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A Náutica do Atlântico Sul em Dissonância com a Narrativa de Caminha. Renato Pereira Brandão Lescon/ UFF [email protected] O Monte Pascoal na Narrativa do Descobrimento na Carta de Caminha. Do ponto de vista da náutica atlântica, a narrativa da Carta de Pero Vaz de Caminha apresenta o Descobrimento do Brasil como um simples incidente de cunho ocasional, ocorrido no trajeto da frota formada pelo total de treze embarcações que, partindo de Lisboa em nove de março de 1500, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, tinha como destino final a Índia. Depois de passar por Cabo Verde, as embarcações tomaram a direção oeste, a fim de evitar a zona de calmaria denominada “calmas tropicais”, situada em cerca da latitude de 4° N, (Cf. Guedes, 1988:35). Após então tomou a direção sul/sudoeste, apesar do Cabo da Boa Esperança ficar a sudeste. No dia 21 de abril, a tripulação inicialmente avistou vegetais flutuantes. No dia seguinte avistou pássaros e, no entardecer, o Monte Pascoal, elevação de aproximadamente 540 metros, situado a cerca de 35 km para o interior da Ponta Corumbau, no litoral do atual município de Itamaraju, Estado da Bahia. (...) quando segunda-feira amanheceu [do dia 23 de março], perdeu-se da frota Vasco de Ataíde, com sua nau, sem que houvesse tempo forte nem contrário, para poder acontecer. O Capitão fez suas diligências para o encontrar, numa e noutra parte; mas não apareceu mais. Então seguimos nosso caminho, por esse mar de longo até terça-feira de Oitava de Páscoa, que foram 21 de abriu, quando topamos alguns sinais de terra, sendo da dita ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas; os sinais eram: muita quantidade de ervas compridas, às quais os mareantes chamam de botelho; e, ainda, outras a que também chamam rabo d´asno. Na quarta seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-bucho e nesse dia, à hora de véspera, avistamos terra, a saber: Em primeiro lugar um monte grande, muito alto e redondo e outras serras baixas ao sul dele; e terra rasa, com grandes arvoredos, Ao mesmo monte alto pôs o Capitão o nome de Monte Pascoal; e à terra Terra de Vera Cruz.. (CAMINHA, 1982 [1500]: 12). Assim, avistado o Monte Pascoal, a frota se dirigiu para a terra, aportando junto à foz de um rio, onde foi feito o primeiro desembarque e rezado missa. Por ser local pouco seguro para a ancoragem, a frota seguiu o litoral em direção norte, a procura de local melhor

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Page 1: A Náutica do Atlântico Sul em Dissonância com a Narrativa de Caminha · 2019-10-28 · Caminha, teria sido feita de forma proposital e intencional “para reconhecer a terra suspeitada

A Náutica do Atlântico Sul em Dissonância com a Narrativa de Caminha.

Renato Pereira Brandão Lescon/ UFF

[email protected]

O Monte Pascoal na Narrativa do Descobrimento na Carta de Caminha.

Do ponto de vista da náutica atlântica, a narrativa da Carta de Pero Vaz de Caminha

apresenta o Descobrimento do Brasil como um simples incidente de cunho ocasional, ocorrido

no trajeto da frota formada pelo total de treze embarcações que, partindo de Lisboa em nove

de março de 1500, sob o comando de Pedro Álvares Cabral, tinha como destino final a Índia.

Depois de passar por Cabo Verde, as embarcações tomaram a direção oeste, a fim de evitar a

zona de calmaria denominada “calmas tropicais”, situada em cerca da latitude de 4° N, (Cf.

Guedes, 1988:35). Após então tomou a direção sul/sudoeste, apesar do Cabo da Boa

Esperança ficar a sudeste.

No dia 21 de abril, a tripulação inicialmente avistou vegetais flutuantes. No dia

seguinte avistou pássaros e, no entardecer, o Monte Pascoal, elevação de aproximadamente

540 metros, situado a cerca de 35 km para o interior da Ponta Corumbau, no litoral do atual

município de Itamaraju, Estado da Bahia.

(...) quando segunda-feira amanheceu [do dia 23 de março], perdeu-se da frota

Vasco de Ataíde, com sua nau, sem que houvesse tempo forte nem contrário, para poder acontecer. O Capitão fez suas diligências para o encontrar, numa e noutra

parte; mas não apareceu mais. Então seguimos nosso caminho, por esse mar de

longo até terça-feira de Oitava de Páscoa, que foram 21 de abriu, quando topamos

alguns sinais de terra, sendo da dita ilha, segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas; os sinais eram: muita quantidade de ervas compridas, às quais os

mareantes chamam de botelho; e, ainda, outras a que também chamam rabo d´asno.

Na quarta seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-bucho e nesse dia, à hora de véspera, avistamos terra, a saber: Em primeiro lugar um monte

grande, muito alto e redondo e outras serras baixas ao sul dele; e terra rasa, com

grandes arvoredos, Ao mesmo monte alto pôs o Capitão o nome de Monte Pascoal; e à terra – Terra de Vera Cruz.. (CAMINHA, 1982 [1500]: 12).

Assim, avistado o Monte Pascoal, a frota se dirigiu para a terra, aportando junto à foz

de um rio, onde foi feito o primeiro desembarque e rezado missa. Por ser local pouco seguro

para a ancoragem, a frota seguiu o litoral em direção norte, a procura de local melhor

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abrigado. Após percorrer cerca de 10 léguas, foi encontrado “um recife com um porto interno,

muito bom e muito seguro, com uma entrada bem larga” (Id.:15). Por suas características, o

local recebeu a denominação de Porto Seguro, sendo nele rezada uma nova missa. Logo após,

em 1° de maio, a frota retomou a viagem em direção ao Índico.

Considerando que a frota seguia na direção sul/sudoeste, o relato de Caminha nos faz

crer que o local onde teria ocorrido o primeiro desembarque estaria localizado a noroeste do

Monte Pascoal (lat. 16°53´45´´S, long. 39°24´30´´O). Acreditava-se, assim, que o mais

provável é que esse local seria junto à foz do Rio dos Frades (lat. 16°38´05´´S, long.

39°05´35´´O), situado no distrito de Trancoso, município de Porto Seguro. Contudo, Max

Justo Guedes, vice-almirante dedicado ao estudo da náutica dos descobrimentos, ao sobrevoar

a região próxima a Porto Seguro, observou a impossibilidade de visualização do Monte

Pascoal quando em aproximação na direção da foz do Rio dos Frades, ou seja, no rumo oeste

quarta a noroeste.

Em 1961, imaginei que, para alcançar a foz do Rio do Fadre (sic), segundo (?) ponto de fundeio, a armada houvesse feito a aproximação no rumo oeste quarta

a noroeste. Aquela altura, apenas uma vez havia eu navegado na região e meu

comandante muito relutara em aproximar-se de terra para que eu avistasse o

monte mais famoso e importante do Brasil. Algumas outras vezes estive na região, a ela chegando de avião, o que me impediu nova verificação. A grande

oportunidade surgiu em 1979 quando, para reconhecer e fotografar todo o litoral

brasileiro, entre o Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte, consegui helicóptero da Marinha. Com a aeronave voando na altura aproximada do cesto da gávea de

uma nau cabralina, efetuei múltiplas aproximações em rumos que, de quarta

(11° 15’) em quarta, cobriram todo o setor em que o Monte Pascoal era visto, desde sudoeste até noroeste. O resultado foi mais elucidativo que minha

expectativa: Só avistei o monte e as “serras mais baixas ao sul dele” da maneira

descrita por Caminha quando a aproximação se fez vindo exatamente de sueste!

(GUEDES, 1998:37)

Mais recentemente, constatou-se que a linha de visualização do Monte Pascoal, a

partir de uma embarcação situada ao largo da costa, se dava em aproximação da foz rio Cahy,

e não pela do rio dos Frades. Assim, a Barra do Cahy, localizada no município de Prado, no

extremo sul da Bahia, veio a receber o título “da primeira praia do Brasil” em 2017,

confirmando a pertinência da observação de Guedes, já que a Barra do Cahy (lat.

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17°00´45´´S, long. 39°10´20´´O) apesar de não por ele identificada ao sobrevoar essa região

costeira, implica realmente em aproximação vindo de sueste.

O que a princípio se apresenta como questão de importância menor, restrita à mera

preciosidade náutica, na verdade encerra uma complexa questão histórica. Segundo indica ao

relato de Caminha, o rumo de aproximação da costa estaria dentro do quadrante sudoeste, já

que, segundo nosso cálculo, o rumo direcionado para a foz do Rio dos Frades seria o de

52°30´SO, contudo, considerando que a visualização do Monte Pascoal teria se dado na linha

de visualização da Barra do Cahy, o rumo de aproximação, segundo ainda nosso cálculo, seria

de 63° 30`NO.

Por outro lado, o relato de Caminha informa que a armada só teria tomada a direção

norte somente depois de rezada a primeira missa na costa brasílica. Até então, o único

momento em que Cabral teria deixado de seguir a rota direcionada ao Índico foi quando da

passagem por Cabo Verde, ao sair a procura da nau desgarrada da frota de Vasco de Ataíde.

Ao constatar ser essa busca infrutífera, Caminha afirma que “seguimos nosso caminho, por

esse mar longo”.

Max J. Guedes (Id:37) considera que a inversão do rumo da frota, não registrada por

Caminha, teria sido feita de forma proposital e intencional “para reconhecer a terra suspeitada já em

Portugal e convenientemente situá-la para apoio na rota da Índia e não um encontro casual quando a

armada atravessava ao largo da costa”. Considera então que a sua observação vem consubstanciar a

teoria da intencionalidade do Descobrimento do Brasil, frente à teoria da casualidade.

Em nossa consideração, esse contexto nos coloca frente à seguinte questão:

Independente da pertinência da hipótese de Guedes, o que teria levado Pero Vaz de Caminha a

falsear informações a respeito do Descobrimento do Brasil, considerando que seu relato teria

sido redigido como informe fidedigno, de conhecimento reservado ao rei de Portugal, D.

Manuel I.

As Embarcações e as Condicionantes Ambientais na Navegação do Atlântico Sul.

Evidente que as fontes documentais disponíveis não permitem o esclarecimento de tão

complexa questão. Todavia, acreditamos que, ao considerar a narrativa da Carta de Caminha como

inserida na intrincada conjuntura da expansão náutica atlântica, por sua vez articulada na relação da

arquitetura naval com os condicionantes ambientais, seja possível aprofundar reflexões relativas à

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estratégia geopolítica que implicou na construção de uma narrativa onde o ficcional se mescla com o

real.

Sabemos que, mesmo com a queda de Constantinopla, o mercado europeu permaneceu

suprido de especiarias orientais pelo fluxo mercantil mediterrânico, onde no final do século

XV os mercadores venezianos tinham participação majoritária. Conectados à rota do Golfo

Pérsico e, principalmente, a do Mar Vermelho, encontravam em Alexandria, no Egito, o

principal entreposto de abastecimento das especiarias a serem revendidas nos mercados

ocidentais.

Devido a grande distância que separa Portugal da Índia, cerca de 10 vezes maior do

que a entre Veneza e Alexandria, acreditava-se ao longo do século XV que a expansão

ultramarina do pequeno reino ibérico estaria restrita ao ambiente atlântico, ou seja,

colonização das Ilhas Atlânticas e ao estabelecimento de feitorias ao longo da costa atlântica

da África setentrional.

Dentre estas, teve destaque a estabelecida na ilha de Arguim, na atual costa da Mauritânia,

atingida por Nuno Tristão em 1443. A partir dessa ilha foi possível estabelecer uma rota mercantil com

Tombucto, no atual Mali, principal centro mercantil de especiarias do Norte da África,

abastecida por caravanas berberes que, partindo do Sudão, atravessavam o Saara

transportando ouro e diversos produtos orientais. Assim, nautas e mercadores portugueses

estabeleceram uma rota marítima alternativa, em concorrência com a rota terrestre que abastecia

de especiarias a Península Ibérica diretamente a partir de Tombucto.

Para atender as necessidades da navegação atlântica, foi desenvolvida a caravela,

embarcação mais robusta do que as galeras venezianas, mas que, devido ao formato do casco

e das velas, era capaz de navegar em condições adversas.

(...) a caravela surge ligada às viagens de descobrimento nos início da

década de 1440 (...) As características que se lhe reconhecem são exactas:

navio ligeiro, casco afilado, bom veleiro, com velas latinas que

facilitavam a navegação à bolina [em zig-zag] e assim a progressão

“contra o vento”. Enfim, uma embarcação ideal para singrar por mares

desconhecidos e fazer reconhecimentos costeiros. (DOMINGUES, 2004:

244).

A caravela, ou caravela latina, distinguiu-se pela sua versatilidade,

evidenciada nas atividades marítimas destinadas a conhecer a geografia

do planeta. O pequeno calado, aliado a uma manobra simples e uma

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capacidade de carga adequada, constituiu fator decisivo para seu uso

intensivo e pioneiro pelos portugueses, a partir do século XV, nas viagens

de exploração das costas, ilhas e baixos desconhecidos do Atlântico

(RIBEIRO, 2013:153).

No reinado de Afonso V, a rede ultramarina foi estendida ao Golfo da Guiné, com a

fundação de uma feitoria, no atual Gana, onde o interesse maior não era por especiarias, mas

por ouro e escravos. D. João II, filho e sucessor de Afonso V, ao reforçar essa feitoria, aí

construiu uma fortaleza, em 1482, conhecida como Castelo São Jorge da Mina,

Devido o incremento de essa, já extensa, rede mercantil atlântica, integrada pelas Ilhas

Atlânticas, arquipélagos dos Açores, Madeira e Cabo Verde, e feitorias africanas, foi

necessário desenvolver um tipo diferenciado de embarcação, com maior capacidade de

transporte de carga do que as caravelas. Esse novo tipo, por ser impulsionado por grandes

velas retangulares, contraditoriamente conhecidas como velas redondas, recebeu a

denominação de navio redondo ou, como ficou mais conhecido, nau.

Ao acrescer a perspectiva de transporte de mercadorias volumosas, a

caravela estava definitivamente condenada para as travessias

transoceânicas. Tornou-se imperativo o uso de navios de alto bordo,

capazes de ultrapassar as limitações das pequenas caravelas latinas. (...)

Navios que tinham sido preparados para suprir as carências evidenciadas

pelas caravelas, quer na capacidade de transporte, tanto das vitualhas dos

tripulantes. (...) É [a nau] um navio de carga por excelência, destinado a

percorrer longas distâncias em rotas conhecidas (DOMINGUES, 2004:

247, 252).

O termo nau foi empregado pelos portugueses a partir do século XV para

designar os navios de alto bordo (...) Pela sua capacidade de carga, a nau

foi, prioritariamente, usada no comércio marítimo. (...) Em consequência,

o incremento do porte das naus trouxe consigo dificuldades acrescidas,

que se traduziram numa diminuição drástica da manobrabilidade e da

velocidade (RIBEIRO, 2013, 154-5).

Deste modo, a necessidade de acréscimo na capacidade de carga acarretou mudanças

estruturais que tornou a nau, em termos de navegabilidade, um tipo de embarcação

radicalmente diferenciada da caravela, por ser mais dependente de regimes de ventos

favoráveis. Ao mesmo tempo, enquanto a caravela, devido seu menor peso e calado, poderia

navegar por aguas menos profundas e vencer a força do empuxo de uma corrente contrária, o

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mesmo não ocorria em relação à nau. Deste modo, para que a nau pudesse vir a transportar

maior volume de carga, sua navegação ficou restrita às zonas oceânicas onde a conjuntura das

condições ambientais -ventos, profundidade e correntes marinhas- fosse favorável.

Assim, anterior ao estabelecimento de uma determinada rota por onde pudesse

transitar as naus, era necessário que a caravela explorasse a vastidão atlântica. A elas cabiam

identificar os espaços oceânicos e costeiros onde as condições ambientais possibilitavam o

trânsito da nau.

Como, no meado do século XV, se sabia que a costa ocidental africana ao sul do Golfo

da Guiné é percorrida por uma forte corrente que corre na direção sul-norte, denominada

Corrente de Benguela, acreditava-se, que a rede mercantil atlântica portuguesa teria esse golfo

como limite meridional. Contudo, D. João II, apesar de essa adversidade, determinou a

continuidade das explorações náuticas da costa africana. Em 1483, Diogo Cão chega à foz do

rio do Zaire, no reino do Congo. Em 1488 Bartolomeu Dias chega ao extremo meridional do

continente africano, ultrapassando o Cabo das Tormentas, renomeado por esse rei como Cabo

da Boa Esperança.

Em outubro de 1495, pouco mais de um ano após a assinatura do Tratado de

Tordesilhas, D. João II falece, sendo sucedido por D. Manuel, seu primo e cunhado. Em oito

de julho de 1497 partiu de Lisboa uma pequena frota composta de quatro embarcações sob o

comando de Vasco da Gama, com intuito de ultrapassar o Cabo da Boa Esperança e chegar à

Índia. Em setembro de 1499, duas das quatro embarcações, ainda sob o comando de Vasco da

Gama, conseguiram retornar a Lisboa, trazendo especiarias.

Há dúvidas se os navios da pequena frota de Vasco da Gama seriam naus ou ainda

caravelas. Acredita-se que já seriam naus “apesar da sua pequena tonelagem em termos do

que se tornaria regular durante a centúria seguinte” (DOMINGUES, 2004: 245). Deste modo,

apesar de Vasco da Gama retornar trazendo especiarias adquiridas diretamente na Índia, o

pequeno volume chegado ao porto de Lisboa não era suficiente para ameaçar a rede mercantil

itálica mediterrânica.

Certamente, esses mercadores acompanhavam preocupados a expansão ultramarina

atlântica portuguesa. Os de Veneza contavam com a ação do Conselho dos Dez, criado em

1319, que controlava uma rede voltada para “obtener información a través de um complejo

entramado de espias y agentes secretos disseminados por toda Europa”(MORENO, 2017:58) .

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Tinham, porém, igualmente conhecimento de que para a rota atlântica ser rentável,

dada a grande distância que separa Lisboa da Índia, cerca de 25 mil km, seria necessário que

os portugueses fizessem uso de avantajadas naus, bem maiores do que as embarcações

utilizadas por Vasco da Gama. Ao mesmo tempo, sabiam igualmente da existência da

Corrente de Benguela como impeditivo do trânsito regular das naus de tamanho necessário

para o estabelecimento da rota atlântica.

Esse é o contexto náutico e geopolítico em que antecede o Descobrimento do Brasil e

a redação da Carta de Caminha.

O Regime de Correntes Marinhas no Atlântico Sul e a Rota do Cabo.

Esse contexto veio a ser abalado com o retorno da frota de Cabral a Lisboa, em 1502.

As naus remanescentes traziam volumosas cargas contendo pimenta, gengibre, canela, noz

moscada, e outras especiarias, demonstrando que os portugueses conseguiriam fazer forte

concorrência com o complexo mercantil mediterrâneo, apesar da longa distância a ser vencida

pela rota do Atlântico Sul.

Era evidente que os pilotos que conduziram essas naus tinham o conhecimento de uma

rota alternativa de acesso ao Índico, que permitia evitar o fluxo contrário da Corrente de

Benguela.

Como o Descobrimento da Terra de Vera Cruz se deu quando do transito das naus por

essa nova rota, passou-se a acreditar que sua descoberta teria sido consequência da procura de

condições de ventos mais propícias para o impulso das pesadas naus. Realmente, todos os

roteiros náuticos preparados para a Carreira da Índia indicam que a rota em demanda do Cabo

da Boa Esperança deveria passar, necessariamente, junto à costa do Brasil, reproduzindo,

assim, a rota seguida pela frota de Cabral.

Diogo Afonso, em seu “Roteiro de Navegação de Lisboa para a Índia”, ao denominar a

manobra de acompanhamento da costa brasileira como “Volta do Brasil”, alerta sobre a

importância da abordagem correta do Cabo de Santo Agostinho.

Nesta volta do Brasil hás de trabalhar de te pores em altura de 8 graus e

dois terços, que está o Cabo de Santo Agostinho (...). Mas hás-de-saber

que nesta travessia do Cabo de Santo Agostinho, para o Brasil, correm

águas para as Antilhas e portanto não cures de fazer a volta, porque se a

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fizeres será retornar a caminho de Portugal. (AFONSO, [c. 1535]

1940:32).

Já o célebre navegador D. João de Castro, em seu manuscrito “Roteiro de Lisboa a

Goa”, destaca a importância do Cabo Frio como referência visual para essa navegação. Ao

tratar da “trauessa que há da costa do Brasil até o cabo da bõa esperança”, informa que “as

nossas naos se poem em altura do cabo frio, e começão por a proa no cabo de boa esperança,

fazendo a elle seu caminho (...)” (CASTRO, [1538] 1882:241).

Um dos mais ilustres navegadores de Espanha, Alonso de Santa Cruz, em sua obra

manuscrita Islario general de todas las islas del mundo veio a revelar que os portugueses

“procuran de venirse a meter sobre esta costa del Brasil y ponerse em altura de trynta e cinco

a quarenta grados para dispues, com los ayres frescos del pólo antártico, poder a su plazer

doblar el dicho cabo da Buena Esperança” (SANTA CRUZ, [c. 1540] 1918:545).

Por estes roteiros, é possível reproduzir a rota por onde transitavam as naus da

Carreira da Índia no Atlântico Sul e, portanto, necessariamente também Cabral navegou.

Vindo diretamente de Cabo Verde, passou a navegar próximo à costa brasileira a partir do

Cabo de Santo Agostinho. Após o Descobrimento do Brasil, permaneceu próximo à costa até

a altura de Cabo Frio. Prosseguiu seguindo ainda paralelo à costa, apesar de não mais tão

próximo, até a altura do Rio da Prata, para só então arribar na direção leste, a fim de

ultrapassar o Cabo da Boa Esperança.

Contudo, a necessidade de manobra tão complexa, como era a “Volta do Brasil”, não

se explica pela necessidade de melhor aproveitar o regime de vento no Atlântico sul. Por ser o

vento leste predominante na costa nordeste (Cf. GUEDES, 1998:34), não haveria impeditivo

para que, após a passagem da zona de calmaria, as naus procurassem navegar na direção

sudeste, melhor direcionadas ao Cabo da Boa Esperança.

Apesar de essa questão nunca ter sido apresentada em nenhum dos roteiros, veio a ser

respondida por Jaime Cortesão, ao demonstrar que as naus no Atlântico Sul, assim como no

Atlântico Norte, dependiam não exclusivamente dos ventos, mas do sincronismo entre ventos

e correntes marinhas.

Por esta rápida descrición del sistema de los ventos y corrientes se puede

comprender la importância que su conocimiento pude assumir em el

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estúdio de la Historia de los Descubrimientos. (...) Em efecto, debemos

tener presente que la navegación a vela, usada durante los siglos XV y

XVI en los viajes de descubrimiento, dependia enteramente de los ventos

o de éstos y de las corrientes conjuntamente (CORTESÃO, 1947:567-

568)

Deste modo, para que as pesadas naus sob o comando de Cabral, assim como todas as

outras subsequentes que vieram a transitar pela Rota do Cabo, pudessem chegar ao Índico foi

necessário que, inicialmente, utilizassem o impulso da Correte das Canárias para atingir o

arquipélago Cabo Verde. Tomando então a direção oeste, entraram no bojo da Corrente Sul

Equatorial que as impulsionaram na direção da porção extrema oriental da costa brasileiro. A

ultrapassagem do Cabo de Santo Agostinho, no atual Estado de Pernambuco, colocaram as

naus sob o impulso da Corrente do Brasil. No bojo dessa corrente seguiram próximas ao

litoral brasileiro até a latitude aproximada do estuário do Rio da Prata. Só então tomaram

rumo leste, em direção ao Cabo da Boa Esperança, impulsionadas agora pela Corrente das

Malvinas (Cf. IBGE, 2011:74).

Assim, o segredo maior de essa nova rota pelo Atlântico Sul, que conseguiu ser

preservado da ação dos informantes e espiões a serviço da rede de controladora do tráfico

mediterrânico, consistia no aproveitamento do empuxo do sistema de correntes marinhas

como impulsionador tão importante quanto o da ação do vento. Acreditamos, inclusive, que

nos caso do percurso das naus de grande tonelagem pela costa do Brasil, a força da Corrente

do Brasil exercia uma ação impulsionadora que sobressaia como de importância maior do que

a ação do vento.

Em função de esse sincronismo ambiental, a frota de Cabral, formada principalmente

por grandes naus, “similar que farão subsequente e regularmente a Carreira da Índia”

(DOMINGUES, 2004: 252) pode então retornar à Lisboa em 1502.

Há duas particularidades da “Volta do Brasil” que elimina qualquer possibilidade de

que esse conjunto de manobras tenha sido intuitivamente descoberto pelos pilotos que

determinavam o rumo a ser seguido pela frota de Cabral no Atlântico Sul.

Por um lado, a necessidade do conhecimento prévio do sincronismo entre a Corrente

do Brasil e a Corrente das Malvinas exclui a possibilidade da descoberta fortuita do empuxo

favorável da corrente que flui ao longo da costa brasileira, já que essa força impulsionadora

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afastaria, em direção ocidental, as naus da direção do Cabo da Boa Esperança, aumentando a

distância longitudinal em relação à África Austral, distância que só seria vencida quando as

naus estivessem impulsionadas pela Corrente das Malvinas.

De outro, sabemos que, para os pilotos, o momento crítico da viagem estava na

passagem pelo Cabo de Santo Agostinho. Por ser a força impulsionadora da Corrente Norte

Brasileira, ramo que toma a direção norte, maior do que a força da Corrente do Brasil era

preciso que o piloto iniciasse a abordagem de esta última corrente, tomando a direção

sudoeste, antes da visualização do Cabo de São Roque, ponto onde as correntes bifurcam.

Caso assim não ocorresse, a nau acabaria por ser impulsionada pela Corrente Norte Brasileira

e, em seguida, Corrente das Guianas, que a levaria para a região das Antilhas, obrigando,

consequentemente, o retorno a Portugal, conforme é advertido no Roteiro de Gaspar Ferreira

Reimão:”Importa muito nesta volta (do Brasil) e derrota terse conta com a agulha a proa da

nao e esteira dela pera poderem levar o ponto certo pois tanto importa nesta volta não ver a

costa do Brasil, e tornar arribar a Portugal que nunca serei bem recebido (...) (REIMÃO,

1612:3).

Como exemplos da dificuldade da arribada à costa brasileira, temos os casos onde dois

governadores gerais, nomeados para servir no Brasil durante o século XVI, se viram

impossibilitados de assumir seus cargos por não conseguirem os pilotos sucesso nessa

manobra. Um deles foi Luís de Vasconcelos, nomeado em 1570 em substituição a Mem de Sá,

que acabou por ser assassinado por corsários franceses, em uma segunda tentativa de

abordagem da Corrente do Brasil. O outro foi Francisco Giraldes, nomeado em 1588, que

retornou a Portugal, após frustrada tentativa de chegar à cidade de Salvador, sede do Governo-

Geral, por mesmo motivo.

Como ainda não era possível o cálculo da longitude a bordo, o que só viria a

ocorrer no meado do século XVIII, (Cf. BRANDÃO, 2012) era necessário que o piloto fizesse

a aproximação da costa brasileira por navegação de latitude direcionada ao Cabo de São

Roque (lat. 5°29´S, long. 35°15´40´´O), estimando a distância necessária a fim de iniciar a

manobra de abordagem da Corrente do Brasil, por arribada junto ao Cabo de Santo Agostinho

(lat. 8° 21´30´´S, long. 34° 55´30´´O).

Essa manobra só poderia a vir ser realizada quando fosse do conhecimento dos

pilotos das naus, tanto os da frota cabralina quanto os da Carreira da Índia, a latitude correta

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do Cabo de São Roque, o que implica em considerar que as observações astronômicas para o

cálculo de essa coordenada geográfica foram realizadas antecipadamente à viagem da armada

de Cabral.

O Real e Ficcional na Narrativa da Navegação Descobridora na Carta de Caminha.

Essa constatação torna mais complexa ainda a questão relativa à Carta de Caminha, já

que, se Portugal não só já tinha o conhecimento da Terra de Vera Cruz, como navegadores

portugueses já teriam estudado os regimes de ventos e correntes marinhas que atuavam no

Atlântico sul ocidental, qual a razão de não ter a Coroa de Portugal assumido sua posse

anteriormente?

Em nosso entendimento, é preciso considerar, antes de tudo, que o sucesso obtido pelo

empreendimento marítimo capitaneado por Cabral não trazia a garantia da permanência futura

do trato mercantil diretamente com a Índia, e menos ainda da possibilidade de extensão da

expansão ultramarina portuguesa até o Extremo Oriente. Evidente que essa ação mercantil

ibero atlântica iria resultar em reação por parte do complexo mercantil mediterrâneo, em

especial de Veneza, centralizadora de um vasto complexo imperial mercantil que tinha o

controle das cidades de Vicenza, Trieste, Trento, Aquiléia e Pádua, e uma rede de colônias que

se estendia não só ao Mediterrâneo oriental, como na Grécia e em Chipre, mas também aos

confins do Mar Negro, como em Caffa.

Assim, os anos iniciais da primeira década do século XVI fez de Lisboa um centro de

intensa ação de espionagem, principalmente por parte de Veneza. Dado ao fato de que a

viagem de a frota de Cabral ter envolvido um grande número de tripulantes, e que a

visualização do Cabo de Santo Agostinho era uma referência necessária para a confirmação

do sucesso da abordagem da Corrente do Brasil, sendo o Cabo Frio outra referência visual

também necessária, não haveria como encobrir a existência de uma “Terra Nova” situada na

futura Rota do Cabo. Por outro lado, nesse momento era ainda importante que permanecesse

acobertada a importância estratégica da linha costeira por onde flui a Corrente do Brasil, dada

a impossibilidade de efetivação da posse e defesa da costa “descoberta”, por estar a maior

parte do, naturalmente reduzido, contingente humano de Portugal direcionado à expansão

ultramarina no Oriente.

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Como seria de esperar, a reação de Veneza se deu em 1509, com a mobilização de uma

grande esquadra aliada formada por embarcações do Egito e Turquia, com a finalidade de

expulsar os portugueses do Índico. Contudo, a esquadra turco-egípcia foi derrotada pela frota

portuguesa sob o comando de Francisco de Almeida, primeiro Vice-Rei das Índias, na

“Batalha de Diu” (Cf.; NASCIMENTO e TESSALENO, 2008; BRANDÃO, 2012:61-65).

Somente após esse embate naval, Portugal pode assegurar a permanência do fluxo mercantil

de especiarias orientais pelo Atlântico sul.

No começo do reinado de D. João III o domínio de Portugal no Oceano

Índico e no Atlântico Sul estava consolidado. Isto infere-se perfeitamente de

um diálogo que teve lugar em Valhadolid no fim de 1522 entre o

embaixador de Veneza, Gaspar Contarini, e Sebastião Cabot (...) No que

Contarini e Cabot estavam em completo acordo era que nada se podia fazer

para disputar a Portugal o domínio dos dois oceanos. Mesmo que o Turco

permitisse a Veneza construir os seus navios no Mar Roxo – onde as

madeiras ficavam à mão- “as fortalezas e navios de Portugal podiam

impedir o comércio”. (WELCH, 1955:30)

Essa conjuntura nos leva a considerar a Carta de Caminha não como fonte documental

de natureza descritiva e reservada, mas sim como intencionalmente construída para atender a

estratégia da divulgação, ainda que de forma indireta, da informação de que a frota de Cabral

teria descoberto de forma ocasional e fortuita uma extensão territorial ainda desconhecida do

Novo Mundo. Por essa perspectiva, a “Terra Nova” teria importância menor na construção

geopolítica global, por ser mero ponto de passagem a servir, quando muito, para aguada e

abrigo temporário, sem, contudo, revelar a importância estratégica dessa costa que, devido à

ação impulsionadora da Corrente do Brasil, sua posse efetiva se apresentava como

imprescindível para o controle exclusivo da rota atlântica da Carrera da Índia.

Considerações Finais

Em relação ao aqui demonstrado quanto à impossibilidade de ter havido um

“Descobrimento do Brasil”, intencional ou ocasional, por parte de Cabral, já que a rota

percorrida pela frota sob seu comando só pode ter sido traçada por pilotos que tinham o

conhecimento prévio dos regimes de ventos e correntes que atuavam não só na costa do

Brasil, como também na costa da atual Argentina, é imprescindível registrar que o célebre

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almirante de Portugal Gago Coutinho, que fez, junto com Sacadura Cabral, a primeira

travessia área do Atlântico Sul em 1922, mesmo ao considerar unicamente os regimes de

ventos, concluiu que teria impossível, a partir de uma única viagem, tanto Vasco da Gama ter

descoberto o “Caminho para as Índias”, como Pedro Álvares Cabral ter descoberto o Brasil.

Se referindo ao feito de Cabral, o célebre navegador considera que “tanto a Terra [o Brasil]

como o vento, já ambos haviam sido estudados, em várias épocas do ano, antes de 1497”.

(COUTINHO, 1969:114-5).

Em relação às correntes marinhas, ressalta o fato de, apesar do prestígio de Jaime

Cortesão, a historiografia náutica relativa à expansão ultramarina atlântica portuguesa, em

geral, ser pouca atenta para essa questão, em contraponto à historiografia hispânica.

Pierre Chaunu (1980: 207), ao tratar das rotas marítimas atlânticas nos séculos XVI e

XVII, diz que “entre a Península Ibérica e a América, os navios descreviam um círculo

imutável” e que aqueles “que procuraram afastar-se dele morreram”, já que na travessia do

Atlântico “o mapa dos ventos e das correntes mostra a sua necessidade”. Segundo Mendel L.

Peterson (1972:23), “Em los últimos viajes de Cólon, los españoles habian observado que las

corrientes marinas y los ventos del Atlântico norte seguian um curso similar al de las agujas

de um reloj”. Assim, do mesmo modo que no Atlântico norte, no Atlântico Sul também a

sintonia entre ventos e correntes funciona de forma similar aos ponteiros do relógio.

Em trabalho anterior, levando consideração as contradições referentes às informações

de natureza etnográfica presentes na Carta de Caminha, observamos que a qualidade literária

nela expressa nos faz crer que seu autor não seria Caminha, mero escrivão designado para a

feitoria de Calicute, “mas sim um letrado a serviço da Coroa, que a teria redigido em

Portugal” como um documento restrito ao rei, porém de intencional acesso a agentes

estrangeiros, “com intuito de divulgar a versão da descoberta ocasional de uma nova terra

situada no Caminho das Índias” (Cf. BRANDÃO, 2018).

Ao estender essa consideração às informações de cunho náutico presentes na Carta,

podemos observar que, além de letrado, possuía conhecimento muito preciso das condições de

navegabilidade da costa brasileira, o que nos faz suspeitar que sua construção textual tivesse

como objetivo de induzir a qualquer navegante alheio à Coroa ao insucesso, caso tentasse

disputar a posse da terra descoberta.

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Levando-se em conta que possibilidade de visualização do Monte Pascoal só se dava

após sua ultrapassagem no sentido sul, próximo então estariam esse nauta, ao visualizar esse

ponto referencial, em soçobrar no parcel dos Abrolhos que, mesmo após bem conhecido e

cartografado, permaneceu responsável por diversos naufrágios. Nesse sentido, caso Cabral

tivesse realmente Descoberto o Brasil, por ainda desconhecer os Abrolhos, não haveria como

ultrapassar com todas as suas embarcações, na maior parte de grande tonelagem e calado, essa

barreira natural.

Caso ainda procurasse aportar em Porto Seguro, é preciso observar que essa enseada

era também cercada de traiçoeiros baixios e arrecifes. John Russel-Wood (2014:127) ao

identificar os diversos núcleos urbanos, vilas e cidades, formadas na costa brasileira nos dois

primeiros séculos, originários dos primeiros portos estabelecidos em nosso litoral, citas

diversos outros, como Olinda (1537), Salvador (1549), Rio de Janeiro (1565), Santos (1532),

Vitória (1535), São Luís (1612), Belém (1616), Paranaguá (1616), Fortaleza (1699), porém,

em momento algum, Porto Seguro. A razão é por que esse, mesmo sendo sua vila sede da

capitania de mesmo nome, sempre foi um porto de pouca expressão, por ser extremamente

perigosa a atracação de embarcações de maior calado devido aos arrecifes que formam seu

estreito canal, muito diverso do descrito na Carta, onde consta que teria “uma entrada bem

larga”.

Assim, o relacionar das questões de cunho náutico com as já apontadas de cunho etnográfico,

onde observamos que a região costeira ao entorno de Porto Seguro estava ocupado pelo conjunto tribal

Tupiniquim, extremamente aguerrido e inicialmente hostil à presença de portugueses, em nada

assemelhado ao nativo descrito na Carta, nos faz crer que, se de um lado não haveria como

Cabral ocultar aos olhos da tripulação a passagem pela costa brasílica, o que implicava na

necessidade da encenação do “Descobrimento da Terra de Vera Cruz”, por outro acreditamos

que a solenidade da formalização da posse tenha ocorrido, porém, em outro local costeiro,

onde seria seguro a ancoragem das naus, ocupado, não por Tupiniquim, mas por outro grupo

tribal Tupi-guarani, com cujos nativos tinha sido já anteriormente estabelecido contatado

amistoso. Somente assim teria sido possível implantar o marco real, talhar e erigir uma grande

cruz e celebrar o ofício religioso, conforme expresso na Carta de Caminha.

Consideramos, por fim, que esse olhar interativo sobre a narrativa da Carta de

Caminha nos auxilia em melhor entender aspectos fundamentais da inserção do Brasil na

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geopolítica de expansão ultramarina portuguesa, como a importância do projeto de cooptação

da força guerreira nativa na manutenção do fluxo náutico para o Oriente (Cf. BRANDÃO,

1993:719), assim como melhor da razão da divisão administrativa bipartida adotada pela

Coroa, ao separar o Estado do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará. Enquanto o primeiro

mantinha relações; mercantis, políticas, étnicas e culturais; não só com a África central e

meridional, mais também com Oriente e com o Rio da Prata hispânico, mais próximas do que

com a própria Metrópole, o segundo se conectava não só de forma mais próxima com o

Reino, mas também com a África setentrional e com o Caribe hispânico.

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