a mise en abyme em quinto enio

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    A MISE EN ABYME COMO RECURSO ENIANO NOS ANAIS

    Everton Natividade*Universidade de So Paulo

    Quae sopitos deludunt somnia sensusVirglio, Eneida, X, 642

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M ONo fragmento 22 do primeiro canto dos Anais (ed. Valmaggi),Quinto nio (239ca. 169 a.C.) apresenta a sua verso daconcepo dos gmeos Rmulo e Remo, numa cena em que anarrativa do poeta contm o discurso de lia, me dos gmeos,recm-acordada de um sonho bastante agitado. Na fala de lia,insere-se a fala do seu pai, um discurso dentro de outro discurso.O procedimento do rcit enchss cria um efeito de mise en abymeque tem especial relevncia para a leitura interpretativa dofragmento, por sua vez criador de uma segunda mise en abymenos Anais. Outro sonho narrado no primeiro canto, o de niocom Homero (fr.2-8), liga-se ao de lia tambm pela mise enabyme, gerando novas leituras intratextuais.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V Enio, Anais, mise en abyme

    Quinto nio (239ca. 169 a.C.) proveniente de Rdias, na Calbria, autor semi-grego, era falante de osco, grego e latim. O ltimo dos trs idiomas, ainda que no tenhasido, certamente, a primeira lngua de nio, foi o meio da sua expresso literria, cujaproduo comporta um poema pico, peas de teatro, stiras, um poemeto sobre aperitivose dois pequenos tratados de temtica religioso-filosfica, alm de outras obras menores,das quais pouco nos resta.1 Escritor prolfero, nio , para ns, hoje, tambm fragmentrio:

    * [email protected] As obras de nio, compiladas e traduzidas para o ingls, em verso bilngue, so mais facilmenteencontradas e lidas na edio de WARMINGTON. Remains of Old Latin; em espanhol, h as tradues deMORENO. Quinto Ennio. Fragmentos e MARTOS. Ennio: Fragmentos, esta ltima mais cuidada que aprimeira. Quanto aos Anais, alm das tradues j citadas, convm mencionar os trabalhos de STEUART.The Annals of Quintus Ennius; e SKUTSCH. The Annals of Quintus Ennius, que, ainda que no contmcom uma traduo, apresentam edio e comentrios de grande valor para a compreenso dos fragmentos.No Brasil, dois trabalhos foram feitos acerca da obra de nio: a tese de NBREGA. A epopia de nio:exegese e crtica, sobre os Anais, e a de SOUZA. Fragmentos de Nvio e nio, uma traduo incompleta eno muito confivel dos fragmentos de nio e Nvio. Recentemente, tendo-nos servido da edioitaliana de VALMAGGI. Q. Ennio: I frammenti degli Annali como texto base, traduzimos e comentamosos fragmentos do poema pico verso a verso em: NATIVIDADE. Os Anais de Quinto nio: estudo,traduo e notas.

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    nenhuma das suas obras nos chegou completa, nenhum manuscrito existe, e tomamosconhecimento da existncia e dos textos do poeta somente graas a citaes dos seusleitores da Antiguidade.

    Como poeta pico, nio se insere como o ltimo na sequncia dos trs que aliteratura latina viu surgirem antes de Virglio; os outros dois foram Lvio Andronico(ca. 284-204 a.C.), com a traduo da Odisseia para o latim, e Nvio (ca. 270-201 a.C.),autor de A Guerra Pnica. nio se inscreve na tradio pica como poeta inovador e,primeiro legislador da alta poesia romana,2 introduz, com os Anais, o que haveria deser o verso prprio da epopeia, em latim, o hexmetro datlico, herana grega da afiliaodo rudino a Homero. Tambm quanto ao tema os Anais se diferenciam: enquanto LvioAndronico havia traduzido um poema grego e Nvio havia tratado de um evento da histriaromana, nio se prope narrar a histria de Roma at o dia dos seus contemporneos,partindo do saque de Troia. Esse argumento cobriria mais que mil anos (1184/3-169 a.C.),e a obra monumental que o encerrava se comps de dezoito cantos, dos quais nos restamquatrocentos e vinte fragmentos, aproximadamente seiscentos versos.3

    No canto I, aps a invocao das Musas (fragmento 1), temos a exposio do sonhocom Homero (2-9), um aceno destruio de Troia (10), a meno linhagem de Enias(11 e 12), uma apario da deusa Vnus (13-16), referncias aos tempos mitolgicos daItlia (17 e 18) e do Lcio (19-21). O fragmento seguinte (22) a descrio de um sonho,e sobre ele nos debruaremos com mais cuidado neste artigo.

    Proveniente do dilogo Sobre a adivinhao (De diuinatione), I, XX, 40, de Ccero,4

    o fragmento 22 se insere na fala de Quinto, que, no livro I, defende a adivinhao, definidacomo pressentimento e conhecimento das coisas futuras (praesensionem et scientiam rerumfuturarum Ccero, Div., I, 1). Tendo dividido esses pressentimentos e conhecimentos emdois tipos, os naturais diretamente inspirados pelos deuses (como os sonhos e profecias) e os artificiais recebidos pelo exame e a observao, pelo estudo e por prticas especficas

    2 BAYET. Littrature latine, p. 56.3 Vejamos como os temas da histria de Roma se distribuem entre os cantos dos Anais, mantendo em menteque o que se apresenta refere-se aos fragmentos que nos restaram. No canto I, temos a origem mtica daCidade, desde a queda de Troia at a morte de Rmulo; no canto II, inicia-se a narrativa da monarquiaromana (com referncias a Numa Pomplio, Tulo Hostlio e Anco Mrcio), o que se encerra no canto III(com referncias a Lcio Tarqnio Prisco, Srvio Tlio e Tarqnio Soberbo). Do canto IV, restam-nosdois fragmentos sobre a tomada da cidade de nxur (nome volsco da cidade de Terracina, no Lcio).O canto V se ocupa sobretudo das guerras samnitas (ca. 343-291 a.C.), e o VI volta-se para a guerracontra Pirro (281-272 a.C.). Aps a narrativa das guerras contra os povos da Itlia, nio passa, no cantoVII, a uma breve exposio sobre os cartagineses e a Primeira Guerra Pnica, e narrativa das GuerrasIlrias (229-219 a.C.). A Segunda Guerra Pnica, travada contra Anbal entre os anos de 218 e 201 a.C., o tema dos cantos VIII e IX. O canto X ocupa-se das Guerras da Macednia (sobretudo da Segunda,200-197 a.C.); o canto XI retorna s questes da histria interna de Roma, com referncias Lei pia(215 a.C.) e a Marco Prcio Cato. O canto XII, na edio que seguimos (reiteramos: Valmaggi, 1945),compe-se de um fragmento de contextualizao incerta. Os cantos XIII e XIV expem a guerra contraAntoco (192-188 a.C.); o canto XV constitui uma apologia a Marco Flvio Noblior, que ter sido um dospatronos de nio. A guerra na stria (178-177 a.C.) o tema do canto XVI; os dois ltimos cantos, XVIIe XVIII, possivelmente tratariam dos eventos posteriores Guerra da stria e fariam o elogio do tribuno lio.4 O texto do De diuinatione por ns utilizado o que apresenta o vigsimo volume dos ttulos de Ccerona coleo Loeb, na reimpresso de 1979.

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    (como a haruspicina e o auspcio) , Quinto passa, no pargrafo XX, ao exame de umdesses meios especficos de adivinhao natural, o sonho, e a se insere a citao dapassagem eniana. Vejamos o fragmento 22, no original latino, seguido da nossa traduo:

    excita cum tremulis anus attulit artubus lumen,talia tum memorat lacrumans, exterrita somno:Eurudica prognata, pater quam noster amauit,uires uitaque corpus meum nunc deserit omne.

    5 Nam me uisus homo pulcer per amoena salictaet ripas raptare locosque nouos; ita solapostilla, germana soror, errare uidebartardaque uestigare et quaerere te neque possecorde capessere: semita nulla uiam stabilibat.

    10 Exim compellare pater me uoce uideturhis uerbis: o gnata, tibi sunt ante ferundaeaerumnae, post ex fluuio fortuna resistet.Haec ecfatus pater, germana, repente recessitnec sese dedit in conspectum corde cupitus,

    15 quamquam multa manus ad caeli caerula templatendebam lacrumans et blanda uoce uocabam.Vix aegro cum corde meo me somnus reliquit.

    Quando a anci, desperta, trouxe a luz com os membros trmulos, ento que aquela, chorando, apavorada com o sonho, conta isto:Filha de Eurdice, a quem nosso pai amou,as foras e a vida agora abandonam todo o meu corpo.

    5 Eis que pareceu que um belo homem por ameno salgueiral,por ribeiras e lugares novos me arrastava; assim, sozinha,depois disso, irm germana, eu parecia vagare lenta procurar-te e seguir-te, mas no poderalcanar-te no corao: nenhuma senda determinava um caminho.

    10 Em seguida, meu pai parece chamar-me em alta vozcom estas palavras: filha, antes h alguns sofrimentosa serem suportados por ti; depois, do rio, a fortuna se restabelecer.Tendo o pai dito essas palavras, germana, de repente se retirou,nem, desejado no corao, deu-se a ver,

    15 embora as mos aos azulados espaos do cueu, chorando muito, estendesse e o chamasse com branda voz.Somente nesse momento, com o meu corao aflito, o sonho me deixou.5

    A personagem principal que se apresenta nesse fragmento se chama lia. Desdelogo, vemos impor-se ao estudioso de nio uma das questes mais delicadas da leiturainterpretativa dos fragmentos: muito dela mera inferncia do analista, resultado deum vaievm contnuo entre os fragmentos, acessando informaes esparsas que se ajuntamna esperana de que o sentido inicialmente existente seja reconstitudo. Esta questo,das mais nodais na reconstruo da obra eniana, fica clara neste passo, em que apersonagem no vem designada, mas se estabelece como lia, identificada a Ria Slvia, ame dos gmeos do mito tradicional de fundao da cidade de Roma. lia vem nomeada

    5 As tradues aqui apresentadas so de nossa responsabilidade.

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    nos fragmentos 25 (Ilia, dia nepos, quas aerumnas tetulisti lia, divina neta, que sofrimentossuportaste) e 28 (... at Ilia reddita nuptum ... mas lia, entregue em casamento). Almdisso, o passo vem introduzido, no dilogo ciceroniano, por estas palavras de Quinto: poisaquela vestal narra, em nio (narrat enim et apud Ennium Vestalis illa Ccero, Div., I, XX,40) a vestal referida, sabemos, lia.

    Nessa perspectiva, tomada como aceite a identificao pr-textual fundamentadana descrio do mito como conhecimento partilhado e na leitura conjunta de outrosfragmentos, lia a personagem central, que se apresentar numa fala em primeirapessoa; por meio do seu discurso, ns somos inseridos no quadro do eu, aqui, agora. Noso poucas as implicaes desse dado; a primeira delas a criao de um efeito deverossimilhana que inscreve a personagem como produtora de um discurso vivenciadopor ela mesma, o que sugere veracidade, uma vez que viveu e agora se pe a relatar apersonagem testemunha de primeira mo. Uma segunda e no menos importanteconsequncia do discurso direto o estabelecimento da subjetividade como caractersticafundadora da narrativa dentro da narrativa se, por um lado, o tratar-se de umatestemunha de primeira mo lhe confere a fidedignidade da verossimilhana,assegura-lhe tambm o pessoal e particular como direitos da sua narrativa, por outro. Oefeito claro: a objetividade que engenha essa organizao prope o mito fundador daCidade como algo que foi observado nas suas facetas mais verdicas pelo autor, queagora descreve a cena do sonho premonitrio que seria o incio de tudo. Diante dessaobjetividade inicial, o subjetivo ganha lugar na fala de lia, que narra um sonho. Nofragmento conhecido como o sonho de lia, ento, temos efeitos de oposio entreobjetividade e subjetividade. Descrito pelo narrador, o sonho se apresentaria comoimagem objetiva da subjetividade da personagem; descrita pela prpria personagem, aapreciao das etapas do sonho so a viso subjetiva do sonhado pela personagem queas descreve.

    Alm da narrao do sonho pela personagem dentro da narrao do prprio poema,veremos um segundo encaixe: o da fala do pai de lia, discurso direto citado dentro deoutro discurso direto (do v. 11, desde o gnata, filha, at ao fim do seguinte, v. 12). esse efeito de discursos encaixados, conhecido na teoria literria como rcit enchss,que cria um primeiro efeito de mise en abyme. Passemos a nos ocupar deste procedimento.

    Para a definio de mise en abyme e os seus desdobramentos, servimo-nos de doistextos base, ambos do mesmo autor, Lucien Dllenbach: trechos do livro Le rcit spculaire:essai sur la mise en abyme, de 1977; e o artigo Intertexto e autotexto, publicado na revistaPotique, n. 27, em traduo portuguesa de 1979. Partindo da definio de mise en abymeproposta por Gide, que a entendia como uma repetio, no nvel das personagens, dotema da obra, Dllenbach vai expandir a aplicao do termo e defini-lo como um processode reflexividade em que se v um enunciado que reenvia ao enunciado, enunciaoou ao cdigo do discurso,6 ou como

    6 DLLENBACH. Le rcit spculaire: essai sur la mise en abyme, p. 62.

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    uma citao de contedo ou um resumo intratextual. Enquanto condensa ou cita a matriaduma narrativa, ela [a mise en abyme] constitui um enunciado que se refere a outroenunciado e, portanto, uma marca do cdigo metalingustico; enquanto parte integranteda fico que resume, torna-se o instrumento dum regresso e d origem, por consequncia,a uma repetio interna.7

    No texto em observao, a mise en abyme um enunciado que reenvia ao enunciado o sonho de lia reflete o poema. E no s no enunciado se v o reflexo: tambm nasituao de enunciao, pois a narrativa de outro sonho reflete, guardadas as devidaspropores, o contedo do sonho de lia; de duas formas diferentes, em dois momentosdiferentes, em dois sonhos diferentes, o poeta nos ensina o contedo dos seus versos, amatria da sua narrativa, condensada em resumos intratextuais.

    No sonho sob apreo, a fala tomada por lia, pela personagem que instaura um novoenunciado, dentro do enunciado original, o do poeta. A palavra que se outorga o prpriotema da narrativa pica, a histria de Roma, que no poema vai narrada nos fatos histricosmitificados,8 ao passo que, no sonho de lia, vai narrada numa espcie de mito individual,o sonho da personagem, que nada mais que a premonio da gnese, do princpio dahistria que o prprio poema narra. O enunciado de lia , ao fim, o reflexo do enunciadodo poeta. Nenhuma histria diferente narra, por sua vez, o enunciado do pai de lia:vencidas algumas tribulaes, a fortuna se restabelecer. Esse outro reflexo doenunciado continente, o poema, pois como se narra na gesta pica, a histria de Roma uma srie de insucessos vencidos que se encerra pela fortuna restabelecida. Trata-sedo espelhamento, cada vez em proporo menor, do mesmo tema; a narrativa retomada o instrumento dum regresso ao tpico central, o que cria uma repetio interna.9

    Eis, em cena, o efeito de mise en abyme.Deste sonho, convm-nos guardar as figuras das personagens principais, no que

    tange ao uso do discurso: lia, que clama e no respondida; o pai, que fala com voz deautoridade e prev o futuro da filha. O pai parece chamar a filha, compellare uidetur(v. 10), com a autoridade discreta de quem chama para fora da situao de conflito, paraento falar parte; o verbo chamar vem acompanhado do verbo parecer, que estabelecea condio do pai trata-se de um morto e, portanto, de uma imagem, de uma viso, deum parecer que no . O ltimo verbo do v. 13, ecfatus tendo dito, em sentido lato,e tendo anunciado, previsto, em sentido especfico denota, no seu esmiuamento

    7 DLLENBACH. Intertexto e autotexto, p. 54. Outro nome atribudo mise en abyme reflexividade(DLLENBACH; TOMARKEN. Reflexivity and reading), denominao que reala o que h de imagticono procedimento. Por esse vis, ademais, a mise en abyme se avizinha da kphrasis (definida como adescrio retrica de uma obra de arte, HEFFERNAN. Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis fromHomer to Ashbery, p. 191, n. 2), nas ocorrncias em que esta apresenta, na sua descrio pictrica, umresumo do contexto maior em que se insere, ou, se inserida numa narrativa, uma cena que faz parte dahistria narrada. Um exemplo de particular relevncia est nos quadros com que se depara Enias ao chegara Cartago, descritos no canto I da Eneida de Virglio. O interesse dessa kphrasis foi estudado porPATTERSON. Rapt With Pleasaunce: Vision and Narration in the Epic, p. 455-459), a quem voltaremosa nos referir.8 Veja-se a n. 3 para uma descrio canto a canto dos temas histricos explorados por nio nos seus Anais.9 ao mesmo tempo uma pausa retardante e uma pr-figurao do objetivo, tanto impedimento quantoencorajamento (PATTERSON. Rapt With Pleasaunce: Vision and Narration in the Epic, p. 459).

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    semntico, que o pai, mais que declarar, prev: este mesmo verbo o que se empregava paraexpressar o que era dito, declarado, determinado ou fixado por um ugure. Marca-se aautoridade da figura paterna, pois, para alm dos verbos: a prpria personagem aparecenuma prosopopia10 e inicia a sua fala com uma apstrofe (v. 11, o gnata, filha), duasfiguras que se unem para dar destaque apario.

    conhecido o valor atribudo ao respeito filial devido, sobretudo, ao pai nareligiosidade romana. Referimo-nos disposio de esprito11 chamada pietas, definidacomo um sentimento de obrigao para com aqueles a quem o homem est ligado pornatureza (pais, filhos, parentes) (...), que liga entre si os membros da comunidade familiar,unidos sob a gide da patria potestas, e projectada no pretrito pelo culto dos antepassados.12

    Esse sentimento de lealdade e devoo para com o pai se representa no sonho pela presenafirme de Enias, pai de lia,13 que determina o futuro da filha14 e se retira de cena.

    A figura da autoridade que prev o futuro ela tambm recorrncia: no promiodo canto I, em seguida invocao das Musas, nio descreve um sonho seu, comsubjetividade similar que garante a lia no fragmento 22. Nesse sonho, narrado entreos fragmentos 2 e 8 dos Anais, Homero declara-se reencarnado em nio, aps ter encarnadonum pavo; depois de explicar a teoria da metempsicose em moldes pitagricos, o poetagrego prev o futuro dos versos de nio:

    # ( ( # ( ( # ( ( # ( ( # ( ( latosper populos terrasque poemata nostra cluebuntclara

    por vastospovos e terras nossos poemas terogrande reputao

    Como primeiro ponto de encontro e encaixe entre os sonhos de lia e nio, ambospertencentes ao canto I, a previso do futuro nos leva a relacionar Enias a Homero;mas no s: assim como Enias o pai de lia e recebe, por isso, a autoridade que lheinveste a pietas, tambm Homero recebe o mesmo estatuto, o que se confirma nofragmento 4, em que nio se refere ao poeta grego:

    10 [A prosopopeia] consiste em pr em cena os ausentes, os mortos, os seres sobrenaturais ou mesmo osinanimados e faz-los agir, falar, responder (MARTINS. Introduo estilstica: a expressividade nalngua portuguesa, p. 216).11 PEREIRA. Estudos de histria da cultura clssica, p. 340.12 PEREIRA. Estudos de histria da cultura clssica, p. 338-339.13 nio seguia uma verso do mito em que lia era apresentada como filha de Enias, como o atestamSrvio Danielino, Aen., I, 237, e Srvio, Aen., VI, 777. Na verso do mito mais comumente aceita e, porisso mesmo, mais conhecida entre ns, lia (ou antes Ria Slvia) descendente de Enias e de Ascnio(ou Iulo), filha de Nmitor, sobrinha de Amlio.14 Quanto s particularidades de interpretao do texto que uma figura feminina como protagonistasugere, veja-se o texto de Elliott (The voices of Ennius Annals, p. 46-50) que, considerando as conclusesde um artigo de Connors a que no tivemos acesso (Ennius, Ovid and representations of Ilia, MD 32, 1994,p. 99-112), declara: A narrativa de lia figura, ento, como um dispositivo para chamar a ateno parao processo de produo potica de nio. Na sequncia, trataremos de outros pontos de encontro entrea nossa leitura e a de Elliott.

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    o pietas animi!

    piedade de esprito!

    Notemos a palavra pietas, assero da lealdade filial que nio devota a Homero. Se o paraleloentre Homero e Enias se d pela posio de pai que ocupam, no ser ilgico detectar quea figura de nio, no primeiro sonho, equivale de lia, pela posio submissa que a pietasconfere a ambos; alm disso, assim como lia, nio tambm recebe uma previso do seuporvir.

    Voltemos teoria da mise en abyme: enquanto condensa ou cita a matria dumanarrativa, a maior de que se constitui o poema, a mise en abyme constitui um enunciadoque se refere a outro enunciado,15 e tem fortes razes, portanto, num processo deintertextualidade, da chamada intertextualidade interna, compreendida como relaodum texto consigo mesmo.16 Nesse sentido que a mise en abyme um desencadeadorde isotopias,17 ou seja, a sua apario permite uma retomada do texto e uma releiturados seus significados, que se esclarecem pela relao que estabelecem com outros trechosdo mesmo texto. a partir da leitura do sonho de lia como recurso de mise en abymeque podemos reler o sonho de nio e averiguar, como passaremos a fazer, a caracterizaoque o poeta faz de si mesmo no processo.18

    A implicao interpretativa de relacionar-se a figura de nio com a de lia deextrema importncia. Se lia, violentada por um deus, representa, de fato, a vtima sobrequem o custo do imprio recaiu,19 se ela a responsvel, em primeira instncia, pelosdescendentes que faro a histria de Roma, o poeta, cujo corpo tambm tomado, aindaque no vitimizado, tambm ele responsvel pela produo da histria de Roma, pelacriao, em ltima instncia, das personagens dessa histria, em outro nvel, no que lhe prprio, no discursivo. Essa chave de leitura nos autoriza a visualizar um poeta que seatribui a capacidade de erigir um monumento que equivale prpria criao de umpovo. O intertexto, aqui, est no exegi monumentum horaciano, ao lado da verso enianado motivo: nemo me lacrimis decoret nec funera fletu | faxit. cur? uolito uiuos per ora uirum que ningum me honre com lgrimas nem faa funerais com pranto. por qu? voluteiovivo pelas bocas dos homens.20 Com esta interpretao, pomo-nos de acordo com Elliot,21

    que reproduz idias de Connors:22 a funo da apresentao do sonho pelo ponto devista de lia criar um paralelo entre ela e o poeta, na narrao que ele faz do seuprprio sonho com Homero, dada de um ponto de vista similarmente subjetivo.

    15 DLLENBACH. Intertexto e autotexto, p. 54.16 DLLENBACH. Intertexto e autotexto, p. 52.17 DLLENBACH. Intertexto e autotexto, p. 56.18 Reveja-se a citao de Elliott apresentada na nota 14.19 ELLIOTT. The voices of Ennius Annals, p. 46.20 Um epigrama de nio, refeito pelas citaes de Ccero, Tusc., I, 34; 117; C. M., 73; Sen., 20, 73. Aedio utilizada para o texto eniano a de COURTNEY. The Fragments of the Latin Poets, p. 43.21 ELLIOTT. The voices of Ennius Annals, p. 47.22 Cf. nota 14.

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    Mas no s a lia relacionaremos a figura de nio. No devemos esquecer queoutra chave de leitura encontra-se no fato de o poeta apresentar-se, no primeiro sonho,como a reencarnao de Homero mais que seu pai potico,23 reiteremos, Homero o possuidor do corpo de nio, nio Homero, o alter Homerus.24 Dessa feita, nio aprpria figura paterna a quem ele se refere com respeito no fragmento 4; trata-se deuma operao discursiva de grande engenhosidade: o poeta o seu prprio destinador, ele mesmo quem determina o seu futuro e prev o sucesso da sua empreitada potica.Cantor da gesta romana, criador do povo romano no nvel discursivo, nio se atribui adenominao que lhe seria conferida, mais tarde, por Proprcio25 e Horcio26 pater,pai, um ttulo honorfico atribudo aos deuses e s grandes autoridades masculinas.

    Reiteremos que duas das ocorrncias de mise en abyme com que vimos trabalhandoso, como j assinalamos, frutos de uma mesma situao de enunciao: as duas so a narrativade um sonho premonitrio, o de lia e o de nio com Homero. Sobre isso, W. V. Harris,27

    num artigo em que discute a opinio dos romanos sobre a veracidade dos sonhos, aponta que

    bastante claro que em meados da repblica romana acreditava-se amplamente quealguns sonhos tinham um ou outro valor proftico ou informacional. (...) Os principaispoetas, ademais, tinham papel pblico, e as suas pr-suposies religiosas e psicolgicasno se podiam desviar a grande distncia daquela dos cidados respeitveis. Assim que,quando nio, por exemplo, introduz o sonho de lia, filha de Enias, tocante fundaode Roma (nada menos) (...), ns temos que supor que larga credibilidade de tal histriaera aceite pela maioria de seus ouvintes e leitores. E quando reivindicava autoridade porcausa de um sonho real ou alegado sobre Homero, ele esperava ser levado a srio.

    Na concluso do mesmo artigo, Harris prope que se ponha de lado a suposio de queos romanos acreditavam em sonhos e que se passe a questionar de quem seria o interesseem que os sonhos fossem frequentemente considerados como algo que se poderia tornarrealidade. Na sua enumerao de possibilidades, o ltimo item entra em acordo, na suadescrio do porqu da narrativa de um sonho, com o que sugerimos que a mise en abymeexecuta como funo nestas ocorrncias dos Anais. Com efeito, a leitura do trecho parece-nos descrever os efeitos produzidos pela operao da mise en abyme no poema de nio:

    O autor de uma obra literria ficcional elaborava a narrativa de um sonho para adiantar oenredo, para sugerir o que estava por vir, para revelar algo sobre personagens individuais, parafazer o mundo humano entrar em contato com o divino. Isso acontecia em peas, romances,biografias e, sobretudo e evidentemente, nos poemas picos.28

    Por fim, assinalemos que a mise en abyme deve-se tambm observar pela posio queocupa no texto de que reflexo. Se, por um lado, ela pode ser reflexo da histria que aindase vai narrar, instalada no incio da trama, ou resumo do j narrado, quando instalada

    23 DOMINIK. From Greece to Rome: Ennius Annales, p. 40. Sobre a relao de pietas de nio para comHomero, veja-se ainda VASCONCELLOS. Efeitos intertextuais na Eneida de Virglio, p. 72.24 Assim se refere a nio o poeta Horcio (Epist., II 1, 50).25 III 3, 6.26 Epist., I, 19, 7.27 HARRIS. Roman Opinions About the Truthfulness of Dreams, p. 25.28 HARRIS. Roman Opinions About the Truthfulness of Dreams, p. 34. Grifo nosso.

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    no final, ela pode ainda, por outro lado, refletir a histria dos eventos anteriores sua aparioe desvendar os que ainda esto por vir. Este ltimo tipo de mise en abyme, chamadoretroprospectiva, porque olha para trs e para frente na narrativa, exatamente o quevemos no fragmento 22, que, como coexistncia da profecia e da recordao, da induoe da deduo29 abriga, no corao do texto, uma vista de conjunto que o organiza, quebrandoo tempo cronolgico da narrativa e instaurando um tempo parte, como o tempo domito. Como consequncia disso, temos a sacralizao da obra dentro da prpria obra,criando um efeito sinedquico: a narrativa da mise en abyme, particularizante, comprimee restringe o significado da gesta pica, refletindo-a na narrativa de um sonho, que oprprio mito da fundao de Roma; ao mesmo tempo, generalizante, ela amplia oshorizontes das narrativas de feitos histricos particulares, alando-os categoriasacralizada do mito. Como assinala Dllenbach:30

    Compensando a sua inferioridade em tamanho pelo poder de investir sentidos, estasltimas [as mises en abyme generalizantes] colocam-nos de facto perante este paradoxo:micro-cosmos da fico, impem-se, semanticamente, ao macro-cosmo que as contm,ultrapassam-no e, duma certa maneira, acabam por englob-lo.

    AAAAA B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TIn fragment 22 from the first book of the Annals (ed. Valmaggi),Quintus Ennius (239ca. 169 BC) provides us with his versionof the twins Romulus and Remus conception, in a scene inwhich the poets narrative contains the twins mothers speech,Ilias, the description of the dream shes just had. In Ilias line,we hear her father speaka speech within a speech. This rcitenchss produces the effect of a mise en abyme that bears specialrelevance to the interpretative reading of the fragment, whichin its turn creates a second mise en abyme through its insertionin the Annals. Narrated in the first book, another dream, inwhich Ennius sees Homer (fragments 2-8), is also connectedto Ilias through the mise en abymes effect, thus generatingnew intratextual reading possibilities.

    KKKKK E Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SEnnius, Annals, Mise en abyme

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