a noite na taverna

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Ie ne fay rien sans

Gayet

(Montaigne, Des livres)

Ex Libris Jos M i n d l i n

PELOTAS - TYP. DA LIVRARIA AMERICANA - 4298fr

ESBOO BOGRAPHICODE

MANOEL ANTNIO ALVARES DE AZEVEDOPilho legitimo do Dr. lgnacio Manoel Alvares de Azevedo e D. Maria Luiza da Motta Azevedo, Manoel Antnio Alvares de Azevedo nasceu na cidade de S. Paulo, aos 12 de Setembro de 1831, quando seu pae seguia o curso da escola jurdica. Patenteou desde a infncia extraordinria intellgencia. Trazido para o Rio de Janeiro, donde seu pae era natural e onde seguiu por alguns annos a carreira da magistratura, que abandonou depois pela advocacia, comeou na capital do Imprio a sua educao litteraria, com admirao de todos os seus mestres, a quem surprehendiam seu raro talento e brilhante imaginao. . Em 1845, feitos os necessrios exames, matriculou-se no quinto anno do Imperial Collegio D. Pedro II, e em 1847 tomou o grau de bacharel, em letras. Em 1848 matriculou-se no primeiro anno do curso jurdico de S, Paulo, e at 1851, em que

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que deram testemunho apontamentos, observaes e notas que escreveu. Oorao poeta o prosador, Alvares de Azevedo deixou composies que enchem trs volumes, publicados depois de sua morte. Poeta e prosador era o gnio espontneo que se estreava sem pretenes ecomo escrevendo ao acaso e de improviso. E preciso no esquecer que todas essas composies so perfumes da infncia, o, apenasalgumas, filhas dos seus vinte annos de idade. Tudo quanto escreveu foi a primeira flor de primavera apenas a desabrochar ; nenhuma de suas composies foi fructo sazonado. E no entanto, que poderosa phantasia!... que das arrojadas e s vezes estupendas !. que imaginao vulcnica, que inspiraes muitas vezes to suaves e delicadas !... O seu logar estava marcado entre os primeiros poetas da lngua portugueza. se a morte o no tivesse roubado to cedo ptria. A sua evidente predileco por Byron foi causa de alguns defeitos que se notam em composies poticas em que ostenta certa originalidade extravagante ; mas ainda nellas flarameja a sua romanesca erica imaginao. E sempre que Alvares de Azevedo poetou deixando-se levar pelo prprio gnio, e livre da influencia dos grandes poetas que amava, melhor e mais puro se revelou pela originalidade epelo sentimento. A sua ultima poesia, Canto do Cysne, inspi-

_ 7 rada dias arftes de adoecer pela ida do prximo termo de sua vida, foi a seguinte :SE EU MORRESSE AMANH

Se eu morresse amanh, viria ao menos Pechar-me os olhos minha triste irm ; Minha me de saudades morreria Se eu morresse amanh! Quanta gloria presinto em meu futuro ! ,Que aurora de porvir e que manh ! : Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanh ! Que sol! que co azul! que doce n'alma, Accorda a natureza mais loua ! No me batera tanto amor no peito, Se eu morresse amanh. Mas essa dr da vida, que devora, Anci de gloria, o dolorido afan... A dor no peito emmudecera ao menos S eu morresse amanh!

-SMIHr

A NOITE NA TAVERNAHow now Horatiol Voa treable aud look pale Is not this somethiagmorii than phantasy Wnat tMnk yon of it ? HAULET, acto. Bebamos ! nem um canto de saudade ! Morrem na embriaguez da rida as dor 1 Que importam sonhos, Ulustws desfeitas ? Fenecem como as flores I JOS BONIFCIO

Uma noite do sculo Silencio, moos! acabai com essas cantilenas horrveis! No vedes que as mulheres dormem ebrias, macilentas como defuntos ? No sentis que o somno da embriaguez pesa negro naquellas palpebras onde a belleza cinzelou os olhares da volpia ? Cala-te, Johann ! Emquanto as mulheres dormem e Arnold-o-louro cambaleia e adormece murmurando as canes de orgia de Tieck, que musica mais bella que o alarido da saturnal ? Quando as nuvens correm negras no co, como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia, como a luz de uma lmpada sobre a alvura de uma belleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taas ?

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s um louco, Bertran ! no a lua que l vai maci lenta: o relmpago que passa, e ri de escarneo &agonias do povo que, morre, aos soluos. qe; seguem as rtalhM dj chplera ! O choera ! e que importa ? No ha por ora vida bastante nas veias do homem ? no borbulha a febre ainda s ondas do vinho ? no reluz em toctoo setttaaa lattp^da da vida na lanterna do craneo ? -"- Vinho, vinho ! No vs que as taas esto vasias e bebemos o vapttO. como um somnambuk> E'o Fetichismo na embriaguez ! Espiritualista, bebe immaterialidade da embriaguez ! Oh ! vasio ! o meu copo est vasio ! Ol! taverneira, no vs que as garrafas esto esgotadas ? No sabes, desgraada, que os lbios *da garrafa so como os da mulher: s val'em beijos emquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava ? O vinho acabou-se nos copos, Bertran, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos ! Aps os vapores &o vinho os vapores do fumo ! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscencias, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanas que desbotaram, uma ultima sade ! A taverneira ahi nos trouxe mais vinho; uma sade ! O fumo a imagem do idealismo, o transumpto de tudo quanto ha de mais vaporoso naquelle epiritualismo que nos falada immortalidade da alma! Eia, pois! ao fumo das Antilhas, immortalidade da alma! Bravo ! bravo ! Um urrah ! triplico respondeu ao moo meio

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ebfio. Um conviva se ergueu entre a vozena ; contrastavam-lhe com as faces de moo as rugas da fronte e a rxido dos lbios convulsos. Por entre os oabells prateava-se-lhe o reflexo das lazea do festm. Falou : - Calai-vos, malditos ! A immortalidade da alma! pobres doidos ! E porque a alma bella, porque no concebeis que esse ideal possa tor- . nar-se em lodoe podrido, como as faces bellas da virgem morta, no podeis crer que elle morra? Doidos ! nunca velada levastes par ventuta uma noite cabeceira de um cadver ? ento no duvidastes que elle no era morto, que aquelle peite e aqueU fronte iam palpitar de novo, aqftas palpebras Lam abrir-se que era apenas, o pio do somno que emmadeeia aquelle homem ? IntmortaJ idade da alma ? e porque tambm no sonhar a das flore, a das brisas, a dos perf umes ? Ofe! efto, mil vezes! a alma no como a lua, sempre moa, nua e bella, em aua virgindade eteraa! A vula no maisque a reunio ao acaso das molculas attradas: o que era o corpo de mulher vai por ventura transformam-se num cypreste ou numa nuvem de raiasraas ; o q-ue era um corpo de verme vai alvejar-se no clice da flor ou na fronte dacreana mais loura e bella. Como Schiller o disse, o tomo dja inteligncia de Plato foi talvez para o corao de um ser iaipuro. Por isso eu vol-o direi: se entendais a immortalidade pela metempsychose, bem! talvez eu a creia um pouco ; pelo platonisrno, no ! Solfieri! s um insensato ! O materializo rido como o deserte, escuro corno um tuniule-! vs, frontes queimadas polo mormao

12 do sol da vida, a vs, sobre cuja cabea a velhice regelou os oabellosessas crenas frias. A ns os sonhos do espiritualismo. Archibald! devoras que um sonho tudo isso ! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espirito puro ajoelhado no seu manto argenteo, num oceano de aromas e luzes, llluses ! a realidade a febre do libertino, ataca na mo, a lascvia nos lbios, e a mulher semi-nua, tremula e palpitante sobre os joelhos. Blasphemiale no crs em mais nada? Teu scepticismo derribou as estatuas do templo, mesmo a de Deus ? Deuslorrem Deus! sim como o grito intimo que se revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roar humida pomos ! Na jangada do naufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhada do suor frio do terror, que vem a crena em Deus ! Crer nelle como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem; mas, se entendeis por elle os dolos que os homens ergueram banhados de sangue, e o fanatismo beija em sua inaniraaSo de mrmore de ha cinco mil annosno creio nelle ! E os livros santos ? Misria ! Quando me vierdes falar em poesia eu vos direiahi ha folhas inspiradas pela natureza ardente daquella terra, como nem Homero as sonhou,como a humanidade inteira ajoelhada sobre os tumulosdo passado mais nunca lembrar ! Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em vises santas, nos desvarios daquelle povo estpido, eu vos direimisria l

13 misria 1 trs vezes misria! Tudo aquillo falso: mentiram como as miragens do deserto! Ests ebrio, Johann ! O atheisftio a insania, como o idealismo mystico de Schelling, o pantheismo de Spinosa, o judeu, e o esterismo crente de Malebranche, nos seus sonhos da viso em Deus. A verdadeira philosophia o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem o prazer: Dahi vede que o elemento sensvel o que domina. E, pois, rgamo-nos, ns queamarellecemos nas noites desbotadas do estudo insano, e vimos que a sciencia falsa e esquiva, que ella mente e embriaga como um beijo de mulher. Bem ! muito bem I um toast.de respeito! ' Quero que todos se levantem, e com a cabea descoberta digam : Ao Deus Pan da natureza, quelleque a antigidade chamou Bacoho, o filho das coxas de um Deus e do amor de uma mulher, e que ns chamamos melhor pelo seu nomeo vinho ! Ao vinho ! ao vinho ! Os copos cairam vasios na mesa. Agora ouvi-me, senhores ! Entre uma sade e uma baforada de fumo, quando as cabeas queimam e os cotovellos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braos do carniceiro no cepo gottejante, o que nos cabe uma historiasanguinolenta,um daquelles contos phantasticoscomoHoffmann os delirava ao claro dourado do Johannisberg ! Uma historia medonha, no, Archibald ? falou um moo pallido que a esse reclamo erguera a cabea amarellenta. Pois bem, dir-vosei uma historia. Mas quanto a essa podeis tre-

14 mer agosto, podeis suar a fio da fronte grossas bagas de terror. No um conto, uma lembrana do passado. .__ Solfieri ! Solfieri! ahi vens com teus sonhos ! Conta ! ' Solfieri falou ; os mais fizeram silencio, II

Solfieri. . . Yet one kiss on yeur pale clay And those lips once so -wam-my heart! my beart

BYRON,CAIN Sabeil-o... Roma a cidade do fanatismo e da perdio: na alcova do sacerdote dorme a gosto aamazia, no leito d vendida se pendurao crucifixo livido. E'um requintar de goso blasphemo, que mescla o sacrilgio convulso do amor, o beijo lascivo embriaguez da crena. Era era Roma. Uma noite a lua ia bella como vai sempre ella no vero por aquelle co- morno ; e o frescor das guas se exhalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bella.Eu passeava a ss pela ponte d e . . . As luzes se apa -Abaixou-se junto delle, depoz a lmpada no cho. O lume bao da lanterna, dando nas roupas

82 delia, espalhava sombra sobro Johann. A fronte da mulher pendeu, e sua mo pousou na garganta dellp Um soluo rouco e suffocado offegou dahi. A desconhecida levantou-se. Tremia, e ao segurar na lanterna, resoou-lhe na mo um ferro. . .era um punhal.. . atirou-o ao cho. Viu que tinha as mos vermelhas - enxugou-as nos longos aabellos de Johann... Voltou a Arnold, sacudiu-o. Accorda e levanta-te-! Que maqueres ? Olha-me, no me conheces? Tu ! e no ura