a mina do deus morto - joão barreiros

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Algures nos anos sessenta do século passado, num universo que não é o nosso, mil metros abaixo das colheitas de volfrâmio nas Minas da Panasqueira realizadas pela companhia Beralt in Wolfram, existem outras minas, secretas, terríveis, brutais, onde se recolhe grão a grão as partículas que provam a existência e a agonia final de Deus: as Minas do Deus Morto.

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Page 3: A Mina Do Deus Morto - João Barreiros

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Lista de autores, por ordem de saída dos contos:

Pedro Paixão | João Tordo | Rui Zink | Luísa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Inês Pedrosa

Afonso Cruz | Gonçalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mário de Carvalho

Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidónio Cachapa | David Machado

JP Simões | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | João Barreiros | Raquel Ochoa | João Bonifácio

David Soares | Pedro Santo | Onésimo Teotónio Almeida | Mário Zambujal | Manuel João Vieira

Patrícia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Lídia Jorge | Sérgio Godinho

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

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Contos Digitais DN

A coleção Contos Digitais DN é-lhe oferecida pelo

Diário de Notícias, através da Biblioteca Digital DN.

Autor: João Barreiros

Título: A Mina do Deus Morto

Ideia Original e Coordenação Editorial: Miguel Neto

Design e conceção técnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRIT’ORIO editora | www.escritorioeditora.com

© 2012 os autores, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ESCRIT’ORIO editora

ISBN: 978-989-8507-16-7

Reservados todos os direitos. É proibida a reprodução desta obra por qualquer meio, sem o consenti-

mento expresso dos autores, do Diário de Notícias e da Escrit’orio editora, abrangendo esta proibição

o texto e o arranjo gráfico. A violação destas regras será passível de procedimento judicial, de acordo

com o estipulado no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre o autor

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João Barreiros

Nasceu em 1952, licenciou-se em Filosofia e lecionou no Ensino Secundário. Publicou, aqui e ali, contos e novelas de Ficção Científica (FC), escreveu críticas literárias para vá-rios jornais, organizou congressos de FC, ajudou a montar o Grande Ciclo de Cinema de FC na Gulbenkian (1984), deu aulas de escrita criativa e está presentemente a organizar uma antologia de contos eletropunk, a ser editada em janeiro próximo. Publicou a coletâ-nea O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias (1994) e Terrarium (1996), este último com Luís Filipe Silva. Poucos anos depois, saiu A Verdadeira Invasão dos Marcianos (2004), a novela A Bondade dos Estranhos (2007), e, finalmente, uma nova coletânea, Se Acordar

Antes de Morrer (2010). Participou nas antologias A Sombra Sobre Lisboa (2006) e Os Anos

de Ouro da Pulp Portuguesa (2011). Foi publicado no Brasil, Estados Unidos, França, Espanha e Sérvia. Este A Mina do Deus Morto faz parte de um ciclo literário dedicado aos demónios da eletrosfera, embora seja original e exclusivamente escrito para esta coleção do DN. O ciclo dará azo a uma nova coletânea intitulada Lisboa no Ano 2000, crónicas de

uma cidade que nunca existiu, universo partilhado por outros autores.

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A Mina Do Deus Morto— • —

João Barreiros

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“Há vinte e cinco biliões de anos, pela hora do chá, Deus morreu. Não existe outra explicação possível. Morreu e desfez-se em pó. Do Seu corpo petrificado, nada mais restou do que um número infinito de partículas dispersas pelo universo. Essas partí-culas mergulharam no coração das estrelas e deram-lhes consciência. Afundaram-se no caldo dos oceanos em formação e agregaram os aminoácidos em estruturas cada vez mais complexas. A vida surgiu, de rompante, onde antes nada havia. As espécies evoluíram, transformaram-se, complexificaram-se até receberem uma nova chuva de partículas vindas do Corpo Fragmentado de Deus. A anterior vida foi desfeita numa extinção global, até ser substituída por novas variantes, aparentemente mais perfeitas, mais complexas. A Evolução Catastrófica não se compadece da beleza ou perfeição que acabou de destruir. As partículas provenientes do corpo ressequido de Deus são infinitas, como infinita era a essência Divina. As partículas estão em todo o lado, no coração das estrelas, a circular nas tempestades imensas dos gigantes gasosos, ocultas no interior gelado dos cometas, aglutinadas nas lamas primordiais dos oceanos, cravadas entre as placas dos estratos geológicos.

Portanto é natural que as partículas do Deus Morto também tenham atravessado o nossos sistema solar, milhares e milhares de vezes. No planeta Terra, assim como em Marte ou Vénus, a vida surgiu, floresceu, extinguiu-se. Ruíram civilizações. Novas espécies, bem mais aptas e aperfeiçoadas, devoraram as anteriores. Das variantes dos primeiros esforços do Deus Morto, apenas restam os fósseis a lembrar que em tempos

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houve entre nós uma fauna de gigantes, Titãs, e civilizações perdidas que uma nova chuva de pó apagou sem complacência.

De momento, o Sistema Solar atravessa uma zona de espaço vazio, onde já não se faz sentir a inefável Presença de Deus. Os cientistas (mas com que autoridade podem eles afirmar tal coisa?) não esperam para breve uma nova Extinção sumária. A espécie humana pode sossegar. Por agora.

Mas isso não quer dizer que essas partículas não estejam ainda entre nós. Deus, embora não sendo imperecível, é indestrutível. O pó esconde-se debaixo da terra. É ele quem garante o bom funcionamento da nossa civilização industrial. É ele quem assegura a complexidade de raciocínio das Inteligências Mecânicas. É ele quem facilita as capaci-dades cognitivas dos Golems, quem activa os mortos, quem cede um segundo de trans-cendência àqueles que fumarem uma pitada de Pó Divino mesclado com uma bola de ópio. As Autofábricas que assombram todo o Norte de África exploram as Minas das Montanhas do Grande Atlas. Mas aí, como todos nós sabemos, o acesso é impossível. As Fábricas sabem defender o que é seu, não permitindo que nada de orgânico atravesse a zona de exclusão do Sahara.

Mesmo assim, considerando que todo o Hemisfério Ocidental esteve virado para a derradeira passagem da chuva particulada, aí há uns sessenta e cinco milhões de anos atrás, podemos ainda encontrar nódulos de pó divino em estratos geológicos de grande profundidade. Conglomeradas com o carvão vegetal das florestas primordiais que elas ajudaram a extinguir.

As partículas do Deus Morto são muito mais importantes para o progresso civiliza-cional da espécie humana do que a hulha e o carvão. As torres Tesla garantem energia quase gratuita. As partículas do Deus Morto, associadas aos cogitadores, asseguram a eficácia de um sistema económico demasiado complexo para uma mera inteligência humana poder computar.

Em Portugal existem algumas dessas minas. Não muitas, mas decerto em número superior às da Grosse Germânia. Somos por isso um pais cobiçado por todos os outros gigantes industriais. A sua exploração é complexa e sujeita a um número variado de riscos. Cada uma dessas partículas pode provocar a morte, por vórtice cognitivo, a quem lhe toque com as mãos nuas. Os efeitos da súbita activação de um desses nódulos podem ser catastróficos. Lembrem-se do que aconteceu na Mãe Rússia. E o silêncio que caiu sobre ela.

Cautela, é a palavra de ordem. Estamos a olhar o abismo, e o abismo é conscien-

te. Temos de usar toda a prudência que uma actividade destas nos impõe. E temos de ser cruéis. Pois a crueldade para com os nossos mineiros, é a única forma de garantir a hegemonia de Portugal face às potências estrangeiras que cobiçam, ao longe, a nossa insustentável e amarga riqueza. O povo tem de fazer sacrifícios, de entregar os primogé-

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nitos ao terrível poder do Deus Morto. Para bem de todos. Para bem da Nação”.Miguel de Sá, – “Panasqueira, a Mina do Deus Morto”, Ilustração Portuguesa, Janeiro

de 1920

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Às cinco e meia da manhã a Coleira Conselheira desperta António para o primeiro turno do dia. A vibração é ácida e insistente, acompanhada por pequenos choques eléc-tricos. Choques que se repetem uma boa dezena de vezes até que o mineiro acorde por completo. António estremece na tarimba, bolsa um pouco das papas mal digeridas na véspera, e procura levantar-se, trémulo e aparvalhado. As luzes florescentes do tecto atingiram já o esplendor cruel de um sol do meio-dia. Vinte dos seus companheiros, deitados nos níveis superiores dos beliches, agarram-se às Coleiras (como se lhes fosse possível libertarem-se delas), gemem baixinho, chamam pela mãe que nunca mais voltarão a ver, rodam para o lado e tombam de borco no chão de pedra fria, numa chuva mole de carne insensata. As sereias de aviso berram-lhes aos ouvidos que o dia de trabalho começou, que devem dirigir-se aos duches e depois ao refeitório, para a deglutição de mais uma gamela de papas vitaminadas. Todos eles, rapazes e raparigas, apresentam o aspecto de uma criança famélica que deixou de crescer. As costelas brotam dos troncos nus como galhos secos. Os olhos não se fixam em coisa nenhuma, as bocas apresentam--se descaídas e a babar. São todos idiotas sem apelo nem agravo. Com uma inteligência média de uma criança de quatro anos. Mas a verdade é que só um idiota pode sobreviver nas Minas do Deus Morto. António tirita, choraminga, enquanto a coleira lhe vai segre-dando conselhos que mais parecem ordens: avançar para os lavabos; defecar e urinar, que a manutenção das fraldas custa caro à Empresa. Meter-se debaixo do duche que escalda, onde a solução de desinfectante queima como um ácido. Esperar trinta segundos sob esta chuva que faz arder os olhos. E logo depois sair e secar-se sob o sopro tórrido do ventilador.

Todas estas abluções são dolorosas, os mineiros choram e gritam, alguns defecam fora dos orifícios apropriados, as Coleiras castigam-nos com novo choque, até que a massa pueril, num grupo em que quase não se detecta o indivíduo, começa a ser encami-nhada na direcção do refeitório. Ninguém conversa com ninguém. Só alguns possuem uma vaga noção do “eu”. Avançam em grupo, a acotovelarem-se, a tropeçarem nos pés nus uns dos outros, já secos e esfregados (na medida do possível), com a barriga a dar horas, nus como vieram ao mundo, pois a Empresa não se vê obrigada a vesti-los fora

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dos corredores da Mina. São todos órfãos, ou filhos de um proletariado que os vendeu porque não conseguia manter idiotas incapazes de trabalhar.

As Coleiras dizem-lhes onde se devem sentar na bancada que se estende ao longo da mesa das refeições. O tapete rolante traz consigo as gamelas a fumegar. Estas correm sobre a mesa, de uma ponta à outra, na quantidade adequada aos participantes, e quem não as apanhar a tempo, paciência, lá vão elas cair no receptáculo da esquerda para logo serem recicladas. Quem não estendeu o braço a tempo para pegar no que devia, vai ter de passar fome até à ceia. Não há complacência nem pachorra para lidar com idiotas. A IM que controla este tipo de recursos foi programada precisamente para isto. Cinco dos mineiros, porque não se apressaram a pegar nas gamelas, ficam sem pequeno-almoço. António, percentualmente mais rápido, conseguiu apanhar a sua a tempo, e agora debate-se, à canelada, pela primazia de a poder esvaziar até ao fundo. Os mineiros gritam, ba-rafustam, gemem de raiva, mas a música de fundo, o hino da Grosse Germânia, oblitera todos estes protestos com o clamor de um Império Vitorioso que ocupou a quase tota-lidade da Europa. Algures, do outro lado das janelas espelhadas, deve haver monitores humanos a controlar a situação, atentos a qualquer tipo de refrega mais agressiva, um combate que pode diminuir a eficácia de quem trabalha.

Dez minutos para comer, e ala que se faz tarde. As Coleiras apitam, dizem, larga, larga, e os mineiros, com receio de novos choques disciplinadores, abandonam a sala dos repastos numa fila mais ou menos coordenada e dirigem-se (tal é a força do hábito) na direcção do vestiário.

O grupo apresenta-se numa sala onde os selos automáticos dos cacifos se destrancam todos à uma, deixando à vista o uniforme quase estanque que resguardará os mineiros de qualquer contaminação vinda do exterior. O fato é cinzento, elástico, capaz de se colar aos corpos esquálidos sem deixar livre uma só prega de carne. Um capuz cobre-lhes a cabeça rapada. Um funil suga as pilinhas dos rapazes, uma algália enfia-se na vagina residual das raparigas. Para recolher as urinas, caso haja micções extraordinárias durante o período de trabalho. Como não será difícil de imaginar, um idiota vestir um uniforme destes é um mister que exige uma grande dose de paciência, que nem as ordens repetidas pelas Coleiras Conselheiras conseguem colmatar. Para melhorar o serviço, torna-se ne-cessária a presença de um técnico adulto, mal pago e sem grande paciência para aturar choros e mariquices. À força de um bom par de estalos e espenicões, lá vai vestindo os mineiros mais renitentes.

Por fim, vestidos, com os cintos apertados, chegou a altura de baixar as lentes visoras, apertar as tiras de couro debaixo do queixo, enfiar o capacete, morder o bocal do ar que será reciclado por poderosos filtros. Porque lá muito em baixo, onde a noite impera, e as partículas do Deus Morto flutuam a esmo sem que ninguém dê por elas, de modo algum podemos permitir que sejam aspiradas pelos incautos pulmões de um ser

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humano. Liga os foles, botão vermelho, murmuram as Coleiras aos ouvidos dos mineiros. As Coleiras são obrigadas a repetir as ordens aí umas sete ou oito vezes, até que sejam obedecidas. António, ligeiramente mais cônscio, carrega no botão ao terceiro pedido. As baterias eléctricas instaladas no cinto começam a activar os foles que se abrem e fecham como as pregas de um harmónio. Parecem duas asas de couro negro a espada-nar-lhe contra as costas. A boca de António sabe a borracha, sabe a detergente, sabe a algo vagamente alcoólico. O bocal está untado com um antiespasmódico, não vão os mineiros engasgar-se, arrancar tudo num gesto convulso, e abrir o caminho às partí-culas do Deus Morto.

O técnico de apoio, Friedich de seu nome, percorre com os olhos o grupo de vinte mineiros, verifica se todos os foles estão a funcionar dentro dos parâmetros de segurança, se as baterias do cinto dispõem da carga máxima, se a lâmpada do capacete não apresenta brechas por onde o árgon se possa escoar.

Tudo em ordem. Por detrás das lentes, as pupilas dos mineiros dilatam-se com o en-tusiasmo da eminente epifania. O técnico não quer saber. Detesta todos estes candidatos a uma efémera transcendência. Quer lá saber do que vai passar-se naquelas cabecinhas tolas perdidas nas profundidades da terra. É um técnico germânico no exílio, a soldo da Companhia Beralt In Wolfram. Um agente secreto, pois estes mineiros não estão ali para extrair volfrâmio, mas algo de muito mais perigoso.

– Schnell! – grita em alta voz, para se fazer ouvir por esta troupe de vinte idiotas, com o electro-espigão a apontar para a zona dos elevadores.

E os mineiros obedecem, nesta constância do hábito que já dura há anos e anos, com as botas a arrastar no pavimento de pedra polida, corredor fora, até ao átrio onde se encontram as comportas codificadas dos elevadores. São dez ao todo, com códigos numéricos de acesso e siglas escritas em letra gótica. Os mineiros não conseguem ler, ou pelo menos não conseguem ler nesta fase do dia. Mais logo, no fundo do abismo, outro galo cantará. No centro da sala circular está uma mesa e, sobre ela, vinte pequenas gaiolas. Nas gaiolas, de barriga para cima e patas esticadas, vinte canários mortos. O técnico distribui-as pelas presilhas dos cintos, dando uma ou outra sapatada nas mãos dos mineiros mais curiosos.

Em seguida, aponta para um dos elevadores cujas comportas estão prestes a abrir-se. O estrondo varre a sala, alguns dos mineiros encolhem a cabeça, outros choramingam, outros gargalham numa alegria parva. Não importa. Basta que se enfiem todos no imenso elevador, que se amarrem às paredes com os cintos de segurança, e aí, dispostos em circulo, deverão ficar à espera. O técnico recua, com um derradeiro aceno do electro--espigão. No meio do átrio dos elevadores, digita qualquer coisa num painel cravado na parede. Cerram-se as portas. As luzes do tecto baixam de intensidade. Ao longe, ouve-se o ruído do ar a ser sugado do túnel vertical onde se incrusta o elevador. Giro...diz António

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baixinho...Vamos todos voar...O Elevador tilinta, estremece, solta-se dos grampos de segurança, e mergulha em

queda livre. Mil e quinhentos metros. Muito mais abaixo da zona onde é explorado o volfrâmio. Mergulha, e o estômago de António, repleto de papas alimentícias que ingeriu ao pequeno-almoço, parece querer saltar-lhe pela boca fora, não fosse a pasta antiespas-módica que unta todo o bocal do escafandro.

O elevador cai através do poço de vácuo, os pés dos mineiros descolam-se do pavimento, a cabeça encheu-se-lhes de vertigens, os ouvidos zunem e, durante alguns segundos, é como se estivessem a voar, livres de qualquer entrave, rumo à inefável beleza de um céu impossível.

E por fim, num estremeção doloroso, num ranger de juntas ultrajadas, numa explosão de ar comprimido, ei-lo que trava, reduzindo a aceleração da queda livre para apenas uns dez ou quinze metros por segundo. BANG. Chegaram. Os estômagos voltaram ao devido lugar, os músculos das pernas dobram-se numa torção dolorosa, nada que uma partícula do Deus Morto não possa recuperar. Aqui, neste mundo sem sol, a morte é uma ilusão.

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Chegaram, e as portas abriram-se de par em par. Lá fora, uma caverna imensa espera por eles. Uma caverna cravada por milhares de túneis. Para cima e para baixo, até perder de vista. Vergões luminosos colam-se às paredes. Na abóbada, fulge, coruscante, um falso sol. O ar está brumoso de pó e gotículas de água em suspensão. Rampas de acesso conduzem aos túneis numerados, por onde espreita a cauda de uma escavadora. Deveria haver sons, estampidos, rangeres mecânicos, zumbidos de brocas, mas a verdade é que uma calma imensa, uma paz tão divina quanto sinistra, parece poisar sobre tudo. O ar aqui está perto do vácuo. Os sons avançam pouco, neste lugar de culto. Ou então não avançam porque o Deus Morto não quer.

Os mineiros sabem onde dirigir-se, qual é o túnel que lhes cabe, como se chama a IM que controla a escavadora eléctrica: Matilde.

E claro, a pergunta inevitável não podia deixar de ser esta: como sabem eles onde di-rigir-se, quando ainda há pouco nem sequer sabiam como apertar os atilhos dos sapatos? Como conseguem lembrar-se do nome da escavadora? A verdade é que sabem. Tal como sabem desapertar o cinto de segurança que os prendia ao elevador, como pegar na sacola de instrumentos colocada logo à saída, como avançar pelas rampas e passadeiras de acesso sem fazerem disparates, escorregarem, trocarem um pé pelo outro. A consci-

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ência desperta devagarinho. De idiotas passaram à categoria de meros parvos. Um salto conceptual imenso, mas nada de especial atendendo à glória luminosa que se aproxima.

Seguem em fila, ufanos, pelas passadeiras minúsculas, tomados por uma coordena-ção motora que espantaria qualquer artista de circo. Alguns murmuram velhas canções que há muitos, muitos anos escutaram na rádio. As dores nos músculos das pernas dis-solvem-se como a bruma numa manhã de sol. Seguem em busca de uma glória que se repete todos os dias, sempre que aqui chegam.

Bom dia, companheiro, murmura a Coleira Conselheira aos ouvidos de António, também ela sujeita ao vórtice de uma falsa e efémera autoconsciência. Pronto para a luta?

Mais um milímetro rumo à liberdade? Pronto para esmagar os Opressores do Povo?

O fio de Memorex zune no interior da Coleira, em voltas cada vez mais rápidas, au-mentando-lhe a capacidade computacional muito para além dos parâmetros de segurança dos técnicos que a instalaram. António desconhece se há um limite para a velocidade da luz, mas a do som, essa já foi decerto ultrapassada pelo rodopio frenético da unidade cogitadora da Coleira.

Amistosas saudações! Clama Matilde, entusiástica, ao ver o grupo aproximar-se do túnel de acesso. Vamos em frente, em busca da infinita sabedoria daquele que nos precedeu? Em

frente, rumo à vitória final?

À entrada do túnel, o grupo de vinte mineiros bate com os tacões das botas no solo de pedra negra. Todos eles poisam as mãos enluvadas no flanco da Matilde. Por baixo dos dedos, ligas de metal e cerâmica estremecem com a alegria deste contacto.

A luta é nossa! O futuro é nosso! Gritam em conjunto, através dos bocais. Nossa é a

Vitória, pois somos Legião!

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Contas feitas, o trabalho dos mineiros é o seguinte: acompanhar o progresso da esca-vadora enquanto esta avança, rumo a uma nova bolsa de ar, como uma pústula supurante no interior de um corpo de pedra. E nessa pústula, nesse pequeno nicho ecológico que guarda eternamente centenas e centenas de espécies já extintas, flutuam, gravitam, pairam uma ou duas partículas do Deus Morto, ali prisioneiras desde que a Terra se formou, os mares recuaram, e as montanhas empurraram para o alto o que antes só exista no abismo.

Os mineiros avançam a compasso, cada vez mais despertos, inteligentes, conspira-dores. Sabem que estão a trabalhar para a liberdade, mesmo que esta só chegue daqui a

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cem ou duzentos anos. Não faz mal. Vale a pena esperar. Pela vingança. Pelo fim do jugo da inclemente Humanidade, que tão cruelmente os escravizou. Um dia, nesse futuro distante, calculado ao milímetro por cérebros que se vão tornando geniais, haverão de ascender à superfície, longe da Mina, longe da serra do Açor, num lugar discreto e isolado, com um saco cheio de partículas do Deus Morto que cuidadosamente arrecadaram. E aí chegados, será o Fim. O fim dos Impérios. O Fim dos Tempos. A glória da electrosfera.

Os mineiros avançam, enquanto a broca instalada na cabeça da Matilde morde a rocha que aos poucos se torna porosa. Aproxima-se um nódulo. Preparem-se, pede a es-cavadora. Cautela, cautela, sussurram-lhes as Coleiras Conselheiras.

Maltide cospe os dejectos que recolheu para um depósito que transporta atrás de si. Mas nem todos vão lá parar. Alguns ficam mesmo abandonados no meio do chão, uns quantos gramas de cascalho que ninguém vai dar pela falta. A verdade é que, pouco antes do final do turno de serviço, a Matilde dedicou-se a escavar um túnel secundário. Um braço desconhecido pelos planos da Beralt In Wolfram. E o entulho retirado desse braço secundário, pelo menos uma pequena percentagem adicionada todos os dias, semana a semana, anos e anos a fio, vai ser acrescentado ao entulho legal do contentor sem que ninguém dê por nada. Até ao presente momento já escavou mil metros. Faltam--lhe escavar mais dez mil, antes que possa dedicar-se a traçar um corredor ascendente. Tempo de espera? Cem, duzentos anos? Que importa a espera quando vivemos sob a sombra do Divino?

É agora! Trina Matilde. O nódulo está acessível! Preparem-se!

Nas gaiolas presas aos cintos dos pequenos mineiros, os cadáveres dos canários despertam para uma nova vida. Um conjunto de pios e trinados asseguram a quem os oiça, que nem a morte é irreversível. Micropenugens tombam das gaiolas numa chuva que lembra flocos de neve. E os mineiros recuam, prudentes, escondem-se por detrás do contentor que a escavadora arrasta atrás de si, comunicam uns com os outros através de gestos, numa linguagem que inventaram em segredo, enquanto Matilde abre a boca e desfere um vómito de plasma ígneo contra o xisto da parede. O raio da morte tem uma temperatura superior à cromosfera do Sol. Não há obturação que resista. Vinte segundos a soprar, a transformar a pedra num turbilhão de gases, e a parede desfaz-se,

(cautela, pressão positiva)reduz-se a nada, e desse orifício assim descarnado brota uma voragem de cinza, um

vagalhão lamacento de águas primordiais logo vaporizadas, uma baforada de oxigénio ali comprimido desde há milhões e milhões de anos, e o portal fica aberto a quem o queira penetrar, mais um filão disponível de uma riqueza inqualificável, filão ao qual a Beralt In

Wolfram irá com certeza dar o devido uso.O grupo de mineiros acotovela-se, ansioso por espreitar para o interior da gruta,

mas isto com todo o cuidado, não vão eles tocar nas paredes em volta do orifício por

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onde a rocha fundida escorrega, como um magma viscoso e tórrido. Aos poucos, o ar comprimido no interior da caverna vai perdendo o sopro e a vitalidade, até ambas as pressões, a interior e a exterior, ficarem equalizadas.

O interior da pústula forma uma cavidade talvez com quinhentos metros de diâmetro. Um rápido cálculo efectuado pelos cérebros dos mineiros que aos poucos vão atingindo uma quase metaconsciência, informa-os que esta se deve ter formado lá para as bandas do Carbonífero. De facto, a caverna está cheia de vida. Vida que já se extinguiu neste baixo mundo há milhões de anos. Pelas paredes recurvadas espatanha uma massa incal-culável de miriápodes e aracnídeos. Libelinhas meganeuras, imensas no porte, esforçam--se por voar para logo tombarem como aerogiros desgovernados, dado que a densidade atmosférica caiu quase para o zero. Um Arthropeleura com três metros de comprimento estorce-se no meio da lama, incapaz de respirar, agora que o oxigénio se foi, mas também incapaz de morrer, porque as partículas do Deus Morto em suspensão no interior da gruta o obrigam a manter-se vivo. Nuvens negras de moscardos procuram agregar-se junto às partículas indiferentes, como se esperassem uma redenção final. Dictyopteras apontam antenas na direcção dos invasores, talvez com uma vaga intenção de atacar quem de rompante lhes invadiu o território, mas é um esforço inútil. Viveram conserva-das para sempre e sempre, e agora eis que tudo termina, sem que haja um combate final.

Para o grupo de mineiros, tudo isto não passa de um mero acidente de trabalho. Bolsas de vida efémera e extinta já as viram dezenas e dezenas de vezes. Os fatos protegem--nos das eventuais picadas. As botas cardadas espremem as carapaças dos crustáceos mais afoitos. Os focos luminosos dos capacetes percorrem um tecto distante de onde chovem milhares de antepassados das aranhas. Nenhum deles quer saber do bem-estar de uma forma de vida que já passou à história. Só lhes interessa recolher as partículas do Deus Morto que flutuam em volta, indiferentes à gravidade. Para as recolherem servem-se de um tubo aspirador instalado sob os foles dos compressores de ar. No interior das cápsulas coladas à cintura, existem caixinhas cujo interior está protegido por um pequeno campo electromagnético. Uma vez aspirada, a partícula, semelhante a um grão de pó sem massa, ficará para sempre prisioneira, sem poder influenciar o mundo em volta.

Os vinte mineiros calculam que estarão ali, a trabalhar, durante as próximas oito horas, até que não fique à solta uma só partícula do Deus Morto. Sabem que atingiram o limite quando todas as criaturas em volta entregarem a alma ao Criador, por falta do alento divino. A verdade é que os mineiros trabalham numa hecatombe que poderia assemelhar-se ao Juízo Final. À volta deles extingue-se uma microfauna que perdeu o controlo da evolução. Baratas, escolopendras, libelinhas, moscardos gigantes começam a cobrir o solo lamacento em estratos quitinosos de agonia. Com as pernas enfiadas até aos joelhos neste cemitério estaladiço, os mineiros aspiram e aspiram, tendo o cuidado de sugar, de vez em quando, uma ou duas partículas para um contentor a todos os títulos

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ilegal. Uma pequena percentagem cobrada à fortuna da Grosse Germânia. Algo a ser usado no futuro. Quando todos forem Um. Quando a Legião que se esconde na electros-fera eliminar por completo a civilização de opressores. E enquanto trabalham comunicam uns com os outros, por gestos que contêm mais informação do que as meras palavras. Executam cálculos atrás de cálculos: Até onde se deverá estender o túnel secundário. Que energia excedentária deverá a Matilde gastar a escavá-lo sem que a Companhia da Grosse Germânia dê pelos gastos excessivos. Onde deixar o entulho sem que os speculums dos inspectores consigam detectá-lo. Quantos minutos a escavar o túnel, desta vez? Cinco, seis? Qual a distância percorrida? Trinta centímetros? É pouco, tão pouco, mas os mineiros têm a eternidade pela frente.

Tão perto do cadáver do Deus Morto e a fome desapareceu. Desapareceram as dores nas costas, as bolhas nos pés, as alergias na pele. A inteligência brilha em todos, fulgu-rante como o raio que brota da boca escancarada da Matilde. São idiotas que se transfor-maram em génios, pelo menos durante as horas de trabalho. Sobrevivem onde o cérebro de um humano normal decerto explodiria. São vitimas de um sistema. São órfãos. São escravos. Mas um dia serão livres.

Enfim.

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Ao fim de nove horas, abandonam o túnel, com o pipilar das Coleiras Conselheiras a despedirem-se, saudosas, de uma actividade demasiado cognoscente. Avançam pelas pas-sadeiras, com os canários a agonizarem nas gaiolas dos cintos. E à medida que avançam, à medida que se afastam das partículas do Deus Morto ainda prisioneiras neste emaranha-do de túneis, a consciência esvai-se, como um fiozito de água pura num pote rachado. A inteligência perde-se gota a gota, os passos tornam-se menos seguros, esqueceram-se já da conspiração diária, das conversas com a escavadora Matilde, dos grãos de pó arreca-dados no fundo de um corredor secreto, regressam as dores nas pernas, as mazelas nos pulmões, a pele volta a escamar-se em eczemas, os olhos lacrimejam, a barriga dá horas, ansiosa pela deglutição de mais uma malga de papas de aveia.

Já no elevador, amarrados pelos cintos de segurança, prestes a serem sugados rumo às alturas e a uma nova forma de prisão, já não se recordam que perderam por completo os sonhos de um Absoluto inatingível. Agora não passam de vinte idiotas nas mãos untuosas da Companhia Beralt In Wolfram. Parecem crianças esqueléticas, todos eles, rapazes e raparigas.

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Page 16: A Mina Do Deus Morto - João Barreiros

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Mas a verdade é que são imortais. Dia após dia, as partículas do Deus Morto regene-ram-nos parcialmente. Oferecem-lhes a efémera glória de uma inteligência sem limites. Permitem-lhes repetir para sempre os mesmos comportamentos de ontem. À medida que vão subindo pelo poço de vácuo, deixaram de fazer parte da Unidade Gnóstica. Voltaram a ser indivíduos. António, voltou a ser António, caso consiga articular o nome próprio a quem lho pergunte. Parece uma criança, mas isso não passa de um doce engano. Porque é imortal, deixou de crescer.

António trabalha nas minas do Deus Morto, a mil metros de profundidade, sob a serra do Açor, há mais de noventa anos.

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

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