjetiva, características das
propriedades especiais da atividade mental, conforme este modelo de dualismo. Nesse
sentido, não seria possível saber exatamente como alguém aprende, pois esta
experiência seria intransponível e absolutamente subjetiva. Partindo deste princípio, as
teorias de aprendizagem – e por que não incluir aí as teorias pedagógicas? – teriam
pouco ou mesmo nenhum sentido, pois o nível de singularidade envolvido no
aprendizado de qualquer coisa, tomado como experiência consciente, não poderia ser
compartilhado de nenhuma forma.
Compreender a aprendizagem como um elemento natural e sujeito a
determinadas leis permitiria que muitas teorias sobre esta atividade fossem formuladas,
ponto análogo àquele proposto por Chalmers em seu dualismo naturalista. Este
entendimento restauraria o problema da aprendizagem no campo educacional,
restaurando de modo embutido o problema acerca da heterogeneidade e polissemia do
termo. Senso assim a aprendizagem poderia ser decomposta em termos e atividades
muito variadas, no entanto nenhuma delas isoladamente nem mesmo sua somatória
permitiria uma compreensão universal sobre seu estado. Novamente, nenhuma teoria de
aprendizagem ou pedagógica teria um sentido absoluto, pois as formulações teóricas
conservariam um caráter polissêmico, enquanto as estruturas físicas responsáveis pela
aprendizagem – caso sejam em algum momento mapeadas de modo preciso – não
seriam suficientes para descrevê-la como fator suplementar.
As teorias materialistas da mente, em sua forma reducionista ou eliminativa, não
trazem nenhum tipo de conforto para a definição da aprendizagem e, portanto, para as
teorias pedagógicas. O reducionismo provavelmente levaria a uma corrida desenfreada
pelo mapeamento de cada um dos elementos neuroquímicos presentes em cada situação
de aprendizagem, em um processo lento e talvez interminável. O reducionismo aplicado
às teorias de aprendizagem – quer da psicologia quer da pedagogia – as levaria por um
caminho biológico sem volta. Métodos, técnicas, efeitos, interação, relação ou qualquer
outro elemento presente na díade professor-aluno só seria validado a partir da
descoberta de seus correlatos neuroquímicos. É imprevisível a forma como a
37
emergência do reducionismo na educação poderia afetar a prática docente,
especialmente se considerar o eixo da formação de educadores.
O materialismo eliminativo, por sua vez, faria da prática pedagógica algo
equivalente ao que apresenta para as ciências psicológicas, a saber, o seu fim. O que
permite concluir dessa afirmação está na proximidade dos termos utilizados pela
pedagogia com aqueles consagrados pela folk psychology. Reflexão, construção,
elaboração e outros tantos termos deveriam ser abolidos do vocabulário pedagógico, tal
qual do psicológico, simplesmente por não explicarem nada, por se constituírem fruto
de uma teoria falsa e imprecisa da mente. A substituição destes termos, ainda que lenta
em função de fatores culturais, se daria no momento em que o conhecimento acerca das
conexões e sinapses envolvidas nos processos de ensino-aprendizagem fosse divulgado
e popularizado. Novamente, o impacto de um modelo material de mente sobre as
práticas pedagógicas seria de difícil previsão.
Fundamentalmente, aqui está se equiparando o problema do conceito e da
definição de aprendizagem ao problema filosófico da consciência, estabelecendo uma
relação análoga. Diante do conjunto de problemas apresentados pelas teorias da mente,
não é surpresa que a educação, apesar de aderir tacitamente ao modelo cartesiano, não
ofereça ao tema um tratamento mais extenso. O resultado da adesão a um modelo de
mente diferente do cartesiano poderia promover uma revolução em termos educacionais
sem precedentes. Os caminhos e práticas derivados deste posicionamento orientariam a
atividade pedagógica para relações e nexos causais muito distintos dos atuais. Suas
consequências? O sujeito com aprendizagem inescrutável ou ainda o sujeito
neuroquímico.
Pode-se notar, neste conjunto de análises, uma busca contínua pelo
estabelecimento de vínculos e nexos causais para a atividade humana, especialmente
aquela que tange ao interno, subjetivo, privado. Esta produção parece, de alguma forma,
procurar uma lógica que preencha a aparente lacuna existente entre algumas das
dicotomias clássicas em filosofia e também em psicologia: o público-privado, o interno-
externo, o natural-fictício e o objetivo-subjetivo são algumas delas. Distante de um
esclarecimento que reduza os conflitos e que atenue as distâncias entre as propostas, um
caminho ainda mais radical – como relativo à raiz ou a origem de alguma coisa – pode
se constituir como alternativa: aquele que precede a invenção da mente em termos
gerais ou que questiona suas possibilidades – o antimentalismo.
38
Capítulo III – Perspectivas antimentalistas e suas possibilidades na educação
3.1 – Desconstrução da mente: desafios e perspectivas
As discussões sobre a filosofia da mente geralmente começam com a suposição
de que todos sempre souberam como dividir o mundo em mental e físico – que essa
distinção é de senso comum e intuitiva, mesmo quando entre dois tipos de ‗substância‘,
material e imaterial, isso seja filosófico e desconcertante (Rorty, 1979/1994). O caráter
‗intuitivo‘ da mente, alimentado por todos os fenômenos com alguma aparência mental,
como imagens, crenças, alucinações, sonhos ou qualquer outro tipo de conduta
intencional, somados ainda por uma linha teórica que vai de Descartes a Kant, parece
fazer crer que princípios organizadores da estrutura do comportamento, tais como
‗universais‘ culturais ou linguísticos, padrões arquetípicos em literatura ou mesmo
determinados tipos psicológicos, soam como fatores que ratificam o status causal de
uma entidade interna.
Encarar o modo como ‗o problema da mente‘ é discutido é tarefa de fôlego e
certamente exigiria todo um trabalho próprio. Não é este o objetivo desta análise. A
desconstrução da mente como será aqui apresentada agasalha intentos mais modestos, a
saber, simplesmente permitir a introdução das perspectivas antimentalistas em filosofia
e psicologia de modo a possibilitar, mais tarde, possíveis interfaces entre estas e a
educação.
Abordar o tema da mente em filosofia de sorte a permitir o entendimento de sua
desconstrução exige a compreensão da forma como o conceito é utilizado em pelo
menos duas perspectivas distintas: a ontológica e a epistemológica. A ordem ontológica
aborda um conjunto de problemas a respeito da suposta superioridade humana, como a
consciência de si, a liberdade, a responsabilidade moral, a espiritualidade, entre outros.
De outra fase, a ordem epistemológica tratará de temas como a inteligência, a razão, a
linguagem e os demais tópicos referentes ao conhecimento. Parece certo que estas
instâncias não podem ser entendidas nem abordadas separadamente, principalmente se
considerar que sua junção pode estar entre os fatores que conduzem à ilusão da mente.
Para dissolver um pouco esta questão, parece inevitável revisitar brevemente a
dicotomia mente-corpo. Afinal de contas, como posso conhecer, por exemplo, uma dor
que me acomete? A dor com suas propriedades físicas, um hematoma ou um nervo
inflamado constituem experiência estritamente pessoal, suas dimensões são
propriedades ontológicas, como a sua sensação – algo que pertence ao corpo. Há
39
critérios de conhecimento em uma dor. Alguns desses critérios respondem meramente a
uma capacidade discriminativa, que estabelece um limite de seu contato quando se faz
uso da linguagem, como quando dizemos o local em que nos dói ou estabelecemos uma
relação com algo que causa a dor. Outro ponto parece fundir ontologia e epistemologia,
quando se questiona sobre a consciência da dor, por exemplo. Parece certo que este
entendimento deve ser analisado, considerando também a questão acerca daquilo que é
material versus o que é imaterial. Este é um jogo que estabelece relações polarizadas,
com a apresentação de binômios comuns à história do conhecimento e
consequentemente da filosofia. Sua organização parece ocorrer da seguinte forma: ao
considerar a perspectiva ontológica, a materialidade nos põe em contato com a finitude,
com a ordem humana e com os aspectos particulares desta. Em sentido epistemológico,
a materialidade parece, cada vez mais, recorrer ao corpo, às conexões, aos neurônios.
Retomando as premissas ontológicas para o entendimento da imaterialidade,
acompanha-nos uma ideia de infinitude, de condições divinas que podem ter caráter
transcendental, fatores estes que podem ser sequenciados pela presença de arquétipos ou
ordens ‗universais‘. Em sentido epistemológico, ‗nasce‘ a mente, a consciência, o
oráculo de Delfos – ―...conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo‖.
O filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) – que terá um trecho
específico neste trabalho para abordar sua filosofia e buscar relacioná-la em algum nível
com a educação – aponta, no livro que é conhecido como a sua principal obra, A
Filosofia e o Espelho da Natureza27
, alguns dos limites presentes nesta barreira que
separa o material do imaterial. De acordo com ele, em um argumento que se inicia
recorrendo a Kant28
, a explicação pode se aproximar da ideia do filósofo prussiano, de
que o mental é temporal mas não espacial, enquanto que o imaterial – o mistério que vai
além dos limites do sentido – não é espacial nem temporal. Seguindo o argumento,
Rorty anuncia o modelo tripartido que decorrerá da análise kantiana: o físico como
espaço temporal; o psicológico como não espacial, mas temporal; o metafísico como
não espacial e não temporal. O problema será estabelecido de acordo com a
argumentação de Kant e Stranwson, de que só é possível identificar estados mentais de
27
Originalmente publicado com o título Philosophy and the Mirror of Nature, no ano de 1979. Traduzido
para o português por Antônio Trânsito, com revisão técnica de Marco Antônio Casa Nova, foi publicado
pela Editora Relume Dumará, 1994. 28
Sugerindo a leitura de ―Refutation of Idealism‖, em K.d.r.V, B274ss., e P.F. Strawson, Individuals
(Londres, 1959), cap. 2, e The Bounds of Sense (Londres, 1966), PP. 162 ss.
40
pessoas espacialmente localizadas, o que inviabilizaria uma renúncia a uma substância
mental.
Nesse sentido, Rorty questionará os critérios adotados para o estabelecimento da
noção de ‗estado‘, indagando mesmo sobre a utilidade de conceitos como estado não
espacial e estado espacial. Seu argumento é de que essas noções só podem fazer sentido
para sujeitos particulares, estabelecendo uma ordem de predicação e de atribuições de
posse de propriedades para estes sujeitos. Fiquemos com palavras do filósofo norte-
americano: ‗Obtemos um vago sentido de poder explicativo quando nos dizem que os
corpos humanos se movem como o fazem porque são habitados por espíritos, mas
absolutamente nenhum (sentido) quando nos dizem que as pessoas tem estados não
espaciais‘. Dessa forma, uma primeira suspeita se estabelece sobre a suposta identidade
entre os estados mentais e físicos, ainda de acordo com o autor:
Espero, além disso, ter incitado a suspeita de que a nossa assim
chamada intuição sobre o que é mental pode ser apenas nossa
disposição de entrar num jogo de linguagem especificamente
filosófico. Esta é, com efeito, a visão que quero defender. Penso
que essa assim chamada intuição não é mais que a capacidade de
comandar certo vocabulário técnico – que não tem utilidade fora
dos livros de filosofia, e que não se liga a temas da vida cotidiana,
da ciência empírica, da moral ou da religião.
Uma retomada dos elementos presentes parece necessária: o debate entre as
supostas polaridades imateriais e materiais, representadas respectivamente pela mente e
pelo corpo, envolvidas por dimensões ontológicas e epistemológicas que parecem, ao
menos em parte, apresentar seus enlaces quando tocadas, ainda que de forma limitada,
por um terceiro elemento inserido agora no jogo: a linguagem. A discussão não fica aí
resolvida, pois a este novo elemento também cabem as perguntas: de que é feita a
linguagem? Suas propriedades são materiais ou imateriais? Qual sua capacidade de
representação destes elementos combinados? E seus limites? Uma tentativa de abordar
estas questões será feita no momento em que os modelos antimentalistas de
Wittgenstein, Rorty e Skinner forem comparados e diferenciados.
Retomando os elementos apresentados até este momento, tudo indica que o
acréscimo da linguagem a esta questão serve apenas para uma significativa expansão
desta, pois seria ela – a linguagem – a entidade que tornaria possível a formação da
41
mente enquanto uma ilusão cultural29
. Neste sentido, como afirma Teixeira (2008): A
expansão da linguagem, através da invenção da semântica, teria sido o passo preliminar
para se postular a existência de algum tipo de entidade não observável. Há uma espécie
de retroalimentação nesta relação, pois, assim como a linguagem parece poder simular a
existência de espaços ou tempos não presentes fisicamente, ela acaba sendo enriquecida
por essa suposta possibilidade de representar propriedades não físicas que a
determinam, como a mente ou os pensamentos. Sendo assim, a linguagem passa a ter o
poder de comportar teorias construídas a partir de entidades não observáveis –
envolvendo aqui teorias sobre o mundo e sobre o comportamento. Há aqui uma
expansão da própria ontologia, pois se funda a possibilidade de representar aquilo que
está para além do físico e determinado pelos limites espaçotemporais. Este é um
elemento que passa a vir acompanhado de uma ideia ou teoria de acesso privilegiado
aos nossos próprios pensamentos ou estados mentais – que podem estar travestidos de
roupagens diversas, como intenções, propósitos, vontades, entre uma infinidade de
outros – que fornecem, ao menos aparentemente, os subsídios para a ideia de que temos
alguma autoridade e autonomia sobre estes elementos, dado o acesso privilegiado e
exclusivo que temos a eles. A introspecção passa a estar garantida como um método de
se conhecer. Ontologia e epistemologia estão em um processo de fusão que torna o
conhecer somente como conhecimento de si, de seus domínios, de suas propriedades e
posses agora legitimadas por uma aparente capacidade representativa organizada –
ilusoriamente, dirão os teóricos abordados até aqui – pela linguagem.
Ao dominar a ordem ontológica, parece pertinente supor o modo como o caráter
da experiência é também afetado. Seu domínio passa a ter a possibilidade de uma
representação da experiência que aconteça de modo meramente interno. O relato de uma
experiência poderá trazer nossas impressões acerca dessas, como se elas pudessem, de
alguma forma, ficar estampadas em nossas entidades representacionais (a mente). Desse
modo, ‗a noção da mente foi engendrada pela expansão da linguagem que propiciou o
triunfo dos relatos introspectivos sobre o comportamento e a percepção‘ (Teixeira,
2008). As teorias ou ideias sobre as introspecções se tornaram mais reais do que o
mundo físico, e um problema sem solução estava criado.
Este é um importante ponto de transição, pois, ao enveredar por um caminho no
qual a linguagem se sobrepõe ao comportamento, a relação entre epistemologia e
29
Ver o livro Empiricism and the Philosophy of Mind (1963), do filósofo norte-americano Wilfrid Sellars.
42
ontologia se torna desigual. Parece mesmo ser possível afirmá-la como uma relação de
domínio, no qual a epistemologia supera a ontologia, transformando esta última em um
relato, mais do que em vivências ou experiências. O corpo se transforma em mente, o
material em imaterial, ainda que sem espaço físico, ainda que em condições atemporais.
Caímos na armadilha.
As tentativas de escapar desta armadilha serão exploradas aqui de modo mais
específico no espaço reservado para cada autor: Ludwig Wittgenstein (1889-1951) será
abordado primeiramente, tanto por um fator cronológico – seu Tractatus Logico
Philosophicus é de 1921 –, quanto por tentar desfazer a armadilha criada pela
linguagem; o filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) será abordado logo
depois, numa tentativa de manter uma linha coerente de análise, pois, em sua principal
obra, o já citado livro ‗A Filosofia e o Espelho da Natureza’, por diversas vezes faz
menções a Wittgenstein, além de estabelecer algum contato com a filosofia de Gilbert
Ryle (1900-1976), filósofo britânico, aluno de Wittgenstein. Este em sua principal
obra30
, fornece argumentos para a descaracterização da mente como reflexiva da
natureza feita por Rorty (ainda que este aponte as falhas presentes no argumento de
Ryle). O filósofo norte-americano parece, em alguma medida, acompanhar o
movimento behaviorista iniciado nos Estados Unidos no início do século XX, embora
nenhuma de suas citações recorra ao mais influente dos modelos behavioristas – o
radical – que será aqui abordado. Essa interface nos leva a B. F. Skinner (1904-1990),
psicólogo norte-americano, influente por seu modelo behaviorista radical, quando
elabora, por quase 60 anos, argumentos em rejeição ao mentalismo, incluindo aí
incursões pela área educacional, fator relevante para este trabalho.
Faz-se aqui uma opção por iniciar esta seção demonstrando a aridez dessa tarefa
– a desconstrução da mente – recorrendo a tentativas, nem sempre bem-sucedidas, de
eliminá-la ‗parcialmente‘. Um primeiro movimento de eliminação é apresentado com a
filosofia de Gilbert Ryle, que aborda o tema pelo viés da mente como um ‗erro
gramatical‘; em um segundo momento é retomado o materialismo eliminativo do casal
Churchland. Ambos os modelos, apesar de propostas muito distintas, apresentam um
núcleo em comum: a tentativa de eliminação da mente em seu caráter ontológico. Seus
problemas continuaram preservados pela epistemologia. Após essas tentativas,
caminha-se para as formas mais incisivas de eliminação da mente, que abordam o tema
30
Gilbert Ryle, The Concept of Mind (Nova York, 1949)
43
em suas duas dimensões – ontológica e epistemológica – e serão abordadas em suas
respectivas temáticas com vieses distintos.
3.1.1 – Gilbert Ryle: a doutrina oficial como erro gramatical
Breve visita a Gilbert Ryle (1900-1976) pode ser interessante tanto para a
compreensão de alguns dos argumentos que encontraremos nos autores estudados
quanto para fazer a transição da sobreposição do modelo epistêmico sobre o ontológico.
Abib e Lopes (2003) definem Gilbert Ryle como ‗representante da filosofia analítica,
que busca, através de uma análise gramatical, desvendar o verdadeiro significado do
vocabulário mental, dissolvendo assim o problema do mentalismo‘. Os autores se
referem ainda àquilo que Ryle pode nos ensinar, a saber: que os termos mentais muitas
vezes são enunciados quase ontológicos e, portanto, caracterizam-se por serem
expressões sistematicamente enganadoras.
No argumento dos autores acima citados, a análise de Ryle parte do princípio
que a mente, como conhecida pelo senso comum e a partir de então analisada pelos
teóricos, incorre em um erro de categoria. Ryle constrói, portanto, um argumento que
toma por base a análise gramatical em que mostra que é possível descobrir um erro no
uso filosófico dos termos mentais. Partindo das categorias da existência do ser de
Aristóteles, Ryle afirma que o senso comum não toma a mente como uma substância,
pois faz uso de verbos no gerúndio para falar de termos mentais (pensando, sentindo);
ainda na análise de Abib e Lopes, os teóricos partiriam desse uso para substantivar os
verbos (pensamento, sentimento). Este movimento tornaria a mente como erro
categorial, pois seria tratada como uma substância, ao passo que pertenceria a uma
categoria de existência distinta.
Ryle se refere ao mentalismo como a doutrina oficial: seria ‗uma doutrina sobre
a natureza e localização das mentes que prevalece tanto entre os teóricos quanto entre os
leigos‘, tendo em Descartes, naturalmente, seu maior representante. Ryle critica os
defensores da doutrina oficial, apontando as armadilhas presentes no vocabulário mental
utilizado pelo senso comum. De acordo com ele, ao tentar interpretar o vocabulário
mental fora do contexto em que ele ocorre, sistematicamente os teóricos incorreriam em
um erro categorial, pois os enunciados quase ontológicos fariam com que muito de seu
uso comum – não acompanhado por nenhum tipo de entidade metafísica –, ao ser
interpretado, acabasse se transformando em algo substancializado, o que, em última
44
instância, ofereceria um caráter precursor dessas atividades em relação aos
comportamentos. Haveria, portanto, a inserção de um evento fantasmagórico no espaço
que – supostamente – existe entre um evento físico e um comportamento.
Para Ryle, portanto, um dos principais equívocos da concepção filosófica de
mente se encontra em sua inspiração cartesiana, na qual seria mantida a suposição de
que é possível enxergar algo que está além de todo um conjunto de comportamentos e
disposições que podem ser observados. Um segundo ponto problemático, de acordo
com o filósofo britânico, pode ser encontrado quando um conceito é confundido com
alguma coisa ou substância que deveria existir de alguma forma. Para ilustrar de forma
mais apropriada, parece importante esclarecer que uma ‗disposição‘ seria, no sentido
mencionado, uma alteração no estado inicial, uma espécie de ‗atualização‘ quando
alguma mudança ocorre. A segunda confusão pode ser apresentada com um exemplo
muito corriqueiro em âmbito educacional, como quando um aluno apresenta bom
desempenho acadêmico e é classificado como ‗inteligente‘, ou seja, uma forma de
substantivar o comportamento. A explicação, ao modo como oferecido por Ryle define
as disposições como um fator do tipo lógico errado, ou seja, é somente quando se
comete o erro lógico de tratar disposições como ocorrência é que se vincula o
significado de um conceito mental disposicional a um tipo particular de comportamento
(Abib e Lopes, 2003).
Rorty (1979/1994) parece sintetizar bem os rumos da proposta do modelo
behaviorista ryleano, conhecido também como um modelo behaviorista lógico. Diz o
autor: sua doutrina central é que há uma conexão necessária entre a verdade de um
relato de certa sensação crua e uma disposição a tal e tal comportamento. De acordo
com a análise de Rorty, o engano de Ryle estava em sua crença de que haveria uma
conexão necessária entre atribuições de disposições comportamentais e aquelas de
estados internos. Então teria sido capaz de mostrar que, na realidade, não existiriam
nenhuns estados internos.
A solução proposta por Ryle é examinada por Teixeira (2008). De acordo com o
autor, os erros categoriais deveriam ser separados de forma nítida, colocando o
vocabulário físico e o vocabulário mental em perspectivas distintas. Esse seria um
primeiro passo para que fosse possível o abandono dos ‗fantasmas‘ da linguagem e a
consequente ilusão da mente. De qualquer modo, a exequibilidade do projeto ryleano
não parece simples. Aliás, o próprio conceito de disposição revela trazer problemas,
pois parece vincular o organismo a uma certa suscetibilidade que conduziria a outros
45
problemas e talvez até mesmo à discussão entre a dicotomia inato versus aprendido. De
modo mais grave ainda, o argumento de Ryle poderia incorrer, paradoxalmente, em um
dualismo, o que certamente não seria bem-vindo. Teixeira (2008) conclui sobre os
problemas de aplicabilidade da proposta ryleana: ou abandonamos o programa ryleano
de separar o vocabulário físico do vocabulário mental e, com ele, seu pressuposto
fundamental de que é sempre possível detectar e eliminar as transgressões categoriais,
ou admitimos que a passagem do físico para o mental, expresso em sentenças híbridas,
não leva necessariamente a um uso indevido da linguagem e à geração de paradoxos.
3.1.2 – Materialismo eliminativo: a falência da mente ontológica
Breve retomada do materialismo eliminativo – já abordado na seção anterior – é
importante para regular uma postura contemporânea sobre a abordagem da mente,
especialmente sobre aquilo o que tange à relação epistemológico-ontológica abordada
até aqui. Como citado em outro passo, o modelo materialista eliminativo afirma a
inadequação do vocabulário psicológico para lidar com o problema da mente – até aqui,
algo semelhante àquilo feito por Ryle. No entanto, o tom conciliatório adotado por
Ryle, que terminou por aproximá-lo de modelos dualistas substanciais, não aparece
aqui. A afirmação da inadequação de vocabulário psicológico comum o aponta
enquanto incompatível com as ciências, o que tornaria sua permanência simplesmente
intolerável. Nesse sentido, este modelo decreta a falência da mente ontológica,
resguardando assim a mente como epistemologia na forma daquilo que deveria ser
conhecido em suas propriedades físicas e neuronais. Os termos ontológicos
característicos da folk psychology como crenças, intenções, desejos e também os termos
comuns referentes à aprendizagem deveriam dar lugar aos conceitos elaborados pelas
ciências do cérebro. Este movimento, batizado por seus principais autores – Paul e
Patricia Churchland – passa a ser designado como neurofilosofia. Neste modelo, o
problema cartesiano é simplesmente concebido como algo equivocado, como pode ser
conferido neste trecho31
:
O problema da consciência no século 21 não é o problema mente-
corpo como concebido por Descartes. O problema mente-corpo
31
Churchland, Patrícia Smith. A neurophilosophical slant on consciousness research. Progress In Brain
Research, vol. 149, 2005.
46
clássico se referia à forma como coisas não físicas que compõem
a alma imaterial podem interagir causalmente com as coisas
materiais, com o corpo. Ninguém, incluindo naturalmente
Descartes, fez o menor progresso na solução do problema. Mas
nós podemos ver agora que a interação é um pseudoproblema,
como o problema acerca do modo como as esferas de cristal
giram no céu diariamente ou como o coração elabora os espíritos
animais.32
Parece possível notar um objetivo comum – o de desconstrução da mente
ontológica – na proposta de Ryle e também no modelo materialista eliminativo, que
culmina na neurofilosofia, apesar dos caminhos distintos adotados por cada corrente. De
uma forma ou de outra, resquícios foram mantidos quer pelo conceito de disposição e
dos problemas daí advindos, no caso de Ryle, quer pela aparente distância existente
entre o momento atual e o mapeamento completo das atividades cerebrais como forma
de viabilizar a morte ontológica da mente do modo como decretado pelos
eliminativistas.
Como já parece possível notar, a desconstrução da mente não é tarefa simples, e
diversos parecem ser os ranços que acompanham aqueles que se arriscam a tentar. De
qualquer modo, o simples questionamento de suas possibilidades e limites já pode
arranhar a imagem do mental, tornando o espelho que a reflete mais frágil para aqueles
que ousaram, de alguma forma, olhar diretamente para ele. O que viram? Nada. Afinal
de contas, que tipo de substância se vê quando se olha no espelho? Vamos àqueles que
olharam.
3.2 – Perspectivas antimentalistas
3.2.1 – Ludwig Wittgenstein: linguagem, pensamento e discurso sobre o ser
Ludwig Josef Johann Wittgenstein nasceu em abril de 1889, na cidade de Viena,
capital do império austro-húngaro até então. Faleceu em Cambridge – Inglaterra –
32
O trecho como no original: The problem of consciousness in the 21st century is not the mind–body
problem Descartes struggled with. The classical mind–body problem was how the nonphysical stuff that
makes up the immaterial soul can causally interact with the material stuff that is the body. No one,
including of course Descartes, made the slightest progress in solving that problem. But we can see now
that interaction is a pseudo problem, like the problem of how the crystal spheres of the heavens daily
rotate, or how the heart concocts animals spirits.
47
também no mesmo mês de abril, três dias depois de completar 62 anos de idade. Corria
o ano de 1951.
Em parte de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de
Minas Gerais e publicada na forma de livro33
, Condé (1998) discorre sobre o período de
muitas transformações políticas, sociais e econômicas pelos quais passava a Europa à
época em que Wittgenstein desenvolvia a sua filosofia. Aborda ainda sua participação
em duas guerras mundiais, como oficial do exército e como enfermeiro, em ambas as
ocasiões como voluntário. Condé versa ainda alguns aspectos psicológicos do filósofo
austríaco, afirmando que ‗suas inquietações existenciais são de fazer inveja a muitos
filósofos da existência‘. De acordo com este autor, Wittgenstein sentia-se muito
atormentado pela própria ideia da existência, chegando em diversas ocasiões a pensar
na possibilidade de cometer suicídio. Refugiar-se em lugares distantes do meio social
era prática comum para Wittgenstein, o que é interpretado por Condé como a
possibilidade de alguém que possa estar ‗buscando talvez um exílio de si mesmo‘.
Nascido em família com boas condições financeiras e de cultura refinada,
Wittgenstein foi educado em casa, até os quatorze anos. A partir desse momento passa a
frequentar a escola secundária no interior da Áustria. Falava vários idiomas e tinha
também conhecimento de música. Além de sua participação em guerras, as perdas a que
Wittgenstein foi submetido no início do século XX parecem, de algum modo,
relacionadas com suas preocupações existenciais: dois de seus irmãos se suicidam logo
na abertura do novo século, Hans em 1902 e Rudolph em 1904. Alguns anos mais tarde,
mais precisamente em 1913, é seu pai, Karl, que vem a falecer. Ainda no final do
conflito da primeira guerra mundial é a vez de Kurt, outro dos irmãos Wittgenstein, se
suicidar depois de ser abandonado no campo de batalha. É ainda apontada como fato
marcante, neste mesmo período, a morte de David H. Pinset – a quem Wittgenstein
dedicara sua obra da juventude, o Tractatus, ele que fora colega de estudos de
Wittgenstein em Cambridge.
Seguindo as orientações do lógico G. Frege (1848-1925), estudou filosofia com
B. Russel (1872-1970), pessoas a quem Wittgenstein reverencia no prefácio do
Tractatus: ‗Desejo apenas mencionar que devo às obras grandiosas de Frege e de meu
amigo Bertrand Russel uma boa parte do estímulo às minhas ideias‘. A influência destes
teóricos, no entanto, parece não ser algo necessariamente linear, pois são diversos os
33
Condé, Mauro Lúcio Leitão. Wittgenstein: linguagem e mundo. Ed. Annablume, 1ª ed., 1998.
48
trechos da obra nos quais Wittgenstein aponta alguns dos possíveis equívocos ou
enganos destes de quem afirma receber influência. Neste sentido, o modo como estes
autores estão presentes talvez se constitua mais como uma esfera de leituras e
confrontos de ideias do que propriamente um direcionamento para aquilo que é pensado
pelo filósofo austríaco.
De fato, neste trabalho, o interesse em Ludwig Wittgenstein se deve em especial
à variedade e à originalidade de sua filosofia. Variedade que pode ser contemplada com
base na comparação de suas duas principais obras, o Tractatus Logico-Philosophicus,
de 1921, e o livro Investigações Filosóficas, publicado apenas em 1952, após a morte do
autor. Em seu primeiro momento, Wittgenstein parece tratar de uma metafísica que não
pode ser descrita. Nesse sentido, embora aborde o tema da linguagem como forma única
de descrever os fatos do mundo, parece inadequado para lidar com qualquer instância
metafísica presente neste. Aspectos como a essência do mundo e da linguagem, a
dimensão ética da existência e o sentido da vida são tratados como coisas que existem e
que realmente importam, que, no entanto, se encontram fora do escopo daquilo que a
linguagem pode realmente dizer. Desta forma, mesmo que todos os problemas
científicos pudessem ser resolvidos, os problemas referentes às dimensões da existência
não poderiam sequer ser tocados. Wittgenstein chega a esta conclusão através da análise
lógica da linguagem, cujo resultado final será o da clarificação silenciosa.34
Desse
modo, a filosofia apresentada no Tractatus sinaliza para os limites da representação do
mundo e das coisas com base naquilo que pode ser alcançado pela linguagem, e
qualquer tentativa em ir além deste ponto estará fadada a um contrassenso. As
características deste primeiro momento em Wittgenstein parecem colocá-lo na condição
de quem aceita a presença de entidades metafísicas, no entanto, nega a possibilidade de
conhecê-las, restando assim a possibilidade de se tratar da ‗totalidade dos fatos‘,
devendo-se calar sobre aquilo que não se pode falar.
Depois de mostrar-se coerente à sua filosofia inicial, Wittgenstein se cala por um
período de seis anos, nos quais se retira da cena filosófica e passa todo esse período
lecionando para crianças no interior da Áustria, engajando-se em um movimento da
reforma escolar daquele país. Seu plano para a produção de suas Investigações
Filosóficas tem início entre os anos de 1936 e 1937, período no qual a primeira parte
34
Estas observações foram realizadas por Paulo R. Margutti Pinto, ainda na apresentação do livro
Wittgenstein: linguagem e mundo, de autoria de Mauro Lúcio Leitão Condé, trabalho este do qual foi
orientador para a obtenção do título de mestre, na Universidade Federal de Minas Gerais.
49
desta obra foi iniciada. Seu trabalho foi longo e intricado. A segunda parte das
Investigações só foi escrita entre os anos de 1948 e 1949, de acordo com a afirmação do
próprio Wittgenstein em seu prefácio: ‗as observações filosóficas deste livro são, por
assim dizer, um conjunto de esboços de paisagem que surgiram nestas viagens longas e
complicadas‘. O movimento de retomada de sua filosofia parece não ter sido tarefa
propriamente simples, fato este exposto pelo autor ainda no prefácio da mesma obra:
Até há pouco eu havia desistido de pensar em uma publicação de
meu trabalho em vida. Todavia, este pensamento avivou-se, de
tempos em tempos, aliás, principalmente pelo fato de eu ter que
experimentar os meus resultados transmitidos em preleções,
escritos e discussões, circulando muitas vezes malcompreendidos,
mais ou menos trivializados ou mutilados. Minha vaidade
instigou-se com isso, e tive trabalho para acalmá-la.
Wittgenstein revela sua releitura do Tractatus, fala sobre suas discussões acerca
daquelas ideias com Frank Ramsey e com o Sr. P. Safra. Afirma a necessidade de
esclarecer alguns dos pensamentos presentes em sua primeira obra e do modo como
aqueles antigos pensamentos, publicados juntos com os novos, poderiam ser
iluminados. Diz reconhecer aquilo que chama de ‗graves erros‘ publicados em seu
primeiro livro.
Ao longo de suas Investigações, Wittgenstein abandona as questões relativas à
essência do mundo e da linguagem, substituindo seu contrassenso metafísico por um
modelo pragmático que se ocupa do modo como a linguagem funciona, por igual,
investiga em diversos momentos o modo como dela fazemos uso, inclusive de termos
com cunho metafísico. Busca a compreensão de seus usos analisando os jogos de
linguagem e as semelhanças apresentadas por estes. Nesse sentido, não há essência da
linguagem. A relação entre linguagem e mundo passa a ser uma ilusão gramatical. Estas
relações, definidas arbitrariamente, acarretarão seu uso fora de contextos apropriados,
criando assim o falso problema da representação.
De fato, a variedade de sua obra expõe duas filosofias distintas criadas no espaço
de uma vida. Sua originalidade consiste em, apesar de assumir a importância e,
portanto, a existência de princípios metafísicos –, negar uma possibilidade de análise
destes mesmos princípios, dominantes até então. Em segundo lugar, em sua obra da
maturidade, negar a existência destes princípios, tratando-os como mera confusão
50
gramatical, ocasionada pelos limites de uma linguagem representacional, os quais,
portanto, não existiriam e só poderiam ser pensados como falso problema.
Estes desdobramentos de sua obra, tanto pela influência que exercem sobre
Rorty – nosso próximo autor – quanto pelas possíveis revisões que podem acarretar para
um modelo educacional, devem ser elucidadas a seguir.
3.2.2 – O ‗primeiro‘ Wittgenstein: linguagem, lógica e metafísica – a inviabilidade
representacional da mente
O Tractatus Logico Philosophicus foi a primeira obra publicada por Ludwig
Wittgenstein e uma das únicas publicadas em vida. Escrito durante a primeira guerra
mundial, o livro é composto por uma série de aforismos nos quais o autor entabula
muitos dos principais problemas investigados pela filosofia. Problemas relativos à
lógica, ontologia, linguagem, epistemologia, ética e metafísica são abordados de modo
nem sempre inteligível, oferecendo ampla margem para suas interpretações,
especialmente quando comparado ao segundo momento do autor em suas Investigações
Filosóficas. De imediato, em sua apresentação, o autor afirma que ‗o livro trata de
problemas filosóficos e mostra... que a formulação desses problemas repousa sobre o
mau entendimento da lógica de nossa linguagem‘. E então apresenta o projeto geral de
sua filosofia inicial: ‗Poder-se-ia talvez apanhar todo o sentido do livro com estas
palavras: o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que
não se pode falar, deve-se calar‘.
A proposta inicial da filosofia apresentada no Tractatus confere uma dimensão
ontológica abordada a partir da visão de mundo que Wittgenstein acredita ser possível
explorar e alcançar. Neste sentido, somada a dimensão ontológica, ainda no primeiro
agrupamento de aforismos que constituem a obra, o autor delimita que esta parte do
mundo que pode ser alcançada só poderá sê-lo através do uso da lógica e de um
entendimento de como esta poderá ser aplicada pela linguagem. Retomando brevemente
o prefácio de sua obra, Wittgenstein afirma que seu livro pretende traçar um limite para
a expressão dos pensamentos. Este limite só poderia ser traçado pela linguagem, e tudo
aquilo que estiver além deste limite será contrassenso. Pode-se observar, já neste
primeiro momento, a relação estabelecida pelo autor entre as dimensões ontológicas e
metafísicas, dado que ele procura assegurar a possibilidade de pensar sobre os dois
lados desse limite, ou seja, que se possa pensar sobre aquilo que não pode ser pensado.
51
Com esta abordagem dos problemas, Wittgenstein espera ter resolvido de vez os
problemas da filosofia de forma intocável e definitiva. Busca ainda demonstrar como
importa pouco resolver esses problemas. Neste caso, parece possível afirmar que, se há
uma dimensão pela qual estes problemas podem ser tratados, esta só pode ser pelo viés
da linguagem. O método, por assim dizer, pelo qual essa abordagem se torna possível é
a lógica. O resumo da proposição fundamental da obra pode ser bem-entendido na
apresentação que Santos (2010) faz:
O cerne do trabalho crítico do Tractatus é a reflexão lógica sobre
o alcance representativo da linguagem (e, portanto, do
pensamento). A crítica epistemológica das faculdades subjetivas
do conhecimento cede lugar a uma crítica lógica que, apoiada
numa caracterização de forma essencial da proposição que
pretende fazer total abstração da natureza do sujeito que
representa, ocupa-se unicamente da determinação das condições
objetivas de instituição de uma relação de representação entre um
símbolo proposicional e algo mais.
Assim, uma abordagem ontológica iniciada pela visão de mundo, proposta por
Wittgenstein nos primeiros aforismos de sua obra, poderá ser abordada apenas de modo
limitado por aquilo que é possível conhecer, uma espécie de limitação epistemológica
para a ontologia.
O curioso é notar, desde o princípio, que Wittgenstein procura garantir a
probabilidade de se ‗pensar sobre o que não pode ser pensado‘, não negando assim sua
existência, mas simplesmente a possibilidade de sua abordagem pelos termos lógicos e
limitados da linguagem.
Algumas de suas observações iniciais merecem destaque para que se possa
relacioná-las às limitações impostas para uma análise da metafísica, bem como para
permitir uma comparação entre estas e as dimensões de análise da mente – e seus
limites – propostas neste trabalho. Ressalta-se, neste momento que, a organização dos
aforismos35
seguirá rigorosamente aquela elaborada por Wittgenstein para descortinar
seu trabalho. Alguns dos aforismos apresentados serão suprimidos parcialmente, com a
finalidade de enfatizar as relações entre os elementos que aqui se pretende mostrar: 1. O
35
Os decimais que numeram as proposições destacadas indicam o peso lógico dessas proposições, a
importância que tem em minha exposição. As proposições n.1, n.2, n. 3, etc. são observações relativas à
proposição nº n; as proposições n.m.1, n.m.2, etc. são observações relativas à proposição nº n.m; e assim
por diante. (Wittgenstein, Tractatus Logico Philosophicus)
52
mundo é tudo o que é o caso; 1.1. O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas.
Neste primeiro momento, uma pequena intervenção se faz necessária, pois ‗coisas‘
parecem não poder existir isoladamente, uma ‗coisa‘ não pode, por si só, fazer parte do
mundo. 1.12. Pois a totalidade dos fatos determina o que é o caso e também tudo o que
não é o caso; 1.13. Os fatos no espaço lógico são o mundo.
Neste primeiro conjunto em que revela a dimensão ontológica, Wittgenstein
parece especificar até onde é possível conceber o alcance do mundo e estabelece os
limites iniciais para conhecê-lo. Introduz ainda a forma que utilizará para permitir este
conhecimento, uma vez que o mundo é reduzido aos fatos no espaço lógico. Esta
introdução permitirá a compreensão dos limites de se conceber algo – o que quer que
seja e talvez em especial aquilo o que compõe o plano metafísico – fora de seu eixo de
relações. Continua: 2. O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas; 2.01. O
estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas) – ratificando a afirmação relacional
feita anteriormente –; 2.011. É essencial para a coisa poder ser parte constituinte de um
estado de coisas; 2.0121. Assim como não podemos de modo algum pensar em objetos
espaciais fora do espaço, em objetos temporais fora do tempo, também não podemos
pensar em nenhum objeto fora da sua possibilidade de ligação com os outros
(suprimido). Eis um novo caso que merece intervenção, de acordo com os propósitos
aqui abordados: posto isso, o autor parece começar cada vez mais a inviabilizar que se
fale daquilo que não pode ser localizado no tempo e no espaço e parece pertinente supor
que a mente – entidade metafísica por excelência – faz parte deste escopo.
A solução encontrada pelo filósofo austríaco para poder falar sobre aquilo que
não se deve – criando assim seu próprio paradoxo – nos remete a sua abordagem lógica
da linguagem. Ressalta-se no entanto que, como o objetivo primordial deste trabalho
está relacionado com a desconstrução da mente – da qual supomos que a filosofia
wittgensteiniana faz parte –, em função dos possíveis problemas gerados por este
conceito para a área da educação, a abordagem da temática referente à lógica e à
linguagem em Wittgenstein será breve, sendo explanada apenas de modo a permitir uma
hipótese acerca de suas teorias que coadunam com a visão antimentalista empregada
nesta seção.
Em sua abordagem lógica da linguagem, Wittgenstein postará a proposição
como seu eixo principal. Assim, a teoria da linguagem apresentada no Tractatus se
baseia em dois aspectos fundamentais da proposição: 1 – a teoria da figuração; 2 – a
53
teoria da função da verdade. Estas são as duas teorias que procuram responder às
questões relacionadas com a função e com a estrutura da linguagem.
A teoria da figuração das proposições será delimitada no aforismo 4.01 do
Tractatus: ―A proposição é uma figuração da realidade. Uma proposição é um modelo
de realidade tal qual pensamos‖. Neste sentido, a função essencial da linguagem é a de
representar ou descrever o mundo. Isso permitirá que a linguagem que represente o
mundo seja a lógica. Wittgenstein acreditava na existência de uma ordem a priori do
mundo e também da linguagem, sendo este o fator em comum entre estas partes que fará
com que o autor busque esta ligação representativa.
Uma proposição como modelo de realidade deverá possuir, desse modo, tantos
componentes quantos existirem na realidade figurados por ela. Os elementos que
compõem uma proposição se correlacionam com os elementos que compõem a
realidade figurada por ela, estabelecendo assim uma relação biunívoca entre as partes.
Assim, proposições e realidade trarão, cada uma em si, elementos que poderão ser
combinados para a representação.
Os elementos simples que preenchem as proposições são chamados por
Wittgenstein de ‗nomes‘. Estes nomes representam os objetos, que são, por sua vez, os
elementos simples da realidade. Dessa forma, o objeto constitui a denotação de um
nome. Este nome, por si só, não possui nenhum sentido para Wittgenstein. Seus sentidos
só poderão ser encontrados quando os elementos forem combinados, como sugere a
perspectiva 1.13. ‗os fatos no espaço lógico são o mundo‘ (Tract.), quando relacionada
com o aforismo 2.01. ‗o estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas)‘.
A compreensão da teoria da figuração das proposições é bem resumida por
Condé (1998):
A soma dos estados de coisas subsistente (isto é, estados de
coisas formados pela combinação de objetos – Fatos) e dos
estados de coisas possíveis (isto é, daqueles que não subsistem,
mas podem vir a existir devido à possibilidade de combinação dos
objetos) constitui o espaço lógico (Tract. 1.12, 1.13, 3.42).
(Itálicos no texto original do autor).
Portanto, aquilo que pode existir e ser representado. A totalidade do espaço lógico
trazida pelas proposições é que permite que estas se relacionem funcionalmente com
outras, estabelecendo assim os limites daquilo que pode ser pensado, ou melhor, daquilo
que pode ser expresso na forma de pensamento.
54
Vincula-se a teoria da função das proposições com a teoria da função de valores
da verdade. Esta última consiste basicamente na concepção exposta no aforismo 5 do
Tractatus, que afirma que toda ‗a proposição é uma função de verdade das proposições
elementares. (A proposição elementar é uma função de verdade de si mesma). A
explicação continua no aforismo seguinte: 5.01 As proposições elementares são os
argumentos de verdade da proposição. A proposição elementar pode ser definida como
aquela que mostra seu sentido imediatamente. Deve-se notar, no entanto, que a ordem
elementar de uma proposição não é suficiente para exprimi-la como verdadeira ou falsa.
Este processo que atribui status a proposição nada mais é do que o estabelecimento da
verificação. Se a proposição é verdadeira, o estado de coisas subexiste; se é falsa, o fato
não subexiste.
Como se tem dito desde o início desta explanação, as proposições estabelecem
os limites da representação do pensamento. Proposições representam os estados de
coisas. Os critérios de verificabilidade acerca da veracidade ou falsidade de uma
proposição dependem do modo como esta representa aquilo que é real e não aquilo que
é possível. Proposições complexas, desse modo, serão as funções de verdade de
proposições elementares. Na teoria de função de valores de verdade, dois casos
extremos serão encontrados36
: 1) tautologia – quando é verdadeira para todas as
possibilidades de verdade das proposições elementares; 2) contradição – quando é falsa
para todas as possibilidades de verdade.
É certo que este esboço não esgota a complexa análise de lógica e linguagem
apresentada por Wittgenstein. Na verdade, nem mesmo exaure as modificações feitas
em sua teoria da linguagem, com alterações significativas em sua obra da maturidade, as
suas Investigações Filosóficas, que abordaremos em outra passagem. Apenas uma breve
retomada daquilo que foi apresentado até aqui acerca da obra do filósofo austríaco com
aqueles que constituem o objetivo deste trabalho: uma análise das possibilidades e
limites da ontologia da mente, especialmente naquilo que diz respeito à educação.
Na primeira seção deste trabalho, preocupei-me em fazer breve introdução à
história da mente, em especial situando os problemas acarretados pela dimensão
ontológica e metafísica proposta pelo filósofo francês Renée Descartes (1596-1650) em
seu livro Discurso sobre o método (1637/2006). Nesta obra, Descartes apresenta aquele
36
Para mais detalhes acerca das relações entre proposições verdadeiras ou falsas pode-se consultar o
aforismo 5.101 do Tractatus Logico Philosophicus, no qual Wittgenstein apresenta a ‗tabela de valores de
verdade‘.
55
que talvez possa ser classificado aqui como seu aforismo mais famoso: ―(Eu) Penso,
logo existo‖. Esta expressão – talvez das mais influentes de toda a história do
conhecimento – pode ser entendida em um primeiro momento como uma espécie de
proposição elementar, no sentido wittgensteiniano. No entanto, uma análise mais
acurada a situará com dimensões complexas, à medida que parece perfeitamente
possível afirmá-las como uma combinação de duas proposições elementares. Apenas
retomando: uma proposição elementar é aquela que mostra seu sentido imediatamente.
Ao afirmar ‗(Eu) Penso‘, Descartes parece criar uma proposição simples, no sentido
tractatiano: ‗a proposição mais simples, a proposição elementar, afirma a subsistência
de um estado de coisas‘ (Tract. 4.21). A mesma análise, recorrendo ao mesmo
argumento pode ser pensada sobre sua conclusão: ‗(...) logo existo‘. No entanto, o ponto
em que aqui se pretende chegar apresenta, ainda na primeira filosofia de Wittgenstein,
uma inviabilidade do argumento lógico da máxima cartesiana. Os argumentos ‗penso‘ e
‗existo‘ são tautológicos. Ora, a proposição irrefutável de Descartes, ao não permitir
contradições, não poderá ser estabelecida como uma proposição genuína, uma vez que
não figura a realidade (Tract. 5.143). Mais ainda: uma tautologia, apesar de mostrar as
propriedades lógicas e formais da linguagem e do mundo – se Descartes afirmava sua
condição de pensante, quem poderia refutá-lo? – não expressa um pensamento, como
afirma Wittgenstein em seu aforismo 6.11 do Tractatus: As proposições da lógica,
portanto, não dizem nada.
Desse modo, o único argumento favorável ao ‗pensar‘ cartesiano seria ele
mesmo. Nada mais. A validade da experiência ontológica de Descartes poderá ser
questionada pelas possibilidades e limites de sua representação da realidade. ‗Isso lança
luz sobre a questão de por que as proposições lógicas não podem ser confirmadas pela
experiência, tanto quanto não podem ser refutadas pela experiência. Não só deve uma
proposição da lógica não admitir refutação por nenhuma experiência possível, como
tampouco pode admitir confirmação por uma tal experiência‘ (Tract. 6.1222).
De certo modo, o que a filosofia wittgensteiniana passa a representar em relação
ao modelo cartesiano pode ser bem representado pelas palavras de Hacker (1997/2000):
A psicologia filosófica de Wittgenstein subverteu as tradições
cartesianas, empirista e behaviorista37
. No lugar da res cogitans
37
Breve ressalva aqui se faz necessária: Hacker não especifica o modelo behaviorista a que se refere.
Parece improvável que se refira ao behaviorismo lógico presente em G. Ryle, especialmente pela
familiaridade deste com a proposta wittgensteiniana. É possível que se refira ao modelo Behaviorista
56
cartesiana (uma substância espiritual que é portadora das
propriedades psicológicas), Wittgenstein pôs o ser humano – uma
unidade psicofísica, e não uma anima ligada a um corpo –, uma
criatura viva no fluxo de vida. São seres humanos, e não mentes,
que percebem e pensam, desejam e agem, sentem alegria ou
tristeza. Em contraste com as concepções cartesiana e empirista
do âmbito mental como um reino interno de experiências
subjetivas contingentemente conectadas ao comportamento
corporal, Wittgenstein concebeu-o como essencialmente
manifesto nas formas do comportamento humano que dão
expressão ao ―interno‖.
Este trecho compõe um argumento que talvez seja compreendido por alguns dos
comentadores da obra wittgensteiniana como presente somente no ‗segundo‘
Wittgenstein, ou seja, aquele que expressa suas ideias da maturidade em seu livro
Investigações Filosóficas. No entanto, o argumento no qual pretendi investir até aqui
encarta a ideia destas concepções antimentalistas presentes já no Tractatus. A diferença
se estabelece por um elemento de aceitação – é explícito em Wittgenstein seu interesse
pela metafísica e ontologia no Tractatus, desde o argumento inicial em que insere sua
visão de mundo, até o final, interpretado por alguns como constituído por vieses
místicos – por um lado e por outro, de uma inviabilidade de análise daquilo que está
para além dos fatos do mundo, que é tudo o que é o caso. Dessa forma ‗sobre aquilo de
que não se pode falar, deve-se calar‘ (Tract. 7). Poderia ser esta uma afirmação atinente
aos princípios metafísicos? Neste caso, poderia se referir aos chamados ‗eventos
mentais‘? Esta é uma aposta feita neste trabalho. É certo que não é conclusiva e que sua
interpretação pode suscitar discordâncias.
De qualquer forma, parece necessário esclarecer que as interpretações acerca da
primeira obra de Wittgenstein, apesar da ampla margem de seus estudos38
, não chegou a
uma homogeneidade em sua compreensão. De acordo com Marques (2005), vários
especialistas na filosofia wittgensteiniana consideram equivocada a atribuição de duas
como apresentado no início do século XX, com a manifestação de John Watson no ano de 1913,
conhecida pelo seu artigo ‗A psicologia tal qual um behaviorista a vê‘, onde o apontamento de Hacker
talvez faça algum sentido. De todo modo, esclarece-se desde já que o modelo behaviorista que será aqui
trabalhado não corresponde a esta observação feita pelo autor, no entanto seu comentário foi mantido na
íntegra para não afetar o sentido pretendido pelo autor. 38
Conté afirma em seu livro Wittgenstein: linguagem e mundo, que o Tractatus já possui uma explanação
‗bastante satisfatória‘.
57
filosofias distintas a Wittgenstein. Assim, enquanto alguns de seus comentadores
sustentam que as diferenças presentes nas concepções defendidas entre o primeiro e o
segundo períodos são superficiais – e neste caso sugerem uma unidade profunda no
pensamento do filósofo austríaco –, outros julgam empobrecedora a compreensão de sua
filosofia tomando por base apenas suas duas principais obras, pois acreditam que seu
período intermediário é fundamental para uma análise mais profunda e acurada das
transformações existentes entre uma obra e outra. Em resumo, argumenta o autor:
enquanto alguns defendem apenas uma filosofia wittgensteiniana, outros compreendem
que esta deve ser compreendida em três conjuntos de concepções relativamente
autônomas – o primeiro período com o Tractatus; o segundo pelo período
intermediário; e finalmente as Investigações Filosóficas.
Esclarecidos alguns pontos que estabelecem os limites que este trabalho pode
alcançar acerca da análise da filosofia wittgensteiniana, torna-se pertinente seguir na
direção da análise de seu segundo momento, no qual Wittgenstein não apenas aponta a
impossibilidade de análise das entidades metafísicas, mas parece mesmo se
desinteressar por estas: ‗Uma vez que tudo se encontra em aberto, não há também nada
para esclarecer. Pois, o que porventura está oculto, não nos interessa‘. (Investigações
Filosóficas 126).
3.2.3 – O ‗segundo‘ Wittgenstein: significado como uso – a mente desnecessária
Já foi dito em passagem anterior que Wittgenstein acredita que as propostas por
ele apresentadas em suas Investigações Filosóficas39
visam iluminar os pensamentos em
outro período publicados no Tractatus, de modo a torná-los mais retos. Sua revisão, de
acordo com o prefácio, deve-se não apenas ao fato de buscar esclarecer seus
pensamentos, mas também em função do modo como vinha tendo de experimentar os
resultados de seu trabalho anterior de forma malcompreendida, trivializada ou ainda
mutilada. Portanto, os pensamentos apresentados em sua nova obra deveriam receber a
referida ‗reta iluminação‘ somente pelo confronto com seus pensamentos mais antigos.
Parece possível afirmar que as revisões elaboradas por Wittgenstein se iniciam já
na delimitação dos objetivos da obra, pois, se as perguntas fundamentais presentes no
Tractatus diziam respeito à estrutura da linguagem ou ainda à sua essência, nas
39
A partir deste ponto, todas as vezes que se fizer referência a algum trecho desta obra ela virá
acompanhada pela abreviação de suas iniciais (I. F) e do número da afirmação utilizada pelo autor.
58
Investigações Filosóficas passa a se dirigir especialmente para um entendimento sobre
como a linguagem funciona. A mudança de postura remete, então, de um movimento
essencialista e semântica para um predominantemente pragmatista40
. Um elemento que
caracterizará fortemente a distinção entre estes fatores se encontra na desconstrução de
uma concepção de linguagem a priori – não confundir com os termos de veracidade de
uma proposição, que só podem ser estabelecidos a posteriori – e, portanto, estrutural e
universal para uma perspectiva pluralista, contemplando enorme variedade de usos
possíveis para esta.
É exatamente o fator pluralista que fará com que Wittgenstein passe a
contemplar mais o uso do que a estrutura da linguagem. Nesse sentido, sua análise
passa a explorar os diferentes contextos nos quais ela é empregada e o modo como pode
obter diferentes sentidos ou significações em função deste fator. De acordo com o autor:
‗Para uma grande classe de casos – mesmo que não para todos – de utilização da palavra
―significado‖, pode-se explicar a palavra do seguinte modo: o significado da palavra é
seu uso na linguagem‘ (I.F – 43).
Compreender adequadamente a proposta – o que permitirá o entendimento das
ilusões gramaticais e consequentemente os equívocos da linguagem metafísica – exige
que se debruce, mesmo que brevemente, sobre os conceitos de uso e de jogos de
linguagem como apresentados na obra.
De acordo com Condé (1998), o conceito de uso, do modo como desenvolvido
nas Investigações ultrapassa o mero uso de palavras, transpondo-se para gestos e
contextos. O autor recorre ainda à citação de Hallet41
, que parece uma síntese adequada
da amplitude do conceito. Afirma:
(...) ―uso‖ na definição das Investigações refere-se a um contexto
excessivamente mais amplo do que um contexto verbal. A visão
de Wittgenstein ampliou-se para incluir uma dimensão totalmente
nova. Agora ele viu a linguagem não meramente enquanto parte
de um organismo humano individual (Tract. 4002), mas como
uma ―forma de vida‖ tecida no todo da textura das relações
40 Para um maior esclarecimento acerca das apropriações pragmatistas da obra de Wittgenstein sugere-se
a consulta do texto: Prado Júnior, B. Algumas Observações sobre as Vermischte Bermerkungen. Dois
pontos. Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p. 11-36, abril, 2006. 41
A referência completa é: Hallet, G. Wittgenstein’s Definition of Meaning as Use. New York: Fordam
University Press. 1967.
59
sociais (I. F. 23) e pertencem à história de nossa natureza, assim
como andar, comer, beber, jogar (I. F. 25).
Pelo menos uma observação em relação ao comentário feito por Hallet é importante
para o propósito deste trabalho: ao identificar que o conceito de uso permite que se
contemple a linguagem não mais como ‗parte de um organismo individual‘, uma parcela
do mental pode ser aqui dissolvida. O rompimento com ‗partes‘ pode então significar
uma forma de não adesão ao dualismo. No entanto, uma advertência em relação ao
mesmo trecho – que talvez não desfaça plenamente o problema substancialista – é
necessária: ao conceber a linguagem como uma ‗forma de vida‘, ela estaria ganhando
vida própria? Esta é uma questão que será retomada em novo passo, quando os modelos
antimentalistas forem comparados. Por ora, recuperemos os objetivos da seção com os
conceitos de uso e jogos de linguagem como propostos por Wittgenstein.
A mudança no conceito de uso, além de propiciar a alteração essencialista e uma
aproximação pragmatista em relação à linguagem, passa a repudiar, portanto, a
possibilidade de uma representação ontológica à significação. Este é fator importante,
visto que passa a descaracterizar os termos mentais com significados ontológicos,
constituindo-se assim em um elemento primordial para o rompimento com a mente
cartesiana. De modo ainda mais amplo, Wittgenstein parece promover um rompimento,
através da crítica, a toda atividade filosófica: ‗Quando os filósofos usam uma palavra –
―saber‖, ―ser‖, ―objeto‖, ―eu‖, ―proposição‖, ―nome‖ – e almejam apreender a essência
da coisa, devem sempre se perguntar: esta palavra é realmente sempre usada assim na
linguagem na qual tem o seu torrão natal?‘ (I. F. 116). Desse modo, a pergunta acerca
do significado de uma palavra jamais poderia preceder o conhecimento do contexto no
qual ela foi formulada. Essa combinação é estabelecida por seu uso.
O uso, propriamente dito, passa a ter, como uma espécie de pano de fundo, os
jogos de linguagem. Estes, por sua vez, encontram sua sustentação nos diferentes
contextos de vida. Destaca-se, novamente, a constante pluralidade dos fatos, impedindo
a visão essencialista concebida em sua obra anterior. A amplitude dos jogos de
linguagem não possui, por sua vez, função normativa ou reguladora. Desse modo,
afirmará Wittgenstein: ‗Nossos jogos de linguagem claros e simples não são estudos
preparatórios para uma regulamentação futura da linguagem – não são, por assim dizer,
aproximações preliminares, sem levar em conta o atrito e a resistência do ar. Os jogos
de linguagem estão aí muito mais como objetos de comparação, os quais, por
semelhança e dissemelhança, devem lançar luz nas relações de nossa linguagem‘. (I. F.
60
130). Nesse ponto, deve ficar atestada a dinamicidade presente nos jogos de linguagem,
pois estes não visam à construção de uma linguagem ideal e universal, os jogos são, por
si sós, a expressão de uma nova forma de combinação e arranjos gramaticais que em seu
uso cotidiano instauram uma nova concepção de linguagem.
Resumindo: o contexto estabelece a ocasião em que diferentes jogos de
linguagem ocorrem. Seu surgimento, no entanto, não se encontra completamente
desprovido de quaisquer tipos de regras. Estas regras, adverte Wittgenstein, não terão
um funcionamento tão regular quanto, por exemplo, as regras de um jogo de xadrez. ‗O
fato fundamental é aqui: fixamos regras, uma técnica, para um jogo, e então, ao
seguirmos as regras, as coisas não funcionam tão bem como havíamos suposto;
portanto, nós não nos enleamos, por assim dizer, em nossas próprias regras‘ (I. F. 125).
Há, portanto, uma condição de regra estabelecida, sem que estas estabeleçam uma
forma rígida e essencial da linguagem. Os jogos de linguagem possuem regras comuns,
assim como diferentes tipos de jogos as possuem. Estas regras comuns serão chamadas
por Wittgenstein de semelhanças de família. Estas semelhanças atestam algum grau de
parentesco entre as formas e usos da linguagem, sem ser possível, no entanto, que se
estabeleça uma forma universal de uso.
Não há, portanto, uma única gramática possível como compreende Wittgenstein
nas Investigações. Deve-se pensar ao menos em duas gramáticas: a gramática
superficial – aquela tipicamente desenvolvida e utilizada pelos linguistas, com regras
formais e usos específicos; e a gramática profunda – que aborda diferentes tipos e usos
das expressões. Esta última é tida por Wittgenstein como mais importante. Aqui reside o
elemento que permitirá ao autor começar a indagar sobre a possibilidade de uma
representação metafísica do mundo:
Uma das principais fontes de nossa falta de compreensão é que
não dominamos com uma clara visão o uso de nossas palavras.
Falta à nossa gramática uma disposição clara. Uma exposição de
conjunto transmite a compreensão, que consiste exatamente em
―ver conexões‖. Daí a importância de se achar e de se inventar
conectivos.
O conceito de exposição de conjunto tem para nós um significado
fundamental. Ele designa nossa forma de exposição, a maneira de
vermos as coisas. (É isto uma ―visão de mundo‖?) (I. F. 122).
61
A análise feita por Condé (1998) elucida de modo preciso as transformações
ocorridas na relação entre linguagem e mundo nas Investigações Filosóficas. De acordo
com este autor, Wittgenstein desmonta o postulado metafísico tractatiano. Nesse
sentido, a linguagem não poderá ser filosoficamente fundamentada. Qualquer busca por
um fundamento ou essência será frustrada, porquanto serão encontradas apenas ilusões
que enfeitiçam nosso entendimento. Não há essências ocultas que sirvam de
fundamento ontológico. Tais essências são ilusões, são sombras projetadas pela
gramática. Destituída de fundamento ontológico, resta à linguagem sua função
descritiva.
São diversos os trechos presentes nas Investigações nos quais Wittgenstein
aponta a inviabilidade do projeto metafísico da linguagem, seus desafios e mesmo as
mudanças de rumo que nos acarretam ao tentarmos garanti-lo. ‗É como se tivéssemos de
penetrar os fenômenos: mas nossa investigação não se dirige aos fenômenos, e sim,
como poderia dizer, às ―possibilidades‖ dos fenômenos. Isto quer dizer que meditamos
sobre a espécie de asserções que fazemos sobre os fenômenos‘. (I. F. 90). ‗A tendência
de supor um ser intermediário puro entre o signo proposicional e os fatos‘. (I. F. 94).
Esta suposição parece se referir, de imediato, a qualquer agente mediador que atue no
contexto do uso, dificultando, desse modo, que se olhe para a relação direta existente
em busca do ser intermediário. O ponto se torna evidente no parágrafo 110 das I. F.: ―A
linguagem (ou o pensar) é algo singular‖ – isto se revela como uma superstição (não um
erro!), provocada ela mesma por ilusões gramaticais. Ainda no parágrafo seguinte,
Wittgenstein alertará para o modo como essa má interpretação da linguagem acarretará
um problema de ‗profundidade‘ – tão comum a áreas como a psicologia e a educação.
Deste ponto em diante, o autor austríaco oferece grande número de análises
acerca de termos psicológicos de caráter metafísico, alguns destes muito diretamente
relacionados com a educação para que passem despercebidos por um trabalho que
aborda essa temática. Este não é um fator surpreendente, tendo em vista o envolvimento
de Wittgenstein com a educação por toda a sua vida, inclusive a de crianças entre os
anos de 1921 e 1926. Em seu parágrafo 153 das Investigações Filosóficas, um exemplo
que talvez devesse constar em qualquer livro de pedagogia ou ainda de psicologia
educacional:
Estamos tentando apreender agora o processo psíquico da
compreensão que, ao que parece, esconde-se por detrás daqueles
fenômenos concomitantes mais rudimentares e que por isso nos
62
chamam a atenção. Mas isto não dá resultado. Ou dizendo mais
corretamente: não se chega, absolutamente, a uma tentativa real.
Pois, mesmo supondo que eu tenha encontrado algo que ocorrera
em todos aqueles casos de compreensão –, por que isto deveria
ser a compreensão? Sim, como é que o processo de compreensão
pode estar escondido, se eu de fato disse ―Agora compreendo‖,
porque compreendi?! E se digo que ele está escondido, como sei,
pois, o que tenho que procurar. Estou confuso.
Seu argumento explicativo e também mais elucidativo surgirá no parágrafo seguinte:
Tente uma vez não pensar na compreensão como ‗processo psíquico‘! – É que este é o
modo de falar que confunde. Mas pergunte-se: em que caso, em que circunstâncias,
dizemos ―agora sei continuar?‖ quero dizer, quando a fórmula me ocorreu. No sentido
em que há para a compreensão processos característicos (também processos psíquicos),
a compreensão não é um processo psíquico. (I. F. 154).
Ao seguirmos essa perspectiva, termos comumente utilizados no contexto
educacional seriam completamente destituídos de significados: compreender, raciocinar,
refletir, criar, elaborar, enfim, a lista seria realmente extensa. A educação revestida de
ontologia poderia ser repensada, e nesse sentido, as ilusões gramaticais poderiam ser
repensadas para uma dimensão que não tenha pretensões transcendentais. De acordo
com Wittgenstein, ‗nosso erro está em buscarmos uma explicação lá onde deveríamos
ver os fatos como ―fenômenos originários‖. Isto é, onde deveríamos dizer: joga-se este
jogo de linguagem‘. (I. F. 654). O jogo de linguagem é seu uso no contexto. O
significado é refletido em seu uso. Nessa relação, encontram-se as formas de vida. Não
há espaço para os agentes intermediários. A mente se torna desnecessária.
A desconstrução continuará nas seções seguintes, exibida por outros autores e
ganhando contornos cada vez mais incisivos. A sequência abordará a filosofia
pragmática de Richard Rorty.
63
3.3 – Richard Rorty: do materialismo eliminativo à impossibilidade representacional –
contribuições para a educação.
O filósofo norte-americano Richard Rorty nasceu em outubro de 1931, em Nova
Iorque. Sua biografia, apresentada pela The Stanford Encyclopedia of Philosophy42
,
narra a descrição feita pelo próprio autor em sua obra43
, na qual relata ter crescido ‗na
esquerda reformista e anticomunista do meio do século‘, em um círculo que combinava
antistalinismo com ativismo social esquerdista. Rorty destaca ainda, no mesmo texto,
algumas de suas influências da juventude – que deve ser levada em consideração
especial nesse caso, pois o filósofo americano ingressou em seu curso de graduação
quando tinha apenas quinze anos de idade. De acordo com ele, naquele círculo, o
patriotismo americano, economia redistribucionista, anticomunismo e pragmatismo
deweyano se relacionavam facilmente.
Rorty ingressa no departamento de filosofia da Universidade de Chicago no ano
de 1946, mesma universidade em que concluiu seu mestrado em 1952. Deste momento
até o ano de 1956, Rorty esteve na Universidade de Yale onde se doutorou com a tese
The Concept of Potentiality, orientado por Paul Weiss. Iniciou sua vida acadêmica
trabalhando em Wellesley College, em 1961. Três anos mais tarde, muda-se para
Princeton University, onde permaneceria até o ano de 1982. Sua mudança agora é para a
Universidade da Virginia, aí permanecendo como professor na área de Humanidades.
No ano de 1998, Rorty aceita uma indicação para o departamento de Literatura
Comparativa na Stanford University, onde permanece até sua morte no ano de 2007.
Rorty era descrito por alguns de seus colegas44
como pragmatista liberal crítico,
antiessencialista libertário, dialógico e democrático. Aliás, uma posição libertária e
antidogmática parece ter sido uma das principais características do filósofo norte-
americano. Filho único, Rorty aprende a valorizar com seus pais, trotskistas e
sindicalistas, o movimento dos trabalhadores. Sempre devotado aos livros e
comprometido com o rigor acadêmico, o filósofo mantinha o hábito de enviar dezenas
42
Texto elaborado por Bjorn Hamberg e disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://plato.stanford.edu/entries/rorty/ acessado no dia 24 de julho de 2011. 43
A referida obra é Achieving our Country (1998). 44
As observações feitas neste trecho se referem à coluna de Luiz Eduardo Soares – antropólogo e
cientista político, professor da UERJ, que teve a oportunidade de estudar junto com Rorty entre os anos
de 1995/1996 –, em artigo intitulado O pensamento de Richard Rorty e seu exemplo de vida – elaborado
como forma de homenagem à memória do filósofo norte americano, publicado no ano de 2007, na
ocasião de sua morte. Disponível no seguinte endereço eletrônico e acessado no dia 19-07-2011:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=8775&cod_canal=55
64
de livros aos amigos pobres da Europa do Leste e da África. Recusava-se também a
receber qualquer tipo de pagamento quando proferia palestras em países pobres,
repassando aquilo que lhe pagavam para instituições daqueles países, quando sua recusa
não era aceita.
Sempre com posições contrárias a qualquer forma de autoritarismo e
dogmatismo, Rorty recusava os rótulos, especialmente os de pós-moderno ou relativista,
preferindo sempre identificar-se com o pragmatismo norte-americano herdado de
Charles Pierce (1839-1914) e John Dewey (1859-1952). O filósofo norte-americano, em
um dos eixos principais de sua filosofia empreende uma tentativa de mostrar como a
cultura intelectual se pareceria caso conseguisse se libertar das metáforas que regem o
conhecimento, nas quais os problemas tradicionais da epistemologia e da metafísica
estão enraizados. Nesse sentido, a principal crítica de Rorty é a noção de conhecimento
como representação, como espelhamento mental de um mundo externo à mente. Essa
crítica é o objetivo central de sua obra mais conhecida – A Filosofia e o Espelho da
Natureza (1979) – e também o argumento que faz do filósofo norte-americano figura
tão importante para o presente trabalho.
3.3.1 – O problema mente-corpo na filosofia de Rorty
Rorty dedica uma seção inteira de sua já referida obra de 1979 à resolução do
problema mente-corpo. Seu objetivo principal, ao longo de toda a seção, é a
desconstrução de um conjunto inteiro de termos e suposições centradas na imagem da
mente como espelhando a natureza, que conspiram para dar sentido à afirmação
cartesiana de que a mente pode ser naturalmente ‗dada‘ a si mesma e, portanto,
perfeitamente cognoscível.
A analogia que ele busca para uma explicação das dimensões dos problemas é de
um conflito entre teístas inspirados e ateus não inspirados. Em sua comparação, Rorty
situa os teístas inspirados como aqueles que ‗simplesmente sabem‘ da existência de
seres sobrenaturais que desempenham papéis explicativos na consideração de
fenômenos naturais. Estes encontram em sua herança uma imagem do universo dividido
em dois grandes reinos ontológicos – o sobrenatural e o natural –, além de sua
linguagem, obviamente. Esta, de sua vez, encontra-se intimamente ligada às dimensões
do divino. Aqui começa a analogia de Rorty em sua afirmação sobre os teístas
inspirados: A noção de sobrenatural não lhes parece uma ―teoria‖ mais do que a noção
65
de mental nos parece uma ―teoria‖. O papel atribuído por ele aos ateus não inspirados
nesta comparação é aquele em que estas pessoas não saberiam o que está acontecendo,
embora apresentem capacidade para controlar fenômenos naturais. Por sua vez, os ateus
encarariam os teístas como possuidores de palavras demasiadas em seu vocabulário e,
consequentemente, significados demais com o que se preocupar. Rorty torna a relação
explícita com a comparação elaborada no trecho que segue: ‗O jogo dos teístas é
essencial à sua autoimagem, assim como a imagem da Essência Especular do homem é
essencial para o intelectual ocidental, mas nenhum deles tem disponível um contexto
mais amplo em que avaliar essa imagem.‘ Eis o espaço ocupado pela filosofia, pois,
diante da falha de significados, os filósofos tipicamente se voltariam para a construção
de sistemas, ou seja, inventariam um novo contexto do qual a mente – assim como o
Deus teísta – faria parte.
Para propor esta analogia, Rorty recorre às sensações cruas e aos limites e
possibilidades de conhecê-las tal como nos tomam, assim como para o modo como estas
podem ser relatadas. Em seu argumento, para que as sensações cruas possam retratar a
realidade, é essencial que estas sejam incorrigivelmente cognoscíveis. No entanto, para
que algo possa ser incorrigivelmente cognoscível, é preciso legitimar a hipótese de que
algumas coisas sejam passíveis de correção. O problema para esta abordagem é que para
que ela possa ser levada a cabo, é fundamental se reconheça que parte do conhecimento
que se possui sobre as sensações cruas precisa ser corrigido. À medida que se legitima
essa possibilidade, nova forma de aprendizagem poderia se dar em torno dessas
sensações. Tais princípios nos levariam a possibilidade de ‗ser apresentado‘ a estas
sensações cruas, uma noção diretamente voltada às metáforas do Olho da Mente – como
chama Rorty – supondo acessos privilegiados, remetendo à questão da consciência – e
sua suposta presença – e outras similares, todas elas derivadas em algum grau da
imagem inicial do Espelho da Natureza como um conjunto de representações imateriais.
Rorty é então enfático em sua sugestão de que ‗abandonemos a noção de que possuímos
conhecimento incorrigível em virtude de uma relação especial com um tipo especial de
objetos chamados objetos mentais‘. Rorty é, portanto, um crítico da ideia de que o
‗acesso privilegiado‘ gera um tipo de conhecimento preciso acerca das sensações cruas,
além da concepção de que estas substâncias são ‗naturalmente dadas‘ e que estas
possuam algum tipo especial que possa se propagar por meios não materiais.
Estas prerrogativas da filosofia rortiana afetam também a proposição
metodológica tão comum à psicologia do início do século XX, assim como boa parte
66
dela neste século que se encaminha, ou seja, a noção de introspecção como método de
conhecimento. De acordo com Rorty, a introspecção não pode visualizar outro reino
ontológico. Nada de especial ou óbvio pode ser visto ao voltarmos o ‗olho da mente‘
para dentro. Nesse sentido, a noção do que estamos fazendo é produto de noções
epistemológicas. Sendo assim, ‗aqui, como em toda parte, a epistemologia precede a
metafísica e nos atrai para ela‘ (Rorty 1979/1994).
É importante que se esclareça que, ao escrever A Filosofia e o Espelho da
Natureza, Rorty já havia abandonado a postura materialista-eliminativista que o
acompanhara até meados da década de 197045
, o que o tornava também um crítico das
teorias de materialistas de identidade. De acordo com ele, esse modelo de identidade
mente e cérebro só poderia funcionar caso se abstivesse de perguntas insistentes sobre
identidade e referência.
Em suas conclusões sobre o problema mente-corpo, o autor passa a adotar um
caráter ainda mais enfático. Esclarece:
A não ser que estejamos querendo reanimar as noções platônica e
aristotélica sobre aprender universais, não devemos pensar que o
conhecimento de verdades gerais é tornado possível por algum
ingrediente especial, metafisicamente distinto, nos seres humanos.
A não ser que estejamos querendo reanimar o uso algo
desajeitado e inconsistente, no século XVII, da noção aristotélica
de ‗substância‘, não devemos dar sentido à noção de dois reinos
ontológicos – o mental e o físico.
É certo que a compreensão de Rorty não situa o problema como mantido na fôrma,
desde a era medieval até os dias atuais. O que parece não ter sido alterado de modo
significativo é a noção estabelecida, desde então, de uma ordem causal estabelecida por
processos mentais – ou de qualquer outro tipo de natureza metafísica –, até o problema
da consciência como estabelecido por Descartes. Nesse sentido, a mudança estabelecida
liga as antigas noções de razão ou pessoalidade à noção cartesiana de consciência e a
seus respectivos modelos de causalidade. A desconstrução da mente por Rorty precisa
então abordar e dissolver a visão moderna do problema da razão.
45
Detalhes sobre o período materialista eliminativista de Rorty podem ser encontrados no seguinte artigo:
Brandom, Robert. Um arco do pensamento:a trajetória de Rorty do materialismo eliminativo para o
pragmatismo. Redescrições, Revista online do GT de Filosofia Norte Americana e Pragmatismo. Páginas
82-89.
67
3.3.2 – Rorty: razão, epistemologia, hermenêutica e educação
Dentre as bases que configuram o mentalismo, poucas são tão densas e
aparentemente instransponíveis quanto aquela constituída pelo modelo de razão
moderno. Aliás, muitas das bases de princípios educacionais residem neste conceito.
Fundamentalmente, o problema começa a se desenhar na tentativa de responder à
questão sobre ‗como o nosso conhecimento é possível?‘
De acordo com Rorty, o status do qual goza a filosofia nos dias atuais – de teoria
do conhecimento – só foi estabelecido a partir do filósofo alemão Immanuel Kant
(1724-1804). A distinção estabelecida torna a filosofia algo distinto em relação às
ciências, pois essa disciplina passa a ser tomada como fundamento científico. Ainda de
acordo com o filósofo norte-americano: ‗para pensar no conhecimento como
apresentando um ―problema‖, e mais, um problema sobre o qual deveríamos ter uma
―teoria‖, é preciso encarar o conhecimento como uma reunião de representações‘, visão
esta que ele argumenta ser um produto do século XVII. Esse projeto de aprender mais
sobre aquilo que é possível conhecer e de como seria viável conhecê-lo estudando os
modos como a mente funciona foi batizado de epistemologia.
A posição de Kant é central nesse projeto de acordo com Rorty. O papel
destacado do filósofo alemão opera no sentido de fazer com que a filosofia, na
qualidade de epistemologia, ganhasse maturidade e justificativa. Rorty argumenta que o
modelo de razão kantiano começa a se impor em pelo menos três níveis
complementares: 1) ao identificar o tema central da epistemologia como as relações
entre duas espécies de representações igualmente reais mas irredutivelmente distintas –
as formais (conceitos) e as materiais (intuições) –, estabelecendo assim uma
continuidade entre o problema da epistemologia e os antigos problemas da razão e dos
universais; 2) tratando de ligar a epistemologia à moralidade, no projeto que Rorty
chama de ‗destruir a razão para abrir espaço para a fé‘, o que possibilitaria uma abertura
para a noção de consciência moral, operando assim de modo a tornar a moral baseada
em um problema científico; 3) fundamentando o argumento da epistemologia como
disciplina de suporte, capaz de descobrir as características formais de qualquer área da
vida humana.
Ocorre que o modelo representacional kantiano de uma disciplina voltada para
as origens e limites do conhecimento humano exigiria, como pano de fundo, a noção de
‗mente humana‘ criada há um bom tempo por Descartes. O conceito elaborado pelo
68
filósofo francês foi fundamental para o estabelecimento da noção de representações
internas, no entanto careceria ainda do modelo causal suposto por John Locke (1632-
1704), no qual haveria uma espécie de relação mecânica entre as operações da mente e
as afirmações de conhecimento. Nesse sentido, Locke teria cometido aquilo que
Sellars46
(citado por Rorty, 1979) chama de ‗a tentativa de analisar fatos epistêmicos
sem apoiar-se em fatos não epistêmicos‘. O conhecimento era então tratado como uma
ordem mecânica entre a operação da mente e o discurso daí resultante, e não como uma
relação entre uma pessoa e uma proposição.
O problema do modelo combinado entre Descartes, Locke e Kant é que o objeto
que se procura conhecer passa a ter importância menor do que a observação que dele é
feita. O conhecimento será, antes de qualquer coisa, produto daquilo que o olho da
mente é capaz de enxergar. É a partir desse olhar que a relação mecânica de
conhecimento será concebida e chegará até meados do século XX. Uma síntese bastante
adequada do tema é feita por Reid47
(citado por Rorty, 1979) que afirma:
Não há preconceito mais natural ao homem do que conceber a
mente como tendo alguma similitude ao corpo em suas operações.
Daí, os homens têm se mostrado inclinados a imaginar que, assim
como corpos são colocados em movimento por algum impulso ou
impressão imposta a eles por corpos contíguos, assim também a
mente é levada a pensar e a perceber por alguma impressão
causada a ela, ou algum impulso imposto a ela por corpos
contíguos.
Para Rorty, a dificuldade estabelecida pela formulação de Kant reside no fato de
o filósofo alemão ter colocado o problema do conhecimento em termos de componentes
supostamente verdadeiros acerca das proposições, ao invés de buscar estabelecer as
relações entre as proposições e o grau de certeza ligado a elas. Nesse sentido, a análise
kantiana acabou por situar o problema com a forma de representações internas em
contrapartida a abordá-las como sentenças. Se, por um lado, é reduzida com Kant a
noção de uma busca por representações internas privilegiadas, por outro se estabelece
um conhecimento dado a priori, numa busca pelas regras que a razão havia colocado
para si mesma, o que, pela interpretação que Rorty faz de Kant, não tornaria viável
46
A referência completa é: Sellars, Wilfrid. Science, Perception and Reality. Londres e Nova York, 1963,
p. 169. 47
A referência completa é: Reid, Thomas. Essays on the Intellectual Powers of Man. Cambridge, Mass.,
1969.
69
nosso acesso a qualquer tipo de atividade que constitui o conhecimento. As entidades
internas do conhecimento não seriam de modo nenhum mais úteis do que aquelas
presentes no espaço externo para tentar explicar como o conhecimento é possível.
Assim, a noção kantiana de conhecimento proposicional em detrimento do perceptual é
uma modificação simplesmente parcial, pois pensar na exigência de uma constituição da
natureza pelo sujeito conhecedor o manteria no rol das metáforas causais como
‗modelar‘ e ‗sintetizar‘.
Rorty é taxativo quanto à impossibilidade de qualquer modelo representacional
poder refletir aquilo que está disposto na natureza, de modo a desvelá-la. Não se
encontrará um espelho cujo internamente será possível identificar uma classe especial e
privilegiada de representações que não possam, devido à sua exatidão, ser postas em
dúvida. O movimento da razão, se entendido de modo mais amplo, parece abarcar a
busca por fundamentos privilegiados para o conhecimento, de forma a estabelecer a
teoria do conhecimento como uma disciplina autônoma que sirva de base de
fundamentação à cultura. Ao saber – pela orientação da disciplina formal – como é
possível conhecer que o sujeito esteja em condições de se debruçar sobre um mundo de
objetos para observar a si mesmo – como uma imagem refletida no espelho. ‗Filosofia
enquanto epistemologia será a busca pelas estruturas imutáveis dentro das quais
conhecimento, vida e cultura devem ser contidos‘ (Rorty, 1979/1994). Sujeito, vida e
cultura estabelecem o ponto moral, racional e autocrítico, submetendo-se às mais
imperiosas obrigações a partir de suas próprias faculdades. Desse modo, a teoria do
conhecimento, como pensada até Kant, estabelece todo um terreno propício para aquilo
que compele à mente crer tão logo alguma coisa seja desvelada.
O problema, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não se faz hábil a
ser resolvido apenas pelo viés da linguagem – como sugeriu Wittgenstein. Não se trata
do ponto de como a linguagem referencia o mundo, demonstra sua essência ou ainda é
capaz de espelhá-lo. Não se estende tão somente ao modo como a linguagem pode se
enganchar no mundo ou mantém com este alguns pontos de contato que permitirão, em
alguma medida, que sejam desvelados a fim de propiciar um conhecimento
representacional da realidade.
Sendo assim, a epistemologia não pode ser tratada como algo naturalmente dado.
Ela é estabelecida na forma de teoria do conhecimento, que fundamenta a cultura e
ampara a moral, utilizando o discurso e suas múltiplas variações – assim como
limitações – para tratar de temas ou ainda propor métodos diferentes. Nesse caso, não se
70
trata de abolir qualquer entendimento sobre como é possível o conhecimento, mas antes
de qualquer coisa, não tomá-lo como um problema para o qual uma resposta seja
satisfatória.
A busca por uma teoria do conhecimento será, portanto, o desejo por uma
restrição, um desejo em que seja possível encontrar fundamentos aos quais o sujeito
pode se ligar, quadros e estruturas das quais não se podem perder, objetos que se
impõem e representações que não podem ser negadas. Rorty chamará este movimento
de um ‗conforto metafísico‘, o conforto de pensarmos em nós mesmos como seres
infinitos e não contingentes. Essa é a herança da promessa cristã. Um conforto que nos
acomoda diante da vida, ao vocabulário e às relações sociais. Ou ainda, como sintetizou
Rorty:
A noção dominante da epistemologia é que, para sermos
racionais, para sermos plenamente humanos, para fazer o que
deveríamos, precisamos ser capazes e encontrar a concordância
com outros seres humanos. Construir uma epistemologia é
encontrar a quantidade máxima de terreno comum aos outros. A
suposição de que uma epistemologia pode ser construída é a
suposição de que tal terreno comum existe.
A saída encontrada por Rorty para abordar a questão do conhecimento recorre à
hermenêutica. De imediato, em seu capítulo referente ao tema em A Filosofia e o
Espelho da Natureza, ele procura alertar que não pretende colocar a hermenêutica como
uma sucessora da epistemologia ou que ocupe o espaço cultural outrora dominado por
esta. Não se trata, portanto, de um método ou programa de pesquisa. O autor define o
tema em suas palavras: ‗hermenêutica é uma expressão de esperança em que o espaço
cultural deixado pela extinção da epistemologia não seja preenchido – de que a nossa
cultura se tornasse tal que a exigência de restrição e confrontação não mais seja sentida‘
(destaque acrescentado). A hermenêutica é uma luta contra a comensurabilidade do
discurso. Aqui Rorty faz um alerta: este é um terreno perigoso, pois oferece espaço ao
relativismo. O perigo que aqui reside é o de que cada teoria constitua apenas seu próprio
pequeno jogo de linguagens e, assim, suas pequenas práticas, até que finalmente se
arrastem para o interior de seus próprios eixos. É válida a distinção feita pelo autor para
o apontamento das diferenças existentes entre essas diferentes formas de conhecimento:
Para a hermenêutica, ser racional é estar disposto a abster-se da
epistemologia – de pensar que há um conjunto especial de termos
71
nos quais todas as contribuições à conversação deveriam ser
colocadas – e estar disposto antes a assimilar o jargão do
interlocutor que traduzi-lo para o seu próprio. Para a
epistemologia, ser racional é encontrar o conjunto apropriado de
termos para os quais todas as contribuições deveriam ser
traduzidas, se for necessário que a concordância se torne possível.
Desse modo, não há, na hermenêutica rortiana, uma inviabilidade entre discursos
variados. Pelo contrário, a conversação entre estes é desejada, pois não se pressupõe
uma matriz disciplinar que integre os interlocutores. O que é importante é que nunca
seja perdida a esperança de uma concordância advinda desta conversação. ‗Essa não é
uma esperança de descoberta de um terreno comum previamente existente, mas
simplesmente a esperança de concordância, ou, ao menos, discordância interessante e
frutífera‘ (Rorty, 1979/1994). A hermenêutica é marcada pela inquirição como
conversação rotineira e seus participantes como pessoas, cujos caminhos através da vida
se reuniram e permanecem juntas mais pela civilidade do que por uma meta ou terreno
comum48
. Nesse sentido, Rorty sugere que os domínios podem ser utilizados
separadamente, cabendo à epistemologia o espaço no qual se compreende perfeitamente
bem o que está acontecendo e a partir deste será feito um embasamento, fortalecimento
ou mesmo ensino; e ficando por sua vez a hermenêutica como o espaço onde não
compreendemos o que está acontecendo e se mantém uma postura aberta e honesta para
assumir tal posição. A hermenêutica encontra na conversação seu ponto central, ao
contrário da epistemologia que apoia suas bases nos princípios de verdade e método.
Antes de qualquer coisa, é importante se diga que Rorty não elabora um projeto
pedagógico específico, assim, sua abordagem de temas educacionais envolve sempre
uma relação com a preservação de sua postura liberal e democrática, que busca
viabilizar uma prática redescritiva através da conversação. Desse modo, abordar a
temática da educação com base no modelo pragmatista rortiano enfeixa necessariamente
o projeto hermenêutico. A aplicabilidade deste modelo ao contexto educacional é bem
resumida por Dazzani (2010), ao afirmar: a compreensão da singularidade do
pensamento rortiano exige se estabeleça o lugar que ele reserva para a substituição do
ideal de um conhecimento e uma verdade (como algo seguro e definido que se deve
perseguir e alcançar). Deve-se buscar, ainda de acordo com a autora, uma concordância
48
Rorty está aqui fazendo uma referência ao conceito de societa, apresentado por Michael Oakeshott no
texto ‗On the Character of a Modern European State‘. On Human Conduct. Oxford, 1975.
72
não forçada, ou seja, o abandono de uma prioridade do método filosófico e científico e
estabelecer as condições propicias para uma conversação livre e aberta entre todos os
atores que compõem aquela contingência. Assim a redescrição será possível, pois
poderá postular valores e garantir um projeto civilizacional. Não se trata, portanto, de
encontrar verdades, mas de inventar crenças que sejam úteis para o bem humano. Esse
entendimento configura outra característica não apenas dos postulados educacionais
rortianos, mas sim uma característica fundamental de sua filosofia: o abandono da
objetividade e a busca pela solidariedade.
Ao abordar a temática educacional, o filósofo norte-americano não perde, em
momento algum, o viés político, democrático e pragmático que acompanham grande
parte de sua obra. Aliás, Rorty equipara em alguma medida os ideais da educação e da
política, pois, ambas nos ajudariam a entender o que somos e a inventar o que seremos.
Nesse sentido, a filosofia não poderia nem deveria fundamentar a educação, mas sim
auxiliar no processo hermenêutico de conversação sobre estes espaços e fazeres para,
quem sabe, auxiliar na construção de uma vida melhor. Sua abordagem exige que se
compreenda a educação em pelo menos dois momentos distintos: 1) o momento da
socialização, frequentemente ocupado pela educação básica e no qual se deve tentar
inculcar o sentido de cidadania; 2) o momento da individualização, no qual se deve
tentar no indivíduo a imaginação e a esperança de que ele seja capaz de recriar a si
mesmo.
É importante se diga que a metáfora estabelecida pelo autor vincula à educação
um papel de edificação, no sentido pragmático, de estabelecer um lugar de conquistas e
invenção de crenças que permitirão, por sua vez, encontrar novas formas de dizer e
fazer o mundo. Recriar e redescrever exigem, em adendo, a utilização de novas
linguagens, novos enunciados que poderão ganhar formatos distintos e principalmente
novos usos. ‗E a escola – como instituição responsável pela formação moral e técnica
das novas gerações – ganha uma nova causa: a tarefa de redescrever e inventar novas
crenças‘ (Dazzani, 2010).
Parece possível pensar nesse papel e em seus atores e isso é o que fazem
Monteiro e Speller (1998) em artigo que trata da formação de professores a partir da
filosofia rortiana. Para esses autores, o papel do professor-ator pode ser o daquele que
instaura o papel dialógico, não como detentor da verdade – pois a presença desta
aniquilaria e encerraria a possibilidade de conversação –, mas como aquele que se
autocria e se reinventa, apresentando novas formas de discurso sobre a produção de suas
73
comunidades. Novamente, depare-se com a condição de um espaço que, sustentado pelo
diálogo, pode eximir-se da busca por objetividade e, assim, tentar garantir a edificação
da solidariedade. Nesse sentido, os autores citados sugerem que a formação docente
‗pode ser menos epistemológica e mais hermenêutica‘. Nesse andar, sugerem que
professores e alunos possam se inserir nos jogos de linguagens presentes em nossa
cultura para utilizá-las em seu cotidiano. Essa orientação, provavelmente, coaduna com
os princípios pragmáticos de construção de novos discursos e da formação de novas
crenças, tendentes a orientar novas ações.
A combinação de elementos apresentados, quer pela filosofia rortiana, quer pela
análise da aplicação de seu trabalho em relação ao papel da escola ou, ainda, por suas
possíveis contribuições para a política de formação de professores, parece deixar claro
que ‗para Rorty, antes de perseguirmos a Verdade, a Razão, a Ciência, devemos
perseguir a Liberdade, a Esperança e a Solidariedade (Dazzani, 2010).
Um primeiro contato com a proposta filosófica do autor de Contingência, Ironia
e Solidariedade (1989/2007) revela encontrar dificuldades para desvincular os termos
utilizados por ele de propostas que sejam substancialistas, essencialistas,
consequencialmente mentalistas. Isso torna algum esclarecimento importante: ao se
referir à solidariedade, Rorty não está abordando o tema do modo como a filosofia
tradicional o faria, não há uma busca por uma humanidade essencial, absoluta e
indistinta em todos os homens e mulheres. O autor é enfático ao dizer ‗não querer algo
que se erga além da história e das instituições‘. Seu argumento circula amparado na
contingência histórica que permitiria continuar uma expansão daquilo que é por ele
chamado de sentimento de ‗nós‘. Sua posição compreende o sentimento de
solidariedade como uma questão das semelhanças e dessemelhanças que nos impactam
como salientes, e essa saliência é função de um vocabulário final historicamente
contingente. A análise sobre o tema parece poder ser resumida no seguinte trecho da
obra já citada neste parágrafo:
A visão que ofereço diz que existe um progresso moral e que esse
progresso se dá, de fato, em direção à maior solidariedade
humana, mas essa solidariedade não é vista como o
reconhecimento de um eu nuclear – a essência humana – em
todos os seres humanos. É vista, antes, como a capacidade de
considerar sem importância um número cada vez maior de
diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc.),
74
quando comparadas às semelhanças concernentes à dor e à
humilhação – a capacidade de pensar em pessoas extremamente
diferentes de nós como incluídas na gama do ‗nós‘.
O espaço escolar parece não poder se desenvolver sem considerar, portanto,
contingências historicamente definidas. O espaço da conversação, da solidariedade, da
redescrição e da autocriação. Não resta espaço para o essencialismo e para o
substancialismo, dissolve-se a razão kantiana e sua vinculação à mente cartesiana.
Inclui-se neste espaço aquilo que somos e o que queremos dizer quanto a fazer de nós
mesmos. Inclui-se o que se diz e faz em relação aos outros, agregando
preferencialmente esses ‗outros‘ às mesmas condições de ‗nós‘. O resultado desse
conjunto será a edificação, o desenvolvimento, através das redescrições, de novos
vocabulários e novas crenças que orientem ações para uma sociedade liberal e que
prioriza o encontro livre e aberto de posições, sejam elas quais forem.
Dazzani (2010), em produção específica para a análise da importância da obra
do filósofo norte-americano à educação, afirma que aquilo que se visa garantir, desse
modo, é que o espaço da política, da escola – e, nesse intermédio, o da filosofia – possa
garantir que os discursos tradicionais referentes ao conhecimento (na sua forma de
ciências) e sobre o destino da humanidade (na sua forma de ética) sejam constantemente
revistos e permaneçam abertos. Que se interrompa assim a busca por um orientador que
não se encontra do lado de fora (deus, fundamento, destino, verdade ou razão) e que se
mantenha um diálogo aberto, que preserve a pluralidade dos discursos e promova o
encontro entre o privado – a autocriação – e o público – a linguagem falada pela
comunidade na forma de todas as suas descrições herdadas. A importância da filosofia
pragmática de Rorty é resumida pela autora:
Vimos, então, por que a educação e a instituição escolar ocupam
um lugar expressivo no discurso rortiano: não é um comentário
marginal nem uma derivação de teses filosóficas; é, outrossim, o
reflexo de uma atitude intelectual que vê nas práticas
educacionais a situação em que a conversação (o encontro com os
outros na linguagem), a redescrição (a reelaboração das
descrições oferecidas pela tradição e pela autoridade), o
autoenriquecimento (redescrição da rede de crenças e desejos) e a
solidariedade (a inscrição do outro) comparecem
necessariamente.
75
Apesar de sua relevância para a educação, a filosofia de Richard Rorty não
descortina uma proposta pedagógica propriamente dita. Não há dúvidas sobre as
contribuições de seu discurso para o espaço educacional, no entanto. De sua postura
antirrepresentacionista destacada em A Filosofia e o Espelho da Natureza até às suas
noções de contingência e solidariedade presentes em sua obra de 1989, Rorty destaca o
modo como as escadas da razão, da objetividade e do mentalismo – importantes no
discurso em um dado momento histórico – podem ser descartados.
Parece possível afirmar que o diálogo – como entendido por Rorty – afirma a
descontextualização da mente e de seus subprodutos em uma sociedade liberal e
democrática dos séculos XX e XXI. Seu movimento, no entanto, parece ‗conversar com
ela a respeito‘, ‗pedir licença‘. Não há em sua utopia – termo utilizado por ele mesmo –
uma proposta que torne as suas crenças – como conjunto de regras que orientam ações –
exequíveis. Nesse sentido, a filosofia rortiana talvez se posicione mais como um ‗falar
sobre‘ alguma coisa do que propriamente um modo de ‗falar como fazer‘. Fornece todos
os elementos para a edificação, mas, ao menos para a educação, não edifica. Rorty
parece conseguir destituir a mente de sua perspectiva ontológica e epistemológica,
colocando em seu lugar o diálogo aberto e suas lacunas com relação ao que fazer.
O ponto em que o projeto antimentalista é levado ao extremo a ponto de sugerir
uma proposta pedagógica que efetivamente destitua o espaço da mente na educação
talvez seja encontrado somente no psicólogo norte-americano B. F. Skinner (1904-
1990). Sua filosofia da ciência, quando aplicada à educação, talvez possa legitimar
ainda mais, bem como estabelecer novas contingências – agora no sentido skinneriano –
para o espaço dialógico e de solidariedade proposto por Rorty. A obra de Skinner é
abordada a seguir.
3.4. – O behaviorismo radical de B. F. Skinner e a aplicação da análise do
comportamento para a educação
O psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) nasceu na
cidade de Susquehanna, estado da Pensilvânia, Estados Unidos da América. Destacar o
nascimento de seu país de origem neste caso não é um exagero, porquanto Skinner
parece marcado por algumas das características da cultura norte-americana desde sua
infância. É como atesta Smith (1996) ao ressaltar o otimismo utópico, o pragmatismo, o
amor pela invenção e a crença na mudança do ser humano como presentes neste autor.
76
Em 1922, Skinner concluiu o curso médio em sua cidade natal. Mais tarde
cursou o Hamilton College, onde se graduou em letras e literatura inglesa. A influência
da literatura e da área em seu todo poderá ser sentida inicialmente em sua carreira
quando busca se tornar escritor, tarefa esta que, em pouco tempo, abandona ao descobrir
que não tinha nada de importante a dizer, como revela em sua autobiografia Particulars
of my life (1976). Chegou até mesmo a publicar alguns artigos literários, mas nomeia
estes anos iniciais como os dark years de sua carreira profissional. Ainda em 1927,
Skinner começa a trabalhar como balconista em uma livraria de Nova York e é neste
momento que começa ler Pavlov e Watson, passando a se interessar pela psicologia. Em
1928, ele retoma seus estudos, agora na Universidade de Harvard, onde faz o curso de
pós-graduação em psicologia. Apenas três anos mais tarde, doutora-se com orientação
de E. G. Boring. Após, permaneceu em Harvard, até 1936, com um apoio financeiro
para fazer pesquisas. Ainda em 1936, ele se mudou para Minneapolis, para assumir as
atividades de professor e de pesquisador na University of Minnesota, iniciadas no ano
letivo de 1937. Na University of Minnesota, Skinner encontrou espaço livre para
ensinar e pesquisar o behaviorismo que ele vinha desenvolvendo desde os tempos de
Harvard. Em Minneapolis, conheceu Yvonne Blue, com quem se casou e teve duas
filhas, Julie e Deborah. Esta última inclusive foi motivo de inúmeros comentários e
especulações na imprensa norte-americana, pois foi na ocasião de seu nascimento e a
pedido de Yvonne, sua esposa, que Skinner desenvolve uma de suas engenhocas
tecnológicas, o baby tender, uma espécie de berço com recursos adaptados para facilitar
o cuidado da mãe com o bebê. Como muitos dos temas e práticas que cercam o
psicólogo norte-americano, esse foi apenas mais um a gerar polêmicas, visto que
Deborah teve especulado uma série de traumas e até mesmo um suposto suicídio em
função dos cuidados que teria recebido. Esclarece-se, de imediato, que as informações
sobre Deborah dão conta de que se tornou uma artista plástica de sucesso, residindo em
Londres com o marido.49
Este é, até mesmo, outro fator – ou comportamento, como talvez preferisse este
autor – que caracterizava Skinner: sua preocupação em construir objetos que pudessem,
de alguma forma, melhorar a relação das pessoas com seu ambiente, de modo a
beneficia-lhes a vida e, igualmente promover maior facilidade de sua adaptação. Uma
de suas primeiras invenções da juventude tinha a utilidade de ‗lembrá-lo‘ de guardar seu
49
Esta informação é oferecida pela B. F Skinner Foundation e pode ser consultada em seu sítio na internet
através do endereço WWW.bfskinner.org
77
pijama, exigência contínua de sua mãe. Neste caso, uma roldana presa a um cabide em
seu guarda-roupas alertava-o com o aviso: Guarde seu pijama! Ainda na adolescência,
outras invenções estiveram presentes, mas certamente aquelas que tiveram maior
destaque foram desenvolvidas já em sua vida profissional, de modo a respaldar ou
ampliar a ciência que ele procurava desenvolver: a caixa de condicionamento operante e
as máquinas de ensinar, respectivamente.
Tendo em vista a natureza deste trabalho, o interesse de Skinner pelas máquinas
de ensinar e por sua incursão nos temas educacionais também encena uma vivência
particular que merece ser abordada. Sua preocupação com a educação se inicia no
momento em que o já célebre cientista – aos 29 anos de idade ele já era entrevistado
como o mais novo membro júnior da Harvard Society of Fellows, a nata da sociedade
intelectual da época – comparece a uma reunião de pais na escola de sua filha. Esta
ocasião é lembrada por ele em sua autobiografia, no trecho que segue:
Em 11 de novembro de 1953, dei um passo positivo. Era o Dia
dos pais em Shady Hill, e, junto com outros pais de família,
estava sentado no fundo da sala, assistindo à aula de aritmética de
Debbie, que então cursava o quarto ano. Os alunos estavam
resolvendo um problema escrito na lousa. A professora
caminhava entre as filas de carteiras, examinando seu trabalho e
assinalando de vez em quando um erro. Alguns alunos
terminaram e ficaram ociosos e impacientes. Outros, cada vez
mais frustrados, esforçavam-se. Por fim, todos os trabalhos foram
recolhidos, para serem levados para casa, pontuados e devolvidos
no dia seguinte.
Adiante, Skinner assinala como os princípios identificados por ele naquela ocasião
violavam alguns dos elementos básicos da aprendizagem que vinham sendo pesquisados
por ele e seus colegas naquele mesmo momento. Os princípios da aprendizagem
operante tão extensivamente estudados em seu laboratório não eram utilizados, até
então, em uma situação típica e formal de aprendizagem, e é este o ponto levantado por
ele na sequência:
Logo me dei conta de que deveria fazer alguma coisa.
Involuntariamente talvez, a professora violava dois princípios
fundamentais: não dizer aos alunos imediatamente se seu trabalho
estava correto ou não (uma prova devolvida e corrigida 24 horas
78
mais tarde não podia funcionar como reforço) e exigir de todos o
mesmo ritmo, sem levar em conta nem o nível nem a capacidade
dos alunos.
Pouco depois Skinner estabelecerá a relação direta entre esta experiência relacionada
com a educação formal e com sua construção das máquinas de ensinar, oferecendo uma
alternativa pragmática associada a uma proposta antimentalista para a educação: ‗Uns
dias depois construí uma máquina de ensinar‘. Havia aqui a tentativa de integrar alguns
dos princípios da aprendizagem já bem-estabelecidos em seu laboratório: a
imediaticidade do reforço e as diferenças individuais entre os organismos.
Filho de advogado e de dona de casa, Skinner descrevia seu ambiente familiar
como ‗afetivo e estável‘. Teve apenas um único irmão, que morreu aos 16 anos de
idade. Cresceu em um ambiente que não era punitivo, o que, ao menos de acordo com o
seu modelo teórico, certamente favoreceu para que experimentasse muitas de suas
invenções na juventude. A manutenção deste repertório se manteve até o final de sua
vida, onde Skinner termina de ditar o último de seus textos – no qual nega mais uma vez
e de modo enfático qualquer relação possível entre o behaviorismo e os modelos
mentalistas de psicologia, especialmente o cognitivismo – para uma de suas filhas, já
acamado no hospital. Can psychology be a science of mind? (1990) se transforma em
uma espécie de resumo de toda a sua obra, concluindo por rejeitar a mente, quer em
nível ontológico quer em nível epistemológico. O texto, resumo de seu discurso na APA
ao tempo de sua homenagem, foi finalizado na noite anterior à sua morte, em 1990.
Sua vida e obra fora conduzidas de modo não apenas a alterar a base filosófica
de um conceito e de um conjunto de práticas, mas, acima de tudo, de partir desta
alteração para propor práticas nas quais este conceito poderia ser dispensado. Se, de
forma positiva ou negativa, este não é o espaço nem a proposta deste trabalho julgar,
mas influências puderam ser sentidas – e ainda são – em áreas muito distintas, como
educação especial, educação regular, psicoterapia, medicina comportamental,
farmacologia comportamental, treinamento (humano e animal), sistemas de
gerenciamento comportamental e planos de competências.
O caminho de sua vida e obra deve aqui, necessariamente, permitir que se
entenda como as contribuições skinnerianas para a educação conseguem prescindir de
um modelo de mente, aparentemente tão necessário e envolvido com os temas da área.
Para dar sequência a este ponto, portanto, é fundamental que se entenda, ainda que
79
brevemente, o modo como Skinner aborda a temática da interioridade e como isso é
fundamentado na filosofia de sua ciência – a Análise do Comportamento.
3.4.1. – O rompimento com as dicotomias clássicas e a proposta behaviorista radical
para a interioridade
Antes mesmo de tratar de alguns dos fundamentos da ciência denominada
análise do comportamento, é preciso abordar, de modo preventivo, um problema de
cunho filosófico que é central a este trabalho. Ao propor um modelo antimentalista com
aplicabilidade a qualquer área do conhecimento – diferença que caracteriza o modelo
skinneriano em relação aos outros filósofos apresentados em outra fase neste trabalho –
corre-se o risco de ferir o tema central e eixo explicativo da maior parte das abordagens
filosóficas e psicológicas. Neste caso, é pertinente se exija uma explicação de cunho
alternativo para lidar com estes mesmos problemas. Afinal de contas, ao sugerir a
inexistência de eventos mediadores para qualquer tipo de comportamento – ou
processos representacionais, como prefeririam os mentalistas – alguma coisa tem de ser
dita sobre este aparente funcionamento cognitivo. Neste trecho a opção é, portanto,
entender como Skinner lida com o problema da ‗interioridade‘ para demarcar sua
posição em relação a como os fenômenos explicados por este viés podem ser tratados
com uma fundamentação baseada na interação organismo-ambiente. Sobre as
dificuldades em cuidar do tema, o psicólogo norte-americano adverte em seu livro
Sobre o behaviorismo (1974/2002):
Os sentimentos e os estados mentais têm desfrutado posição de
destaque na explicação do comportamento humano; e a literatura,
por se preocupar com o como e o porquê dos sentimentos
humanos, oferece-lhes apoio contínuo. Disso resulta ser
impossível engajarmo-nos num discurso casual sem despertar os
fantasmas das teorias mentalistas. O papel do meio ambiente foi
descoberto muito tarde e ainda não apareceu um vocabulário
popular apropriado.
A posição skinneriana sobre algumas das dicotomias clássicas na psicologia e na
filosofia é a de que elas simplesmente não fazem sentido, como pode ser visto, ainda em
1945, em um simpósio sobre operacionismo que resulta em seu clássico artigo sobre A
80
análise operacional de termos psicológicos50
. Nesse momento, afirma que a distinção
público-privado enfatiza a árida filosofia da ‗verdade pela concordância‘. O
complemento de seu argumento é apresentado a seguir:
O público, na realidade, torna-se simplesmente aquilo sobre o que
se pode concordar porque é comum a duas ou mais pessoas que
concordam. Esta não é uma parte essencial do operacionismo;
pelo contrário, o operacionismo nos permite dispensar esta
solução completamente insatisfatória para o problema da verdade.
As discordâncias frequentemente podem ser esclarecidas,
solicitando-se definições, e definições operacionais são
especialmente úteis, mas o operacionismo não está basicamente
preocupado com comunicação ou disputa. É um dos princípios
mais úteis precisamente por causa disso. O habitante solitário de
uma ilha deserta poderia chegar a definições operacionais (desde
que tivesse sido previamente equipado com um repertório verbal
adequado). O critério fundamental para a boa qualidade de um
conceito não é se duas pessoas chegam a um acordo, mas se o
cientista que usa o conceito pode operar com sucesso o seu
material – sozinho, se necessário. O que interessa para Robinson
Crusoé não é se ele está concordando consigo mesmo, mas se está
tendo algum sucesso com seu controle sobre a natureza.
Para Skinner, a concordância sozinha significa muito pouco, pois gerará satisfação mas
não progresso, no entendimento acerca dos termos psicológicos. Por operacionismo é
marcada a influência recebida do físico e epistemólogo Ernst Mach para quem a
explicação de um evento só pode ocorrer através da descrição das relações funcionais
existentes entre eles.
Ainda no mesmo texto de 1945, outra dicotomia cara aos sistemas de
conhecimento é elucidada ao tempo em que uma advertência e diferenciação em relação
a outros modelos behavioristas é feita. Afirma ele: ‗A distinção entre público e privado
não é, de modo algum, a mesma que há entre o físico e mental. É por isso que o
behaviorismo metodológico (que adota a primeira alternativa) é muito diferente do
behaviorismo radical (que elimina o segundo termo da última alternativa)‘. Neste
50
Skinner, B. F. (1961). Cumulative Record. Appleton: New York pp. 272-286. Publicação original
Psychological Review (1945), 52, 270-277.
81
trecho, o autor está afirmando que o behaviorismo radical – filosofia da ciência proposta
por ele – pode, em alguns casos, considerar os eventos privados, enquanto outros
operacionistas demonstram impossibilidade em fazê-lo. De acordo com ele, é
perfeitamente possível que estados ou eventos privados sejam abordados com um
caráter tão físico quanto qualquer evento público, e a impossibilidade de uma
concordância a seu respeito não deve desencorajar a análise daqueles que pretendem
realizá-la. Em seu argumento, corrobora que o único problema que uma ciência do
comportamento precisa resolver em relação ao subjetivismo está no campo verbal.
Deve-se buscar explicar o comportamento de falar sobre eventos mentais e aponta ainda
que a solução deve ser psicológica e não lógica – numa discordância não explícita a
Wittgenstein.
Ao rejeitar a dicotomia físico-mental e o critério de verificação pública, Skinner
se propõe interpretar esses fenômenos como comportamentos, com uma única
especificidade: seu caráter privado ou encoberto (Tourinho, 2001). Dessa forma, estes
eventos apresentam ou são dotados das mesmas dimensões físicas e são funcionalmente
relacionados com contingências de reforçamento presentes no ambiente físico e social
com o qual o organismo interage. Um pequeno adendo se faz necessário para facilitar a
compreensão de termos que serão utilizados adiante: o conceito de contingência é
fundamental para que se compreenda com adequação a proposta interacionista
skinneriana. Em sentido geral, contingência pode significar qualquer relação de
dependência entre eventos ambientais ou entre eventos comportamentais e ambientais
(Catania, 1993; Skinner, 1953, 1969; Todorov, 1985, citados por Souza, 2001). Este
termo é empregado em análise do comportamento para enfatizar como a probabilidade
de um evento pode ser afetada ou causada por outros eventos (Catania, 1999). A
contingência é, portanto, a unidade de análise fundamental para o estudo das interações
entre o organismo e o ambiente.
O árduo problema das dicotomias público-privado e físico-mental se transforma,
na perspectiva skinneriana, em um problema de acessibilidade e de dimensão. A
acessibilidade se refere ao contato exclusivo que cada indivíduo tem – por motivos
óbvios – com a estimulação que ocorre sob a sua pele; e a dimensão diz respeito à
hipótese skinneriana de que todos os eventos aprendidos em uma dimensão privada
foram originalmente aprendidos em uma escala pública e então retrocederam ao nível
encoberto, se transformando em um ‗comportamento executado em uma escala tão
pequena que não é visível aos outros‘ (Skinner, 1974).
82
Naquilo que interessa à presente discussão, termos psicológicos tipicamente
utilizados na educação ganham análises operacionais, ou seja, descritivas das interações
entre o organismo e o ambiente físico e social no qual elas ocorrem ou se fala sobre
elas. Nesse sentido, termos comuns às práticas educacionais como o ‗pensar‘ e o
‗resolver problemas‘. Tourinho (2001) apresenta uma das possibilidades:
O pensar, para Skinner, pode ser um conjunto de comportamentos
preliminares (que podem ser públicos ou privados) emitidos em
situação de resolução de problemas, nas quais não há
possibilidade momentânea de emissão de uma resposta capaz de
produzir o reforçamento. Tais respostas preliminares (ou
precorrentes), quando funcionais, produzem mudanças (no
ambiente ou no próprio indivíduo) que tornam possível a emissão
da resposta solucionadora (que produz o reforçamento). Também
o pensar é adquirido inicialmente de forma aberta.
A aquisição em um nível público e o retrocesso ao nível encoberto ocorrem em
função das contingências dispostas no ambiente físico no primeiro caso – como no
aprendizado da leitura no qual a vocalização dos sons referente ao agrupamento fonético
é solicitada de modos variados – exigência esta que deixa de existir quando o repertório
de leitura se mostra devidamente instalado. Com a ausência da exigência da
manifestação pública da leitura, o repertório não deixa de existir, apenas passa a ocorrer
naquela escala menor, acessível tão só ao próprio leitor.
A ocorrência do comportamento nesta escala menor parece encartar algumas
vantagens que incidem em áreas diversas da vida, como no âmbito educacional no qual
o aluno pode ‗ensaiar‘ encobertamente algumas perguntas, de modo a aperfeiçoá-las
antes mesmo de serem feitas, ou até mesmo cancelar um comportamento, como quando
se deixa de escrever uma frase ao se identificar, encobertamente, que a esta não parece
apropriada ao texto que se escreve. Outra justificativa pertinente para esta redução
ocorre no nível de preservação das próprias práticas culturais, em que as vantagens e
desvantagens da ocorrência destes comportamentos deixam de incidir apenas sobre a
vida do indivíduo, mas sim de todo o grupo social ao qual pertence. Desse modo,
conjuntos de crenças, princípios e valores – todos agrupados como subtipos de
comportamentos precorrentes – que orientam práticas culturais, estão sob controle de
contingências relacionadas com a sobrevivência de uma cultura e dos costumes que lhe
são característicos.
83
Estes elementos talvez se revistam de caráter adicional no campo da educação.
Parece estritamente impossível que todos os temas abordados ao longo de um processo
de educação formal – em qualquer nível – possam ser experienciados com dimensões
propriamente físicas. O nível inicial desta relação se dá em sua forma mais comum e
típica, ou seja, pela descrição.
É fácil supor que o envolvimento de termos tipicamente mentais com a educação
ocorra em função das limitações dispostas no contexto educacional. Não há como
oferecer atenção e vivências suficientes para todos os alunos. Nesse sentido,
provavelmente, os livros foram a primeira forma de tentar tornar coletivo o
conhecimento exigido para este contexto. A lacuna deixada entre uma instrução ou
descrição de um conteúdo e a vivência propriamente dita precisaria ser preenchida por
algo. A relação deixou de ser experimentada diretamente e passou a ser mediada por um
conteúdo. Daí por diante, a suposição de que o conteúdo ficará ‗armazenado‘,
‗compreendido‘ ou ‗refletido‘ se transforma em uma sedutora noção explicativa que
rompe com a noção da interação direta entre organismo-ambiente. É necessário advertir
que não há nenhuma crítica presente neste ponto, apenas uma tentativa de elucidar o
modo como as práticas culturais tentam solucionar alguns de seus problemas – práticos
neste caso – e acabam criando outros – conceituais, como os discutidos até aqui.
Ocorre que estes aspectos conceituais também orientam práticas. Neste caso, a
prática educacional passa, em sua maior parte, a colocar o conhecimento como uma
forma de domínio sobre uma série de regras – o que pode ser positivo no sentido de
facilitar o processo instrucional de grandes volumes de informação. A observação que
se relaciona ao que foi apresentado até aqui nesta seção é que este grande volume de
informações, ao não encontrar contextos que lhes exijam um exercício – quer em
sentido público ou privado –, pode retroceder ao ponto de não mais serem exercitadas,
incorrendo no esquecimento – ou na extinção, como preferiria Skinner. Este tipo de
comportamento, chamado por Skinner de ‗governado por regras‘, precisa esperar muito
tempo até ser modelado pelas contingências, ou seja, até que possa ser exercitado de
forma pública ou aberta, quando tende a se consolidar. De acordo com ele51
, este deve
ser o motivo pelo qual as escolas devem permanecer sendo lugares onde os alunos
ouvem e leem. Aqui está presente a crítica do autor, porquanto a aprendizagem acaba
sendo limitada por eventos contingentes à instrução e mantendo a suposição de que ela
51
Skinner, B. F. A escola do futuro. In: Questões recentes na análise comportamental. Trad. Anita Neri.
Ed. Papirus, 2ª edição. Campinas – SP, 1995. (Obra original publicada em 1989).
84
será ‗preservada‘ ou ‗armazenada‘ até o momento propício – exigência do contexto –
para que possa ser utilizada. Dessa forma, a lacuna para os termos psicológicos que
evocam a presença de um agente mediador interno – tal qual a hipótese cartesiana – está
posta.
Ao agrupar este conjunto de fatores, parece possível relacionar o problema como
um debate ou, de modo mais brando, como um desencontro entre a linguagem comum e
a ciência. Nesse sentido, adverte Chiesa (2006): Os behavioristas radicais veem como
imprudente a prática de adotar sem críticas os termos da linguagem comum,
argumentando que estes próprios termos podem influenciar o comportamento dos
cientistas e trazer com eles problemas desnecessários. Ainda de acordo com esta autora,
os problemas advindos deste uso não crítico do linguajar comum podem ser: a) a
impossibilidade absoluta de se chegar a uma concordância descritiva dos tipos de
palavras utilizadas para tratar dos termos psicológicos; b) o problema de ordem
topográfica, ou seja, qual a forma descritiva que torna possível afirmar ou inferir que
algo foi aprendido? ; c) A emissão de diferentes respostas para uma mesma situação,
que para o presente texto pode ser exemplificado da seguinte forma: se duas pessoas
executam uma atividade de modo distinto, porém com resultado semelhante, é possível
afirmar que ambas aprenderam da mesma forma? É possível um tipo de aprendizagem
melhor do que o outro?
Na aposta de Chiesa (2006), muitos destes problemas são referentes ao sistema
conceitual da linguagem da mente e de aprendizagem que herdamos da linguagem
comum, especialmente naquilo que diz respeito aos tipos de questões formuladas sobre
aprendizagem. Assim, esta autora concordará com Catania52
(1999) de que qualquer
definição de aprendizagem que fale em ‗uma mudança relativamente permanente no
comportamento‘ exigirá que perguntas sobre o próprio comportamento sejam feitas por
aqueles que pretendem investigá-lo. Haveria problemas então para definir outras
perguntas, como: o que definiria a mudança? Quão estável é ‗relativamente estável‘?
Quanto tempo isso deveria durar para ser considerado estável? Assim, argumenta a
autora, o sistema conceitual embutido na linguagem da aprendizagem nos dirige para
longe das mudanças no comportamento e nos situa em direção àquilo que foi aprendido,
de modo a fazer disto algo como uma entidade possuída pelo aprendiz.
52
Catania cita a definição de Kimble (1961) em Hilgard & Marquis‘ Conditioning and Learning ( 2nd
edition. New York: Appleton Century Crofts. [1, 73, 367]. No trecho citado: Um livro texto pode definir
aprendizagem, por exemplo, como uma mudança relativamente estável no comportamento, resultante da
experiência.
85
Na dificuldade de encarar de modo preciso e consensual o tema, a abordagem de
Catania (1999) permite o uso do conceito de forma a sustentar a base pragmática que
acompanha o behaviorismo radical. Em seu livro, específico sobre o tema, este autor
afirma que não há definições satisfatórias para a aprendizagem, mas ainda assim
acentua que é possível estudá-la e completa de modo explicativo: Fazemos isso sempre
que observamos como os organismos vêm a se comportar de maneiras novas. Para
tanto, reforça, é preciso examinar dois tipos de questões: a) qual a natureza dos eventos
a que nos referimos como aprendizagem? ; b) qual a melhor forma de falar deles?
O entendimento de como Skinner tenta encontrar soluções para este problema
exige que se conheça um pouco mais das ciências baseadas em sua proposta filosófica –
o behaviorismo radical: a análise experimental do comportamento, a análise do
comportamento e a análise comportamental aplicada. Dessas três, apenas as duas
últimas serão foco da presente análise, à medida que tratam de aspectos que não
possuem o mesmo rigor do controle experimental e que são aplicadas a situações do
cotidiano. Breve introdução a seus princípios será fundamental para que se possa
entender, posteriormente, sua aplicabilidade à educação.
3.4.2. – Análise do comportamento: alguns princípios
Não é simples a tarefa de definir, ao menos de modo absoluto e unificado, o que
é a Análise do Comportamento. Historicamente este campo do conhecimento em
psicologia foi se ampliando e se diversificando de tal modo, que as definições possíveis
foram, cada vez mais, variando na tentativa de abranger todas as áreas nas quais sua
atuação se faz presente. De imediato, parece que a definição oferecida por Tourinho e
Sério (2010) apresenta uma noção desta ideia. Dizem os autores: ―A análise do
comportamento é frequentemente referida como uma orientação teórico-metodológica
em Psicologia, amplamente sustentada na obra filosófica e científica de B. F. Skinner‖.
Os autores alertam, desde o início da definição oferecida, a que o cunho ‗teórico-
metodológico‘ de imediato introduz uma das principais características da obra, ao
delimitar seu objeto de estudo, ou seja, o comportamento.
Talvez uma caracterização mais precisa daquilo que se entende por
‗comportamento‘ dentro desta proposta teórico-filosófica se faça ainda necessário. Em
artigo específico sobre o tema, de Rose (2001) inicia sua análise definindo o termo
genericamente, afirmando quanto a ele: ―refere-se à atividade dos organismos (animais,
86
incluindo o homem), que mantêm intercâmbio com o ambiente‖. Deste modo, já parece
evidente a caracterização do comportamento como uma forma de interação. No entanto,
esta compreensão parece ficar ainda mais evidente ao se recorrer ao próprio Skinner
ainda em 1938, quando, em seu artigo O comportamento dos organismos, afirma que
―Comportamento é apenas parte da atividade total de um organismo. É aquilo que um
organismo está fazendo‖ (grifo no original)‖. Segue com o intuito de delimitar seu
entendimento: ―é aquela parte do funcionamento de um organismo envolvido em agir
sobre, ou em interação com o mundo externo‖. Diante daquilo que até aqui está exposto,
parece razoável desfilar a conclusão de que comportamento, assim como assegura
Matos (2001), é interação, uma interação que se dá, de modo ininterrupto, entre
organismo e ambiente. De modo a caracterizar o que se entende por interação, é
possível recorrer àquele que talvez seja o trecho mais citado pelos estudiosos da obra do
psicólogo norte-americano, parte do primeiro parágrafo de sua obra Verbal Behavior53
(1957): ―Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez são modificados
pelas consequências de sua ação‖. Desse modo, aquilo que é apresentado como
interação pelo autor recorre a qualquer forma pela qual o organismo promove ações
sobre o ambiente e o modifica, e também no caminho inverso, no qual variações no
ambiente – decorrentes ou não da ação do organismo – interferem no comportamento.
Resumindo: a análise do comportamento é uma proposta teórico-metodológica
que assume, para as ciências psicológicas, o comportamento como seu principal objeto
de estudo, aceitando todo e qualquer fenômeno humano como um processo
comportamental, dado em que este mantém necessariamente um intercâmbio com o
ambiente, lida, portanto, com o comportar-se em contextos. Assume, assim, uma
posição filosófica antimentalisma, passando deste modo a buscar a explicação para
todos os tipos e níveis de comportamentos, na análise da interação entre o organismo e
o ambiente – que deve ser aqui entendido com a amplitude da proposta, pois abrange o
ambiente da espécie, do indivíduo e também o cultural. Este último parece ter maior
importância para este trabalho.
De fato, poucos são os itens que caracterizam tão bem a obra do psicólogo norte-
americano, quanto à sua rejeição enfática ao mentalismo. Este tema central permitiu um
posicionamento ante a problemas tradicionais da psicologia de modo muito particular.
Conhecer os argumentos skinnerianos para esta rejeição se faz necessário.
53
Traduzido no Brasil como O comportamento verbal, com tradução de Maria da Penha Villalobos e
publicado pela editora Cultrix em conjunto com a Editora da Universidade de São Paulo, no ano de 1978.
87
Parece não haver, ao menos de imediato, consenso acerca do conceito de
mentalismo (Zílio e Carrara, 2008). De acordo com estes autores, o mentalismo, quando
definido na literatura behaviorista radical – filosofia da ciência do comportamento – se
refere a qualquer enfoque psicológico, antropológico, sociológico ou filosófico que
considere o ―comportamento como resultado de processos e/ou agentes internos e/ou de
outra natureza ou substância distinta daquela da conduta a ser explicada‖ .
Outra definição, esta de caráter mais abrangente, é oferecida por Carvalho Neto
(2001) em sua tese de doutorado. Encarece o autor: ―o conceito de mentalismo seria
usado para designar um modo de explicar os eventos comportamentais a partir de
agentes causais interiores. A explicação mentalista não estaria atrelada apenas a uma
entidade interna cujo nome seria ‗mente‘, mas em qualquer explicação do
comportamento cuja natureza e função fossem a mesma, inclusive ‗alma‘ e ‗espírito‘.‖
Carvalho Neto fala em natureza e função do mentalismo, relacionando o aparecimento
deste seja com aspectos mentais ou psíquicos, seja com fisiológicos, conceituais ou
ainda com fatores não especificados (neste caso, referindo-se a comportamentos quando
tomados a partir de uma autodeterminação).
Definido aquilo que aqui é entendido por mentalismo, apresenta-se breve
exposição dos problemas potencialmente acarretados por este, o que permitirá o
levantamento das questões relacionadas com a educação. Recorremos a Keat (1972,
citado por Zílio e Carrara, 2008), que apresenta algumas de suas objeções ao termo. À
luz do pensar desses autores, entre outras coisas, o mentalismo: a) não oferece
explicações sobre o comportamento; b) é uma má teoria científica; c) é incapaz de
apresentar qualquer explicação sem cair no problema dos agentes internos; d) desvia o
foco da psicologia do comportamento; e) sustenta uma ontologia dualista entre o mental
e o físico.
Ao tomar o comportamento como resultado de qualquer processo que ocorra no
interior do organismo, certamente múltiplas variáveis que com ele se relacionam são
negligenciadas. Este parece ser um dos argumentos centrais e mesmo caracterizadores
da obra de B. F. Skinner, como pode ser conferido em seu último texto, escrito em
1990. Ratifica esta afirmação o texto de Matos (2001), que, ao explicar o atributo
―radical‖ à obra do autor, enfatiza que esta definição se deve ao fato de sua obra negar
enfaticamente a existência de qualquer atributo de caráter metafísico e aceitar, todo e
qualquer fenômeno humano que caracteriza a interação deste com o ambiente como um
fenômeno comportamental. Desse modo, Skinner toma o comportamento como raiz –
88
seguindo a etimologia da palavra radical – e busca entendê-lo, sistematicamente,
analisando as interações entre os sujeitos e os ambientes nos quais atuam. É este o
ponto negligenciado pelo mentalismo. Nas palavras do autor (1974/2002), o triunfo do
mentalismo se estabelece ―quando não sabemos por que agimos, tendemos a inventar
causas‖. Assim surgem algumas das metáforas comumente presentes não apenas na
linguagem cotidiana, mas sobretudo nas práticas pedagógicas e, consequentemente, na
formação de educadores.
Skinner, ao longo de sua obra, foi criterioso analista da etimologia das palavras,
buscando estabelecer a relação entre estas e o modo como o mentalismo se instaura na
cultura e nas comunidades verbais. Desse modo, o autor se reporta, no decorrer de sua
obra, a termos variados sobre o psiquismo, remetendo-os à origem em que parecem
subsidiar um caráter mental. Aqui iremos nos ater apenas àqueles termos que
apresentam uma relação direta com a educação, alguns deles apresentados pelo autor
em sua obra Tecnologia de Ensino (1968/1972). De acordo com o autor (naquilo que
segue, sempre na obra já citada), algumas das metáforas mais comuns relacionadas com
a aprendizagem são: crescimento ou desenvolvimento, aquisição e construção.
A metáfora do crescimento ou desenvolvimento ocorre, de acordo com o autor,
estabelecendo uma relação direta com a maturação, e afirma que aquela é convincente,
acima de tudo, nos primeiros anos. O estudo topográfico dos comportamentos que são
típicos a cada idade parece fomentar esta proposta. Skinner aponta sua crítica: ―a
metáfora atribui só um modesto papel ao professor, que ‗não pode realmente ensinar,
pode apenas ajudar o aluno a aprender‘. Ensinar é fomentar ou cultivar a criança em
crescimento, dar-lhe exercícios intelectuais, ou orientá-la no sentido horticultural de
dirigir ou guiar seu crescimento‖ (itálicos no original). O caráter metafórico é
denunciado quando o autor observa que o desenvolvimento dificilmente responderá por
si só em relação a muitos aspectos que dependem, necessariamente, do ambiente,
especialmente do ambiente cultural.
A ideia de aquisição ou apreensão também é alvo de crítica. Segue como
elaborada pelo autor: ―O aluno aplicado capta a estrutura de fatos ou ideias. Se o aluno
não for ágil, o professor o impressiona com os fatos, incute nele as ideias, ou inculca o
bom gosto e o gosto de aprender‖ (itálicos no original). Vai além e expande a crítica a
novas versões: ―Em versão osmótica da metáfora de aquisição, o estudante absorve (no
original) conhecimentos do mundo ao seu redor‖. Nesse momento, Skinner pode
caracterizar os problemas que começam a incidir sobre as metáforas: a primeira –
89
crescimento ou desenvolvimento – dá conta apenas da estrutura do comportamento,
tomando-a como que absoluta para o processo de aprendizagem; a segunda – aquisição
– oferece subsídios apenas para o ambiente estimulante. De acordo com o autor, duas
variáveis ainda são insuficientes para explicar o processo de aprendizagem. É enfático
em seu comentário: ―Ninguém literalmente cultiva o comportamento de uma criança
como se cultiva um jardim, nem transmite informação como se leva um recado‖
(itálicos no original).
A última das metáforas apresentadas em Tecnologia do Ensino é aquela que se
refere à ―construção‖. Como de costume, segue a crítica: ―Neste sentido se diz que o
professor informa o aluno, querendo dizer que seu comportamento ganha forma ou
molde. Ensinar é edificar no sentido de construir‖. O autor conclui sua análise sobre o
tema, quando relacionada com a educação, apontando para a difusão destas metáforas
em nossa linguagem, o que torna quase impossível, o alerta é dele, evitá-las em nossas
discussões informais. Neste ponto, relaciona suas propostas para a educação com as
bases de sua filosofia da ciência, assim sinaliza que qualquer análise do intercâmbio
entre um organismo e um ambiente deve evitar metáforas. E lembra o modo como o
conhecimento sobre a aprendizagem tem se estabelecido, considerando sempre todos os
termos intercambiáveis sobre os quais ela ocorre, a saber: a ocasião em que o
comportamento ocorre, o próprio comportamento e as consequências deste – aqui está a
tríplice contingência, conceito fundamental em sua obra que fala sobre o modo como
eventos ambientais e comportamentais apresentam relações de dependência.
Optou-se aqui por estampar uma quarta metáfora, também concebida deste modo
por Skinner, mas em obra diferente, que não trata diretamente de temas educacionais,
mas sim de sua filosofia da ciência: Sobre o behaviorismo (1974/2002). Incluí-la neste
trabalho revela pertinente um dos fatores que parecem permear mais fortemente o modo
como as avaliações sobre a aprendizagem ocorrem em nossa cultura: a metáfora do
―armazenamento‖. Skinner pontifica que, por diversas razões, ao longo dos tempos, as
pessoas passaram a fazer cópias do mundo que as cercam, bem como registros do que
ocorreu nesse mundo, mais recentemente fotografias e arquivos digitais permitem o
tempo todo, que se faça alusão a uma ideia de armazenamento. As avaliações, provas,
vestibulares, concursos, partem sempre deste princípio: verificar a quantidade de
informação ―armazenada‖. Skinner argumenta que as contingências que afetam um
organismo não são armazenadas por ele, elas nunca estão dentro dele, elas
simplesmente o modificam e, nesse sentido, que deve estar em jogo, não é o que se
90
lembra, mas sim aquilo o que se faz a partir daquela combinação entre evento e
comportamento, estando a informação disponível ou não.
Estas quatro metáforas parecem suficientes para a construção do argumento sobre
o modo como conduzem e instauram a compreensão de que a aprendizagem se
relaciona ao interno, senão tão somente, principalmente ao longo de sucessivas
gerações. Esta compreensão insere inúmeros problemas para as práticas educacionais.
Afinal de contas, se não ‗adquire‘, não ‗armazena‘, não ‗desenvolve‘, não ‗constrói‘ ou
ainda se o faz em um ritmo ou frequência diferente daquele que está presente ―na
média‖, é porque ‗não aprende‘ e, ao não aprender, configura o diferente, precisa ser
explicado, causas precisam ser encontradas e toda a concentração é voltada para o
interno, o mental. Parece difícil que a suposta explicação tome rumo diferente.
3.4.3 – Algumas contribuições da análise do comportamento para a educação
As primeiras incursões sobre a análise do comportamento no campo educacional
podem ser identificadas ainda no ano de 1958, ano este em que B.F Skinner escreve seu
primeiro artigo sobre as ―Máquinas de Ensinar‖. Estritamente, estas são as primeiras
incursões na forma de análise comportamental aplicada – outro dos ramos da ciência do
comportamento influenciado pelo behaviorismo radical – já que, ainda no ano de 1953,
em Ciência e Comportamento Humano, Skinner fazia observações sobre o campo
educacional para se referir a diferentes tipos de agências de controle, no qual a educação
aparecia conjuntamente com o governo e as religiões.
Em seus primeiros artigos de caráter aplicado, Skinner propunha a Instrução
Programada e, de acordo com Teixeira (2003), ―a mecanização da relação instrucional,
através de Máquinas de Ensinar‖. A autora apresenta ainda alguns dos objetivos
apontados pela análise do comportamento para a educação naquele momento. De acordo
com ela, Skinner discutia graves problemas do ensino em seu país e se preocupava com
o fato de esses problemas não receberem a atenção adequada. Desse modo é que a
análise do comportamento se aproxima da educação, na busca de ―deduzir programas,
esquemas e métodos de instrução‖ (Skinner, 1968/1972).
Em tal ponto, alguns esclarecimentos se tornam importantes: a consideração
feita, em outro passo de que a aprendizagem não possui uma definição satisfatória e
que, para os termos aqui abordados, ela pode ser entendida como qualquer
comportamento novo apresentado pelo organismo, como sugeriu Catania (1999). Este
91
fator deve ser considerado ainda mais quando Skinner aborda a etimologia do ensinar
no primeiro capítulo de Tecnologia de Ensino (1968/1972), em um trecho explícito
sobre o tema:
Tanto quanto aqui nos ocupa, ensinar é simplesmente arranjar
contingências de reforço54
. Entregue a si mesmo, em dado
ambiente, um estudante aprenderá, mas nem por isso terá sido
ensinado. A escola da vida não é bem uma escola, não porque
ninguém nela aprende, mas porque ninguém ensina. Ensinar é o
ato de facilitar a aprendizagem; quem é ensinado aprende mais
rapidamente do que quem não é. O ensino é, naturalmente, muito
importante, porque, do contrário, o comportamento não
apareceria. (Tudo o que hoje se ensina deve ter sido aprendido,
pelo menos uma vez, por alguém que não foi ensinado, mas
graças à educação já não é preciso esperar por estes eventos
raros).
Esta combinação de conceitos parece elucidar a compreensão de Skinner que tornaria as
máquinas de ensinar o instrumento tecnológico que permitiria um arranjo apropriado
das contingências daquilo que se pretende ensinar. De qualquer modo, parece
importante entender um pouco mais da justificativa de Skinner para a construção dessas
máquinas, bem como sobre o seu funcionamento. É preciso lembrar, de antemão, que o
auge dessas máquinas, como Skinner as projetou, ocorreu entre os anos de 1950 e 1970,
ou seja, com uma tecnologia precária se comparada àquela presente em nossos dias.
Seu primeiro argumento para a construção dessas máquinas se refere a dimensão
da população mundial. Em seu argumento ele diz: ―Nunca houve tanta gente no mundo,
e a grande maioria quer ser educada‖. É válido lembrar que esta observação foi feita em
1968 e que de lá para cá o mundo já ganhou pelo menos outros dois bilhões de
habitantes. De acordo com ele, essa procura maciça por educação não poderá ser
satisfeita com a mera construção de mais escolas e com a formação de mais professores.
Nesse sentido, diz ele, a educação precisará se tornar mais eficaz, com a simplificação e
revisão de currículos e técnicas de ensino melhoradas. Em sua provocação, ele dirá que
em qualquer outra área que houvesse um aumento de demanda tão grande, algum
54
O termo é empregado ao longo de toda a obra skinneriana para designar a apresentação de um estímulo
que promove o aumento de frequência no responder. Catania (1999) apresenta a divisão do termo como
uma operação ou como um processo. No primeiro caso, designa a apresentação de consequências quando
uma resposta ocorre; e no segundo, o aumento nas respostas que resultam do reforço.
92
equipamento já teria sido inventado para atendê-la de modo mais econômico e racional.
Em seu entender, a educação tarda a fazer este movimento em função de concepções
errôneas de suas tarefas.
Em toda uma trajetória que procura estabelecer a relação entre os princípios de
aprendizagem conhecidos em seu laboratório e a aplicação desses à aprendizagem
humana, ele afirma que os resultados se mantêm surpreendentemente bons para sujeitos
humanos. Nesse sentido ele lembra que, mesmo para a aprendizagem de organismos não
humanos, o arranjo do conjunto de contingências que podem promovê-las nem sempre
pode ser organizado manualmente. Ressalta, então, que o organismo humano irá
requerer uma instrumentação ainda mais sutil. Assim, começa a destacar algumas
características de sua máquina de ensinar. Pontua:
Uma máquina de ensinar apropriada deve ter várias características
importantes. O aluno de preferência deve compor a resposta, em
vez de escolher entre alternativas, como num autoavaliador de
escolha múltipla. Uma das razões para isso é a de que ele deve
lembrar e não só reconhecer a resposta – ele deve dar a resposta e
verificar que está certa. Outra razão é a de que o material efetivo
de múltipla escolha deve conter respostas errôneas plausíveis, que
estão fora de lugar no delicado processo de ―modelar55
‖ o
comportamento. A possibilidade de respostas erradas fortalece
formas indesejáveis de comportamento. (...). Um segundo
requisito mínimo para uma máquina de ensinar é também algo
bem diferente do que acontecia com as primeiras versões. Ao
adquirir um comportamento complexo, o estudante deve percorrer
uma sequência cuidadosamente planejada de passos, algumas
vezes de extensão considerável. Cada passo deve ser tão pequeno
que possa sempre ser dado sem esforço e, no entanto, ao dá-lo o
estudante se aproxima um pouco mais do comportamento
inteiramente competente. A máquina deve garantir que cada um
desses passos seja dado na ordem cuidadosamente prescrita. (B.
F. Skinner, 1968/1972) (itálico e aspas presentes no texto
original).
55
O processo de modelagem se refere ao uso de reforçamento nas ocasiões em que as respostas se
aproximam sucessivamente do comportamento desejado.
93
Adiante em seu texto, Skinner fará a ressalva de que a própria máquina,
naturalmente, não ensina. Seu papel é o de colocar o estudante em contato com a pessoa
que preparou o material que a máquina apresenta. Trata-se de artifício econômico, visto
que pode colocar um programador em contato com um número indefinido de
estudantes. Já se preparando para as críticas, adverte que, apesar da sugestão da
produção em massa, o efeito sobre cada um dos alunos é surpreendente. É certo que o
debate acerca de uma educação com produção em massa ou de uma massa sem qualquer
educação pode ser acalorado, não sendo este o objetivo aqui presente. De qualquer
modo, é preciso lembrar que tudo isso dependerá do material produzido para a
apresentação na máquina que se utilizar, sendo este um dos papéis fundamentais do
professor.
O instrumento em sua forma rudimentar para os dias atuais, mas inovador para a
época, dependia de conjuntos de apresentações separadas de material visual ou quadros
armazenados em discos, cartões ou fitas. Um quadro deveria ser apresentado de cada
vez, com os quadros adjacentes permanecendo fora da visão. O aluno teria então de
compor a resposta, ajustando números ou letras de acordo com o problema apresentado
– é preciso lembrar a observação anterior de que a composição deveria considerar a
modelagem, sempre com passos muito pequenos do início até a obtenção da resposta
final desejada para o problema apresentado – e os resultados são comparados pela
máquina com uma resposta previamente codificada. No caso de resposta correta, um
novo quadro aparece, trazendo um novo problema. O aluno continuará desta maneira até
que tenha respondido a todos os quadros. É certo que o êxito no processo de ensino
dependeria de como o material didático estivesse ali organizado.
Para Skinner, as vantagens deste uso de tecnologia seriam muitas, entre elas: a)
um intercâmbio constante entre o programa e o aluno, promovendo uma atividade
contínua que não ocorreria em outras circunstâncias; b) a exigência da máquina de que
um ponto seja completamente compreendido antes que se passe adiante, evitando
lacunas no domínio que mais tarde facilitarão o esquecimento daquilo o que foi
aprendido; c) ao permitir a inclusão de qualquer material didático, a máquina
apresentará ao aluno somente aquilo para o que ele está preparado, promovendo um
processo instrucional a partir de uma base previamente conhecida; d) a construção
ordenada do programa facultará que a máquina ofereça pistas sutis e as retire
gradativamente, de modo a aproximar o aluno da composição da resposta esperada; e) a
94
máquina poderia oferecer um retorno imediato para as respostas do aluno, promovendo
assim modelar e manter o comportamento mais fortemente.
É interessante ressaltar que os métodos propostos se popularizaram rapidamente
nos Estados Unidos56
(Teixeira, 2003) e, mais ainda, que também desembarcaram no
Brasil nos primeiros anos da década de 60, através de um grupo de pesquisadores norte-
americanos em conjunto com outro grupo brasileiro. Os esforços conjuntos de Carolina
Bori, Rodolpho Azzi, Gilmour Sherman e Fred Keller serviram à implantação do curso
de psicologia da UnB através do formato de ensino programado que ficou conhecido
como PSI – Sistema de Ensino Personalizado.
Academicamente os métodos e incursões da análise do comportamento na
educação também parecem ter sido férteis. Freitas (1987), em sua tese de doutorado,
contabilizou um total de 240 trabalhos nesta área entre os anos de 1962 e 1982. Todas
as análises foram realizadas através da consulta de periódicos, teses, dissertações,
trabalhos não publicados e reuniões científicas.
A partir da década de 80, entretanto, ocorre vertiginosa queda nos trabalhos da
área (Teixeira, 2003). A decadência no interesse pela instrução programada se deu
também em seu país de origem. Parte em razão do possível atraso educacional
americano quando comparados ao soviético na mesma época – diagnóstico este
elaborado pelo governo norte-americano em função de um avanço soviético em seus
projetos espaciais. Parte pelo domínio exercido pela psicologia cognitiva com termos e
conceitos mais próximos daquilo o que era familiar ao contexto educacional. Ambas as
observações se referem a conclusões oferecidas pelo próprio Skinner.
Apesar de falar sobre a atividade do professor em diversos de seus textos,
inclusive dedicando um capítulo especial a estes em Tecnologia do Ensino (1968/1972)
no qual tenta responder a questão sobre os motivos pelos quais os professores
fracassam, Skinner apresentou reflexões específicas sobre a formação do educador
(Cirino, 2005). Aponta, no entanto, algumas habilidades necessárias ao professor para
que este possa exercer adequadamente sua função. Cirino (2005) cita algumas delas,
consideradas importantes para Skinner. Ei-las:
1) Explicitar objetivos educacionais em termos comportamentais. Há uma citação
explícita de Skinner (1968/1972) nessa direção. Afirma que ―o primeiro passo
56
O próprio Skinner, em uma nota de rodapé de seu texto A escola do futuro, de 1989, apresenta alguns
dados: Um editorial da revista Science, no final de 1962 documentou que havia 250 cursos programados
para escolas primárias e secundárias e para diferentes cursos superiores de matemática; 60 em ciências;
25 em eletrônica e engenharia; 25 em línguas estrangeiras e 120 em estudos sociais.
95
ao planejar a instrução é definir o comportamento terminal. Que fará o
estudante como resultado de ter sido ensinado?‖. Neste caso, Cirino esclarece
que especificar as ações em termos comportamentais envolve delimitar a ação,
assim como suas consequências. O planejamento do ensino tem início neste
processo: saber o que se espera que o aluno realize e produza de alterações em
seu ambiente após o aprendizado.
2) Planejar procedimentos educacionais. Skinner (1968/1972) assevera: ―apenas
definindo o comportamento que queremos ensinar podemos começar a
pesquisar as condições das quais ele é função e planejar um ensino efetivo‖. É
valido ressaltar que aqui se encontra um dos grandes papéis dos professores
para Skinner. O autor destaca quanto os profissionais do ensino gastam tempo
demasiado com tarefas que contribuem pouco ou mesmo nada para o
aprendizado do aluno e defende que um modelo de instrução programada
poderia liberar o professor para aquilo que é realmente importante, ou seja,
buscar formas adequadas de ensinar aquilo que se definiu que deve ser
aprendido.
3) Executar os procedimentos educacionais planejados. O ensino é um arranjo de
contingências sob as quais os alunos aprendem (Skinner, 1968/1972). Neste
sentido, cabe ao professor arranjar contingências especiais que facilitam a
aprendizagem, ensejando o aparecimento do comportamento previamente
definido como objetivo daquele processo. O modo como o professor deverá
fazê-lo, certamente irá diferir de uma disciplina para outra, ou, ainda mais, de
uma unidade para outra da mesma disciplina. Todo planejamento de execução,
neste caso, deve seguir as conhecidas leis para o estudo do comportamento, ou
seja, deve considerar: a) a ocasião que torna mais provável a ocorrência de um
comportamento; b) o próprio comportamento; e c) as consequências produzidas
pela emissão do comportamento, ou seja, se os efeitos por ele produzidos são
aqueles previamente definidos como alvo do processo de aprendizagem.
Nota-se, desse modo, que o compromisso que se estabelece com a formação do
educador está intimamente ligado com o aprendizado e os benefícios que estes podem
obter ao conhecerem adequadamente os princípios gerais do comportamento, que,
grosso modo, são princípios fundamentais de aprendizagem. A instrução programada ou
o sistema personalizado de ensino são algumas das propostas em análise do
96
comportamento que levam estes princípios a cabo e com o devido rigor metodológico.
No entanto, fica claro que, à medida que se define aquilo que deve ser aprendido,
elabora-se um planejamento e sistematiza-se sua execução, os princípios do
comportamento não apresentam caráter dogmático para sua execução. Pelo contrário,
disponibiliza-se como uma possibilidade de intercâmbio com qualquer tipo de técnica
ou procedimento pedagógico que se habilite a dialogar com os princípios básicos da
aprendizagem. Afinal de contas, não é isso o que se espera do aluno? Luna (2000)
parece sintetizar com muita propriedade as considerações necessárias para este
intercâmbio. Isto é dele:
A tradução de uma teoria qualquer em práticas pedagógicas não é
simples, direta e, em muitos casos, nem sequer pretendida, como é o caso
típico da teoria piagetiana e dos estudos de Emília Ferreiro. Supondo-se
que a teoria seja mesmo funcional para a educação, o que os responsáveis
diretos pelo ensino precisam conhecer é quais são os princípios desta
teoria e de que forma eles podem se reverter em procedimentos
aplicáveis. O que lhes tem sido passado, de modo geral, é ou um resumo
da teoria, ou pior, procedimentos dela derivados sob a forma de receitas,
que acabam virando fetiches. A questão é que para corrigir esta distorção
é necessário não apenas conhecer bem a teoria, como ter uma visão clara
do que ensinar, como ensinar e para quem ensinar.
Em 1989, Skinner já dava dicas do que acreditava poder vir pela frente. Nesse
período ele aponta o computador como a máquina de ensino ideal. Adverte, no entanto,
que este não deveria ser usado como um substituto do professor e das aulas
simplesmente para ensinar classes numerosas. Seu verdadeiro benefício residia em
trazer a vida mais próxima do real para a sala de aula, fazendo isso de maneira
esquematizada através da programação do ensino.
Neste caso, restaria ao professor, além do papel de programador do material
didático no qual é o especialista – aqui estaria outro benefício, pois o material didático
poderia ser sempre organizado por especialistas nas áreas mais variadas do
conhecimento – um papel de conselheiro, permanecendo com o aluno por mais tempo e
procurando conhecê-lo melhor. Ao professor caberia o papel de se tornar mais capaz de
ajudar os estudantes a escolher seus respectivos campos de interesse. O papel conjunto
seria o de tomar partido em um sistema de ensino mais eficiente, no qual um número
maior de pessoas poderia ser ensinado com informação organizada e sistematizada.
97
A Análise do Comportamento vem desenvolvendo, ao longo de seus quase 100
anos de história, ferramentas para o estudo da aprendizagem e tem se disponibilizado a
ofertar estas ferramentas aos mais variados campos da atividade humana. No entanto, se
a formação de educadores se abrirá para um diálogo com este campo do conhecimento,
parece depender de um conjunto de variáveis que exigem a superação de preconceitos
históricos, derivados de equívocos conceituais em função de suas apresentações
banalizadas ou superficiais.
A importância desta abertura ao diálogo e também do debate conceitual mais
acurado e rigoroso serão de extrema importância para que a educação não continue
impregnada do linguajar comum da mente e da aprendizagem.
A seção seguinte abordará exatamente este tema: a formação de educadores e a
adesão deles a um ou mais modelos de mente. Este tema se estende à medida que
também se busca investigar, em caso de adesão, o modo como uma teoria interfere em
sua prática docente ou ainda como atua na formação dos educadores para quem
lecionou. Por fim, mas ainda como fruto dessa extensão, indaga-se o rigor com que os
debates conceituais são abordados na formação dos educadores, tendo em vista, neste
caso, o modo como tais conceitos podem influenciar suas práticas.
Capítulo IV – Análise das entrevistas e tratamento dos dados
Neste ponto, foram escolhidos professores atuantes nas áreas de pedagogia e
licenciatura, docentes na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, para a
realização de entrevista semiestruturada. Este tipo de pesquisa é definida por Cozby
(2003) como pesquisa de levantamento, podendo ser caracterizada por empregar
questionários e entrevistas de modo a solicitar às pessoas informações sobre si mesmas,
incluindo suas atitudes, crenças e até mesmo outros fatores, a exemplo de seu
comportamento passado. Neste caso específico, a pesquisa por levantamento se
apresenta de modo importante como forma de estudar as relações presentes entre as
variáveis mencionadas – o conceito de mente e o modo como influencia no processo
educacional – e as atitudes por ele orientadas como atividades de aprendizagem.
Buscam-se identificar as relações, interferências e as possíveis mudanças – ou ausência
destas – ao longo do tempo. Espera-se identificar as origens filosóficas que nortearam a
formação destes educadores e, consequentemente, o modo como passaram a formar
98
outros educadores, buscando assim verificar a medida que são marcados pela noção da
‗mente‘ e do ‗interno‘. Opta-se, neste primeiro, momento por entrevistar somente
profissionais atuantes na área específica da pedagogia, pois, a inclusão de outras áreas
certamente poderia levantar questões novas, não havendo tempo suficiente para
investigá-las.
A escolha dos participantes desta pesquisa se baseou no Projeto Político-
Pedagógico do curso de pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT,
cujo recredenciamento foi obtido pela portaria-MEC n. 341, de 1º de fevereiro do ano
de 2005, projeto este elaborado para fins de adequação às diretrizes curriculares
nacionais do curso de pedagogia.
A leitura do referido projeto foi de fundamental importância para a identificação
dos eixos formadores do curso e dos conceitos utilizados como base de orientação
teórica e metodológica por seus professores. Lembro neste momento que é exatamente
em busca do modo como os conceitos são utilizados e interferem (ou não) na prática
que esta pesquisa foi planejada.
A importância da análise dos conceitos e do modo como eles são
empregados na busca por operar as práticas parece ficar evidente ao se tentar
compreender o histórico do Projeto Político-Pedagógico em questão. O projeto atual
descortina a terceira reformulação no histórico do curso, sucedendo aquelas ocorridas
no ano de 1988 e 1995. A primeira destas reformulações resultou, de acordo com trecho
do próprio documento ‗dos debates travados internamente sobre o curso e a identidade
do pedagogo, bem como dos debates ocorridos em âmbito nacional. Em tais debates foi
reafirmada a necessidade de articulação do curso com as escolas do 1º e 2º graus como
forma de articular teoria e prática, formação acadêmica e exercício profissional‘.
O movimento de aprofundar os estudos em relação ao curso teve
continuidade e com ele começou a se desenhar a segunda reestruturação do curso de
pedagogia. Nesse momento, já serviam de respaldo os estudos realizados por
pesquisadores que investigavam a formação de professores das séries iniciais do ensino
fundamental nos cursos de magistério da cidade de Cuiabá. São fatores apontados pelo
documento como fundamentais para a justificativa desta nova reformulação: a expansão
expressiva e injustificada do curso de magistério (2º grau); a implantação, no final da
década de 1980, da gestão democrática nas escolas públicas, na qual a escolha da
direção passou a ser feita por eleições diretas – o que abria o precedente para que um
professor formado em qualquer área de licenciatura plena se candidatasse e pudesse ser
99
eleito e também que a escolha do coordenador pedagógico se desse por processo
democrático, sem a exigência da habilitação em supervisão escolar. Neste momento, a
perspectiva apontava para a necessidade de construir um projeto de curso de pedagogia,
sintonizado com a realidade educacional de Mato Grosso. Nessa marcha foram
realizadas ações que estreitaram os vínculos entre a UFMT e os sistemas públicos de
ensino. Estas discussões coletivas apontaram a pertinência de se ‗radicalizar a opção
pela docência, assumindo, prioritariamente a formação do educador das séries iniciais
do ensino fundamental‘. Assim, em decorrência destes fatores e de outros conjuntos de
propósitos, alguns objetivos específicos foram articulados com a estrutura curricular do
curso, sobressaindo estes: a) problematização e compreensão dos limites e
possibilidades do trabalho educativo escolar em toda sua complexidade epistemológica,
humana/social e institucional; b) aprofundamento epistemológico e metodológico nas
ciências que integram o currículo das séries iniciais na perspectiva de ensino nestas
séries; c) concepção de ensino como projeto político-pedagógico, com intencionalidade
e projeção de atividades, coletivamente definidas no âmbito escolar, visando superar
espontaneísmos e imediatismos nas práticas educativas, tendo como perspectiva o êxito
qualitativo na formação de todos os alunos na formação de sua cidadania.
Neste segundo momento, a estruturação do curso em eixos já se revelou
articulada da seguinte maneira57
: a) trabalho pedagógico: ancorado na realidade
educativa da escola e no princípio da construção coletiva e interdisciplinar do
conhecimento profissional; b) polivalência: como busca da compreensão da totalidade
da formação básica; c) formação ético-política: a identificação do licenciando com um
projeto de sociedade.
A terceira modificação no projeto político-pedagógico do curso parece se
justificar, ao menos inicialmente, em decorrência de aspectos político-educacionais,
como afirma o seguinte trecho do documento: ‗Um fator decisivo na elaboração deste
documento foi a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs – pela
Resolução CNE/CP 01/2006. Essas diretrizes estão articuladas com a LDB de 1996 e
com outros textos legais que tecem a reforma da educação superior‘.
57
A apresentação, como disposta no presente trabalho, visa sintetizar de modo compreensível a
articulação dos eixos como apresentada no projeto original. Deve-se destacar que, neste, os eixos não
estão divididos por letras e que estas não representam nenhum tipo de hierarquização ou prioridades no
texto original. Acredito que a apresentação como feita aqui não prejudica a compreensão dos eixos como
articulado no projeto original.
100
Muitas das informações pertinentes à compreensão das transformações
ocorridas nesta última reformulação, assim como seus eixos norteadores, podem ser
identificadas na justificativa e apresentação dos novos núcleos de estudos, que são aqui
desfilados do modo resumido. Possibilitam, simultaneamente, o entendimento das
propostas vigentes para a formação de educadores das séries iniciais do ensino
fundamental, como a justificativa da escolha do público-alvo para compartilhar o
conhecimento de bases filosóficas de interesse da presente pesquisa.
Opto aqui por apresentar o conceito presente em cada núcleo e apenas
algumas das subdivisões que os compõem. A supressão de alguns dos subcomponentes
se justifica pelo espaço limitado deste trabalho e também de modo a viabilizar, de forma
mais precisa, aqueles componentes que fundamentam o agrupamento de temas para a
discussão referente ao conceito de ‗mente‘ e seus subtipos.
O Núcleo de Estudos Básicos é constituído por um conjunto de áreas de
conhecimento, desdobradas em disciplinas que possibilitam formação teórica para a
investigação, análise e organização da educação em suas múltiplas dimensões
(filosófica, antropológica, sociológica, histórica, psicológica), além das relacionadas
com a produção do conhecimento humano e do como se estruturam as organizações
escolares. Alguns dos objetivos espelhados por este núcleo: a aplicação de concepções e
princípios oriundos das diferentes áreas de conhecimento que contribuam para o
desenvolvimento das pessoas, das organizações e da sociedade; a observação, análise,
planejamento, execução, acompanhamento e avaliação de processos educativos e de
experiências educacionais, em ambientes escolares e não escolares; a utilização de
conhecimento multidimensional sobre o ser humano, em situações de aprendizagem;
entre outros fatores suprimidos de acordo com a justificativa anterior. Aqui, uma série
de elementos que demonstram a importância do delineamento conceitual desta área já se
mostram presentes: termos ou expressões como ‗formação‘, ‗análise‘ e ‗produção de
conhecimento‘ possuem certo caráter mediador ou mantenedor/armazenador, além da
pressuposição de algum tipo de substrato autônomo. Neste ponto há também o uso do
termo ‗aprendizagem‘, sem uma especificação de caráter material ou imaterial, ou
mesmo qualquer tipo de rigor conceitual que possibilite a percepção de uma vinculação
epistemológica.
O Núcleo de Estudos Específicos da Formação Profissional agasalha o
objetivo de possibilitar o aprofundamento nos estudos sobre a prática docente na
101
educação Infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental, tanto no âmbito da faixa
etária regular para as crianças que chegam às instituições educativas, quanto na
educação de jovens e adultos. Entre seus objetivos é possível destacar: os estudos de
teorias e metodologias pedagógicas; o estudo, análise e avaliação das teorias da
educação, a fim de elaborar propostas educacionais coerentes e inovadoras. Este é,
fundamentalmente, o ponto que permite questionar os múltiplos subtipos de conceitos
internalistas presentes nas teorias pedagógicas e o modo como estas fazem uso, revisão
e articulação destes conceitos para orientar a prática pedagógica. Permite-se ainda
verificar o modo como o campo trata o tema e a abertura existente para explorar práticas
educacionais de caráter não mentalista.
A articulação entre os anteriores parece ficar a cargo do Núcleo de Estudos
Integradores, que visa proporcionar ao estudante um enriquecimento curricular. Em
síntese, este núcleo se transforma em foco de interesse da presente pesquisa em função
de um de seus objetivos se constituir na participação em atividades práticas, de modo a
proporcionar aos graduandos vivências nas mais diferentes áreas do campo educacional,
assegurando aprofundamentos e diversificação de estudos, experiências e utilização de
recursos pedagógicos. Nesse sentido, buscou-se identificar o modo como as práticas são
orientadas ou conduzidas pelos conceitos de caráter mental-interno e o modo como são,
por sua vez, propagados de sorte a garantir a sobrevivência da cultura da mente. Neste
ponto, são abordados também os recursos pedagógicos, o que permitiu também indagar
acerca das bases conceituais que os amparam.
Cada um dos referidos núcleos apresenta sua relevância naquilo que tange à
formação de educadores e consequentemente do modo como estes tendem a promover
suas práticas. Em assim sendo, a pesquisa aqui apresentada optou por entrevistar
professores do curso de pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT,
atuantes em cada um dos três núcleos que regem a formação atual dos licenciados em
pedagogia, entendendo que este agrupamento, que vai do professor que forma os
educadores das séries iniciais e das práticas pedagógicas utilizadas por estes últimos, é,
em sua maior parte, embriagado por um conceito que ganhou força entre no século
XVII. Goza, ainda nos dias atuais, de um status que, entre outros contextos, além do
pedagógico, é conduzido sem que se leve em consideração enorme parcela de
conhecimento produzido quer no âmbito de modelos imaterial-mentais, de modelos
materiais ou ainda de modelos que simplesmente desconsideram estas divisões. Este é o
102
argumento fundamental para a investigação com professores dos três núcleos de
conhecimento focados, buscando, cada qual com suas características, compreender o
modo como estes fatores incidem na formação de educadores.
A força dos conceitos mentais-internos pode ser percebida em trecho do
documento que justifica a reestruturação mais recente e fala sobre a profissão docente e
suas práticas. Ei-lo:
A docência é, por conseguinte, uma profissão aprendida ao longo
da vida. Assim, é necessário analisar dois elementos curriculares
importantes (que se interpenetram): um, é que os alunos –
licenciandos – e os formadores de professores – os docentes que
atuam no curso – precisam ter consciência sobre a caracterização
do processo de formação para a docência, o que pode ter
implicações na alteração de expectativas, como, por exemplo, de
que o curso de licenciatura vá ensinar a lidar com todas as
situações com que venha a se defrontar o futuro professor, e que
as aprendizagens teóricas e práticas que podem se desenvolver no
curso tenham, efetivamente, o poder de definir, qualitativamente,
a futura prática; outro, é preciso considerar que o aluno, futuro
professor, ao iniciar o curso e cada disciplina dele, já apresenta
concepções, crenças, valores muito arraigados sobre a profissão,
o papel do professor e da escola, o que é ensinar e como se ensina
e o que é aprender. Tais crenças, valores e concepções, que
definem fortemente as decisões pedagógicas, podem passar
intactas pelo curso, podem ser reforçadas ou, o que seria
desejável, podem ser objeto de análise e reflexão que propiciem o
seu reconhecimento.
Em especial no momento em que as crenças, concepções e valores sobre a
profissão, o papel do professor e da escola, do que é ensinar e como se ensina, e o que é
aprender, da forma como são abordadas e podem definir as decisões pedagógicas,
tornando-se assim objeto de análise, o que aqui se espera é que a discussão entre este
conjunto de fatores possa propiciar abertura ainda maior para o debate conceitual no
tocante a conceitos impregnados na referida prática.
103
A presente análise ocorreu mediante entrevistas realizadas de modo presencial,
sendo gravadas em áudio com a autorização dos participantes. A opção pelo uso de
entrevistas se deve tanto ao tipo de investigação conduzida e ao tipo de dados que se
pretende obter, como também em função da pequena amostragem presente. A gravação
do material tem intuito não apenas de permitir um levantamento mais acurado das
informações, como também de disponibilizar este material para investigações futuras.
Especialmente aquelas que procuram apontar vieses de interferência por parte do
investigador nos tipos de perguntas e mesmo no decorrer da interação com o
entrevistado, limitação esta relativamente comum neste tipo de pesquisa, devendo,
portanto, manter a abertura necessária para sua revisão. A interação entre o pesquisador
e os entrevistados, neste caso, ocorreu por períodos que variaram entre dez minutos e
cinquenta e oito segundos (tempo mínimo) e dezoito minutos e vinte o oito segundos
(tempo máximo) e foram baseadas em roteiro parcialmente estruturado que pode ser
encontrado no anexo I. A estruturação parcial do roteiro abrigou caráter explicativo e
introdutório para os participantes, havendo espaço para o desenrolar de novas
indagações em razão das respostas apresentadas.
Como exposto em passagem outra, foram escolhidos para a participação nesta
entrevista professores com larga experiência na formação de pedagogos, detentores de
titulação entre mestrado e doutorado e atuantes em pelo menos um dos seguintes
núcleos do curso de pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT:
Núcleo de Estudos Básicos; Núcleo de Estudos Específicos da Formação; e Núcleo de
Estudos Integradores.
Fundamentalmente, os temas abordados de acordo com o roteiro podem ser
sintetizados do seguinte modo: a) homogeneidade e rigor conceitual no uso de termos
de caráter mental na formação de professores; b) vinculação das teorias pedagógicas às
teorias formais da mente; c) consequências da (não) vinculação às teorias da mente e do
modo como os conceitos mentais são tratados e (não) abordados; d) considerações sobre
um modelo antimentalista para à Educação.
Os dados concernentes às entrevistas serão elucidados em conjunto com a
apresentação de algumas das características58
dos participantes, bem como da
vinculação ao núcleo do curso com o qual este mantém. Posteriormente será
58
As referências expostos no que toca aos participantes, têm por objetivo demonstrar a vinculação e a
experiência de cada um com a formação de professores e foram obtidas através do currículo Lattes de
cada um, estando disponíveis, portanto, no seguinte endereço web: lattes.cnpq.br
104
apresentada a discussão e algumas das conclusões e possibilidades advindas desta
pesquisa. A ordem da apresentação das entrevistas é aleatória e não interfere na
compreensão dos dados em seu conjunto. A opção feita aqui é a de transcrever algumas
das falas dos participantes sobre os temas abordados, de forma a garantir a
fidedignidade da análise, bem como a permitir revisões deste trabalho. Quando
transcritas, as falas dos entrevistados serão apresentadas em destaque.
Entrevista 1:
Dados do entrevistado: sexo masculino, graduado em ciências sociais, mestre e
doutor em educação. Atuante na formação de educadores há pelo menos quatorze anos e
pelo menos nos últimos quatro anos desenvolve esta atividade no curso de pedagogia da
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Tomando por base o início de sua
formação como pesquisador, tem desenvolvido pesquisas na área da educação há pelo
menos dezessete anos. Atualmente vinculado ao Núcleo de Estudos Básicos da
Faculdade de Pedagogia da UFMT.
Análise da entrevista: Naquilo que diz respeito ao rigor e homogeneidade do uso
do conceito, o entrevistado é explícito ao afirmar que cada professor tende a fazer uso
destes termos ou conceitos do modo como bem entende. A isso responde ele: Não.
Cada um, pelo menos no que eu tenho de experiência enquanto professor não só na
universidade, mas no ensino público, cada professor se utiliza, ao menos naquilo que se
refere... aquilo que você colocou como a questão da consciência crítica (exemplo
utilizado de termo mediacional/mental para introduzir o tema da entrevista), cada um
entende isso como sendo algo bem específico e individual de cada professor. Quer
dizer, por consciência crítica eu penso que a gente vá encontrar para cada grupo de
professores, para cada grupo de dez professores, dez tratamentos e aplicação disso de
modos diferenciados.
Da mesma forma, de acordo com a análise feita pelo entrevistado, não haverá,
por parte dos educadores, grande preocupação com vinculações teóricas ou ainda rigor
teórico de modo a garantir uma prática coesa ou ainda correlação direta entre teorias
específicas e práticas, o que também incidiria em uma vinculação generalista às teorias
da mente, o que certamente ocorreria de modo indiscriminado. De acordo com ele: uma
coisa que é muito comum e me remete ao texto de Gaudêncio Frigotto quando ele fala a
respeito de metodologia onde ele faz uma severa crítica àquilo que ele chama de sopa
de letrinhas no que se refere a uma metodologia. Eu penso que isso se aplique nessa
105
discussão. Os professores vão se apegando a pequenos trechos conceituais dos mais
variados campos científicos, dos mais variados autores, enfim eles fazem uma salada
disso, e isso é o que pauta a conduta deles.
Sobre o modo como estes conceitos são tratados ou abordados pelas teorias
pedagógicas, o que permitiria uma análise das consequências de uso ou abordagem
pouco precisa destes conceitos, a busca de uma relação possível parece ser encontrada
nas influências psicológicas. A isso, ele afirma: dentro da pedagogia você vai ter
autores que vão defender um pouco ou que vão trabalhar estes conceitos numa
direção... se a gente pegar o Vygotsky, o Piaget, mas isso eu penso que é extremamente
abstrato quando se trata da prática do professor em sala de aula. Eu penso que ele não
remeta. Ele faz por conta de uma série de outras influências que não estão... que foi
formulado ou que foi pensado especialmente por autores da pedagogia. Eu penso que
há uma distância considerável entre essas discussões que aparecem nos textos clássicos
e a utilização disso em sala de aula. Aquilo que é lido tem uma distância considerável
em termos de aplicabilidade em relação aquilo que está presente no cotidiano.
As possíveis consequências desta distância conceitual, quando confrontada com
a formação de educadores, aparece da seguinte forma: o que eu vejo como prejudicial é
que ele não tem um aporte teórico, filosófico, sociológico ou sei lá que ciência que
orienta isso, que lhe dê sustentação na sua prática. Volto a insistir: ele bebe aqui e
acolá, independentemente de em algumas situações, esses autores, dos quais ele utiliza
de maneira fragmentada, eles em grande medida podem ser até contraditórios. Isso
acaba, por vezes, fazendo com que esse professor ele meio que vivencie a sua prática
ao sabor de modismos, ao sabor disso o que eles leem que é a nova escola, que é uma
mediocridade sem tamanho... é mais por conta disso.
Sobre a possibilidade de uma prática pedagógica que possa prescindir dos
conceitos mentais, há uma aposta em fatores contextuais e dialógicos, que, em alguma
medida, parece considerar esta possibilidade ou ao menos manter certa abertura a este
respeito. No entanto, suas ponderações indicam uma maior preocupação por parte dos
professores com uma condução prática que parece simplesmente ignorar a discussão
conceitual. Nas palavras do entrevistado: para a maioria dos que eu tenho contato, eles
não... eles desvinculam isso. Muito em função de que eles vão para a escola ou estão
dentro da universidade a partir de um determinado receituário de como educar, de
como dar aula, que é o que eles nos pedem muito e que, de uma maneira ou de outra, as
disciplinas de práticas oferecem... ...quando você tem um receituário fechado, você não
106
precisa se preocupar com estas questões. Você simplesmente segue aquilo. Como por
exemplo, o material didático: você aplica aquilo cotidianamente durante os duzentos e
vinte dias letivos. Você pauta a sua prática educacional sem levar em consideração
absolutamente nada do que você está perguntando, quer dizer, isso passa longe. O
professor tem um material pronto e acabado e se utiliza daquilo sem se preocupar
muito com estas questões. Essa preocupação (conceitual), salvo exceções, pelo menos
os professores de carne e osso com quem eu convivo, passa longe.
Entrevista 2:
Dados do entrevistado: sexo masculino, graduado em pedagogia e mestre em
Educação. Atuante na formação de professores, desde seu ingresso, como professor do
curso de pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT no ano de 1993.
Atuou no Núcleo de Estudos Básicos e atualmente faz parte do Núcleo de Estudos
Integradores do curso de pedagogia da UFMT. Em se considerando o início de sua
formação como pesquisador, desenvolve trabalhos de pesquisa em educação há pelo
menos dezessete anos.
Análise da entrevista: Após certa surpresa sobre o tema proposto para a
entrevista o entrevistado apresentou suas primeiras análises sobre o modo como as
discussões conceituais devem ser entendidas e analisadas dentro das práticas
pedagógicas. Suas ponderações iniciais partem do princípio que conceitos como mente e
consciência são produtos históricos e foram socialmente construídos. Demonstrou ainda
preocupações com o modo como estes termos e conceitos podem influenciar práticas de
modo a perpetuar certa eugenia. Nesse sentido, aponta para um papel para a Educação
que a desvincule destas discussões em detrimento de um papel mais voltado para a
transformação social e para as práticas. Em suas palavras: eu penso que nosso foco
então é outro, não é outra coisa senão o conteúdo daquilo que trabalhamos. E esse
conteúdo envolve a prática social, conhecimento que tenha uma temática, uma
relevância, que busque superar interpretações ingênuas, interpretações dadas da
realidade e também dentro da minha tradição marxista que você tenha um processo de
transformação do contexto, social, que pode partir de uma consciência ingênua da
realidade e passar para uma condição mais elaborada, mais crítica de leitura da sua
realidade mediata e imediata, migrando de uma condição mais biológica para outra
mais histórica e social.
107
Neste caso, parece que o uso do termo consciência esteve o tempo todo atrelado
a um modelo imaterial e consequentemente cartesiano, sendo usado, no entanto, de
modo inespecífico durante todo o tempo. Suas preocupações sobre o desdobramento de
uma possível vinculação a teorias da mente específicas por parte das teorias
pedagógicas esteve em grande parte vinculada aos aspectos biológicos e de possíveis
exclusões de uns em detrimento de outros.
Nesse sentido, para ele, o debate parece ter pouca relevância em detrimento de
outros compromissos ou urgências do campo educacional. Nessa esteira, em seu pensar:
eu acho que essa fuga desse debate neurolinguístico, dessas neurociências, da cognição
ou do grau de cognição de um determinado indivíduo em relação ao outro, ele na
verdade vem de um passado, eu quero ressaltar... que a eugenia, como uma
pseudociência, ela deixou um legado muito ruim para os estudiosos destas questões,
dessas questões biológicas e de desenvolvimento cognitivo. Mesmo as posições do
Piaget que trabalha um pouco com essa ideia de psicogênese, ela enfrentou e enfrenta
uma discussão até ideologizada, porque no fundo na educação essa questão deixou
sequelas. Esse debate foi um tabu. Eu nunca travei essa discussão, não coloco ela
dentro da minha gramática pedagógica, exatamente porque ela pode, em geral,
suscitar controvérsias desnecessárias e ao meu ver desagradáveis para os projetos de
uma educação ontológica. Ela restringe isso.
Nessa senda, parece haver pouco debate para que haja algum tipo de vinculação
a um ou outro modelo teórico de mente, e a reflexão epistemológica, ao menos naquilo
que diz respeito às bases filosóficas sobre estes termos, ganha pouco espaço. Assim se
declara o entrevistado: A constituição e a formação do pedagogo quase que em geral
não coloca isso, ou melhor, nem coloca isso e quando coloca, coloca superficialmente.
Veja as minhas próprias respostas, as minhas próprias observações refletem um pouco
esse modo de formação a que eu fui inclusive formado por ele.
Para sua análise, a não vinculação a um modelo de mente ou a ausência de
debate sobre estes termos e conceitos parecem pouco importantes, não se constituindo
sequer como um problema para a área. Esta sua reflexão: Não. Eu acho que ele não é
um problema dentro do campo da investigação da pedagogia e da educação. Pelo
menos nos cursos de formação que nós temos aqui na universidade e em boa parte das
instituições que eu circulei. Eu acho que ele está muito mais inserido ou com um debate
mais rigoroso no campo da psicologia do que propriamente na educação. Os
pedagogos em geral eles não adentram nesse campo. Volto a dizer talvez pelo legado
108
negativo das neurociências que foi a ideia de que há indivíduos que apresentam
capacidades melhores do que outros, que têm capacidades cognitivas superiores que
vêm de um passado distante, tão antigo. É uma seara que a gente não entra, em geral.
Assim, apesar de julgar o debate pertinente, afirma não sentir qualquer
influência da ausência de uma discussão mais rigorosa destes termos na formação dos
educadores. Sobre as possíveis consequências da ausência deste debate, pondera: Não
vejo nenhuma influência. O debate apesar de pertinente, um conhecimento que é
necessário que a universidade se ponha diante dele, tratando justamente da discussão
acadêmica que tem... que vem da filosofia, da neurociência, da psicologia, mas no
campo da educação, talvez pela ideia de que precisa ter uma aplicação imediata – uma
ciência ou uma arte, esse debate que existe até hoje – que tenha aplicação imediata no
horizonte, compromete. Porque circunscreve a uma ou outra etapa que não é a
dimensão que todos buscam. Uma discussão nessa área ficará numa perspectiva muito
teórica e conceitual. Não tange a realidade imediata que nos envolve no âmbito
educativo. É um pouco daquela discussão clássica do marxismo de transformar a
realidade, mais do que pensar sobre vários aspectos gerais. Acho que eu estou sendo
mais pragmático, quer dizer, não pragmático... mas, é mais ação no empreendimento
dos processos pedagógicos educacionais.
Novamente, a despreocupação com o rigor conceitual se tornará evidente quando
diante de tudo aquilo que havia sido exposto e que, ao menos em parte, permitiria se
levantar a possibilidade de uma ou muitas teorias pedagógicas que se desvinculassem de
pressupostos mentais, aparece, em sua compreensão, a presente existência desta
desvinculação. De acordo com o entrevistado, sobre a possibilidade das teorias
pedagógicas abrirem mão dos conceitos mentais ou mediacionais, esclarece: Creio que
sim, né? Creio que todo o desenvolvimento das teorias educacionais contemporâneas
até agora, aqui no Brasil, elas prescindiram desse debate e desse modo de analisar e
compreender os processos educativos. Talvez até pelo fato das questões mais gerais,
hoje de maneira muito forte para os educadores brasileiros. Nós somos um país com
uma situação sociopolítica muito séria, né? Então a nossa ênfase não chega nem a
tocar nessa ideia. Não sei se é um equívoco ou um problema da nossa inteligência
pedagógica. A nossa lógica é outra. Conforme eu já coloquei: esses conceitos e essa
discussão teórica em geral ela se restringe a uns poucos educadores. É difícil a gente
ver educadores trabalhando essa temática. Todos os congressos e simpósios que eu já
fui, nunca foi a tônica, nunca foi algo levado ao debate mais profundo. Um
109
conhecimento que vem do senso comum para nós. Ninguém se detém de modo mais
aprofundado ou sistemático aos mesmos. Mas eu quero justificar talvez isso pelas
implicações que a realidade vê numa realidade crítica como a nossa no Brasil e em boa
parte da América Latina, onde o momento de formação do educador está muito voltado
para o enfrentamento dessa realidade. A gente não constitui os nossos educadores com
a perspectiva provavelmente científica da educação. Até porque, dentro da pedagogia,
ainda há um debate sobre o seu status científico.
Assim, por uma série de elementos aqui presentes, seja pela esfera de
preocupação com outras questões ou mesmo pela forma de evitar debates polêmicos
como a suposta eugenia presente no conceito, a lacuna deixada pela ausência das
discussões epistêmicas sobre o campo parecem simplesmente deixar espaço vago para
que o conhecimento baseado no senso comum venha a ocupá-lo. Neste ponto, revela-se
importante ressaltar que o conhecimento sobre a mente, que ainda é base para o senso
comum parece ser a ideia mecânica cartesiana.
Entrevista 3:
Dados da entrevistada: sexo feminino, graduada em pedagogia e mestre em
Educação. Atuante na formação de professores há 36 anos. Em se considerando o início
de sua formação como pesquisadora, desenvolve trabalhos de pesquisa e projetos na
área da Educação há pelo menos 30 anos. Vinculada ao Núcleo de Estudos Integradores
do curso de pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
Análise da entrevista: Sobre aspectos referentes à homogeneidade e rigor
conceitual no tratamento do tema, novamente a menção é de que, aparentemente, não
existe nenhuma base de sustentação organizada e articulada em torno do conceito dentro
das práticas pedagógicas. Frisa a entrevistada: Não posso falar pelos outros, né?
Homogeneidade não existe. Eu acho que as pessoas inclusive, mesmo que elas tenham
formação filosófica e trabalhem, por exemplo, do ponto de vista da razão como os
racionalistas, elas vão ter uma perspectiva muitas vezes diferenciada, uma leitura
disso. A razão, do ponto de vista filosófico, está posta em diferentes momentos
históricos, que vai impactar no modo como ela surge como experiência no mundo.
Quanto às possíveis vinculações das teorias da mente em relação às teorias
pedagógicas, ou do modo como os conceitos são utilizados, a entrevistada aposta em
uma expansão dos possíveis vínculos, que ultrapassariam em muito as práticas de
ensino-aprendizagem. Encarece a entrevistada: essa vinculação é óbvia, né? Inclusive
110
há uma vinculação ideológica. Não só uma vinculação do ponto de vista teórico-
metodológico, mas também político, né? Quando a gente toma uma posição ou escolhe
um problema na sociedade para investigar isso, diz respeito às suas próprias
perspectivas de compreensão da sociedade nesse momento e, ao fazer isso, você
também fala alguma coisa sobre o mundo. Então, não é uma questão apenas de linhas
teóricas diferenciadas. São linhas teóricas, metodológicas e políticas. Nem sempre
essas posições políticas aparecem. Normalmente, a ciência e a filosofia são abordadas
como coisas neutras, acima das atitudes e das relações estabelecidas entre nós, é como
se fosse algo distante do cotidiano.
Assim, ao menos de modo aparente, a incidência destas discussões sobre as
pessoas provavelmente se daria de modo implícito, como uma espécie de seguidor não
participante das discussões que operam nos níveis da ciência e da filosofia. Sobre a
existência de uma vinculação (ou não) das teorias pedagógicas a uma ou mais das
filosofias da mente, assinala: Eu não saberia responder. Eu particularmente não tenho
trabalhado com isso. Mas eu posso, do ponto de vista do conceito de consciência... o
que mais tem sido usado é a fenomenologia, principalmente no Brasil, com aplicação
do Paulo Freire. Quanto a isso, expressa um modelo de mente imaterial, baseado em
princípios fenomenológicos, com amplo caráter dualista. Ponderando sobre as
consequências da discussão conceitual operando apenas de modo superficial na
formação de educadores, apresenta seu entendimento sobre estas: o fato de você já
trabalhar o conceito ‘x’ já define determinados processos de tratamento de
informações. Isso, de certa forma, se ele não tem o rigor científico, ele culmina numa
formação sem rigor científico. Isso, provavelmente, se deve a diversos fatores: você
pode ter uma má formação do próprio formador; você pode ter, como formador, uma
falta de rigor científico seu; você pode ter uma perspectiva mais... vamos chamar assim
de ‘populismo pedagógico’, uma forma de assim... vamos dizer: ‘isso é muito difícil
para ele, então eu não abordo com a complexidade que o problema exige’.
Em sua opinião, apesar de todos os problemas apontados como possíveis causas
e consequências da abordagem dos temas de modo superficial, parece difícil pensar em
um modelo de educação que possa abrir mão das perspectivas mentalistas. Este trecho
de sua entrevista complementa: Olha, eu desconheço. Quer dizer, você não pode deixar
a razão de lado. O que não pode é exacerbar a razão como um composto único, mas a
razão é fundamental e importante. Apesar de... ao homem não basta usar somente a
razão. É impossível também ele não usar a emoção. E ao mesmo tempo é do homem a
111
criatividade, porque a criatividade é própria do ser humano e sem ela, ele não
sobrevive. Historicamente, quando o homem se relaciona com a natureza ele cria, ele
transforma, então é impossível dizer que o homem não vá usar a criatividade.
A conclusão desta entrevista é extremamente interessante, pois, descortina e
inclui nos processos pedagógicos outros termos ou conceitos que podem não apresentar
status tipicamente ‗mental‘, mas preservam um caráter internalista em sua noção de
causalidade, mantendo assim uma perspectiva dualista baseada em um modelo causal
inespecífico.
4.1 – Discussão sobre as entrevistas e algumas conclusões
Grande parte da linguagem cotidiana pode ser considerada, em princípio, como
descritiva do comportamento (Chiesa, 2006). Antes mesmo de trabalhar como educador,
formador de professores ou cientista, cada um de nós esteve, por longo período, exposto
a um modo de falar sobre as noções de causa, sobre comportamentos, e ainda sobre o
modo como eventos ou estados subjetivos fazem parte ou determinam nossas ações.
Estas características dificilmente são abandonadas ou substituídas no andar da vida.
Nesse sentido, nossa linguagem cotidiana contém suposições e classificações pré-
científicas que podem ou não ser úteis nos mais diversos sistemas de estudos. Neste
caso, especificamente naquilo que diz respeito aos termos mentais e também nas
relações em que se busca entender o modo como as pessoas ensinam e aprendem. Ao
longo da condução das entrevistas, pelo menos de modo aparente, muitas destas
questões foram ao menos resvaladas.
Não foi possível identificar em nenhuma das ocasiões um modelo de mente que
se vinculasse a qualquer tipo formal e explícito de teoria da mente. Apenas na entrevista
de número três foi sugerida a possível relação entre as teorias pedagógicas mais
adotadas no Brasil e a fenomenologia, que, apesar de apresentar todos os resquícios de
modelos mentalistas, não pode ser entendida como formalmente vinculada a qualquer
tipo de teoria da mente. Assim, no decurso de todo o tempo, os termos mentais
utilizados na marcha das entrevistas pareciam muito mais vinculados à linguagem
cotidiana do que a um sistema filosófico ou psicológico. Esta foi, inclusive, a sugestão
apresentada na entrevista de número dois, quando o entrevistado vinca este se trata de
conhecimento comum dirigido até os formadores de professores e que ninguém se atém
mais profundamente a este debate. Insinuação semelhante é feita pelo entrevistado
112
número um, quando afirma que cada um procura fazer os seus recortes e constituir uma
espécie de sopa de letrinhas para desvelar a sua prática pedagógica.
Há, por parte do entrevistado número dois, forte justificativa de que as questões
conceituais não têm sido discutidas com maior profundidade em função de a pedagogia
ter de lidar com aspectos mais urgentes e transformadores da realidade. De fato, este
pode ser um problema concreto e real. No entanto, parece também ser pertinente
considerar que esta área do conhecimento, assim como outras vinculadas às ciências
humanas, tem negligenciado discussões epistemológicas que, de uma ou outra forma,
podem influenciar esta mesma prática tão urgente. Esta parece ser uma situação comum
às ciências psicológicas que absorvem conceitos e desenvolvem práticas nestes
baseados, sem, no entanto, desenvolver um aparato conceitual que oferte sustentação em
nível satisfatório. Outra hipótese possível, como sugere Duarte (2003) em artigo
intitulado Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor, no
qual sustenta que a adesão da pedagogia brasileira a uma série de autores estrangeiros
acaba por fazer com que esta passe a desvalorizar o conhecimento escolar e também a
adotar uma epistemologia que desvalorize o conhecimento teórico, científico e
acadêmico. O principal alvo de críticas de Duarte neste texto é o pedagogo Donald
Schön, que, curiosamente, fica conhecido por sua pedagogia que faz uso explícito de
uma expressão mental inespecífica ao buscar formar o ‗profissional reflexivo‘.
Outro ponto surpreendente, ao longo das entrevistas, é a absoluta ausência da
relação entre uma discussão sobre aspectos mentais ou internos e a aprendizagem. Aliás,
o termo aprendizagem não é mencionado uma única vez sequer no desenrolar de todas
as entrevistas. Nesse sentido, não apenas deixa-se de apresentar a vinculação das teorias
pedagógicas a qualquer modelo de mente, apesar do uso comum de seus termos, mas os
aspectos referentes à aprendizagem não aparecem de modo espontâneo nesta discussão.
Seu surgimento, no entanto, não teria facilitado sobremaneira as tarefas aqui propostas,
pois a definição deste termo não se revelaria muito mais simples do que aquelas
exigidas pelo conceito de mente.
Desse modo, tanto a não vinculação a qualquer teoria da mente quanto o
surgimento do conceito de aprendizagem parecem formas de se esquivar da lida com
um problema complexo e com uma série de confusões referentes ao momento em que os
termos da linguagem comum são utilizados nas ciências humanas. De acordo com
Chiesa (2006), a tentativa de explicar todos estes termos acarreta pelo menos três
problemas comuns, que poderiam justificar a abstenção de algumas áreas em relação a
113
estes debates. De acordo com a autora, o primeiro dos problemas se refere a uma
impossibilidade de concordância atinente a uma definição deste tipo de palavra. Para
ela, qualquer uma destas definições abrigará problemas que envolvem a busca por
explicações biológicas, fisiológicas, afetivas. Soma-se o fato de poderem, é claro,
recorrer a novos conceitos e estados internos para novas suposições explicativas, como
por exemplo os termos ‗instinto‘ ou ‗impulso‘. Ainda, perseguindo a trilha por ela
palmilhada, o segundo problema seria topográfico. Para o efeito deste trabalho, talvez a
categoria que melhor exemplifique seja exatamente o comportamento de ‗aprender‘.
Quando é possível afirmar que um aluno aprendeu algo? Quando emite uma resposta
certa? Quando, por um período marcado por intervalo, sua emissão de resposta certa
continua? Quando houve qualquer mudança de comportamento? Talvez todos estes
sejam exemplos categóricos do aprender, sem, no entanto, representá-lo em sua
totalidade. O último dos problemas pontilhados pela autora trata da questão de como as
pessoas podem responder, de modos muito diferentes, a situações semelhantes, o que,
na esfera educacional, pode ser exemplificado diretamente pela execução de processos
distintos para a resolução de um problema matemático.
Em todos estes casos, o que fica explícito é a dificuldade de abordar fatos em
que não há acordo sobre suas definições. Este talvez seja exatamente o ponto que
exigiria uma retomada da discussão epistemológica ou, ainda, do estudo dos
fundamentos e processos básicos. Assim, parece provável que a pedagogia, assim como
outras áreas das ciências humanas, incorra em um erro comum: a tentativa de iniciar
uma escalada pelo topo da montanha. Esta analogia se dá exatamente pela suposição de
que o privilegiado status humano da razão é tão presente a ponto de não precisar de
questionamento, como sugerido na entrevista número dois, ou ainda de que dele não se
pode abrir mão, como sugerido na entrevista de número três.
Assim, pelo conjunto de elementos e, acima de tudo, pelas possíveis
consequências ou prováveis causas entremostradas pelos entrevistados acerca da falta de
rigor no debate conceitual – apenas para lembrar alguns: prática pedagógica construída
como ‗sopa de letrinhas‘, falta de rigor científico na formação do educador ou, ainda, a
adesão pura e simples ao conhecimento do senso comum, com ausência de debate
epistemológico – parece relevante que se possa ao menos considerar o modo como as
disciplinas de fundamentos têm sido aproveitadas no curso de formação de educadores.
E por que não generalizar esta mesma afirmação para os mais variados cursos da área de
ciências humanas? Soma-se a este fator um questionamento acerca da supostamente
114
indiscutível relação entre ‗teoria e prática‘, pois, neste caso, aparentemente, muitas
práticas são desenvolvidas sem um rigor teórico que as ampare. Novamente, esta
afirmação parece presente em áreas variadas das ciências humanas.
A dificuldade que se generaliza parece constituir dois professores: aquele que
fala sobre a educação, controlado pela audiência; e aquele que vive a educação,
controlado pelas políticas públicas, pelas políticas educacionais e escolares e pelo
relacionamento com os alunos. Contextos diferentes construindo variegados repertórios
educacionais que dificilmente se encontram. Um dos pontos em que o discurso se perde
parece ser exatamente aquele que fala sobre teorias recheadas de conceitos abstratos
sobre os quais não se discute. Como práticas podem ser orientadas desta forma? Assim,
o discurso sem o exame dos conceitos parece constituir um vazio explicativo, meras
suposições de um amparo à prática, sendo esta governada por outros fatores, assim
como sugeriu o entrevistado número um.
É importante se diga que a apresentação de modelos antirrepresentacionistas e
antimentalistas, de forma mais ampla aqui realizada, não possui qualquer pretensão de
privilegiar um modelo em detrimento ao outro, como se fosse possível simplesmente
substituir uma educação baseada em modelos mentais por uma assentada em modelos
que não consideram a mente ou estados semelhantes. Aquilo que aqui se analisa é
simplesmente o modo como a referida adesão aos princípios da mente ocorre de forma
pouco debatida ou, ao se considerar aquilo que foi mencionado pelos entrevistados, sem
nenhum tipo de debate. Nesse sentido, o que se espera é que a adesão a qualquer teoria
pedagógica, tenha ela caráter mentalista ou não, seja acompanhada por uma discussão
vasta sobre suas bases e princípios, exatamente para que não se corra o risco das
construções das ‗sopas de letrinhas‘ – como sugerido pelo entrevistado número um –
algo que pode decorrer da falta de rigor científico na formação, ao modo como apontado
pela entrevistada número três.
É certo que não se trata de tarefa fácil nem simples, principalmente ao se
considerar a herança dos sistemas conceituais da linguagem da mente ou da vida mental,
bem assim do modo como estes interpenetram nossos discursos diários. Como
observado nas metáforas apresentadas por Skinner (1968/1972), em seu livro
Tecnologia do ensino, as noções do ‗aprender‘, como algo que se edifica, amadurece,
desenvolve ou que é armazenado, povoam os discursos não apenas educacionais, mas
também os cotidianos de modo a torná-los verdades tácitas e implícitas, exatamente o
conhecimento absorvido do senso comum como na fala do entrevistado número dois. As
115
dificuldades não parecem, no entanto, justificativa suficiente para que maior elucidação
dos conceitos com os quais se trabalha seja feita. Ainda que se reconheça a importância
e urgência de outras questões, esclareça-se.
Dessa forma, este estudo não pode ser considerado algo conclusivo. Antes, é um
suscitador de outras questões que talvez exijam investigações ainda mais fundas que, no
entanto, se revelam importantes. Algumas delas:
a) Qual a importância do debate conceitual na formação de educadores? À medida que a
formação pedagógica se encontra, tal qual em outras áreas das ciências humanas,
impregnada por uma série de conceitos, até que ponto estes têm sido discutidos de modo
exaustivo, quer para influenciar a prática dos educadores com uma base teórica que se
sustente, quer para que sejam rejeitados e reescritos de modo variado.
b) Estes debates têm sido conduzidos nos cursos de formação de educadores nas
universidades brasileiras? Ficou evidente, ao longo desta pesquisa, que alguns dos
conceitos que podem, em caráter potencial, manter relações com o conceito de
aprendizagem não são debatidos ou estudados de modo profundo no curso de pedagogia
da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, por uma série de razões as mais
variadas, desfiladas pelos entrevistados. Será este um movimento típico dos cursos de
formação de educadores deste país, ou isso se deve a fatores históricos e regionais da
estruturação deste curso?
c) Como os conceitos ou teorias aprendidas nos cursos de formação de educadores
afetam suas práticas pedagógicas? Em alguns momentos foi sugerido pelos
entrevistados que há pouca ou mesmo nenhuma influência das teorias, ao menos como
são expostas nos livros, na prática efetiva em sala de aula. Senso assim, parece
necessário entender aquilo em que essa prática se baseia, ou ainda reformular a questão
para melhor entender qual é a importância da teoria.
Talvez alguns dos problemas e perguntas apresentados não tenham uma única
resposta, ou mesmo uma saída imediata. É possível que todo este imbróglio derive da
herança da linguagem comum da mente e da aprendizagem, constituindo-se assim em
um emaranhado tão complexo que jamais encontre uma solução que possa ser chamada
de satisfatória. Enquanto não se discute o que é a mente, quais são suas teorias e como
estes constructos podem afetar as práticas pedagógicas, a linguagem comum e a herança
cartesiana parecem ganhar sobrevida nesta área. Assim, talvez o problema nem mesmo
exista, tendo em vista a aparente despreocupação com ele. No entanto, se houver um
reconhecimento da limitação do alcance da linguagem comum e a busca por alternativas
116
que possam abrir mão de conceitos que até então têm se constituído como vazios
explicativos, a proposta de B. F. Skinner poderá ser examinada, não apenas como um
modelo conceitual que prescinde do modelo de mente, mas também como aquele que
procurou construir – à sua época – um modelo tecnológico, muito mais aprimorado nos
dias atuais, que possa servir à educação.
117
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Anexo I
Roteiro temático para entrevista com Professores:
Introdução:
Esta é uma pesquisa que fala sobre o modo como o conceito de mente parece influenciar
as práticas educacionais. Desta forma, pretendemos abordar brevemente o modo como o
referido conceito e os seus subprodutos influenciaram em sua formação, assim como no
modo como o(a) Sr.(a) fez uso destes termos ou conceitos na formação daqueles de
quem participou.
01 – Muitos conceitos como razão, criatividade, raciocínio, inteligência e outros tantos
conceitos de caráter mental estão presentes na educação. O(A) Sr.(a) acredita que estes
sejam abordados de modo homogêneo e recebam um tratamento com o devido rigor
conceitual?
02 – Dependendo do modo como cada um destes conceitos é tratado, eles acabam por se
vincular a diferentes teorias da mente, que podem variar de uma condição
absolutamente imaterial a outra estritamente material. É possível pensar nas
consequências destas vinculações para as teorias pedagógicas?
03 – É possível identificar um modelo específico de mente nas teorias pedagógicas mais
difundidas atualmente? Há uma preocupação em relação ao modo como estes conceitos
são abordados?
04 – Supondo que estes conceitos não sejam abordados de modo rigoroso nas práticas
pedagógicas, isso teria alguma influência sobre a formação de educadores e do modo
como estes formam os seus alunos?
05 – Atualmente parece possível pensar em alguma prática pedagógica que possa se
desvincular de termos mentais ou que sirvam como ‗mediadores‘ do conhecimento?