a mise-en-scène do processo artístico: teatralidade, espetáculo e ... · tanto no teatro, e na...
TRANSCRIPT
A mise-en-scène do processo artístico: teatralidade, espetáculo e linguagem do
documentário no filme César deve morrer
Tânia C. Kaminski Alves Assini (UTP)
Resumo: Este texto tem como objetivo refletir sobre o filme César deve
morrer (2012), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2012, dirigido por
Paolo Taviani e Vittorio Taviani, a partir da peça de teatro Júlio César de William
Shakespeare, interpretado por detentos da prisão de segurança máxima de Rebibbia, em
Roma. Interessa, neste recorte, analisar aspectos da heterogeneidade do processo
criativo, com destaque para a justaposição e zonas de contato entre cinema e
documentário, a intersecção destas linguagens ou gêneros, o encontro e o enfrentamento
de suas forças, a troca de movimentos e os desdobramentos de uma na outra. Os filmes
produzidos pelos Irmãos Taviani tem em comum uma estética mais própria ao cinema
arte, por aportar grande liberdade artística, mesclar linguagens de outros campos
expressivos e desafiar os critérios mercadológicos da indústria cultural. No filme César
deve morrer a realidade da prisão irrompe na ficção do teatro e do cinema. Há a
interferência entre o real e a fábula. É preciso aceitar, por princípio, que toda verdade é
relativa e que é suficiente enunciar claramente os pontos de vista, o testemunho como
prova de verdade? A verdadeira questão talvez esteja além, pois é precisamente neste
ato de desvio, de apropriação, de distanciamento, que se produz o fenômeno artístico.
Palavras chave: César deve morrer; heterogeneidade; processo criativo; cinema e
documentário.
Introdução
Este texto tem como objetivo refletir sobre o filme César deve
morrer (2012), dirigido por Paolo Taviani e Vittorio Taviani, a partir da peça de
teatro Júlio César de William Shakespeare, interpretado por detentos da prisão de
segurança máxima de Rebibbia, em Roma. Interessa, neste recorte, analisar aspectos da
heterogeneidade do processo criativo, com destaque para a justaposição e zonas de
contato entre cinema e documentário, a intersecção destas linguagens ou gêneros, o
encontro e o enfrentamento de suas forças, a troca de movimentos e os desdobramentos
de uma na outra.
O referencial teórico que fundamenta a análise do filme converge em diferentes
esferas para formar um novo patamar. A partir de Bakhtin (1993), a polifonia observada
no conjunto de vozes em tensão dialética dentro do texto faz aflorar o dialogismo. Para
a análise da heterogeneidade e hibridização entre linguagens no filme, é fundamental
pensar as noções de rizoma e de platô, a partir de Deleuze e Guattari (2000). Entende-se
a partir de Deleuze, platô não como estrutura fixa, mas como estruturação, camadas que
se interconectam, relacionam-se umas com as outras, complementando-se sem perder
suas singularidades.
1 Mise-en-scène: teatralidade, espetáculo e linguagem do documentário
A produção do filme César deve morrer denota um trabalho contestador da
linguagem cinematográfica inserida no mercado de cultura, sendo um filme que provoca
o público a ser intelectualmente ativo ao propor uma mise-en-scène baseada na
teatralidade, no espetáculo e na linguagem do documentário, sendo a linguagem do
documentário o elemento a separar o significante do não significante e a estratégia que
alinha ângulos diferentes de uma mesma cena, colocando em causa diferentes pontos de
vista. Neste sentido, vale lembrar que:
Todo o filme é documental porque remete para pontos de vista, para
modos de pensar, para modos de ver o mundo. [...]. Documentário e
ficção são dois modos de documentar, de comentar o mundo. Retirar a
componente documental dos filmes de ficção é retirar-lhes uma
componente essencial mas, também, podemos dizer que retirar ao
documentário a sua parte ficcional é retirar-lhe uma componente
essencial (PENAFRIA, 2005, p. 04).
Esta reflexão remete a princípios da estética neorrealista italiana, engajada com o
social, com a “verdade”, com a “naturalidade” das histórias produzidas, em sua maioria,
fora dos estúdios e com a presença de não atores, aparato técnico minimalista e o meio
social transformado em mundo ficcional.
César deve morrer contempla em sua produção muitos aspectos da estética
neorrealista, mas também da estética do cinema de autor1, considerando que o filme
traz claramente o estilo dos Irmãos Taviani demarcado em suas obras, a exemplo da
diluição entre as fronteiras do ficcional e do “real” vivido.
1 O texto Camera Caneta – Nascimento de uma nova vanguarda, do crítico francês Alexandre Astruc,
publicado em 1948 forneceu a base para a elaboração da noção de autor tal como é conhecida até hoje.
“[...] Todo filme, autoral ou não, é uma rede de relações e contatos com outros filmes. Alguns, os ditos de
autor, evidenciam mais a colaboração de um artista-autor. Separar o que é referência cultural e artística de
sua apropriação e transmutação pelo indivíduo é uma tarefa complexa, trabalhosa e às vezes obscura”
(PINHEIRO, 2012, p.71).
Ainda, segundo Penafria (2005, p 04), “[...] Não havendo uma fronteira nítida,
colocamo-nos nessa zona de fronteira para dizer que da nossa parte o que nos interessa é
a verdade cinematográfica. E esta é a nossa alternativa ao conceito de ‘indexação’”. De
acordo com as reflexões da autora, “a pertença a um determinado gênero não é
relevante” (2005, p. 05), interessando verificar aspectos que unem documentário e
ficção.
Lado a lado: documentário e ficção. Se toda a imagem é falsa, o
mesmo princípio aplica-se a ambos, se toda a imagem é verdadeira, o
mesmo princípio aplica-se a ambos. Se toda a imagem é ao mesmo
tempo falsa e verdadeira, o mesmo princípio aplica-se a ambos. Não
entendemos haver razão nenhuma que confira uma maior legitimidade
ao filme documentário (PENAFRIA, 2005, p 04).
A autora destaca a aplicação do mesmo princípio de “imagem - verdade” e
“imagem – falsa” tanto ao documentário quanto à produção ficcional, propondo,
inclusive um olhar para os simulacros das imagens em ambos os gêneros.
A pesquisadora Danielle Merahi soma-se a esta discussão ao refletir, a partir da
obra de Derek Paget (1990) sobre o “factual” e o “ficcional”, citando diversos gêneros
na Inglaterra do pós-guerra que assimilaram a forma documental, seja para os meios
comunicacionais, seja para a adaptação de clássicos.
Derek Paget, em seu livro True Stories, faz uma análise muito
abrangente e pertinente quanto à onipresença de fatos reais na
mitologia do século XX. Ele desenvolve a existência de uma fronteira
instável e flutuante entre ‘factual’ e ‘ficcional’ e religa as formas
dramáticas, fílmicas ou televisuais à história verdadeira em um
contexto ideológico. Colocando em evidencia o mito do
‘real=verdade’, ele o liga à problemática do realismo e do naturalismo,
distinguindo duas tradições do documentário, os de ‘reporting’
[narração] e os de ‘gravação’. A primeira contextualiza o evento, a
segunda visa a narrativa objetiva. Paget também se interessa pelo
papel do teatro radical nas sociedades conservadoras e pela
recuperação por parte da indústria do entretenimento, que tenderia a se
infiltrar e assimilar a forma documental. Assim, ele estabelece o papel
da ideologia política, de seus meios e de seu poder. Na Inglaterra, na
abundância do pós-guerra, pode-se citar gêneros bem diversos:
reapresentações ou adaptações de clássicos, peças ‘bem feitas’ (well-
made plays), peças socialistas (socialist plays), peças históricas, teatro
documentário, teatro verbatim, performances, musicais, shows de um
homem só, stand-ups, teatro físico, teatro-dança (MERAHI, 2013, p.
3).
Tanto no teatro, e na literatura, como no cinema, é grande o número de escritores e
diretores que utilizaram a vida “real” como material de base e, é importante observar,
que muitas vezes, a autenticidade da obra está nesses diálogos. Shakespeare costumava
inserir nos diálogos de seus personagens falas de pessoas do povo e excertos de
discursos oficiais, o que conferia ao seu teatro dialogicidade e polifonia, a partir do
conjunto de vozes de diferentes camadas sociais colocadas em confronto ou por meio do
cômico ou na estrutura do trágico.
No filme César deve morrer a realidade da prisão irrompe na ficção do teatro e do
cinema. Há a interferência entre o real e a fábula. É preciso aceitar, por princípio, que
toda verdade é relativa e que é suficiente enunciar claramente os pontos de vista, o
testemunho como prova de verdade? A verdadeira questão talvez esteja além, pois é
precisamente neste ato de desvio, de apropriação, de distanciamento, que se produz o
fenômeno artístico.
Figura 1 - Cena do filme César deve morrer. 2
As duas imagens mostram alternadamente, o espaço cênico e o espaço físico do
pátio onde os detentos saem para tomar sol. Enquanto a tomada 1 (figura 1) mostra o
quadro da saudação a César, o grande imperador romano, metáfora do poder, a tomada
2 (figura 2) - mostra os presos em seu silenciamento saindo para tomar sol enquanto
esperam a liberdade. As duas tomadas de cena são justapostas, no sentido da intersecção
de significados, para evidenciar as cenas que se conflituam, se chocam, imprimindo na
2 Todas as figuras que ilustram a presente reflexão foram extraídas do filme César deve morrer, objeto
deste estudo.
tela, uma linguagem que traduz diretamente o pensamento em estímulos sensíveis,
escavando a história, ao modo da montagem segundo a estética eisensteiniana.
Figura 2 - Cena do filme César deve morrer.
As imagens são mostradas de cima, aparentemente por uma câmera fixa,
simulando registrar o cotidiano dos internos, elementos facilmente identificáveis no
contexto de um documentário. Contudo, a produção destas imagens contém o embrião
da direção ou mise-en-scène, fazem parte de um aparato de construção de uma
realidade, em que se cruzam dialogicamente elementos do “real” e do ficcional,
elementos do ensaio da peça e da vida como representação, (figuras 3 e 4). Espaços que
constituem territorializações e desterritorializações e, sobretudo, intra agenciamentos,
como se pode depreender das imagens que seguem:
Figura 3.
Figura 4.
Toda força de verdade captada na vida vem principalmente do fato de
corresponder ao olhar de um personagem de ficção, concebido num roteiro como um
presidiário atormentado com a idéia de liberdade e que acaba de “cavar um túnel” por
onde olha a rua, talvez apenas para que possamos vê-la com seus olhos. Resguardando-
se o tom romanesco sobre a arte, a câmera dos Irmãos Taviani penetra nos corredores e
nas celas de Rebibbia em Roma, como um antropólogo, para surpreender os
mecanismos do poder no cotidiano de seus habitantes.
Figura 4 – Fotografia dos diretores. Figura 5.
A fotografia que mostra os diretores Paolo Taviani e Vittorio Taviani no local
das filmagens de César deve morrer foi divulgada no jornal online Globo G13. As duas
imagens remetem à idéia de Bazin (1995), um cinema que deveria ser antes de tudo uma
janela aberta para o mundo; um meio de decifrá-lo ou de fazê-lo revelar sua verdade nas
próprias aparências.
Walter Benjamin4 (1994) trata sobre a experiência como expressão da reflexão
sobre o vivido. A experiência cotidiana é vista de uma “certa distância” e também sob
“um ângulo de observação”. Essa é a experiência comunicável e, para Benjamin, a sua
forma de expressão é a narrativa. Benjamin indaga se a relação entre o narrador e a sua
matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua
tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a de outros - transformando-a
num produto único?
Acredita-se que não seja paradoxal para os Irmãos Taviani que bebem na fonte
do neorrealismo italiano, mas também no cinema de autor, articularem dialeticamente a
proposta da “realidade objetiva” (Bazin) e a potencialidade da justaposição (Eisenstein),
3 ESTREIA: 'CÉSAR DEVE MORRER' É CRÔNICA SHAKESPEARIANA FEITA POR DUPLA
ITALIANA. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2013/02/estreia-cesar-deve-
morrer-e-cronica-shakespeariana-feita-por-dupla-italiana.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
4 Walter Benjamin ao pensar a distração e a contemplação no cinema, observa que a primeira é um modo
de percepção provocado por um efeito de choque que se potencializa pela montagem singular das
imagens. A recepção por distração integra, segundo Benjamin, uma “reestruturação do sistema
perceptivo” que passaria a ser predominantemente tátil e não mais apenas ótico; um intuito que os
dadaístas já procurariam e que o cinema conseguiria realizar (BENJAMIN, 1994, p. 194), sobretudo, a
partir da montagem de Eisenstein.
interessados, pois no processo em que fundem a pesquisa no espaço cênico, o
documentário e o cinema. Propõem, assim um “produto diverso”, ou ao modo da
estética da hipervenção, a possibilidade de “criar uma rede interativa de conexões que
desafiam sistemas arbóreos e encorajam trajetos rizomáticos”(ARAUJO 2007, p. 23). A
imbricação deste olhar plural e complexo permite criar os elementos expressivos para
romper com toda identificação, com a denominada “quarta parede”. No filme César
deve morrer opera-se a coexistência de duas ou mais estéticas que se fundem e se
complementam tal como propõe a estética da hipervenção.
A montagem de César deve morrer propõe uma leitura para além da
intertextualidade, indicando o caminho de uma hipertextualidade expressa mais em
conteúdo do que em forma, já que interessa, aos diretores, utilizar da peça de teatro
Júlio César, o conteúdo e não o gênero teatral. A estrutura do gênero tragédia é diluída
para criar um outro texto em um novo formato. Toda vez que ocorre a ruptura com o
gênero vem à tona novos conteúdos. O hipertexto indica uma leitura não linear. Um
texto com diferentes caminhos de interpretação, possibilitando aos leitores fazerem
escolhas no processo de construção de significados. Neste sentido, se entende a
hipertextualidade como uma série de vestígios de textos conectados por caminhos
significantes. A leitura hipertextual torna possível produzir textos não lineares
interconectados com outros textos a partir de palavras, imagens ou outros objetos, o que
se traduz em termos de hibridização e conduz para a questão da criação de um texto-
hiper, chegando ao que Araujo (2007) denominou de estética da hipervenção.
A intervenção em César deve morrer atua em dois níveis por trabalhar com
idéias associadas, mas diversas. Uma destas idéias é a intervenção real do diretor de
teatro, Fábio Cavalli, que acompanha os ensaios e dos detentos que atuam no filme,
deixando aflorar relatos e memórias pessoais que se cruzam com o texto de Shakespeare
e gerando, em um segundo nível, a intervenção dos ensaios no cenário preto e branco
(interior do presídio), que supostamente deveria resultar em um filme sobre a peça Júlio
César. Os diretores, além de proporem uma versão contemporânea que transcria o texto
base, questionam os limites entre o filme e o documentário.
Desta forma, a estética da hipervenção funciona dentro do filme a partir da
intervenção da estética do documentário na trama neorrealista. A intersecção de
significados aparece por meio da linguagem híbrida e heterogênea do filme, tornando
visível o invisível.
Parte das cenas que aparecem no filme são registradas por câmeras documentais
dentro do presídio de Rebibbia, a exemplo de imagens dos presos nos corredores do
presídio, que ora é o espaço da representação, ora é espaço da vivência “real” dentro da
prisão, ora é o espaço da rememoração das próprias vivências dos detentos, sendo
possível, reconhecer, aí, um dos princípios do docudrama5, forma que teria nascido do
encontro entre o documentário e o melodrama.
A forma híbrida do docudrama envolve aspectos de uma narrativa documental que
intenta a justaposição entre "real" e "ficção”, uma espécie de dramatização do real.
Constitui-se em material que exerce grande influência sobre a recepção por aproximar-
se da realidade da vida, contudo, rejeita a alegação de autenticidade do documentário.
El docudrama requiere de una historia muy bien representada, con
muy buenos actores. Un drama que se ajusta a una determinada
realidad. Juega con la especulación no realista. [...] hay algunas
reconstrucciones que poseen un lenguaje encaminado expresamente a
crear un elevado estado de identificación imaginativa de los
espectadores con el tema (FUENZALIDA, 2008, p.152).
5 “O termo docudrama foi utilizado pela primeira vez na década de 30, portanto numa era pré-televisão,
através dos estúdios de Hollywood que produziam representações de fatos históricos tornando-se
um importante veículo de difusão e ensinamento da história. Essa era ficou conhecida como biopic ou
biographical picture. Eram recriações baseadas em fatos reais e remetiam fatos dos primórdios do
cinema como the execution of Mary queen of scots (1895) e the private life of Helen of Troy (1927). Um
dos antecedentes do gênero Docudrama, tal como conhecemos hoje, é representado, segundo John,
British Corner (1999), pelos dramatized documentaries, uma espécie de documentário produzido
exclusivamente para a televisão britânica, através da BBC, nos anos 50. As temáticas eram as mais
diversas passando por histórias de vandalismos, drogas, problemas da juventude, casamentos na
terceira idade e prostituição, entre outros. Do início dos anos 60 até meados dos 70, a BBC
produziu dramatized documentaries que retratavam os problemas políticos e sociais da época. Na década
de 70, o gênero se desenvolveu com bastante espaço na televisão norte-americana que produziu
docudramas reconstituindo eventos factuais e contemporâneos como a guerra do Vietnã, movimentos
pelos direitos civis, questões de justiça militar, entre outros, demostrando o lado humano ou
emocional dos jornalistas, enquanto a televisão britânica continuava a enfatizar recriações históricas e
biográficas. Em 1977, a rede ABC apresenta docudramas em formato made for TV com significativo
sucesso de audiência. Buonanno (1993) nos chama a atenção para a existência de uma reality syndrome
ou de uma TV Truth – Televisão verdade -na televisão dos Estados Unidos na década de 70 em que havia
uma tendência a abordar escândalos sensacionalistas e reconstituições de históricos de vida, enquanto
na Inglaterra da década de 60, conforme já observamos, buscava-se reconstituir investigações
históricas,políticas e sociais.[...] Como um neologismo, o termo docudrama é muitas vezes confundida
com docufiction. No entanto, ao contrário docufiction é, essencialmente, um documentário filmado em
tempo real, incorporando alguns elementos de ficção. Docudrama é filmado em um momento posterior
aos eventos que retrata” (SANTOS, 2009, p. 05).
Um docudrama pode ainda ser conhecido como teatro documental6. Nos
elementos centrais da sua história, um docudrama se esforça para aderir a fatos
históricos conhecidos, permitindo um maior ou menor grau de licença dramática em
detalhes periféricos, e onde existem lacunas no registro histórico. O diálogo pode incluir
discursos reais do cotidiano das pessoas, ou registros de documentos históricos.
Produtores de docudrama, por vezes, optam por filmar seus eventos reconstruídos nos
locais reais em que os acontecimentos históricos ocorreram. O docudrama é um
documentário que é permeado pelo drama, sendo assim, “o docudrama, na qualidade de
discurso que enuncia pela forma da narrativa clássica, deve trabalhar a história a
fim de transformá-la em trama. A história em si não basta para o docudrama.
O produtor chileno Valério Fuenzalida explica que a denominação mais
convencional do docudrama é a "hibridização entre o gênero informacional (que
documenta um núcleo ocorrido apoiado em fatos sobre temáticas com desventuras
cotidianas) e uma representação ficcional feita por atores” (FUENZALIDA, 2008,
p.160). A intersecção por meio da justaposição destes elementos aponta para o
simulacro da representação.
As personagens ficcionais representadas por não-atores profissionais significam
corporalmente o caráter não ficcional da narração e marcam o caráter híbrido do
gênero. Estes elementos encontram-se no filme dos irmãos Taviani, contudo, ao olhar
para o filme como um todo significante não se considera que a presença de não-atores
profissionais seja suficiente para classificar o filme como docudrama.
As falas das personagens se misturam com relatos, nos quais cada um
caracteriza-se pela dominância da voz de um dos detentos. Os relatos, por sua vez,
encontram-se intercalados com comentários do diretor e de outros personagens. Os
sujeitos da representação são ao mesmo tempo personagens de ficção e sujeitos sociais a
6 “Singularizando-se a maior tendência dos anos 2000, o teatro documental, pode-se nomeá-lo de formas
diferentes e misturá-lo: documentário drama, drama-documentário, docudrama, dramadoc, documentário
dramatizado ou ficção. Essa riqueza lexical reflete uma certa confusão. Além disso, devemos considerar a
reticência de alguns autores em afirmar a sua filiação a um tipo de teatro. Por exemplo: a peça inglesa
Stuff Happens é apresentada na França no programa do Théâtre des Aman-diers [teatro das amendoeiras],
de Nanterre, como o ‘tecido de declarações públicas e de cenas íntimas ... [onde o] verbatim e a ficção se
imbricam’. David Hare, o autor, escreve: ‘Esta é, definitivamente, uma peça, não um documentário’.
Entretanto, seja teatro histórico, político,documental, verbatim ou ficção inspirada em fatos reais, há
atualmente uma tendência notável quanto a se referir a histórias reais. No entanto esses teatros tomam
emprestados modos de expressão e códigos muito diversos. Assim, é melhor falar de Teatros do
real’’.(MERAHI, 2013, p. 3).
revelarem, a partir do texto dramatúrgico, seus próprios dramas pessoais e, por
extensão, o drama social. Visualiza-se na proposta desta dialogia interna, nos elementos
polifônicos e intertextuais, a “intervenção” da estética do documentário na trama
neorrealista.
Figura 6. Figura 7.
Figura 8. Figura 9.
Figura 10. Figura 11.
Juan Dario Bonetti, Cosimo Rega, Salvatore Striano, Giovanni Arcuri, Antonio
Frasca, Vincenzo Gallo, Juan Dario Bonetti são pessoas reais. Contudo, esta não é a
questão: as imagens (também reais) que supostamente “veem” como projeções de sua
imaginação, no ensaio da peça de teatro, constituem um recurso puramente ficcional
(Figuras 6 a 11).
Figura 12. Figura 13.
A pergunta é estendida ao modo de um olhar para a história futura, mas só pode
ser feita conhecendo-se o passado e este é presentificado a cada nova leitura, a cada
nova montagem da peça.
Figura 14. Figura 15.
Figura 16. Figura 17.
Observa-se a explosão do espaço cênico (figuras 12 a 17), visualizado nas
rupturas e cortes de cena em que atores representam personagens de Shakespeare e em
uma passagem abrupta passam a representar seus próprios papéis cotidianos, no interior
da prisão. Estas rupturas são marcadas pelo som e pelo contraste das cores. Outro
elemento expressivo que colabora com a quebra da “quarta parede” é a presença de
frases que irrompem na cena, provocando o distanciamento crítico.
Figura 17. Figura 18.
Figura 19. Figura 20.
Figura 21. Figura 22.
Figura 23. Figura 24.
A presença de recursos cênicos, a exemplo da utilização de cartazes, títulos,
projeções de textos que comentam de forma narrativa, as ações remetem
intertextualmente à representação épica (figuras de 17 a 24).
O ator da representação épica, para trabalhar o efeito de distanciamento, dirige-
se não só aos que estão no palco, mas também diretamente ao público. Anatol
Rosenfeld (1968, p. 259) explica que o ator “deve ‘narrar’ o seu papel, com o ‘gestus’
de quem mostra um personagem, mantendo certa distância dele”. Nenhuma concessão
deve ser feita à ilusão.
A partir daí, entende-se o pressuposto básico da realização dos
distanciamentos: se o ator não desaparece atrás do personagem é
porque, além de mostrar-se como ator, ele mostra também o
personagem, e o espectador vê o ator que mostra e se mostra, e o
personagem que é mostrado. Tudo dependerá então das técnicas que
constroem esse ato de mostração, da elaboração do gesto que o ato de
mostrar exige. Tudo vai se concentrar no cultivo das distâncias –
distância entre o ator e o personagem, distancia entre o espectador e o
personagem. [...] (BORNHEIM, 1992, p. 259).
Registre-se que os atores do filme são internos do presídio atuando como eles
mesmos, representando os personagens da peça de Shakespeare. É importante refletir
que Shakespeare7 criava maneiras diversas de representar a mudança no ser humano,
fundindo elementos da comedia na tragédia e que Brecht atravessa a tradição para
construir as bases do seu teatro épico, inclusive assimilando aspectos do teatro
7 “Shakespeare faz questão de causar estranhamento com relação ao personagem de Tito; Brecht não teria
feito melhor, e seu célebre “efeito alienante” é plagiado de Shakespeare. A peça mal tem início e Tito
ordena o sacrifício do primogênito de Tamora, em memória dos filhos dele, Tito, vinte e um dos quais (de
um total de vinte e cinco) pereceram, bravamente no campo de batalha. [...] Shakespeare faz o possível
para que nos antipatizemos com Tito, quase tão monstruoso como Tamora e Arão [...]” (BLOOM,1998
p. 115-116).
elisabetano, a exemplo da inclusão de personagens e relatos de ações que promoviam a
não identificação com público. Marlene Soares reflete que:
[...] Talvez a personagem-narradora mais famosa da obra dramática de
Shakespeare seja o espírito do pai de Hamlet. [...] entre as
incalculáveis leituras de Hamlet, já foi dito mais de uma vez que é
uma peça de teatro sobre o teatro devido à sua teatralidade ostensiva –
a presença dos atores itinerantes, a peça-dentro-da-peça, os conselhos
de Hamlet aos atores, as referências às companhias das crianças, e a
própria figura do príncipe como ator amador, representando o papel de
louco (SANTOS, 2009b, 114-115).
Destaca-se a importância da dramaturgia shakespeariana na transformação dos
gêneros literários e na inovação estética do teatro e do cinema, na medida em que
aspectos de uma estética heterogênea e híbrida já estavam postos nas produções de
Shakespeare.
Na montagem de César deve morrer, a atuação de atores que não são atores, as
dificuldades dos diretores, a inclusão dos dialetos regionais no texto clássico, a música,
o cenário, e o interior do presídio contribuem para a quebra da chamada “quarta
parede”.
Verdadeiro, falso, falso erigido como verdade, verdade escondida na ficção. A
história vivida no interior do presídio passa pelo filtro da teatralização e pela
experiência da cena que também envolve o olhar do espectador. A imagem da câmera,
(figura 25) no quadro abaixo remete para se pensar na linguagem cinematográfica,
como a linguagem (o cinema) sendo uma arte que faz ver ao invés de explicar.
Figura 25.
Produzir e dirigir um roteiro que contemple o cotidiano, as artes e os
deslocamentos estéticos significa assumir uma postura crítica não só em relação ao seu
trabalho como também significa um engajamento diante de um meio cultural. A
produção dos Irmãos Taviani parece questionar a cada instante a maneira como o
expectador está predisposto a olhar para o filme. Há uma preocupação com a quebra de
expectativas. O filme alcança, assim, uma justaposição de registro documental e
construção poética, constituindo-se em produção que alcança o potencial artístico,
justamente por não se fixar em nenhum gênero.
Não é somente o autor que determina as vozes dos personagens, o autor dá
liberdade (metafórica) aos personagens para que apareçam suas próprias vozes. Um
exemplo é a cena da traição e morte de César que ganha teatralidade no pátio de sol da
prisão, fazendo ecoar a célebre frase: - “Até tu Brutus, meu filho!”. A câmera mostra em
visão de conjunto os presos assistindo a cena. Close up para o rosto de Cássio (Cosimo
Rega) que fala: - “Por quantos séculos, no futuro será representada por atores esta nossa
grandiosa cena ... em reinos ainda inexistentes ... e em linguagens ainda não
inventadas?”. Brutus (Salvatore Striano), olha para a câmera e continua: “E quantas
vezes César sangrará em palcos teatrais, como acontece aqui, hoje, neste nosso cárcere,
estendido sobre pedra, nada mais do que pó?”. Ocorre um corte abrupto, um travelling
para frente e a câmera mostra o corredor vazio. A música acompanha a passagem do
tempo e a câmera mostra em visão de conjunto os detentos neste solilóquio. Outro
exemplo que se recorta aqui para ilustrar a polifonia presente no filme aparece na cena
em que o detento Giovanni Arcuri (César) está lendo dentro da biblioteca da prisão.
A câmera mostra em plano detalhe o livro que Giovanni Arcuri está lendo. No
écran aparece a inscrição “A Guerra Gálica e a Guerra Civil”. A câmera mostra um
recorte do cotidiano na prisão, em close up para o detento que lembra que na escola
achava chato e que agora reconhecia: - “Nosso Júlio César é grande! É grande nosso
Júlio César”. Em plano de conjunto, a câmera mostra o diretor de teatro, Fábio Cavalli,
que ao ouvir Giovanni Arcuri diz: - ”Um gênio, segundo Shakespeare também”. A
câmera mostra em visão de conjunto a biblioteca e os detentos. É tudo muito
significativo, se observarmos aqui, o espaço simbólico da biblioteca, o signo icônico, o
livro de História romana, os ensaios da peça no interior da prisão e o público da Roma
contemporânea que entrará no teatro da prisão de Rebibia para ver mais uma vez a
história grandiosa de Roma.
A dialogia aponta para o caráter intertextual do filme, ou seja, vários textos
dentro de uma obra, a exemplo da peça Júlio César de Shakespeare e a produção fílmica
César deve morrer dos Irmãos Taviani. Contudo, observa-se que, na intertextualidade,
tal como assevera Kristeva (1947), as partes de textos que se incorporam em outro texto
não são repetíveis, a unidade repetida retorna diferente, já outra. O encontro não linear
entre os textos (Júlio César e o novo texto César deve morrer) rompe com a estrutura
arbórea, permitindo que se observe ao modo do rizoma, o jogo das ambivalências; o
contexto do império romano antigo e o contexto romano contemporâneo, o espaço da
cela e o espaço do teatro.
O espaço do teatro é o platô – não tem quebras, mas é desdobrável, permite
conexões. Quando os detentos saem de suas celas (da condição de sujeito privado de
liberdade) e vão para o ensaio deslocam-se para um não espaço ao acionarem relatos e
memórias pessoais, produzindo a fricção entre o vivido e o representado (encenado);
textos da peça se esfacelam no encontro com as memórias, os relatos, as emoções, os
perceptos como um rizoma e aí se observam linhas de fuga.
Neste sentido, a estética da hipervenção, formulação conceitual desenvolvida por
Denize Correa Araujo (2007) é profícua para a compreensão sobre a potencialidade da
intervenção, pois este fenômeno cria um terceiro nível que não é só uma outra produção
(o filme), mas outra esfera que não é nem teatro, nem filme. “A hipervenção cria um
texto hiperposto ao de base, sendo que este novo enfoque, relendo seu texto-base,
dialoga com seus elementos e o recontextualiza em novo cenário, em escala gradual”
(ARAUJO, 2007, 70). César deve morrer recorre ao texto base Júlio César para
dialogar com as temáticas essências do texto clássico, com os personagens da peça
shakespeariana e, por meio da recontextualização em nova temporalidade histórica e em
cenário totalmente distinto da tragédia de Shakespeare, cria um texto hiperposto. A
hipervenção articula o encontro das estéticas diferentes, as vozes dissonantes e plurais, o
jogo polifônico, o encontro de textos no interior do filme e cria uma nova realidade, um
novo patamar, realizando a justaposição de registro documental e construção poética.
O rizoma, segundo Deleuze e Guattari é uma multiplicidade, cada ponto se
conecta com qualquer outro, não há um centro, nem uma unidade presumida, (2000,
p.44) por isso, se poderia pensar em um não lugar no filme, tanto em termos do teatro
que não é o teatro, da prisão que se transforma em espaço de ensaio e também de
encenação, quanto do filme que desliza para não ser capturado em um lugar de
indexação.
Referências
ARAUJO, Denize Correa. Imagens Revisitadas: Ensaios sobre a Estética da
Hipervenção. Porto Alegre: Sulina, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. de
Aurora Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Unesp, 1993.
BAZIN, André. A. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio P. Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea,
revisão Marta Miranda O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
BORNHEIM, Gerd. Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1.
Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.
EISENSTEIN, Sergei M. Da Revolução à Arte, da Arte à Revolução. Trad. e seleção de
textos de C. Braga e I. Canelas. Lisboa: Presença, 1974.
FUENZALIDA, Valério. O docudrama televisivo. In.: Revista Matrizes. Ano 2 –Nº1,
segundo semestre de 2008, p. 157-172. São Paulo: USP, 2008. Disponível em:
<http://www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/viewFile/188/317> Acesso: 26
de junho de 2015.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. J.Guinsburg, São Paulo: Perspectiva,
1974.
MERAHI, Danielle; GAMA, Mônica. A intrusão do real no espaço teatral britânico.
Sala Preta, Brasil, v. 13, n. 2, p. 155-170, dez. 2013. ISSN 2238-3867. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/69084/71529>. Acesso em 10 fev.
2016.
ROSENFELD, Anatol. Teatro alemão. São Paulo, Brasiliense, 1968.
SANTOS, Alexandre Tadeu dos. Proposta de Leitura de Docudramas: Uma Análise do
Quadro “Anjo da Guarda” do Fantástico. Anais do Intercom – Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação – Curitiba, PR – 4 a 7 de setembro de 2009.
SANTOS, Marlene Soares dos. A narrativa no teatro shakespeariano: Otelo. In.:
CAMATI, Anna Stegh; MIRANDA, Célia Arns de. Shakespeare sob múltiplos olhares.
Curitiba: Solar do Rosário, 2009b, p. 109-124.
PAGET, Derek. True Stories? Documentary Drama on radio, screen and stage.
Manchester: University Press, 1990.
PENAFRIA, Manuela. Em busca do perfeito Realismo. Universidade da Beira Rio,
2005.
PINHEIRO, Fabio Luciano Francener. A evolução da noção de autoria no cinema. In:
Revista O Mosaico, Curitiba, n. 8, p. 59-72, jul./dez., 2012.
Filmografia
CÉSAR DEVE MORRER. Direção e roteiro: Paolo Taviani, Vittorio Taviani.
Produção: Itália/2012. Produtores: Europa Filmes. Filmado em maio-agosto 2012.
Duração: 76 min.
Site consultado:
ESTREIA: 'CÉSAR DEVE MORRER' É CRÔNICA SHAKESPEARIANA FEITA
POR DUPLA ITALIANA. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-
arte/cinema/noticia/2013/02/estreia-cesar-deve-morrer-e-cronica-shakespeariana-feita-
por-dupla-italiana.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.