a natureza do homem é sempre a mesma são os seus hábitos ... · final de uma curva familiar que...

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"A natureza do Homem é sempre a mesma São os seus hábitos que os distinguem." Confúcius

~~~

PRIMEIRA PARTE “(…) e enquanto o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação, continua a

girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, originadas de um começo tão simples, não cessou de se desenvolver e desenvolve-se ainda.”

Teoria da evolução, in “Origem das Espécies” de Charles Darwin, 1859

****

FUGA Um relógio é apenas um relógio, mas os que vivem na parede de uma sala

de aulas são temidos e odiados como guardiões de mundos e carcereiros de liberdade.

Confinada entre a cadeira e a secretária, Ivana acompanhou com olhar hipnotizado os últimos movimentos do ponteiro dos segundos, até que finalmente o toque estridente da campainha roubou o silêncio da sala de aula numa explosão de sons e movimentos.

Nos vários pavilhões da Escola Secundária as portas abriram-se em simultâneo libertando centenas de alunos que fugiam da clausura da sala de aula para a liberdade do fim-de-semana.

No meio da peregrinação ondulada de vários tons de cabeças castanhas ao longo do corredor, o movimento de uns cabelos ruivos rompia a monotonia de cor.

“Ivana! Ivana!” Chamou uma figura enérgica que rasgava sem cerimónia a barreira humana que as separava. “Desaparece da frente...” Resmungou Lia para a última pessoa entre elas afastando-a com um encontrão decidido.

Ivana riu da constante rudez que a amiga fazia questão de tratar todos à sua volta. Para ela, que a conhecia, só a tornava mais cómica.

“Odeio história!” Desabafou Lia passando as mãos no cabelo e desalinhando ainda mais o apanhado antiquado que usava.

“Estou a ver que não foi só para mim que correu bem.” Comentou com ironia.

“Ahhhh... pelo menos o último podia ter tido um final feliz...” “Pelo menos é o último.” Corrigiu com um sorriso cansado. Depois do

fracasso só queria ir para casa. “Finalmente!” Celebrou Lia. Ao chegarem ao portão juntaram as mãos dando os últimos passos juntas e

depois de um leve aperto continuaram em direcções opostas. Faziam-no desde sempre, num gesto de despedida que era apenas delas e que dispensava palavras.

O dia fora da sala de aulas era iluminado pela jovialidade do sol Junho, e apesar de o Verão ainda não ter começado, o cheiro a maresia veraneante já invadia toda aquela pacata zona costeira do norte do país.

A confusão da saída da escola ficou para trás e Ivana seguiu o caminho de casa pela estrada deserta e na solidão adolescente dos pensamentos que davam uma pausa ao longo dia. Mas mais depressa do que queria, viu-se no final de uma curva familiar que dobrava a estrada e todos os seus sentidos ficaram alerta.

Ivana prendeu o olhar no horizonte e inspirou profundamente preparando a mente e todos os músculos do corpo para o desafio que a esperava: um sprint de cem metros de fuga.

Em passo receoso, percorreu os últimos centímetros da curva fatídica ladeada pelo velho muro de tijolos laranja recortados a musgo verde que antecedia a visão do acampamento dos ciganos. No instante em que se revelou a paisagem caótica de tendas coloridas, arames carregados de roupas, fogueiras rodeadas de animais e pessoas estranhas; sem hesitação, os seus pés

lançaram-se numa corrida sôfrega convencidos pelo seu cérebro de que deles e da sua velocidade, dependia a sua sobrevivência.

A luz forte do sol da tarde cegou-lhe a corrida mas Ivana não se importava porque conhecia aqueles metros de caminho empedrado mesmo de olhos fechados; era obrigada a percorrê-los todos os dias quando vinha da escola e muitas outras vezes durante a noite quando os seus sonhos a levavam de novo até lá e a faziam percorrê-los mesmo enquanto dormia.

De olhos fechados pelo sol, naqueles segundos de corrida só sentia o vento no rosto transpirado e o calor a queimar-lhe a pele avermelhada pelo esforço das pernas já doridas. «A mochila está muito pesada.» Lamentava-se em silêncio enquanto ouvia os latidos dos cães a aproximarem-se mais do que seria suposto. «Malditos animais!» Praguejou. «Devem ser os únicos cães no planeta que não gostam de mim e tinham logo de existir no meu caminho para casa.»

A música que vinha do acampamento cigano envolvia o latido dos cães tornando-o ainda mais assustador. Tal como uma orquestra, no momento seguinte, os gritos de várias de crianças sujas e de pés descalços juntaram-se a eles incentivando a corrida dos cães numa claque desconcertante e entusiasmada que veio completar a cena atípica, tornando-a na aventura diária da qual, involuntariamente, Ivana se tinha tornado protagonista.

Quando por fim conquistou a meta psicológica, os latidos começaram a diminuir de intensidade e a tornar-se mais espaçados ao mesmo ritmo da diminuição da sua resistência.

Uma vez mais a heroína vencera contra todas as probabilidades. Algumas dezenas de metros à frente, quase a desmaiar de exaustão

permitiu-se parar. «Malditos animais!» Voltou a praguejar ao olhar para trás e ver ao longe os quatro cães a voltarem calmamente para o acampamento cigano. «Parece que com a prática estão a ficar mais rápidos!» E baixando o olhar para as suas pernas pálidas e nuas, tomou nota em tom de conclusão. «A partir de hoje: proibido usar saias.»

****

INFÂNCIA Ao entrar em casa, Ivana agradeceu a todas as entidades Divinas, cujo

nome lhe ocorreu, por aquele momento de paz e frescura após a louca fuga. Entregou a mochila ao chão da sala e deixou-se cair no silencioso sofá castanho.

“Ainda não foi hoje que te apanharam, hã!?” Felicitou-a Fernando em tom de gozo ao ver a irmã gémea prostrada no sofá com o rosto cor de tomate, cabelo completamente desalinhado e respiração ainda acelerada.

“Malditos cães, Malditos!” Repetiu ainda sem se conseguir mover um centímetro.

Sentando-se no sofá vago do lado oposto a ela, Fernando corrigiu. “Malditos cães não. Malditos ciganos!” Ivana tentou interrompê-lo mas as palavras acabaram por se concretizar apenas num grunhido indecifrável e Fernando continuou absorto nas próprias ideias como era usual. “Aqueles desgraçados nunca mais vão embora... ainda dizem que são nómadas. O pai do Bernardo é que tem razão, temos de os pôr andar.”

“Sim… sim…” Concordou pouco interessada no assunto. Uns segundos de silêncio ficaram pela sala até que Fernando começou a

emitir um assobiozinho irritante que traduzido significava que ele sabia algo que interessava à irmã e preparava-se para cobrar pela informação.

Sem resistência para continuar a aguentar aquele som por mais tempo, Ivana acabou por ceder. “Diz lá.” Desistiu enquanto se esforçava por adoptar uma posição mais normal no sofá. “Qual é o preço?”

Sem demora, Fernando tossiu suavemente, clareou a garganta e pondo um ar solene de negociação lançou a proposta. “Arrumas o meu quarto durante uma semana.”

Ivana abriu os olhos e olhou-o desconfiada. “Deves ter descoberto se foi o ovo ou a galinha quem nasceu primeiro, com certeza. Não estou interessada...” Concluiu voltando a fechar os olhos.

“Eu tentei ajudar-te…” Disse o irmão em fingido tom de lamento. E deixando o sofá finalizou com ar triunfante. “…depois não digas que ficas solteira.”

“Como!?” Ivana pôs-se de pé involuntariamente. Aquela era a deixa que lhe dizia que era algo sobre Bernardo, a sua paixão platónica de infância que Fernando tinha descoberto poucos meses antes ao aproveitar-se de um descuido com o diário. “Três dias.” Lançou ela de imediato a contraproposta.

“Aceito!” Concordou vencedor. “Ele deve estar a chegar, e… vai passar cá a noite.” Revelou com um piscar de olho conspirador.

“O quê!?” «Banho!» Ordenou-se Ivana em pensamento ao ouvir as palavras do irmão. E sem perder tempo desapareceu da sala correndo escadas acima como um cometa cuja cauda de fogo era formada pelos seus longos cabelos ruivos.

«Hoje estes dois entendem-se.» Prometeu-se Fernando ao percorrer a sala com o olhar enquanto construia um plano que se mostrasse eficaz. A sua natureza masculina não lhe facilitava a tarefa e o trabalho de Cupido que tinha conseguido fazer nos últimos tempos não tinha primado pela eficácia!

§

Parada em frente ao espelho do seu pequeno quarto de águas furtadas, Ivana olhava-se dos pés à cabeça e começava a desesperar. Era a quarta opção de roupa que experimentava e cada uma ficava-lhe sempre pior do que a anterior. “Estás desgraçada!” Disse ao seu reflexo com um suspiro. “Mais vale desistires. Só vais fazer o rapaz perder tempo e juventude.” Via o seu cabelo ruivo tão liso, tão comprido e de tom tão alaranjado que parecia que estava a usar uma peruca; achava os seus olhos azuis bonitos mas demasiado pequenos para serem notados; os lábios pálidos e finos; e as sardas mais numerosas do que nunca. «Não há nada a fazer por ti» Rendeu-se.

O som triunfante da campainha da porta preencheu-lhe os ouvidos anunciando a chegada do visitante tão guardado. Num último esforço de beleza, ajeitou o vestido, passou os dedos pelo cabelo e simulou o seu melhor sorriso. «Acalma-te e tudo vai correr… mais ou menos bem…»

Ao descer as escadas encontrou de imediato a voz de Bernardo e o seu coração disparou querendo adiantar-se ao resto do corpo para alcançar aquele que o tinha encantado anos antes mas os seus passos tornaram-se mais lentos pela hesitação dos pés. «Vá, coragem!» Incentivou-se.

Aos poucos a sala foi ficando visível e no segundo seguinte os seus olhos abriram-se em secreta curiosidade. Lá estava ele. “É tão giro...” Sussurrou para si mesma.

Protegida pela sombra cúmplice da escada, deixou-se lá ficar a contemplá-lo.

Ainda se lembrava do dia em que se tinha apaixonado por Bernardo e do longo ano que tinha vivido.

~~~ Com a inesperada morte da mãe de Ivana e Fernando num acidente de

viação, Ângelo Rodrigues, pai e Engº Agrónomo, aceitou uma proposta de trabalho que lhe iria permitir sair de Lisboa com os filhos, e segundo o próprio, recomeçar a vida num sítio novo e mais saudável.

Embora ainda crianças de 8 anos, Ivana e Fernando não gostaram da nova ideia que lhes iria trazer ainda mais mudanças indesejadas. Mas impotentes para alterar os planos do pai, fizeram as malas e viram em poucos meses as suas vidas viradas do avesso. Deixaram a escola e os amigos de sempre para trás com destino a uma terra desconhecida.

Na chegada, o choque da troca da capital por uma pequena vila no litoral norte do país deu energias redobradas aos dois irmãos para retomar as súplicas ao pai que, numa das raras vezes na sua vida, se recusou a ceder às vontades dos filhos. Ângelo estava convicto de que era o correcto a fazer; tinha perdido o amor da sua vida mas pelos filhos era obrigado a reaprender a enfrentar os novos dias que o aguardavam e se continuasse em Lisboa tinha certeza de que não o conseguira fazer.

O desconhecimento de todos os motivos do pai para os arrastar naquela mudança, e a partilha dos primeiros dias naquela terra desconhecida, alterados entre tédio e revolta, levaram Ivana e Fernando a aproximarem-se como nunca antes o tinham feito; de irmãos gémeos quase estranhos passaram a cúmplices.

A solidão e a dor presentes pela perda da mãe fizeram nascer entre eles uma amizade verdadeira.

Várias semanas passaram e o inevitável primeiro dia de aulas chegou. A nova escola era bem mais pequena do que a que Ivana e Fernando tinham

deixado para trás, mas nem por isso ela se tornava menos assustador naquele dia.

Parados em frente do portão de gradeamento verde, os irmãos olharam-se em silêncio procurando confirmar no rosto do outro que o desalento que sentiam por aquela visão era mútuo, e de seguida desviaram em simultâneo o olhar percorrendo o pátio em frente.

Dezenas de alunos, de idade próxima à sua, corriam, gritavam, e jogavam jogos entre si, ignorantes das duas novas figuras que os observavam. Foi então que sem aviso Ivana ficou presa por uns olhos escuros num rosto doce que a observavam de volta camuflados pela confusão.

O rapaz de cabelo cor de caramelo estava sentado sob a sombra de um velho carvalho e com um livro suspenso nas mãos esboçou-lhe um sorriso. Naquele preciso momento Ivana apaixonou-se por Bernardo.

~~~ A recordação do inesquecível primeiro dia de aulas fez Ivana suspirar de

nostalgia e amor infantil. Tinha 17 anos e metade da sua vida tinha-a passado apaixonada por Bernardo, agora era a hora de finalmente fazer alguma coisa. Ele estava ali mesmo na sala, a escassos metros dela e a sua voz suave e calma em conversa casual com Fernando atraíram-na como um íman.

“Olá!” Cumprimentou Ivana juntando-se a eles na sala e oferecendo o seu melhor sorriso a Bernardo.

“Tudo bem?” Perguntou ele em tom de resposta. Um silêncio constrangedor impôs-se e Ivana lançou um olhar de socorro ao

irmão. “Não vais poder mesmo ficar?” Perguntou Fernando a Bernardo desviando

a atenção dele de volta para si. Àquela pergunta, o coração de Ivana desacelerou. «Como não vai ficar!?

Não há maneira de o vento soprar e a minha sorte desencalhar deste porto...» Lamentou-se já em desalento.

“Não vai mesmo dar Fernando. O meu pai nem me quis ouvir. Nada é mais importante do que receber o Sr. Deputado para jantar em nossa casa.” Justificou-se imitando desajeitadamente o pai. “Já imaginas o discurso. Vamos ter de deixar o trabalho de História para o fim-de-semana.”

“Se tem de ser… tem de ser!” Concordou Fernando. Mas sabendo da desilusão que era para a irmã a inesperada mudança de planos disse olhando-a discretamente e dando-lhe um sorriso. “Então voltas cá durante o fim-de-semana.” Sugeriu em forma de convite.

«Pois.» Reforçou Ivana em silencioso entusiasmo. «Amanhã. Sábado é um dia tão bom como qualquer outro para História.»

“Tinha pensado em ires tu lá a casa.” Sugeriu Bernardo desviando o olhar de Ivana para o amigo. “Nos últimos tempos tenho sido sempre eu a vir aqui.” Justificou-se. Perante a hesitação de Fernando que nitidamente tentava encontrar uma desculpa para não ir, Bernardo incentivou-o sorrindo. “Vá lá! Não sejas esquisito, eu prometo um bom lanche.” E sem esperar resposta deu uma palmada no ombro do amigo em forma de despedida e sorriu a Ivana “Portem-se bem!”

O som da porta da entrada a fechar deixou os dois irmãos a olharem-se em silêncio.

“Parabéns! Acabaste de ganhar o privilégio de continuar a arrumar o teu quarto!” Anunciou Ivana voltando as costas ao irmão e subindo novamente as escadas. “És o pior alcoviteiro que alguma vez vi!”

~~~ Filho único do Presidente da Câmara Rodolfo Corte Real, que há mais de

20 anos fazia da sua palavra lei por aquelas terras, Bernardo Corte Real herdara do pai a beleza romântica mas o temperamento calmo e afável da mãe Antónia que, graças à linhagem de várias gerações abastadas anteriores a si, dedicava os seus dias a ajudar quem mais precisava com um sorriso missionário encantador e muitos Contos de Rei na carteira para distribuir que quando transformados em Euros só se tornaram mais numerosos. Não era pois de surpreender, que os Corte Real fossem a família mais respeitada da região.

Enquanto atravessava o jardim da casa dos Rodrigues, Bernardo colocou a

mão ao bolso, pegou no telemóvel, e começou a escrever uma mensagem. PRECISAMOS FALAR. No destinatário seleccionou IVANA. O som cadenciado dos seus passos no chão ecoaram na estrada deserta alternando-se de forma sincronizada com os batimentos acelerados do seu coração e por segundos foram tudo o que Bernardo ouvia.

Passados minutos, ele continuava a olhar o ecrã pixelizado em tons de verde do seu Nokia e com o dedo encostado à tecla ENVIAR.

Tinha perdido a conta ao número de vezes que escrevera aquela frase, seleccionado o nome de Ivana para ao fim de alguns segundos ou algumas horas acabar por o apagar. Aquele ritual repetia-se há meses.

A amizade com Fernando, a relação de proximidade entre as suas famílias e principalmente a possibilidade de não ser correspondido e perder a amizade de Ivana, vinham-lhe desviando o dedo da tecla ENVIAR para a APAGAR.

No percurso de cerca de quinhentos metros que separa a casa dos Rodrigues dos Corte Real, Bernardo começou a duvidar se algum dia ia finalmente enviar aquela mensagem. As hipóteses para o fazer estavam a diminuir a cada dia. Dentro de poucas semanas acabariam as aulas e mesmo antes disso ele já estaria de malas prontas a caminho de Paris para cumprir o sonho da mãe e ir estudar na Sorbonne. «Não posso ir embora sem falar com ela.» Repetia para si próprio pela décima vez naquele dia. «Logo hoje é que havia de aparecer o gordo do Deputado!»

Fechou os olhos, suspirou, e pressionou APAGAR. ****

UM CONVITE INESPERADO O fim-de-semana correu célere como todos os fins-de-semana. Fernando passou o sábado com Bernardo como combinado, e o domingo

foi dedicado à sua mais recente conquista; uma rapariguinha tímida e de compleição física frágil, que Ivana caracterizava como atraso de desenvolvimento causado por anos de obstinação com as dietas.

Aproveitando a paz pela ausência do irmão, Ivana por sua vez passou o fim-de-semana a pôr o sono em dia, a ler, a fazer pequenas investigações na net e a ver as suas séries de televisão preferidas sem ser interrompida ou ter de lutar pela conquista do comando.

A manhã de segunda-feira começou movimentada como todas as manhãs. “Não é justo!” Reclamava Fernando ainda na tentativa de cobrar à irmã o

pagamento acordado no final da semana anterior. “Depois do meu esforço para ele vir cá, vais-me obrigar a arrumar o quarto na mesma?”

“Pára de reclamar ou vamos chegar atrasados. Já sabes que não vou mudar de ideias.” Disse Ivana enquanto prendia o cabelo com um travessão.

“Não tive culpa que aparecesse lá o importante do Deputado!” Justificou-se enquanto seguia a dança da irmã que começava a recolher livros pelo chão do quarto. “Tu também podias facilitar um bocadinho as coisas; falares mais com ele… um sorrisinho de vez em quando também não fazia mal nenhum.”

“Eu sorrio!” Contrariou ela deixando os livros e encarando-o. “Sim. Mas mais parece um sorriso da família de lá tem de ser.” Criticou. “Que engraçadinho. E eu que pensava que era o sorriso de o meu irmão é cá

um incompetente!” “Ivana!!!” Tentou chamá-la à razão. “Já te expliquei montes de vezes que os

homens não se metem nas cenas do “coração” uns dos outros; as mulheres é que fazem essas coisas.”

Os passos do pai ao longo do corredor seguraram a resposta que Ivana já tinha preparada para o irmão.

“Alguém quer boleia?” Perguntou Ângelo espreitando para dentro do quarto e dividindo o olhar entre os dois filhos.

“Claro que sim.” Respondeu ela de imediato. “Qualquer oportunidade que me evite passar por aqueles cães psicóticos é bem-vinda.”

“Ainda não pararam de correr atrás de ti?” Perguntou o pai com ar preocupado.

“Não… eu devo ter um ar mesmo apetecível.” Disse saindo do quarto. Fernando seguiu-a. “Ou então sabem o quão engraçado é ver-te correr que

nem uma lunática!” Descendo as escadas, entregou-se às gargalhadas ao lembrar a cena. “A perspectiva deles ainda deve ser melhor!!!”

“Pára com a gracinha.” Pediu o pai que vinha atrás dos dois. “Hoje à tarde vou estar com o Rodolfo Corte Real e vou falar-lhe sobre o assunto. Pode ser que com mais um facto consigamos fazer algo a respeito daqueles ciganos.” Por fim Ângelo já falava para si mesmo. A presença dos indesejados visitantes tinha trazido percalços inesperados a um projecto que a empresa que dirigia trabalhava para implantar nas terras agora ocupadas. Desde então ele e o Presidente da Câmara Rodolfo Corte Real preparavam com o maior cuidado

um documento para apresentar em tribunal pedindo a expulsão dos nómadas.

“Agradecia.” Suspirou Ivana parando no meio da escada. “Quando vou a pé é complicado não passar por lá.”

As badaladas do relógio da igreja lembraram aos Rodrigues da existência de horários para cumprir e acelerou-lhes os passos para fora de casa. Ao entrarem no carro Ângelo lembrou-se da visita do dia anterior em falta.

“Não deveríamos ter mais um no grupo hoje?” Perguntou ao filho. “Cinto de segurança.” Relembrou-os.

Enquanto cumpria a ordem do pai, Fernando justificou a ausência de Bernardo. “Era, mas como a visita do político todo importante de Lisboa se prolongou o pai obrigou-o a ficar em casa.”

“Foi? Isso pode ser muito bom…” Especulou Ângelo ligando o carro e perdido nos próprios pensamentos.

“Duvido...” Murmurou Ivana pela inconveniência que a visita tinha trazido aos seus planos.

“Ele convidou-me para ir a casa dele outra vez no próximo fim-de-semana. Pode ser?” Perguntou Fernando.

«Vai ser outro fim-de-semana mesmo divertido para mim, está-se a ver!» Pensava Ivana precocemente invadida pela má disposição.

“Claro.” Concordou o pai. “Vocês têm de aproveitar estas últimas semanas antes de ele ir embora.”

“O quê!?” Perguntaram os dois irmãos em coro. “Ele vai embora?” Perguntou incrédulo Fernando. “Para onde?” “Ele ainda não vos contou?” Perguntou Ângelo surpreendido. E perante o

olhar de estátua dos filhos, partilhou a novidade. “Ele foi aceite na Sorbonne. O Rodolfo ligou-me todo orgulhoso a dar a notícia há alguns dias.”

Ivana lançou um olhar de o que é que se passa? a Fernando que lhe respondeu com um encolher de ombros de não faço a mínima ideia.

Desesperada pela perspectiva de perder de vista a paixão da sua vida, Ivana decidiu que era a chegada a hora de uma intervenção mais proactiva.

“Que bom!” Comentou entusiasmada. Àquela declaração, Fernando olhou atónito a irmã e começou a escrever mentalmente o certificado de demência. Ignorando a expressão do irmão, Ivana continuou com o seu improvisado plano. “Quem me dera a mim poder ir para a Sorbonne!”

“A sério!?” Perguntaram o pai e o irmão em simultâneo. Estudando a filha pelo espelho retrovisor, Ângelo Rodrigues comentou

confuso. “Mas sempre disseste que detestavas Francês e quando Rodolfo me contou que estava a tratar dos papéis para o Bernardo eu até te falei discretamente na possibilidade de ires, o que me deixaria com um orgulho enorme, mas tu disseste-me que que não querias sair de Portugal...”

“Isso era antes.” Rectificou ela prontamente. O silêncio e o som do motor do carro tomaram conta da conversa por

alguns instantes. Ângelo Rodrigues ponderava as palavras da filha e Fernando apercebia-se do plano incrivelmente estúpido e desesperado da irmã.

A chegada à entrada da escola deu vida às figuras dentro do carro e Ivana executou o golpe final do seu plano. Depois de um beijo de despedida ao pai mais carinhoso do que era necessário, seguiu-se os olhinhos de menina órfã e o derradeiro pedido em voz tímida.

“Papá… eu… também gostava de ir para a Sorbonne.”

Embora consciente de que estava a ser manipulado, Ângelo não fazia intenção de resistir ao charme da filha. “Vou tentar saber mais sobre o assunto. Serve?”

“Sim.” Concordou com um sorriso rasgado seguido de um segundo beijo. Ao voltar-se para entrar na escola Fernando já tinha desaparecido. «Aquele não é capaz de esperar um bocadinho por ninguém!»

Juntando-se à multidão de mochilas que cruzavam o portão de entrada empurradas pelo segundo toque de chamada para a primeira aula do dia, Ivana ponderava pela primeira vez sobre os prós e os contras do pedido que tinha acabado de fazer ao pai. «O cenário não é bonito.» Acabou por concluir num suspiro desanimado.

“Bom dia.” Cumprimentou-a Bernardo juntando-se a ela. “Eu vou para a Sorbonne!” Anunciou ela triunfante. “E estou super

contente.” O último comentário era mais para si própria do que para ele. Bernardo soltou uma gargalhada mais entusiasmada do que pretendia

demonstrar. A conjugação da notícia com a forma inesperada como lhe tinha sido dada tinha-o apanhado desprevenido. E tentando corrigir-se logo de seguida, obrigou-se a retomar o tom distante de conversa que utilizava com ela. “Que bom para ti.”

Caminharam juntos mais alguns metros, cada um deles com o olhar preso no chão e com o conhecido silêncio como terceiro companheiro.

“Vou para o A.” Disse ele apontando para o pavilhão ao fundo e começando a afastar-se.

“OK, até logo.” Respondeu Ivana afastando-se no sentido contrário. “A que horas sais hoje?” Perguntou ele. «Nem acredito que estou a

perguntar isto.» A pergunta parou Ivana e arrancou-lhe o olhar do chão; ela voltou-se e

colou os olhos no rosto de Bernardo. “Às cinco e meia.” Respondeu com um sorriso inevitável. “Eu saio às quatro e meia, se quiseres posso esperar por ti e vamos juntos

para casa.” Sugeriu timidamente. «Ou podes dizer para eu ganhar juízo e ir à minha vidinha!»

“Claro!” Concordou tentando que os seus olhos não se transformassem em holofotes de fogo de artifício como acontecia no mundo sincero dos desenhos animados.

“Está combinado.” Conclui Bernardo voltando as costas para esconder o sorriso e caminhado em passo apressado para o pavilhão.

Ao vê-lo afastar-se, Ivana não cabia em si de felicidade. «O que quer que isto signifique é bom… é muito bom!!!!» Pensava invadida pelo momento.

No entanto, três segundos depois, uma cena aterradora sobrepôs-se ao pensamento. O sonho do passeio idílico com Bernardo no regresso a casa, durante o qual, até quem sabe, um tímido toque de mãos podia acontecer, foi subitamente interrompido pelo aparecimento de uma matilha de cães sujos de língua de fora que corriam a toda a velocidade em direcção a ela e a faziam começar a fugir que nem uma louca desgrenhada pela estrada fora.

«Malditas criaturas do demónio que nasceram para me atormentar a vida!» O rosto de Ivana ficou pálido como cera pelo pensamento, e tudo o que queria era que se abrisse um buraco no chão e a engolisse a ela ou aos malditos cães.

“Estás bem?” Perguntou Lia. “Parece que tiveste um encontro com umas das personagens da Anne Rice por volta da hora do jantar.”

“Estou condenada.” Desabafou confortada por ver o rosto da melhor amiga. “A minha vida está a ser sabotada por um bando de monte de pulgas.”

“Calma!” Sugeriu rindo. “Já te disse hoje que és demasiado dramática miúda?”

“Quando eu te contar…” “Vamos por níveis.” Interrompeu Lia. “Primeiro nível é de importância

real-prática e só depois vem a importância subjectiva-sentimental. A professora de Inglês domina todo o primeiro nível pelo poder de influência que tem no nosso futuro e como já estamos atrasadas para a aula sugiro que nos concentremos na locomoção. No intervalo trataremos do outro nível. Sabes que eu arranjo solução para tudo!” E dando o braço a Ivana arrastou a amiga quase inanimada para a aula.

§ A aula de Inglês começou e acabou e Ivana não ouviu uma palavra. Tinha

uma possível catástrofe em mãos e não sabia como evitá-la. Ansiosa por sugestões, escreveu um recado a Lia durante a aula a explicar detalhadamente tudo o que tinha acontecido nessa manhã, começando pela Sorbonne e o convite de Bernardo e acabando com uma descrição detalhada da perseguição canina que imaginava. Cada um dos temas era acompanhado por um ou dois pontos de comentários pessoais e divagações.

“O que é que eu faço?” Perguntou de imediato à amiga logo que puseram o pé fora da sala.

“Não estou a ver solução…” Respondeu de imediato Lia. “…pelo menos não uma que vá de encontro aos teus desejos.”

“Diz lá!” Incentivou Ivana em desespero. “Qualquer coisa menos os cães o Bernardo e eu no mesmo sítio!”

“Ouve até ao fim.” Ordenou já antecipando as interrupções de protesto. “Duas soluções. Primeira. Ligas ao teu pai, dizes que não te sentes bem e pedes para te vir buscar. Segunda, menos boa mas igualmente eficiente. Ao final do dia certificas-te do sítio onde o Bernardo está à tua espera e evitas que ele te veja, vais para casa sozinha e depois dizes-lhe que se desencontraram.”

“Nenhum dos dois serve.” Contrariou Ivana. “O meu pai está no Porto e só vem à noite. Plano um falhado. Existem telemóveis e eu tenho o número do Bernardo. Plano dois falhado.”

“Ficaste sem bateria, quando chegares a casa telefonas-lhe. Plano dois, activo!”

De braços cruzados e andando em círculos à volta de Lia, Ivana ponderava contrariada. Ir com Bernardo e cruzar-se com os canídeos obstinados era bem mais catastrófico para o futuro da sua vida amorosa do que um pequeno desencontro e um telemóvel sem bateria.

“É tudo uma questão de minimizar os danos.” Reforçou Lia ao perceber que, embora contrariada, Ivana já tinha aceitado a sua proposta.

~~~ Lia tinha sido a primeira amizade de Ivana depois de deixar Lisboa.

Quando os gémeos entraram na escola pela primeira vez, as suas características físicas pouco comuns foram inicialmente o centro das atenções e de todas as conversas. Nos dias que se seguiram, as mesmas características, continuavam a ser motivo de resistência para a sua convivência com as restantes crianças que se sentiam intimidadas pela cor de fogo dos cabelos dos

irmãos, e pela brancura extrema da sua pele decorada de sardas pouco comum em locais de praia. A todas estas razões juntava-se ainda a falta de vontade dos dois em se integrarem naquele novo sítio.

Ao contrário dos restantes colegas, Lia, criança emancipada desde cedo, tinha ficado curiosa e não intimidada. Logo na primeira oportunidade apresentou-se formalmente imitando o que via nos filmes de televisão pois entendia que se os recém-chegados eram de Lisboa seria educado seguir os seus costumes.

A simpatia foi mútua e imediata naquele dia, e apesar de os anos terem passado e tudo se ter invertido na vida social dos gémeos, a relação com Lia permaneceu intocável.

Hoje Ivana era a Rainha Social da escola e Fernando e Bernardo dividiam entre si o título de Rei. Todos os admiravam, queriam conhecê-los e quando dirigiam a palavra a alguém era considerado um privilégio. O facto de pertencerem às famílias mais ilustres e ricas daquela região, serem bonitos e entre eles vencerem todos os concursos de conhecimento da escola justificavam os seus níveis de popularidade.

De memória curta, ninguém entendia o porquê de Lia estar entre eles. Apesar da pequena multidão de alpinistas sociais que constantemente os rondava, nunca nenhum tinha conseguido tirar o título de Quarto Elemento a Lia, talvez porque só para ela nada daquilo fazia sentido.

Filha única de um casal que de seu apenas a tinha a ela, Lia era a lógica em pessoa. Para ela tudo era analisável, e nada lhe passava sem que tivesse uma explicação o que a tornou em pouco tempo a visitante mais assídua de todas as bibliotecas geograficamente acessíveis pelos escassos transportes públicos.

Fazia questão de sorrir pouco desde que ouvira a expressão “Muito riso pouco siso” e após uma semana de análise ponderada das variáveis inteligência e riso num conjunto heterogéneo de pessoas, tinha conseguido números que comprovavam a veracidade do ditado.

Há anos que Ivana tentava demovê-la do comportamento e incentivá-la a mostrar mais vezes o seu sorriso perfeito e a abandonar o penteado antiquíssimo que insistia em usar em homenagem a Virginia Woolf, mas sem sucesso.

Era a amizade sincera que nutriam uma pela outra que unia Lia e Ivana, e as suas diferenças só a tornavam mais colorida.

~~~ Como sempre acontecia há hora de almoço, o jardim da escola funcionava

como ponto de encontro entre alunos das diferentes turmas. Fernando, especial apreciador da enorme utilidade do jardim pela capacidade de concentrar uma amostra variada de exemplares do sexo feminino, fazia do momento o acontecimento do dia.

“Esta chica ainda me pára o coração…” Lamentava-se em tom de piropo ao ver passar Angélica, uma das poucas raparigas do último ano com quem ainda não tinha namorado ou tido qualquer tipo de história amorosa.

“Desiste!” Aconselhou Bernardo sem levantar os olhos da revista que tinha nas mãos.

“Há mais raparigas na terra.” Sugeriu Bianca que secretamente aguardava o dia em que ele reparasse nela.

“Com certeza!” Concordou Fernando, e voltando a olhar Angélica do outro lado do jardim com um sorriso ambicioso, acrescentou. “Mas deusa só há esta.”

“Quando é que vais crescer?” Perguntou Adriana com sorriso que demonstrava pouca esperança de que tal viesse realmente a acontecer.

“Quando falas em crescer, queres dizer: ficar agarrado à mesma pessoa mais de cinco anos? Como tu e o teu Martimzinho…” Zombou Fernando.

“Não me chamem para a vossa guerra.” Pediu de imediato Martim que já conhecia tão bem a namorada como o amigo para saber que nenhum dos dois iria hesitar em o utilizar como ponto de argumentação e por fim júri.

“Tens toda a razão Adriana.” Apoiou Bianca. “Não passa de uma criança grande.”

“Que betinhas…” Resmungou Fernando em baixa voz, e sentando-se junto de Bernardo, cobrou em tom de confidência. “Então vais para a Sorbonne e não dizes nada a ninguém?” Tinha esperado toda a manhã dando-lhe oportunidade de lhe contar a novidade mas como o amigo não abria a boca ele decidiu dar um empurrão ao assunto. Mas Bernardo limitou-se a sorrir em resposta. “Ainda nem lá chegaste e já estás todo snob!?”

“Deixa-te de coisas. Ainda me estou a habituar à ideia.” Justificou-se Bernardo.

“E pensavas contar-me quando? Depois de te ires embora? Por falar nisso, quando é que vais embora?”

“Três semanas.” Respondeu quase em sussurro. “O quê!?” Perguntou atónito. «A Ivana vai ter um colapso.» “Então e as

últimas duas semanas de aulas?” “Os meu pais arranjaram uma solução com a direcção da escola… tenho de

fazer uns trabalhos extra.” “Tou parvo…” Desabafou Fernando ao saber que estava mais perto do que

poderia imaginar de perder o seu melhor amigo. Na indignação, esqueceu Angélica e perdeu o sorriso que ela lhe oferecia.

****

PEQUENO CONTRATEMPO O fim das aulas chegou mais uma vez lento e ansioso. Depois de seis

intervalos e uma hora de almoço a evitar encontrar Bernardo, Ivana preparou-se para o momento de pôr em prática o plano de Lia.

Escondida atrás da velha palmeira perto do portão principal, espreitava a saída da escola, e como antecipado, encontrou lá Bernardo.

“Nem acredito que estou a fazer isto.” Lamentou-se com um suspiro. “Depois de mais de oito anos a sonhar com este momento estou a fazer de tudo para me livrar dele.”

“Não há mal nenhum.” Disse Lia por cima do ombro da amiga. “Se ele gosta de ti hoje. Também vai gostar amanhã.”

“Espero mesmo que seja assim…” Resmungou entre dentes. «Ou corres risco de vida Lia Sousa.»

Como se tivesse ouvido a ameaça, Lia afastou-se. “Eu vou lá então. Como combinado, digo-lhe que saíste mais cedo porque não te sentias bem, e que já tentei ligar-te mas parece que estás sem bateria. O plano é perfeito. Ou não seria meu.” Despediu-se com um sorriso provocador e caminhou em direcção a Bernardo.

Escondida pelo tronco gigante da árvore mais antiga que a própria escola, Ivana acompanhou a amiga com o olhar. Quando a viu parar junto de Bernardo, sentiu o coração a apertar-se. «Era suposto ser eu…» Lamentou-se em silêncio pela troca de papéis.

Depois de uma conversa surda aos ouvidos de Ivana mas da qual ela já conhecia cada palavra, Lia deixou-o com a notícia e o desânimo de Bernardo era visível quando também ele deixou a escola.

§ A tarde estava ainda mais quente do que a anterior mas Ivana nem o

notou. Desde que tinha saído da escola em passo solitário só tinha conseguido olhar para o ecrã negro do telemóvel desligado e imaginar se era naquele momento que Bernardo lhe estava a ligar ou se iria ser dali a dois, três, quatro segundos ou talvez nunca.

A curva dos seus pesadelos estava a acabar e como sempre os seus perseguidores caninos deveriam estar prontos para mais uma corrida emocionante. Ivana começou os exercícios de respiração e guardou o telemóvel no bolso. Nos segundos que se seguiam não haveria margem para erro ou distracção.

Mais uma vez, veio o início da contagem decrescente. Ao zero, disparou em corrida.

De olhos fechados, não demorou até que o som dos latidos anunciassem a Ivana que os seus perseguidores tinham aceitado o desafio e entrado na corrida. «Corre, corre, corre.» Ordenava-se.

A emoção da corrida estava ao rubro. Os músculos das suas pernas trabalhavam a 100%, os cães recusavam-se como sempre a desistir e ladravam como condenados; quando de repente o impensável acontece.

Ivana sentiu o telemóvel a saltar do seu bolso como se tivesse ganho vida própria. «Oh, não!» Um segundo de distracção ao apanhar o telemóvel no ar

foi o que bastou para lhe descoordenar o passo de corrida e a fazer desequilibrar e cair desamparada contra o chão.

No impacto da queda viu-se rodeada de poeira levantada pela velocidade e o choque da cabeça no chão toldou-lhe parcialmente a visão, mas não o suficiente para evitar que assistisse à aterradora aproximação dos cães que impelidos pela excitação da possibilidade de finalmente a alcançarem corriam até ela. Em milésimos de segundo que lhe pareceram minutos sem fim, sentiu os cães a morderem-lhe as calças, os ténis e a mochila.

De todo o lado haviam dentes a puxá-la. Não conseguia acreditar no que lhe estava a acontecer.

Uma voz que pareceu vinda do além começou a sobrepôr-se por entre os latidos e grunhidos. Ainda com a visão desfocada, Ivana viu um vulto negro a aproximar-se que reconheceu como o enviado da morte com ordens para a vir buscar. «Não acredito que vou morrer aos dezassete anos atacada por um monte de cães sem pedigree.» Pensava incrédula com o fim mórbido que o destino lhe reservara. «Daqui a instantes chego ao céu e quando encontrar a minha mãe vou ter de lhe dizer: “‘Mãe não vais acreditar no que me aconteceu..!’ Eu mereço!»

A voz do vulto começou a tornar-se mais perceptível roubando Ivana dos devaneios apocalípticos.

“Saiam daqui!” Ordenava a voz. “O que é que vos deu!?” Sentindo os ataques a cessar, tentou levantar-se de imediato para fora do

alcance dos rafeiros que a abocanhavam com toda a vontade e entusiasmo, mas ao pôr-se em pé o resultado foi uma queda quase tão violenta como a primeira.

“Tem calma.” Pediu a voz nitidamente a tentar conter o riso. “Experimenta sentar-te primeiro.”

Contrariada, Ivana seguiu a sugestão enquanto tentava ajeitar o cabelo que era o que verdadeiramente a estava a impedir de ver claramente. Depois de dar tempo aos seus olhos para se ajustarem à luminosidade do sol, reparou com mais atenção na figura vestida de preto que a observava. Em pé estava um rapaz que deveria ser pouco mais velho do que ela, de cabelos negros e lisos que lhe tocavam nos ombros, a pele era morena, e uns olhos verdes luminosos e sorriso branco que contrastavam com os seus tons escuros que o caracterizavam.

Ivana confirmou que não tinha sido impressão sua, ele estava realmente a rir-se dela, e por mais encantador que os seus instintos femininos pudessem achar aquele sorriso, o orgulho soltou-lhe a cólera.

“Não percebo qual é a piada aqui.” Disse numa voz ríspida. “Não viu que eu quase morria!?”

“Tens razão, peço desculpa. Não sei o que deu nos cães, eles costumam ser muito meigos...”

“Costumam!?” Interrompeu Ivana indignada “Estes monstros caninos maquiavélicos são seus!?”

“Calma!” Pediu ele. “Calma nada!” Devolveu furiosa e levantando-se continuou a praguejar.

“Sabe quantos dias eu tive de correr que nem uma condenada para fugir deles!?” Uma dor mais forte na perna obrigou Ivana a desacelerar o discurso.

“Se calhar gostam da tua cor de cabelo…” Sugeriu ele desajeitadamente. “Acredito que sim. Todos os dias alguém me diz que pareço um

salsichão…” E não aguentando mais a dor na perna voltou a sentar-se no chão.

“Parece que te aleijaste a sério... deixa-me ver.” A dor lancinante que sentia deixou Ivana vazia de qualquer energia ou

vontade de contrariar o inesperado companheiro que ao desviar as calças encontrou um golpe profundo na canela.

“Isto não está bonito aqui em baixo.” Comentou. “Deves ter mesmo boa pontaria porque caíste em cima daquela pedra.” Disse apontado para uma pedra que se destacava das restantes que cobriam o caminho, pela sua dimensão e pela mancha vermelha de sangue que a cobria.

“Pois…” Murmurou ela. «Sangue, era só o que me faltava!» “Onde é que moras? Eu levo-te lá.” “Não é preciso. Consigo ir sozinha.” Garantiu. Mas ao começar a sentir os

efeitos secundários que por tradição o sangue tinha nela, Ivana achou prudente dar informação que sabia iria ser útil dali a poucos segundos. “É já ali à frente, na casa com o jardim grande à frente.”

“Já estou a ver onde é.” Disse ele. “O meu nome é Gabriel...” Ivana ainda tentou responder mas o mundo apagou-se.

~~~ Sem a mínima ideia de quanto tempo tinha passado desde que, mais uma

vez, o seu espírito tinha decidido vaguear sem o corpo, Ivana sentiu-se lentamente a regressar à vida. Tonturas, olhos pesados, visão desfocada, boca mais seca que papel de jornal, e por entre sons distorcidos que ouvia as últimas palavras do vulto negro eram o som mais nitido que lhe ecoava na memória «“O meu nome é Gabriel… Gabriel… Gabriel…”» O eco era tão irritante quanto o barulhento motor de automóvel que lhe fazia a cabeça explodir de dor.

“Au…” Queixou-se logo que consegui fazer algum ar passar-lhe na garganta.

“Tenta não te mexer. Estamos quase a chegar ao hospital.” “Hospital!?” À mera menção da palavra o cobarde do seu espírito tentou

fugir mais uma vez. «Estou bem só com o sangue, obrigado. Acho que consigo dispensar o hospital... e o éter...» Pensava já com pena de si mesma, mas a ideia depressa foi interrompida. A voz, era a voz que ela reconheceria até no estado deplorável em que estava. «Bernardo.» Ela queria dizer o nome dele, ou até pedir que não a deixasse. Se havia momento em que a sua estranha relação com o sangue lhe daria alguma vantagem era ali no limbo da consciência e em que mais tarde tudo poderia ser desculpado com delírio. Mas mais uma vez o plano não corria como era suposto e um curto suspiro silencioso foi o acto estrondoso de coragem que conseguiu. «O dia não está a ser dos melhores...»

Ao abrir os olhos não reconheceu o interior do carro e percebeu que estava deitada no banco de trás de um táxi. A sua cabeça apoiada num colo, alguém lhe acariciava o cabelo, e ao desviar o olhar encontrou o de Bernardo que a observava preocupado. «Talvez aqueles cães até saibam fazer as coisas...» Ela sorriu e ele sorriu-lhe de volta.

Mas a felicidade durou pouco. Dois minutos depois, o carro parou em frente da porta das Urgências, o

feitiço foi quebrado, e no momento em que foi deixada confortavelmente numa maca, teve o privilégio de rever a sua ferida exposta sobre a luz brilhante da sala de observações.

Ao lento aproximar do médico e com vista priveligiada para todos os brilhantes utensílios de trabalho nas pequenas mesas metálicas em redor,

Ivana dedicou-se a uma gritaria de qualidade inesperada cujos decibéis deixariam qualquer bebé com vergonha.

Depois de longos minutos de sofrimento e uma embaraçosa luta com médicos e enfermeiros recheada de descoordenados movimentos de defesa que em outro scenário seriam cómicos, foi finalmente deixada num quarto a recuperar e a usufruir das sensações maravilhosas que o cocktail de drogas lhe oferecia a intervalos regulares.

****

VISITAS A noite já tinha recebido a madrugada quando Ivana abriu os olhos. «Devo estar mesmo mal para ter de passar aqui a noite» Lamentou-se ao

olhar o tecto branco do quarto da enfermaria. “Estava a pensar que nunca mais acordavas” Disse uma voz protegida pela

sombra no fundo do quarto. Surpresa com a presença inesperada de uma visita àquela hora silenciosa,

Ivana sentou-se na cama com um movimento brusco que lhe pôs de novo a cabeça a andar à roda e a fez encolher-se de dor.

“Au…” Queixou-se levando a mão à cabeça. “Pelo amor de Deus, desde que entrou na minha vida que os escassos instantes de consciência que tenho são acompanhados de dor!”

Sorrindo divertido, Gabriel levantou-se da cadeira que ocupava e aproximou-se da cama. “Vamos ter de fazer alguma coisa para mudar isso.” Disse por fim. “E para começar, podes tratar-me por tu, não sou assim tão velho.”

“Sendo assim, então tu podes dizer-me como é que te deixaram entrar aqui. Não és com certeza da família, muito menos amigo, nem sequer conhecido… quanto muito alguém com um sentido de humor completamente destorcido… macabro até!”

“Estás a melhorar.” Comentou mantendo o sorriso. “Digamos que tenho os conhecimentos certos para poder estar aqui.” Esclareceu.

“Porque é que eu tenho a sensação de que essa é apenas uma versão abreviada?”

“Só queria certificar-me de que estavas bem.” Concluiu. “Quando te deixei em casa não estavas na tua melhor forma.” E esticando o sorriso acrescentou. “E para além disso, nunca me chegaste a dizer o teu nome.”

“Ivana”. Apresentou-se oferecendo a mão para um cumprimento formal. “Mas já deves ter visto na minha ficha, não é?”

Gabriel segurou-lhe na mão sem parecer com pressa para a largar. “Não. Eu não gosto de invadir a privacidade dos outros.” Gracejou com um leve deslizar de dedos que poderia ou não ser uma carícia.

Ao soltar-lhe a mão uma rosa surgiu do nada e veio ocupar o sitio que a mão dele tinha ocupado na dela.

A visão inesperada apanhou Ivana completamente desprevenida, os seus olhos permaneceram tão abertos quanto era possivel, congelados pela confusão de uma imagem que não conseguiam fazer sentido até que a rosa conseguiu arrancar-lhe o sorriso que só a magia consegue criar.

“Como é que…?” “Para além de conhecer algumas pessoas também conheço… outras coisas.”

Esclareceu Gabriel com um sorriso que se revelou perigosamente encantador e a obrigou a voltar a chamar a razão.

“Compreendo... és uma pessoa que não gosta de invadir a privacidade dos outros e foi por isso que te escondeste aqui enquanto eu estava a dormir. Tem lógica.”

“Foi um privilégio conhecer-te Ivana.” Disse em despedida. “Espero que as coisas te corram melhor daqui para a frente.”

Ainda surpresa pela rosa que segurava e à espera de resposta ao comentário provocador Ivana viu-o simplesmente a voltar-se e ir embora em silêncio. «Mas o que é raio aconteceu aqui!?» Pensou dando um olhar em redor do quarto vazio e parando na rosa que permanecia na mão.

Com o cérebro preenchido com os pormenores daquele estranho encontro, a medicação arrastou Ivana de volta para a almofada e ela adormeceu com os olhos presos à porta por onde Gabriel tinha desaparecido.

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