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Análise da narrativa do conto “A princesa e a ervilha” Faria, Fernanda Cristina R. Langkilde, Ana Maria M.C.S INTRODUÇÃO Os contos de Hans Christian Andersen começaram a ser publicados durante o século XIX. Nesse período, Andersen foi fortemente influenciado pelos ideais do romantismo na Dinamarca. Embora Andersen empregasse um tom nostálgico e melancólico, recorrendo com frequência a temas como a morte, a generosidade e a religiosidade, muito comuns àquele movimento, a fantasia e o maravilhoso sempre estiveram presentes em sua obra, resultado das lembrançasde histórias contadas em sua infância. O escritor dinamarquês procurou retratar os deserdados da sorte, o descaso social, os marginalizados, os puros de coração, ressaltandoser preciso ver além das aparências, enfatizando, na maioria dos contos, que é possível superar as dificuldades apesar de todo sofrimento. É importante destacar que, em suas obras,a superação da dor e das tristezassomente era possível com a ajuda de Deus e de um coração humilde. Tais atitudes trazem à tona o profundo senso religioso que dominava não somente a obra, mas sobretudo a vida do escritor.Sua obra foiinfluenciada por acontecimentos de sua vida,considerada por ele um conto de fadas. Esta breve introdução poderá ajudar ao leitor a compreender de modo mais significativo a presença da representação feminina no conto a ser analisado. Por esta razão,selecionamos um corpus literário no qual a personagem feminina é a protagonista, focalizando a construção ficcional adotada por Andersen. A seguir apresentamos um reconto de nossa autoria para então partirmos para a análise estrutural do conto.

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Análise da narrativa do conto “A princesa e a ervilha”

Faria, Fernanda Cristina R.

Langkilde, Ana Maria M.C.S

INTRODUÇÃO

Os contos de Hans Christian Andersen começaram a ser publicados

durante o século XIX. Nesse período, Andersen foi fortemente influenciado

pelos ideais do romantismo na Dinamarca. Embora Andersen empregasse um

tom nostálgico e melancólico, recorrendo com frequência a temas como a

morte, a generosidade e a religiosidade, muito comuns àquele movimento, a

fantasia e o maravilhoso sempre estiveram presentes em sua obra, resultado

das lembrançasde histórias contadas em sua infância.

O escritor dinamarquês procurou retratar os deserdados da sorte, o

descaso social, os marginalizados, os puros de coração, ressaltandoser preciso

ver além das aparências, enfatizando, na maioria dos contos, que é possível

superar as dificuldades apesar de todo sofrimento.

É importante destacar que, em suas obras,a superação da dor e das

tristezassomente era possível com a ajuda de Deus e de um coração humilde.

Tais atitudes trazem à tona o profundo senso religioso que dominava não

somente a obra, mas sobretudo a vida do escritor.Sua obra foiinfluenciada por

acontecimentos de sua vida,considerada por ele um conto de fadas.

Esta breve introdução poderá ajudar ao leitor a compreender de modo

mais significativo a presença da representação feminina no conto a ser

analisado. Por esta razão,selecionamos um corpus literário no qual a

personagem feminina é a protagonista, focalizando a construção ficcional

adotada por Andersen.

A seguir apresentamos um reconto de nossa autoria para então

partirmos para a análise estrutural do conto.

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RECONTO

A princesa e a ervilha (PT)

The princessonthePea (EN)

PrindsessenpåÆrten (DAN)

Era uma vez um príncipe que queria muito se casar com uma princesa,

mas não com uma princesa qualquer. Ela deveria ser uma princesa de

verdade, pertencer à realeza. Então ele viajou pelo mundo para encontrá-la,

mas em todo lugar que procurava sempre havia algo de errado. Achou muitas

princesas, mas não tinha certeza se eram princesas de verdade.

Então cansado de procurar, ele voltou muito triste e desiludido para

casa, não havia conseguido encontrar sua princesa. Ele queria tanto achar uma

princesa de verdade!

O tempo passou e em uma noite, quando caía uma terrível tempestade,

alguém bateu à porta do castelo, então o velho rei foi atender o chamado.

O rei se assustou ao ver uma jovem que devido às condições do mau

tempo estava com os cabelos, roupas e sapatos encharcados. Ela dizia ser

uma princesa de verdade.

Então a rainha pensou – Em breve saberemos!

Sem dizer nada a rainha saiu do aposento e foi preparar um quarto para

a hóspede. Sobre a cama ela empilhou vinte colchões e vinte colchas forradas

com penas e sob tudo isso colocou uma ervilha. A princesa deveria dormir ali,

sobre os vinte colchões e vinte colchas.

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Pela manhã eles perguntaram à princesa se ela havia dormido bem.

-Oh! Não dormi a noite toda! – respondeu a princesa – Foi terrível, havia

alguma coisa dura e desconfortável que não me deixava dormir. Meu corpo

está todo marcado!

Eles estavam maravilhados, ela realmente era uma princesa, afinal ela

havia sentido a ervilha por entre os colchões e as colchas, só uma princesa de

verdade seria tão delicada para sentir a ervilha. O príncipe certo de que havia

encontrado uma verdadeira princesa casou-se imediatamente

A ervilha foi colocada em um museu e ainda está lá, a menos que

alguém a tenha pego.

Essa é uma história verdadeira.

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Análise da construção ficcional

O presente texto pretende fazer a análise da narrativa“A princesa e a

ervilha”que foi publicado dia 08 de maio de 1835 no livro Eventyr, fortalte for

Børn. FørsteSamling. FørsteHefte. (Título dinamarquês). Mais tarde, em 18 de

dezembro de 1849, foi publicado como parte da obra Eventyr.

A análise da narrativa aqui apresentada foi fundamentada na

obraLiteratura Infantil: Teoria, Análise, Didática de Nelly Novaes Coelho (2000),

neste estudo oferecemos 1)a análise do enredo que compreende a

reconstituição da história, a apresentação (complicação, clímax e desfecho) e o

andamento da ação; 2) a análise do tempo – seja ele cronológico ou

psicológico – quando ocorre a confabulação; 3) a análise do espaço sobre os

locais descritos e a ambientalização (interno ou externo); 4) a análise dos

personagens de forma a apresentar uma descrição física ou psicológica

detalhada ; 5) a análise do foco narrativo que indica o tipo de narrador e de que

forma ele atua na história; e, por fim, 6) a análise da linguagem e tipo de

discurso do texto.

Por meio da análise da narrativa é possível identificar que as

características apresentadas qualificam o texto no gênero textual “Conto”. A

narrativa é concentrada, com número reduzido de personagens e tempo e

espaço delimitados.

O texto é conduzido por um narrador onisciente, que além de conhecer

bem a história – a de um príncipe que procura uma princesa de sangue real

para se casar, saindo, portanto, a sua procura, sem na verdade encontrá-la–

conhece os pensamentos das personagens, descreve o receio da rainha ao

avistar a princesa que veio bater à sua porta em péssimo estado devido à

tempestade que enfrentara. O narrador descreve ainda as articulações da

rainha para descobrir se a garota realmente era uma princesa.

Quanto ao discurso, predominantemente ocorre em terceira pessoa

esclarecendo todos os fatos para o entendimento da narrativa, com passagens

de discurso direto para ilustrar o diálogo entre as personagens.

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Ele efabula a história registrando o tempo e o espaço, nos quais as

personagens vivem a trama. Toda efabulação ocorre no espaço interno, ou

seja, no castelo. E o tempo descrito em uma noite de terrível tempestade e é

linear se desenvolvendo em torno do intento do príncipe em encontrar uma

princesa de sangue real; uma princesa autentica. O espaço social também

serve de cenário e o tempo é interior porque segue o tempo vivido pelo príncipe

que está a procura da princesa, durando até encontrá-la.

O clímax, a situação problema da história, é marcado pela chegada da

princesa ao castelo em condições que coloca em dúvida seu status de

princesa. Já as peripécias do conto são causadas pela imposição da rainha à

princesa para verificar sua origem. O teste consiste em colocar uma ervilha

sobre vinte colchas e vinte colchões. Ao revelar que dormira muito mal porque

algo a incomodara a noite inteira, fica comprovada que era um princesa de

verdade.

No conto temos personagens-tipo, que apresentam um comportamento

representativo de um grupo ou a coletividade. No caso do conto analisado a

personagem-tipo representa a realeza, um estado social.

A linguagem da narrativa é simbólica, porque trata metaforicamente da

resignação às provas que a vida nos impõe e da aceitação pelo outro,

refletindo de alguma forma a vivência de cada um de nós e, em última análise a

do próprio autor.

Como a maioria dos contos de Andersen, A princesa e a Ervilha também

recebe influência do movimento literário Romantismo, principalmente quando

ressalta as tradições populares, ou quando evidencia os sentimentos pessoais

do autor ao abordar uma temática tão recorrente em seus contos - ver além da

aparência.

O conto focaliza a falha no julgamento das pessoas, a necessidade da

aceitação pelo outro, a resignação às provas que a vida impõe, valorizando a

paciência, a submissão características próprias dos ideais femininos.

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É nítida a crítica social que perpassa a narrativa. A ênfase na descoberta

do valor do indivíduo e da autenticidade mostra que o autor preocupou-se em

evidenciar uma temática bastante cara a ele, até mesmo por suas experiências.

Muito embora vivamos em um mundo de aparências, o que vale é a essência,

sobrepondo as qualidades do indivíduo àaparência.

Para Andersen, cuja infância e juventude foram marcadas por um

dolorido caminho de rejeições e de humilhações, defender a essência como

uma qualidade intrínseca e com raízes em um profundo senso religioso, de fé e

de submissão a Deus confortava não somente a ele, mas sobretudo àqueles

que liam suas histórias e poderiam sentir–se esperançosos e libertos ao

viverem as mesmas situações.

Bibliografia

ANDERSEN, H. C. Contos de Andersen. São Paulo:Paz e Terra, 1997.

CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,

2006.

__________. Na sala de Aula: Caderno de Análise Literária. São Paulo: Ática,

1995.

COELHO, N. N. Literatura Infantil: Teoria, Análise e Didática. São Paulo: Ed.

Moderna, 2009.

EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins

Fontes, 1997.