a pedagogia de mÈre poux: disciplina e vigilÂncia premissas da igreja do final no século xix e...

12
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 76 A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA Ana Cristina Pederiva 1 Maria Aparecida Arruda 2 Introdução Desde meados do século XIX observa-se o ingresso das congregações católicas, sobretudo as femininas, no cenário educacional brasileiro, as quais se concentravam principalmente nas províncias/estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Exemplos destas iniciativas podem ser constatados na criação dos Colégios Providência, em Mariana, o Nossa Senhora das Dores, em Diamantina e o Colégio Nossa Senhora das Dores, em São João del Rei, fundados e organizados pelas vicentinas e o Colégio dos Santos Anjos, em Varginha, fundado e organizado pela Congregação Santos Anjos. Nesses casos, os quatro foram fundados em Minas Gerais, voltados para a formação feminina, cuja intencionalidade foi fortalecer o catolicismo em solo mineiro, já identificado como terra de gente que se diz “modesta e ordeira”, (ARRUDA, 2011), os quais passaram a utilizar as mulheres como instrumento de expansão desse discurso. Embora o foco destas instituições fosse atuar em associações de caridade (assistência aos doentes, recolher e cuidar de crianças órfãs, assistência aos presos e aos idosos, aos refugiados, prestar assistência aos feridos de guerra...), havia também o interesse em “cuidar da educação espiritual e moral das futuras mães de família” 3 . Muitas destas congregações se instalaram no Brasil, em meio ao movimento de expansão das atividades assistenciais e sociais da Igreja Católica no século XIX, tendo como propósito desenvolver ações pastorais e educacionais. Grande parte destas congregações são de procedência francesa e o estudo delas ajudam a entender a transferência de modelos escolares direcionado ao público feminino 1 Mestre em Educação em Educação pela Universidade Federal de São João del Rey. Professora da Escola Estadual Irmão Mário Esdras. E-Mail: <[email protected]>. 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del Rey. E-Mail: <[email protected]>. 3 Faz parte do registro de criação do Colégio Nossa Senhora das Dores em São João del Rei, Minas Gerais, fundado em 1808. Entendemos que esses pressupostos estejam “relacionados não só a um projeto pedagógico específico, mas vinculados a um projeto de educação mais amplo, sustentados nas obras de assistência e amparo aos necessitados”, Maiores detalhes cf. ARRUDA, M A, 2011.

Upload: hathu

Post on 21-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 76

A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA

Ana Cristina Pederiva1

Maria Aparecida Arruda2

Introdução

Desde meados do século XIX observa-se o ingresso das congregações católicas,

sobretudo as femininas, no cenário educacional brasileiro, as quais se concentravam

principalmente nas províncias/estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Exemplos destas iniciativas podem ser constatados na criação dos Colégios Providência, em

Mariana, o Nossa Senhora das Dores, em Diamantina e o Colégio Nossa Senhora das Dores,

em São João del Rei, fundados e organizados pelas vicentinas e o Colégio dos Santos Anjos,

em Varginha, fundado e organizado pela Congregação Santos Anjos. Nesses casos, os quatro

foram fundados em Minas Gerais, voltados para a formação feminina, cuja intencionalidade

foi fortalecer o catolicismo em solo mineiro, já identificado como terra de gente que se diz

“modesta e ordeira”, (ARRUDA, 2011), os quais passaram a utilizar as mulheres como

instrumento de expansão desse discurso.

Embora o foco destas instituições fosse atuar em associações de caridade (assistência

aos doentes, recolher e cuidar de crianças órfãs, assistência aos presos e aos idosos, aos

refugiados, prestar assistência aos feridos de guerra...), havia também o interesse em “cuidar

da educação espiritual e moral das futuras mães de família”3. Muitas destas congregações se

instalaram no Brasil, em meio ao movimento de expansão das atividades assistenciais e

sociais da Igreja Católica no século XIX, tendo como propósito desenvolver ações pastorais e

educacionais. Grande parte destas congregações são de procedência francesa e o estudo delas

ajudam a entender a transferência de modelos escolares direcionado ao público feminino

1 Mestre em Educação em Educação pela Universidade Federal de São João del Rey. Professora da Escola Estadual Irmão Mário Esdras. E-Mail: <[email protected]>.

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta da Universidade Federal de São João del Rey. E-Mail: <[email protected]>.

3 Faz parte do registro de criação do Colégio Nossa Senhora das Dores em São João del Rei, Minas Gerais, fundado em 1808. Entendemos que esses pressupostos estejam “relacionados não só a um projeto pedagógico específico, mas vinculados a um projeto de educação mais amplo, sustentados nas obras de assistência e amparo aos necessitados”, Maiores detalhes cf. ARRUDA, M A, 2011.

Page 2: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 77

aqui no Brasil no início do século XX. Há que se observar as ações destas congregações,

demonstrando a importância destas ações em que se cruzam questões religiosas, políticas e

escolares. Vale lembrar que na França, a partir de 1904, as congregações ficaram proibidas de

lecionar como parte de medidas anticlericais instalada naquele país no início do século XX

(ROGERS, 2014).

A princípio, nem todas tinham condições para fundar os colégios, mas contavam com

experiências advindas de atuações em Externatos e Pensionatos. Tais condições dependiam

principalmente da posição dessas congregações no interior da Igreja, do contexto e das

alianças que logravam construir no país, por quem eram apoiadas ou tuteladas. Enquanto isso,

muitas delas dedicavam-se aos cuidados com doentes, abriam pensionatos e até mesmo

ofereciam cursos como os de filosofia, francês, desenho, piano e outros, para moças no

interior destes pensionatos.

Nas premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por

mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja, temas como virtudes e educação da mocidade

estiveram presentes nos discursos em que se buscavam uma “verdade” por meio da conversão

e do exercício da vida cristã. Sendo assim, as congregações femininas católicas comungavam

do interesse em oferecer fundamentos à formação da alma e ao perfeito desenvolvimento do

espírito. Para tanto, os mecanismos educacionais incidiam diretamente na constituição do

caráter, afastando os indivíduos de comportamentos pecaminosos buscando cultivar a

bondade cristã. Formava-se assim o caráter do bom cristão e, consequentemente, do bom

cidadão, perfazendo-se o quadro ideal almejado tanto pela Igreja quanto pelo Estado. Neste

sentido, a doutrina católica, disseminada e instruída no interior das congregações, não deveria

ser vista apenas como uma doutrina religiosa, mas também como a doutrina do Estado, na

medida em que poderia fundar e legitimar sua autoridade e ajudá-lo a recuperar,

principalmente entre a população mais pobre, valores supostamente perdidos.

Em meio à expansão dos projetos educacionais das congregações católicas, destaca-se o

impulsionamento à educação feminina, tanto pelo Estado quanto pela Igreja. Analisando o

crescimento da participação feminina no magistério no final do século XIX e início do XX, é

possível encontrar dados relevantes acerca deste crescimento passando, por exemplo, de 38,6

%, em 1881, para 75,1%, em 1913, configurando um quadro em que favorece as condições de

possibilidade da feminização do magistério em solo mineiro e no Brasil. Os dados

Page 3: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 78

demonstram igualmente que o aumento pode estar diretamente relacionado ao aumento do

número de alunas matriculadas nas escolas; afinal, pela legislação, apenas as mulheres

poderiam dar aulas para as meninas4.

Neste mesmo período, recorrendo a dados estatísticos, também é possível afirmar que

houve um crescimento na instalação de congregações religiosas no Brasil de procedência de

vários países, mas sobretudo, francesas (ARRUDA, 2011). Segundo Serbin (2008), o aumento

das freiras que se estabeleceram no Brasil de 1880 a 1930 foi considerável. Neste período,

foram instaladas 96 ordens femininas e o número total de religiosas saltou de apenas 286 em

1872 para 8826 em 19355.

O impulsionamento da educação feminina se dava por meio da profissionalização do

magistério, em que os/as dirigentes da congregação procuravam estabelecer e legitimar

dispositivos de autorregulação e reprodução, desenvolvendo mecanismos que objetivavam

preservar moralmente as alunas, bem como cuidar em mantê-las ao abrigo dos desvios de

conduta que “o excesso de instrução pudesse possibilitar”. Afinal, a educação no interior das

congregações católicas tinha de ser domesticadora, para que não transcendesse os limites

impostos socialmente. O catolicismo se fortalecia por meio da educação feminina, como

instrumento de expansão dos discursos que buscavam a “verdade” por meio da conversão e do

exercício da vida cristã.

Visando uma compreensão mais apurada dos processos educativos na formação das

mulheres em Minas Gerais, o presente trabalho direciona seus olhares para a proposta de

ensino de uma religiosa, fundadora do Congregação dos Santos Anjos, Madre Maria São

Miguel e seu interesse pela educação e formação de meninas jovens, sobretudo a educação de

religiosas e professoras. Como fonte de pesquisa, utilizamos um livro publicado em 1989 pela

Casa Generalícia da Congregação dos Santos Anjos, intitulado A fundadora da Congregação

dos Santos Anjos, que aborda a história da fundação da congregação e os princípios

pedagógicos estabelecidos na filosofia da religiosa. No livro encontramos pistas, sinais e

signos que, observados, descritos e analisados, permitiram ressignificar aspectos da pedagogia

construída e implementada pela Madre Maria São Miguel, que passou a ser conhecida como

Mère Poux.

4 Maiores detalhes sobre esta expansão e atuação das congregações religiosas no Brasil, cf. Arruda, M. A, 2011. 5 Para maiores esclarecimentos ver Serbin, M. (2008, p. 95-96).

Page 4: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 79

A Congregação das Irmãs dos Santos Anjos: história, desdobramentos

A Congregação das Irmãs dos Santos Anjos6 foi fundada na França por volta dos anos

de 1820 estando à frente desta organização a Madre Maria São Miguel. Conforme consta no

histórico de sua criação, a CSA “surgiu como resposta a um apelo de Deus” e “pelas obras que

respondiam aos apelos da Igreja de seu tempo”7. Aprofundando na análise observamos o

envolvimento da congregação em ações tanto caritativas quanto educacionais. Mas foi

sobretudo, nas ações educacionais que a congregação se destacou. A maior preocupação da

Madre Maria São Miguel, segundo a fonte analisada recaía sobre a “ignorância intelectual e

moral da juventude” em consonância com os princípios estabelecidos pela fundadora da

congregação. Segundo Mère Poux,

a finalidade da Obra é a dedicação à Educação Cristã da juventude conformando-se aos progressos da época, às posições sociais das famílias, às necessidades das localidades, às vocações particulares e conhecidas dos alunos. A dedicação à Educação é o caráter distintivo, a alma, a vida, a felicidade dos Santos Anjos (Madre Maria São Miguel, site http://www.congregacaosantosanjos.com.br).

Como se pode observar, trata-se de uma concepção de educação mais ampla, concebida

no interior da Igreja Católica, que deveria ser disseminada pelas congregações cujo objetivo

era expandir a fé católica. Para Foucault, é possível inferir que as congregações católicas

confessionais procediam a favor de uma ação biopolítica, no sentido de estabelecer normas

de comportamento que direcionavam as ações das moças que cursavam o magistério, e

consequentemente, influir no disciplinamento da população, assim como ao imprimir noções

de moralidade e prática de si.

A esse respeito vale ressaltar a força da iniciativa particular em termos educacionais e

sua íntima relação com o poder público constituído que, ao aliar as forças política, cultural,

econômica e social, buscavam construir uma sociedade ajustada aos princípios cristãos, na

formação do caráter, da alma, da vida, mas sobretudo de um corpo disciplinado, dócil,

higienizado o que levaria a nação, segundo essa lógica, ao progresso e à civilidade.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é que a congregação representava a extensão

do catolicismo como centro irradiador na vida cotidiana e dispositivo na formação das

mulheres, preceituadas pela doutrina cristã. Ao mesmo tempo, além da presente doutrina

6 Ao longo do trabalho será utilizada a sigla CSA para se referir à Congregação dos Santos Anjos. 7 Conferir sítio http://www.congregacaosantosanjos.com.br, acesso em: 28/03/2017.

Page 5: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 80

catolicista, a Congregação Santos Anjos reforçava os discursos de cunho higienista8 e

nacionalista, os quais são responsáveis por criar meios de efetivação ao progresso9 e a

civilização. Para Foucault (1999), tais discursos produzem mecanismos de poder e

disciplinamento – vigilância e controle que, mediante o acesso ao saber sistematizado,

disciplina corpos e homogeiniza condutas, com base em um saber-verdade. Desta forma, o

presente trabalho alude à tentativa de discutir a produção de sentido, saber e verdade por

meio da instalação da CSA e Pedagogia de Mère Poux, como tecnologia pensada para

interiorizar valores, comportamentos, opiniões e modelar uma determinada fração do

público feminino.

A pedagogia de MèrePoux: mulher culta e pedagoga

A fundadora da Congregação Santos Anjos, Mère Poux10

(Figura 1), nasceu na França

no ano de 1797, na cidade de Planches em Montagne. Sua procedência é de uma família rica e

numerosa. Seu envolvimento com a educação começa muito cedo, ainda em sua adolescência.

Primeiro, começa a instruir como preceptora em um castelo, depois mantendo uma escola

em Poligny11

, logo que foi diplomada. As inquietações sobre a vida religiosa seduziam Mère

Poux, que já rezava e se obrigava às práticas de mortificação. Logo, Mère inicia suas

atividades como “aspirante” na Congregação do Espírito Santo, mas é apenas após o ano de

1830 que seria fundado o convento dos Santos Anjos, para que Mère pudesse oficialmente

iniciar suas atividades como religiosa.

8 As sucessivas ondas de epidemias levaram os médicos a uma reflexão sobre as razões da sua ocorrência, dando origem a uma corrente de pensamento conhecida como higienismo, que via o espaço urbano como um grande campo patológico merecedor de estudos e intervenções, tanto sob o seu aspecto físico quanto moral.

9 As noções de progresso e civilidade implicam numa mudança de atitude do homem frente ao mundo e frente a si mesmo, que permitem compreender uma época e um espaço específico.

10 Nome de nascença de MèrePoux era Barbe-Elise Poux. No Brasil, é conhecida com Madre Maria São Miguel. Neste artigo será utilizado seu nome mais usual encontrado nos arquivos oriundos da França, o nome MèrePoux.

11 Na escola de Poligny,MèrePoux dedicava-se a educação das meninas de classe abastada, e sua irmã, que por ora já havia iniciado suas atividades como noviça na Congregação do Espírito Santo, dedicava-se às crianças. Também havia um setor dedicado aos doentes, o qual contava com o apoio da senhora Poux, mãe de Marie. A senhora Poux havia enviuvado recentemente.

Page 6: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 81

Figura 1: Madre Maria São Miguel, nome de batismo: Bárbara Elisa Poux Fonte: https://www.google.com.br

Enquanto mentora da Congregação dos Santos Anjos, Mère zelava pela escolha das

religiosas. Entre as exigências, destaca-se: “ter nascido de família honesta, ter boa educação,

reputação intacta, exterior decente, saúde suficiente, retidão de caráter, bom senso,

temperamento dócil e maleável, conhecimentos e talentos...” (LADAME, 1989, p.285). Ou

seja, um conjunto de preceitos que tem como base um princípio moral calcado na

manutenção dos bons costumes, representados em valores éticos e cristãos. Princípios esses

que deveriam ser estendidos a toda a sociedade.

As exigências às qualidades das futuras religiosas preconizam os princípios pedagógicos

que norteiam a formação das moças, enredados pelos cuidados com a saúde, a formação do

espírito, disciplina e vigilância e estímulo ao trabalho. Estes ensinamentos de cunho moral

atuam como dispositivo que transmite concepções disciplinares à formação do caráter das

jovens moças. Assim, a educação se apresenta aliada à caridade, aos bons exemplos e às

noções de saúde e trabalho, tornando-se o principal meio para regenerar a população.

Rigorosa em seus preceitos, Mère Poux era clara e objetiva ao dar orientações às outras

religiosas, sobre como proceder com os cuidados da saúde das moças em regime de internato

ou externato:

Lembrem-se bem que, aos olhos e aos corações das famílias, a saúde está no primeiro plano de responsabilidade. Assim, tenham um coração de mãe que

Page 7: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 82

prevê e previne os menores males e é atento a tudo que se refere ao físico das alunas. O físico tem uma relação com a moral e exerce sobre ela uma grande influência. Que a alimentação seja bem preparada! Não forcem as alunas a tomarem alimentos contra os quais elas tenham uma repulsa natural. Se essa repulsa vem do capricho, contornem a dificuldade e digam: por tão pouco! (LADAME, 1989, p.392).

As noções de higienismo encontram nas Congregações Católicas um dispositivo para

ajudar a erradicar as doenças e transformar os habitantes em uma população forte, instruída

e, principalmente, apta para o trabalho. No caso das jovens alunas do magistério, torná-las

aptas ao trabalho significa perpetuar os ideais higienistas, uma vez que estas irão lecionar

para as crianças e desta forma devem aprender a difundir as instruções de comportamento

que deveriam ser aplicadas a si, mas que também se estenderia a toda sociedade, para além

dos muros da escola. Proporcionar a essas estudantes, por intermédio da escola, as formas

necessárias de convívio em sociedade se tornou uma estimada preocupação do Estado. A este

respeito, Foucault (1990) infere:

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política (p.80).

A biopolítica engloba as relações de saber e poder presentes no modo como o Estado se

encarrega tanto da saúde quanto da aquisição dos hábitos de higiene da população. Ao

mesmo tempo, possibilita que a medicina se institucionalize como um dispositivo

educacional, tornando-se propagadora do saber médico-científico nos mais diversos espaços

sociais, principalmente na escola (CARVALHO, 2012). Percebe-se que esses discursos,

pronunciados por autoridades oriundas de instituições médicas e educativas, possuem efeitos

de verdade que agem na normalização dos comportamentos considerados adequados e

normais na sociedade. Frazão (2012) aponta que na relação entre mulher e higienismo,

percebe-se um movimento que visa basicamente à preparação – quando não a intervenção

visando o socorro – para a saúde física e moral e a higiene de todos os indivíduos, para o

convívio em uma sociedade civilizada. Analisando as ações da as ações da Congregação

Santos Anjos, assim como de outras congregações femininas, esse aspecto foi amplamente

explorado. As mulheres pareciam ter papel primordial, tendo em vista sua relação com a

infância de dar vida, alimento e educação. Cabia então ajustar as mulheres a essa função,

estabelecendo um padrão de saúde e de beleza femininas. Portanto, as instruções e o

disciplinamento para a saúde propagada às jovens moças que cursavam o magistério vinham

ao encontro do controle biopolítico exercido pelo Estado.

Page 8: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 83

As ações da biopolítica também se estendiam de outras maneiras no interior da

Congregação dos Santos Anjos. Havia total zelo quanto ao ensino dos pormenores da língua

portuguesa, e principalmente, demasiado pudor e vigilância para que palavras de baixo calão

não fossem proferidas, assim como palavras que atentassem à moral. Mère Poux

recomendava às religiosas:

Tenham o zelo de destruir os jornais que vêm dos embrulhos. Há uma palavra, uma frase imoral? Por uma intervenção diabólica, é para elas que o olhar é atraído. Não só as alunas, mas também outras pessoas, podem sentir as funestas consequências disso, mesmo trinta anos depois... Que nossas filhas não comentem, de suas férias, o que pode lembrar os prazeres do mundo ou coisa pouco edificante. Se a alguma aconteceu ter lido um livro inconveniente, que ela guarde a sua infelicidade no silêncio do arrependimento. Se algumas conversas abalarem sua fé, que elas procurem logo esclarecer suas dúvidas. Todas compreendem que, no estabelecimento, só se devem ouvir palavras de virtude (CÉSAR, 1989, p. 397 - 398).

Tal vigilância cerceava os comportamentos indevidos, assim como criava novas formas

de disciplinamento ao corpo. Atitudes como brincadeiras de mau gosto ou gracejos não eram

admitidas. Carinhos exagerados para com as mestras, ou demasiada insubordinação também

eram proibidos. Só era permitido cantar músicas religiosas. Certa vez, ao cantar uma música

romântica, uma jovem freira foi duramente repreendida. Os devaneios românticos eram

considerados uma ameaça à integralidade moral das moças, era necessário criar meios para

que elas escapassem da coleira de ferro do mundanismo, das formalidades e do espírito de

falsidade em que se compraziam a sociedade. Para tal, as moças deveriam livrar-se da

ociosidade, sede das ilusões romanescas e sentimentais. Havia uma eminente necessidade em

se direcionar e ocupar a mente das jovens moças. Para tanto, a educação tomava o corpo com

os princípios morais que atrelavam a instrução elementar ao inculcamento dos bons hábitos e

disciplina. Para Foucault (1987), os mecanismos disciplinares fabricam corpos submissos e

exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos

de utilidade) e diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). O poder

disciplinar dirigido aos corpos tem, portanto, um duplo objetivo: deixar os corpos exercitados

e também submissos. As determinações que se referem ao corpo, presentes no discurso

pedagógico da Congregação dos Santos Anjos, viabilizavam o funcionamento do mecanismo

disciplinar aplicado em cada indivíduo, e a todos ao mesmo tempo em cada instituição, que

resultaria em normalização biopolítica da população escolar.

Os pressupostos pedagógicos da CSA, embasados nos princípios cristãos e nos

costumes religiosos, incutiam valores espirituais na população, com vistas a criar uma

responsabilidade sobre o plano social e o político. Às jovens mestras então, cabiam

Page 9: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 84

ensinamentos que as levassem ao mais alto cume da sabedoria e da inteligência. Elas

deveriam inspirar o amor à vida em família, à vida em sociedade, o amor ao próximo,

virtudes tão necessárias às mulheres, independentemente de sua classe social. Deveriam,

pois, abraçar a missão de livrar da sociedade os males do espírito e do corpo, resguardando-

se contra os desvios morais, das fraquezas do corpo e pensamentos maliciosos. A partir daí,

institucionalizava-se um comportamento moral adequado aos preceitos tanto políticos

quanto religiosos, fundamentados no disciplinamento da população.

Representações do feminino no Colégio dos Santos Anjos e do Colégio Nossa Senhora

das Dores

A representação do feminino é caracterizada pelo símbolo da “alma frágil”, que se deixa

apanhar pelos inimigos, “aves implumes a ensaiar os primeiros voos e que se cansam

facilmente”. Como uma “flor ainda em botão”, essas “almas” precisam de proteção de uma

mãe (ou de sua substituta). De acordo com estas definições, a maldade e a bondade estão

vinculadas à oposição entre corpo e alma. O corpo impuro precisa ser transformado,

controlado, disciplinado para atingir a perfeição, à imagem e semelhança da mãe, a Mãe das

Dores, Maria Santíssima.

O domínio do corpo, o exercício do autocontrole e a contenção de gestos marcaram

sobremaneira a representação do feminino na Congregação dos Santos Anjos. Nesse sentido,

em consonância com os preceitos da religião católica, o corpo era algo que deveria ser

resguardado, e a virgindade e pureza preservadas. A negação do próprio corpo constitui a

elevação da alma cristã. O feminino aparece por meio dos gestos contidos, o olhar severo,

poucos sorrisos, rosto fechado. Um conjunto de posturas, atitudes, modos de se vestir, que

compunham um exemplo que pretendeu modelar o perfil do ser feminino, segundo os

padrões identitários que se queria produzir na/pela escola. A imagem de Maria Santíssima,

símbolo da mulher, é um elemento exemplar dessa simbologia.

Como exemplo podemos citar a disciplina exigida pela Congregação Santos Anjos, em

que se buscava examinar quesitos de comportamento. Aliado a esses procedimentos, as

alunas eram observadas nas práticas de silêncio, obediência, ordem, lições, deveres, ao lado

das avaliações de conteúdos como os de francês, trabalhos manuais ou de agulha e música. As

“aptidões magisteriais” eram examinadas segundo as suas habilidades ou capacidades

resultantes dos conhecimentos adquiridos em outras disciplinas como uma disposição inata,

vocacionada.

Page 10: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 85

As irmãs e professoras que viriam a atuar no CSA deveriam passar por um processo de

avaliação em que dispositivos disciplinares interferiam no conceito de profissionalização.

Nesse ordenamento esteve incluída a definição de um “modelo” de professor, incorporando

as docentes como agentes do projeto social e político do Estado moderno. Esses dispositivos,

na direção que defendem Gondra e Schueler (2008), buscavam conformar, homogeneizar e

disciplinar os diversos modos de ser professor no século XIX.

De modo geral, as representações dessas professoras estavam relacionadas à ideia de

missão, procurando equiparar o docente ao sacerdócio, à vocação. A ideia de uma profissão

caracterizada pela nobreza e sacrifício sucumbia à precariedade das condições materiais de

existência, pelos baixos salários e pela pobreza de recursos, em um momento em que os

investimentos públicos tendiam para outras prioridades.

A conduta moral e religiosa dos valores vigentes ultrapassava a dimensão da sala de

aula, submetendo os professores a uma série de exigências que evidenciavam um controle

sobre sua vida profissional, mas também sobre sua vida privada, de maneira a incutir um

modelo de cidadão afinado com a moral vigente.

Considerações Finais

Ao desenvolver este trabalho procuramos demonstrar que o projeto educacional da

Congregação dos Santos Anjos esteve vinculado a um conceito de educação mais amplo,

sustentados nas obras de assistência e amparo aos necessitados. Problematizando a questão

da formação de professores primários, enfocada no processo de constituição do modelo

escolarizado, via Escola Normal, é possível afirmar que a maneira como este deveria ser

preparado, por meio de saberes, normas, regras que pusessem em funcionamento a Escola,

conformaram esse profissional de acordo com as necessidades daquele momento. Tratava-se

de incutir nas alunas bons hábitos de higiene, os valores morais de pudor, obediência,

polidez, renúncia, sacrifício... que tecem a coroa das virtudes femininas (PERROT, 2008).

Esse conteúdo, comum a todas, varia segundo as épocas e os meios, assim como os métodos

utilizados para ensiná-lo.

Podemos apontar os Cursos Normais e a formação de professores que nelas se

constituíram como parte de uma rede educativa que contribuiu para dar visibilidade social a

uma cultura institucional que foi se constituindo ao mesmo tempo em que se elaboravam

representações de Escola e da profissão docente, imbuídas do espírito de brasilidade, de

patriotismo e de religiosidade.

Page 11: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 86

Estudar a Congregação dos Santos Anjos possibilitou pensar o processo educacional da

Igreja Católica (em termos gerais) e seu poder de força e disciplinamento, em específico. Para

tal contou com uma vigorosa participação das congregações religiosas espalhadas pelo

mundo afora.

A evangelização propagada tanto no interior dos colégios onde atuavam as

congregações quanto em outras instituições como os Externatos, Pensionatos... interviam na

formação do caráter das jovens moças. A mulher, que antes tinha o papel fundamental como

mãe e esposa, a partir do magistério se estabelece como a educadora da primeira infância. A

este novo modelo de mulher, responsável por educar a população, são necessárias virtudes

que as façam ter o coração aberto e generoso, entregue à luta para convencer as crianças bem

nascidas de seu papel fraterno para com os outros, e às crianças pobres à conformação de seu

lugar na sociedade. A educação das moças assegurava uma sociedade mais cristã, pois eximia

comportamentos pecaminosos e mundanos ao condenar os lazeres ociosos. Ao mesmo

tempo, a sociedade tornava-se mais saudável, ao aprender sobre a importância da saúde e

dos males presentes no corpo. Ao imprimir moldes de comportamento que transitavam a

partir da educação das jovens professoras e incidiam diretamente na população, a educação

ministrada nos colégios católicos e em outras escalas onde se produziam saberes atuava como

dispositivo biopolítico, controlando os corpos dos indivíduos e estabelecendo formas de

disciplinarização afinadas com os pressupostos morais de cada época.

É possível afirmar que a Congregação Santos Anjos, ao se instalar em solo brasileiro

trouxe consigo um modelo de ensino para além das aulas de religião. Dirigido às elites, o

ensino de Mère Poux apontava para um direcionamento: criar boas famílias cristãs.

Referências

ARRUDA, Maria Aparecida. Formar almas, plasmar corações, dirigir vontades: o projeto educacional das Filhas da Caridade da Sociedade São Vicente de Paulo (1898-1905). Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, 2011. CARVALHO, Eliane Vianey. A escola só recebe alunos limpos: discursos biopolíticos para a educação na legislação mineira de 1927. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São João Del Rei, UFSJ. Minas Gerais, 2012. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 18. ed. São Paulo: Loyola, 1996.

Page 12: A PEDAGOGIA DE MÈRE POUX: DISCIPLINA E VIGILÂNCIA premissas da Igreja do final no século XIX e início do XX, período marcado por mudanças envolvendo o poder civil e a Igreja,

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 87

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. FRAZÃO, Fernanda C. Costa. A revista Careta e a educação das mulheres: uma dispersão discursiva para a normalização feminina no contexto urbano (1914 – 1918). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São João Del Rei, UFSJ. Minas Gerais, 2012. GINZBURB, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1990. GONDRA, José. G. & SCHUELER, Alessandra Frota M. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. SP: Cortez, 2008. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008. ROGERS, Rebecca. Congregações femininas e difusão de um modelo escolar: uma história transnacional. In: Pro-Posições, v. 25, n. 1, p. 55-74, Jan/Abr, 2014. SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Fontes

LADAME, Jean. A Fundadora da Congregação dos Santos Anjos. Casa Generalícia da Congregação dos Santos Anjos. Tradução de Irmã Maria José Lopes César. Tijuca, Rio de Janeiro – 1989. Documentos avulsos localizados no Colégio Nossa Senhora das Dores