a noção de habitus e cotidiano - artigo
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Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS/FFCH/UFBA
A NOÇÃO DE HABITUS E O COTIDIANO NA PRÁXIS HUMANA:
diálogos possíveis entre Bourdieu, Certeau, Lefebvre e Heller.
Anderson Carvalho dos Santos
Mestrando em Ciências Sociais – FFCH/UFBA
RESUMO: o presente artigo tem por objetivo elucidar possíveis interconexões entre os conceitos de habitus e cotidiano da vida humana, ressignificados no âmbito das discussões da teoria social na contemporaneidade, a partir da análise das proximidades e afastamentos das perspectivas de construção desses conceitos pelo sociólogo Pierre Bourdieu e pelos teóricos do cotidiano Michel de Certeau, Henri Lefebvre e Agnes Heller. Acredita-se que a noção de habitus de Bourdieu, na medida em que imputa um caráter ativo aos indivíduos na produção e reprodução da vida social, tenta entender o próprio processo de socialização como a mediação de disposições individuais subjetivas e estruturas sociais objetivas já encontradas historicamente. Inquietações da mesma natureza tiveram os teóricos do cotidiano, cada qual com seu arsenal teórico, em busca de entender como a produção da vida social e as relações indivíduo-sociedade se gestavam na contemporaneidade. Certeau atribui às redes de anti-disciplina, gestadas na apropriação do sistema social pelos indivíduos e sua inevitável resistência a este, a própria possibilidade de invenção do cotidiano. Lefebvre e Heller tentam, utilizando o método crítico, reconstruir a noção de cotidiano da vida humana no mundo capitalista a partir da possibilidade de uma práxis transformadora da realidade sócio-histórica. Acreditamos ser possível que a compreensão das inquietações e saídas teóricas que os autores estudados lançaram mão possa fornecer a possibilidade de apreendermos a problemática da reprodução da vida humana de uma forma mais abrangente e menos dependente do olhar disciplinar que os diversos métodos científicos costumam induzir.
PALAVRAS-CHAVE: habitus, cotidiano, vida humana, práxis.
Disciplina: Teoria Social Contemporânea
Professores: Iara Souza e Paulo César Alves
Introdução
A análise da produção e reprodução da vida humana em sociedade e as
interconexões entre a perspectiva individual, singular e a estrutura social é o
cerne da preocupação de teóricos das ciências humanas e sociais. De fato,
compreender de que modo os indivíduos agem sobre uma sociedade onde
regras e normas são fatos objetivos e acabam por influenciar escolhas,
julgamentos, gostos e hábitos não é tarefa simples. O ponto de partida de
análise possivelmente reside na seguinte questão: realmente os indivíduos
agem sob um total contingenciamento nas práticas sociais ou suas alternativas
de vida no dia-a-dia ante a um mundo posto e herdado tem mais repercussão e
são constitutivas da própria realidade social? Essas inquietações estão
presentes nas obras de vários autores das ciências sociais e são elemento
formador da compreensão sociológica de várias correntes de pensamento.
Na contemporaneidade, em particular, podemos encontrar alguns autores que
dedicaram boa parte de suas obras a essa temática. Pierre Bourdieu dedicou
boa parte de sua obra a aplicar os conceitos de habitus e campo, onde
procurou delinear sua perspectiva de gestação da vida social a partir da crítica
a noções estruturalistas, por um lado, e fenomenológicas, de outro. Seu
arcabouço teórico procurou tratar das mediações entre os condicionamentos
sociais exteriores ao sujeito e a subjetividade desses próprios sujeitos. A noção
de habitus, desse modo, encerra uma noção de matriz cultural, que predispõe
os indivíduos a fazerem suas escolhas. Ela ajuda a romper com a dualidade do
senso comum do indivíduo e da sociedade ao captar o modo como a própria
sociedade se deposita na ação individual e se ressignifica historicamente.
Também podemos observar como o conceito de cotidiano auxilia na
compreensão dessas disposições, visto que a regularidade das ações, a
aparente banalidade do reproduzir a vida do dia-a-dia, é geradora de toda a
possibilidade de transformação da realidade social. Michel de Certeau
pressupõe o fato de que há um equívoco na compreensão de que o consumo,
as práticas humanas corriqueiras, o enredo das idéias e valores na vida dos
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indivíduos seja apenas um fruto direto do conformismo ante aos poderes
instituídos e à dominação. Ele acredita que existe, na reprodução da vida
individual, transgressões que se configuram como resistências à imposições
sociais externas e que formam uma rede de anti-disciplina, traço da vida social.
A cultura para ele é vista a partir da ação individual, sendo o homem inventor
do próprio cotidiano.
Perspectiva diferente tem os autores marxianos Henri Lefebvre e Agnes Heller.
Partindo de uma crítica severa ao marxismo vulgar (economicismo,
estruturalismo, materialismo abstrato), por um lado, e à perspectiva
fenomenológica por outro, elaboram, a partir da noção luckacsiana de
reificação do ser social, uma noção de cotidiano onde a vida humana é palco
da dialética das relações sociais totalizantes de produção da vida objetiva,
material e das práticas individuais encerradas no singular. A questão política aí
tem centralidade, haja vista que para esses autores, a práxis libertadora é
gerada no seio da própria vida cotidiana, ainda que advoguem que em muitos
momentos históricos a suspensão da vida cotidiana seja necessária para que
haja o encontro entre o ser singular e o ser genérico, num momento de
objetivação social e retorno à vida cotidiana em outro nível de consciência.
A noção de habitus em Bourdieu: gênese e implicações
A origem do termo latim habitus, vem do grego hexis, que Aristóteles entendia
por um estado adquirido que orienta nossa moral e nossa conduta. Na
Escolástica Medieval, Tomás de Aquino traduziu para o latim que determinava
características corpóreas e espirituais adquiridas num processo de intensa
aprendizagem. Ainda poderia ser usada como uma disposição durável que
ficava entre o factível e o premeditado.
Durkheim também faz o uso desse conceito em sua obra “A evolução
pedagógica” para designar o estado geral dos indivíduos, orientador de ações
de forma durável (SETTON, 2002). O termo ainda vai ser utilizado por Marcel
Mauss, em As técnicas do corpo, assim como também em Max Weber. A
fenomenologia também se apropria do conceito e por meio de Edmund Husserl
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designava-o como conduta mental proveniente de experiências passadas em
mediação com ações futuras (WACQUANT, 2002).
Em Bourdieu, o conceito toma corpo na sua crítica ao estruturalismo e a
fenomenologia, atingindo importância fundamental para o escopo de sua teoria.
Para ele, o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a noção
de senso comum entre indivíduo e sociedade e apreender as relações de
afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e
condicionamentos sociais. Segundo ele, o habitus é compreendido por:
“[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,
integrando todas as experiências passadas, funciona a cada
momento como uma matriz de percepções, de apreciações e
ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente
diferenciadas, graças às transferências analógicas de
esquemas [...] (Bourdieu, 1983:65).
A noção de habitus para Bourdieu se torna universal, um instrumento
conceitual poderoso para analisar com coerência características de indivíduos
expostos a uma mesma condição de existência. Para chegar a essa noção o
autor tem de ser valer a critica à outras correntes de pensamento que tentam
apreender essa noção: a fenomenologia e o estruturalismo. Na primeira
corrente de pensamento,
[...] a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é,
a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do
mundo social como mundo natural e evidente, sobre o qual, por
definição, não se pensa, e se exclui a questão de suas próprias
condições de possibilidade. O conhecimento que podemos
chamar de objetivista (de que a hermenêutica estruturalista é
um caso particular) (que) constrói relações objetivas (isto é,
econômicas e lingüísticas), que estruturam as práticas e as
representações práticas ao preço de uma ruptura com esse
conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos
tacitamente assumidos que conferem ao mundo social seu
caráter de evidencia e natural [...] Enfim, o conhecimento que
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podemos chamar de praxiológico tem como objeto não
somente o sistema de relações objetivas que o modo de
conhecimento objetivista constrói, mas também as relações
dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas
nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto
é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e
exteriorização da interioridade. (Bourdieu, 1983:46-47).
Dessa forma, o habitus pressupõe uma relação dialética entre sujeito e
sociedade, uma relação de mão dupla entre habitus e campo, determinado
socialmente. Assim, ações, comportamentos, escolhas individuais não derivam
de cálculos ou planejamentos, mas de respostas a pressões conjunturais. O
habitus, para Bourdieu, tem uma relação estrita com a perspectiva de campo e
suas conjunturas. Ele, dessa forma, “adquire um status de um conjunto de
esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em
prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam”
(SETTON, 2002).
O habitus não se conforma como uma disposição natural, mas sobretudo,
advinda do social com variáveis bem definidas de espaço, tempo e poder. Ele
não é a prática em si, porém se estende para todos os domínios das práticas
humanas, se tornando uma disposição para e em si dentro de uma perspectiva
de um determinado estilo de vida ou de classe.
A noção de habitus não é eterna, ainda que durável , mesmo sendo dotado de
uma inércia incorporada e um defasamento inetivável ante a determinações
passadas em confrontamento com situações atuais (WACQUANT, 2002).
O habitus “é aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz
respeito às determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a
do passado, ordenado e atuante, que, funcionando como capital acumulado
produz história na base da história e assim assegura que a permanência no
interior da mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo”
(BOURDIEU 1980/1990: 56).
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Não devemos entender, contudo, que o habitus é a ação, ou gera
necessariamente a ação. Ele atua como um catalisador que necessita de um
estímulo externo e não pode ser desvinculado dos campos. Antes de tudo é
uma matriz de esquemas híbridos que tende a ser acionada conforme os
contextos sociais de produção e realização (WACQUANT, 2002).
A noção de habitus está para ser verificada muito mais do que em esquemas
teóricos fechados e abstratos. Ela só pode ser apreendida na análise empírica,
na captação do movimento das práticas tal qual ele se apresenta. A
classificação proposta por Bourdieu, em termos de conceituação nos serve
para reforçar a perspectiva dialética da análise das práticas cotidianas na vida
humana e relacioná-las de modo mais orgânico com a teia social que compõe
cada conjuntura dos grupos sociais.
Em Bourdieu, ainda que a noção de habitus esteja ligada a historicidade dos
grupos sociais e perpetuação de novas tendências e disposições no devir
sociológico, nos parece que sua análise está vinculada com uma noção de
época histórica muito bem definida, que é a modernidade permeada pelas
relações de produção e de dominação entre os diversos segmentos sociais.
Para nós, ainda que tivesse feito uma tentativa grandiosa de capturar esse
movimento, ao elucidar que o habitus não está sempre de acordo com o mundo
em evolução, ou seja, preparado para analisar situações de crise e mudança
social, Bourdieu não consegue capturar as características mais gerais desse
habitus em mudança constante, relacionado mais intimamente com o processo
histórico em constante mudança com as ações dos homens no cotidiano.
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O cotidiano em Certeau
O francês Michel de Certeau se preocupou em boa parte da sua contribuição
teórica à Filosofia e às Ciências Humanas em compreender as maneiras de
fazer das massas anônimas. Seus estudos sobre os discursos místicos do
século XVII o inspirou a ter uma postura epistemológica que privilegiou a
captura do que não estava dito por completo pela história e pelos discursos
oficiais. Dessa forma, procurou analisar o mundo vivido pelos homens, a partir
de seus gestos, escolhas, hábitos, práticas, falas, encarando-os como parte de
um arcabouço predispositivo por parte desses mesmos homens para uma
perspectiva de desvio de norma, de conduta. Para ele, a atuação humana não
era passiva ante ao estruturado, ao herdado e socializado. Pelo contrário, ela
era subproduto de uma predisposição à sair da norma, a burlar o sistema.
Focando na perspectiva do consumo de bens culturais e materiais, pressupõe
que existe uma tendência a apropriações e ressignificações imprevisíveis, que
fogem do controle e da idealização das coisas (SOUSA FILHO, 2002).
Em seu “A invenção do cotidiano”, se preocupa em demonstrar as artimanhas
do consumidor cultural no esvaziamento do poder normativo e na negação
diária da homogeneização atribuída ao sistema. Podemos ver na asserção de
Levigard e Barbosa (2010) que para Certeau:
“É na vida cotidiana que (ele) vai buscar, igualmente, a
compreensão dos movimentos de resistência ante as forças
hegemônicas de reprodução e de controle social. (...) através
das práticas cotidianas o indivíduo se reapropria do sistema
produzido e fabrica redes de anti-disciplina. Isto é, o indivíduo
cria meios para escapar ou fugir dos modelos de consumo
impostos pela ordem dominante, inventando o cotidiano.
(Levigard & Barbosa, 2010:87).
A dominação, para Certeau, é cravada por microresistências que pressupõem
acordos culturais muitas vezes imperceptíveis e que são a base da
estruturação da vida em sociedade e que contribuem para a perspectiva de
mudança social. Ao analisar os microespaços como lugares sociais onde se
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perpetuam as transgressões ao normativo, Certeau admite que esses
microespaços são mais abertos à criatividade e ação do homem, ainda que
sofrendo a repressão consciente da ordem.
Ainda em “A invenção do cotidiano”, o autor dialoga com Foucault ao afirmar
que a antidisciplina se constitui como uma rede de procedimentos articulados e
acumulados historicamente num enredo social quase que uniformemente
convergente para a perspectiva de enfrentamento à atomização apresentada
pelo advento do poder e não como a violência da ordem se vale de tecnologias
disciplinares e estruturantes da vida social. As artes de fazer não são
facilmente colonizadas, pois conservam poderes de diversas épocas anteriores
(SOUSA FILHO, 2002).
Numa clara oposição a noção de dominação domesticadora, Certeau é um
estrito crente de que as obras humanas, ainda que não claramente
intencionais, são transgressoras e transformadoras em potencial, revelando
sua preferência pela análise que parte do individual, do singular, ainda que
estas predisposições se generalizem na sociedade.
Para ele,
“os mecanismos de resistência são os mesmos, de uma época para outra, de uma ordem para outra, pois continua vigorando a mesma distribuição desigual de forças e os mesmos processos de desvio servem ao fraco como último recurso, como outras tantas escapatórias e astúcias, vindas de ‘imemoriais inteligências, enraizadas no passado da espécie [...]” (Certeau, 2001:19).
Dessa forma, analisa a vida política como um sub-produto da luta cotidiana dos
indivíduos frente ao processo de dominação e opressão, como um processo
ordenado e imemorial localizado historicamente nas experiências passadas de
vivencias humanas.
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O giro epistemológico: significados da vida cotidiana em Lefebvre e
Heller
As contribuições de Lefebvre e Heller para a análise do cotidiano são
inegáveis. Herdeiros da visão marxiana de Lukács no combate ao marxismo
vulgar e as tendências economicistas e estruturalistas da análise da sociedade,
mantém a perspectiva desse autor de desmitificar a análise marxiana da
realidade onde á totalidade é composta por aspectos centrais da vida cotidiana.
Durante toda a sua obra, Lukács se preocupou em analisar, a partir da visão
materialista da História, os processos da vida comum, tão possíveis de serem
relegados à metafísica.
Dessa forma, ele descobre na reificação das relações entre os indivíduos o
alicerce da vida cotidiana contemporânea. É na coisificação das relações a
partir da forma mercadoria, imbricadas em atitudes, em rotinas, normas e
substância de valores que está fundada a essência da vida em sociedade em
nossos tempos.
Esses autores, então, procuram atualizar sua obra e discutir as perspectivas de
mudança social a partir da valorização da suspensão do cotidiano a partir da
práxis libertadora, onde os indivíduos supostamente iriam adquirir um novo tipo
de cotidianidade.
Para Lefebvre, o Estado moderno é o grande gestor de toda a vida social.
Apenas escapa ao Estado o insignificante, as minúsculas decisões onde os
indivíduos podem encontram a felicidade. Ainda assim:
“se é verdade que o Estado apenas deixa de fora o
insignificante, também é verdade que o edifício burocrático
sempre tem fissuras, vãos e intervalos (...) o indivíduo procura
alargar essas fissuras e passar pelos vãos” (Lefebvre,
1981:126-127)
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Ele aborda essa perspectiva por duas razões primeiras. Uma é que na vida
contemporânea, as relações sociais de dominação ganharam primazia sobre
as relações de produção, ainda que aquela esteja contida nesta. Em segundo
lugar, é que a própria produção capitalista se ocupa de ter como centro de sua
atenção e atuação, justamente a vida cotidiana, que é o espaço de produção e
reprodução da vida social.
Para o autor, a vida cotidiana é planejada em nossos tempos para ser o espaço
da realização do consumo de bens materiais e culturais, onde aos indivíduos
tendem à homogeneização das relações, dos costumes e dos valores. Para
captar essa realidade então é preciso lançar mão do método crítico, onde a
análise da realidade e das predisposições no campo produtivo são o fio
condutor para a apreensão do movimento da vida cotidiana.
Lefebvre assume que na apreensão da vida cotidiana devemos levar em
consideração três aspectos fundamentais: a noção de que a vida cotidiana é
um dado sensível e prático e o dado abstrato, onde a busca do real deve ser
incessante; a noção de totalidade, onde as partes não são exatamente o todo,
mas se realizam nele, a partir de um processo de estruturação e
desestruturação; e, por último, a noção da vida cotidiana como motor de
transformações globais, dando a possibilidade de suspensão desse cotidiano à
ação transformadora e o encontro com o ser genérico (CARVALHO, 2010).
Para Heller, o cotidiano é a vida de todos os dias, diferenciáveis dadas as
diferenças de grupo ou classe social.
“A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem
participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua
individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em
funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas
capacidades intelectuais, suas habilidades manipuladoras,
seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias. O fato de que
todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento
determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa
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realizar-se, nem de longe, em toda a sua intensidade.” (Heller,
1972:17)
A vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, não sendo rígida nem imutável,
pois se altera de acordo com a mudança histórica. Uma das suas principais
características, para Heller, é sua imediaticidade e pensamento manipulador. A
utilidade das práticas é o critério da verdade, pautada na eficácia dessas
mesmas práticas. Nesse sentido, a vida cotidiana adquire uma tendência à vida
funcional. (CARVALHO, 2010)
A idéia marxiana de homem enquanto ser genérico está presente na obra de
Heller. O homem social é ao mesmo tempo singular e genérico. Na vida
cotidiana o mais evidente é o ser singular.
“O indivíduo contém tanto a particularidade quanto o homem
genérico que funciona consciente e inconscientemente no
homem (...) A explicitação dessas possibilidades de liberdade
origina, em maior ou menos medida, a unidade do indivíduo, a
‘aliança’ de particularidade e genericidade para produzir uma
individualidade unitária” (Heller, 1972:23)
Em Heller podemos verificar a defesa da necessidade do encontro do homem
com o seu gênero, nas situações históricas promotoras de mudanças radicais.
Há, nesses momentos, uma necessidade de suspensão da cotidianidade (e
não sua negação), para que a heterogeneidade dê espaço à homogeneidade
como mediação necessária para essa mesma suspensão. Os domínios onde o
ser humano pode suspender ao ser genérico, são o trabalho, a arte, a ciência e
a moral. Para ela, a vida cotidiana “a vida cotidiana não está fora da história,
mas no centro do acontecer histórico” (HELLER, 1972).
Para esses autores, a alienação, no sentido social do termo marxiano, joga um
papel fundamental na sociedade capitalista e na influencia na vida cotidiana.
Diferente de Certeau, “alguns valores presentes no mundo moderno capitalista
– individualismo, neutralidade, competição – reforçam a mediocridade,
deixando as decisões políticas, econômicas, culturais, espirituais aos sabor dos
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agentes mandantes” (CARVALHO, 2010). A insatisfação (manifesta na
contestação ou mesmo na passividade), ao mesmo tempo que mascara a
mediocridade, germina o desejo de ruptura e a procura por autenticidade nas
relações. Esta aqui expressa a lógica dialética hegeliana, revisitada por Marx,
onde os contraditórios são possíveis e fundadores da vida humana.
A utilização da noção de práxis, dessa forma, é o processo metodológico mais
coerente na análise da vida cotidiana, pois apreende o movimento da
cotidianidade como um movimento histórico e não inseparável das perspectivas
conscientes e inconscientes na sociedade. Há um processo claro de negação
da apreensão direta do fenômeno sem relacioná-lo com a realidade, com a
totalidade inscrita no movimento histórico. O rompimento com a faticidade
costumeira das abordagens fenomenológicas e descritivas imprime um senso
de negatividade do empírico, não no sentido de o menosprezar, mas na
tentativa de apanhá-lo na sua tendencialidade, no seu movimento. Nesse
sentido, a primazia da história pode preservar a especificidade dos fenômenos
apresentados (NETTO, 2010).
Conclusão
Pudemos observar nessa breve exposição do pensamento dos referidos
autores quanto a construção de seus conceitos para apreender a vida humana,
que existem aproximações e afastamentos importantes no escopo de suas
teorias. Para nada isso quer dizer que é impossível fazermos um diálogo
consciente com a construção dessas noções no campo da Sociologia e que
podemos extrair, no campo epistemológico, perspectivas mais totalizantes no
método de apreensão da realidade.
Podemos afirmar que as noções de Bourdieu e Certeau se aproximam no
sentido de dar primazia a ação individual no contexto social e de como elas
podem imprimir certo tipo de regularidade e estrutura a um determinado
sistema num contexto histórico. Ainda que as abordagens não partam dos
mesmos pressupostos teórico-metodológicos, é notório que estes autores dão
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importância fundamental a estruturas do pensamento herdadas de outras
épocas históricas, dando uma noção de sobreposição de valores, crenças e
idéias, ainda que significadas.
Por outro lado, os marxianos Lefebvre e Heller, fazem a análise do cotidiano a
partir do advento da época histórica que vivemos – o capitalismo – imprimindo
a idéia de que a forma mercadoria imputa regularidades na ação humana
cotidiana, ainda que de forma heterogênea e admitindo resistências. Ambos
dão ênfase aos processos calcados na dialética das relações sociais de
produção e nos desdobramentos práticos da ação humana sobre a rotina,
modos de fazer e refazer a vida em sociedade. A centralidade da perspectiva
praxiológica para eles é fundamental, haja vista que é na práxis transformadora
que os indivíduos transcendem do ser singular para o ser genérico e se
encontram com sua verdadeira essência.
Advogamos assim, que é perfeitamente possível, para uma postura
metodológica conseqüente com as inquietações nas ciências humanas e
sociais, um diálogo entre esses autores, na perspectiva de construção de uma
análise coerente e mais próxima da totalidade.
Referências
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Zouk/EDUSP, 2008.
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