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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PPGE CAMILA EMANUELLA PEREIRA NEVES A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM CAPÃO VERDE: ENTRE BANANAS, SABERES E UTOPIAS CUIABÁ MT 2012

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Page 1: A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM CAPÃO VERDE: ENTRE … · responsável pela humanização do homem; na categorização de experiência formulada por Thompson (2002, 1998) e no trabalho

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE

CAMILA EMANUELLA PEREIRA NEVES

A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM CAPÃO VERDE: ENTRE

BANANAS, SABERES E UTOPIAS

CUIABÁ – MT

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CAMILA EMANUELLA PEREIRA NEVES

A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM CAPÃO VERDE: ENTRE

BANANAS, SABERES E UTOPIAS

CUIABÁ-MT

2012

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CAMILA EMANUELLA PEREIRA NEVES

A PRODUÇÃO ASSOCIADA EM CAPÃO VERDE: ENTRE

BANANAS, SABERES E UTOPIAS

CUIABÁ – MT

2012

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa

Movimento Social, Política e Cultura Popular, Grupo

de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação.

Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano

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N518p Neves, Camila Emanuella Pereira.

A produção associada em Capão Verde: entre bananas, saberes e utopias.

/ Camila Emanuella Pereira Neves. -- Cuiabá (MT): Instituto de Educação/IE,

2012.

179 f.: il.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato

Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós - Graduação em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Edson Caetano.

Inclui bibliografia.

1. Educação - Trabalho. 2. Educação popular. 3. Produção associada

- Capão Verde (MT). I. Título.

CDU: 37.035.3

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AGRADECIMENTOS

_____________________________________________________________________

Considerando que esta dissertação é fruto de um esforço intelectual e emocional,

agradeço a tod@s que, de alguma forma, me ajudaram a concluir este trabalho. Esta

dissertação é nossa!

Mesmo que este agradecimento seja abreviado, significa muito para mim. Nunca

conseguirei expressar o tamanho da minha gratidão neste pedaço de papel. Assim, agradeço:

Ao meu orientador, Prof. Dr. Edson Caetano, por seus saberes compartilhados, por sua

paciência, dedicação, discussões e por acreditar no meu projeto.

À banca examinadora, Prof.ª Dra. Lia Tiriba, Prof.ª Dra. Maria Clara Fischer, Prof.ª

Dra. Elizabeth Figueiredo de Sá, Prof. Dr. Silas Borges Monteiro, por seus apontamentos e

contribuições.

À Lia, grande fonte de inspiração deste trabalho.

À Andréia, à Dona Maria Rosa, à Maria Albertina, ao Seu Justino, ao Lourenço e a

todos os trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde, pela recepção, acolhimento, pelas

entrevistas e pelos saberes compartilhados.

À minha família, pelo amor e apoio: Sara, Natalie, Conceição, Angouleme, Sebastião

e Vinícius.

À você, mãe, por seu amor, pela credibilidade e pela educação que me ofertou.

Ao meu esposo Edson, pelos cuidados, pela paz e força que me transmite.

Ao meu filho Gustavo, motivo do meu entusiasmo, da minha existência e de

inspiração nos momentos de dificuldade. Obrigada por compreender as minhas ausências e

assim mesmo me incentivar.

A todos os professores do Mestrado, aos quais dedico imensa admiração e respeito.

Aos meus colegas de Mestrado pelo estímulo, sugestões, conversas pelos corredores.

A Eucaris, Polyana, Edson, Claudionor, Janaina, Sônia, Rosivete, Patrícia, Elismar, Leiva,

Débora, Traudi, Gracielle, Lídia e tantos outros.

Aos colegas do grupo GEPTE, Ilza, Lirian, Mariana, Eloísa, Luciane, William, Ivo e

Ana Paula, por me ajudarem nesta caminhada.

À Flavia Vitor por me ajudar nas transcrições.

Aos colegas do NEDDATE, pela parceria e em especial, Camila, Pedro e Monique.

À Bruna Sicchi, grande amiga paratiense que, generosamente, compartilhou

inquietações, angústias e saberes.

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Ao Instituto de Educação e à UFMT, por permitirem o aprofundamento nas pesquisas

educacionais.

À CAPES, por proporcionar o desenvolvimento da pesquisa através da concessão de

bolsa.

Aos amigos e amigas, Giseli, Muriel, Adriana, Lua, Hermes, Felinto e Nelbi, pelo

estímulo.

Aos funcionários da Secretaria e da Coordenação do PPGE, bem como aos técnicos

Messias e Sérgio por estarem sempre prontos a nos auxiliar.

Aos colegas e alunos da EMEB Maria Ambrósio Pommot.

Obrigada!

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Em uma fase superior da sociedade comunista, quando tiver desaparecido a

subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela,

o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o

trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade

vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus

aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os

mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se

totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá

inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a

cada qual, segundo suas necessidades (MARX, 1875).

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RESUMO

_________________________________________________________________________

Ao longo da história da humanidade, o trabalho adquiriu conotações e configurações

específicas e, especialmente, com a consolidação do modo de produção capitalista o trabalho

foi marcado por contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção.

A burguesia forjou e disseminou uma cultura do trabalho - conhecimentos, valores, atitudes -

que lhe interessava/favorecia e, para reproduzi-la junto à classe trabalhadora, contou com a

ajuda da escola. Por volta de 1980, esse modo de produção anunciava sua crise e já não

empregava a força de trabalho disponível, tendo que se render a uma reestruturação da

produção. Com isso, parcela crescente de trabalhadores da camada popular passou a (re) criar

diversas estratégias para produzir a vida, entre elas, a produção associada. Para realizar este

estudo, nos fundamentamos no materialismo histórico dialético, como instrumento de

interpretação de uma realidade concreta; no pressuposto de Marx (1982), que o trabalho é

responsável pela humanização do homem; na categorização de experiência formulada por

Thompson (2002, 1998) e no trabalho como princípio educativo a partir de Gramsci (2006,

1991). Assim, o objetivo principal deste estudo é identificar o significado da produção

associada e os saberes provenientes dessa experiência. A pesquisa de campo foi realizada com

trabalhadores e trabalhadoras que se associaram em uma Comunidade de Poconé – Mato

Grosso (Capão Verde) para produzirem derivados de banana da terra. Nesse intento,

utilizamos como metodologia o Estudo de Caso e realizamos entrevistas gravadas com 12

trabalhadores (as) de Capão Verde e 2 voluntários, além de leituras específicas e registro da

pesquisa de campo em áudios, vídeos, fotografias e Caderno de Campo. Esperamos contribuir

para a valorização dos saberes, práticas e culturas formuladas pelas camadas populares que

asseguram novas concepções de mundo e de homem, possibilitando reflexões sobre a

formação de um trabalhador de novo tipo.

Palavras-chave: trabalho, produção associada, trabalho como princípio educativo,

experiência e educação.

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ABSTRACT

_________________________________________________________________________

Throughout human history, the world of work acquired connotations and specific settings, and

especially with the consolidation of the capitalist mode of production work was marked by

contradictions between the social relations of production and knowledge production. In other

words, holders of the means of production was for scientific knowledge and historically

constructed and to the owners, only, of the labor force remained to them the knowledge

acquired on the job experience. The bourgeois ruling class has established a culture of work -

knowledge, values, attitudes - what interested him / favored and to play it the working class,

had the help of the school. By 1980, this mode of production announced its crisis and no

longer used the available workforce, having to surrender to a restructuring of production. As a

result, a growing share of workers of the layer popular now (re) create different strategies to

produce life, including the associated production. To perform this study, the fundamentals in

dialectical historical materialism as an instrument for interpreting reality, the assumption of

Marx (1982) that the work is responsible for the humanization of man in the categorization of

experience forged by Thompson (2002.1998) and work as an educational principle in depth

by Gramsci (2006, 1991). The objective of this study is to identify the significance of

production and associated knowledge from this experience. The field research was conducted

with workers and workers who joined in a Community of Poconé - Mato Grosso (Green

Cover) to produce derivatives of plantain. For this, we used as a case study methodology and

conduct recorded interviews with 12 workers (as) with a green cover and two volunteers,

specific readings and recording of field research in audio, video, photos and Fieldbook. We

hope to contribute to the enhancement of knowledge, practices and cultures made by classes

that provide new conceptions of the world and man and reflections on the possible formation

of a new type of worker.

Keywords: work, production associate, working as an educational principle, experience and

education.

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LISTA DE FOTOGRAFIAS

_______________________________________________________________________________

FOTOGRAFIA 1/ FOTOGRAFIA 2/ FOTOGRAFIA 3.................................................................. 36

FOTOGRAFIA 4/ FOTOGRAFIA 5/ FOTOGRAFIA 6.................................................................. 38

FOTOGRAFIA 7.............................................................................................................................. 39

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FOTOGRAFIA 15/FOTOGRAFIA16/ FOTOGRAFIA 17/ FOTOGRAFIA 18............................ 89

FOTOGRAFIA 19/FOTOGRAFIA 20............................................................................................. 91

FOTOGRAFIA 21/FOTOGRAFIA 22............................................................................................. 93

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FOTOGRAFIA 25/ FOTOGRAFIA 26/ FOTOGRAFIA 27/ FOTOGRAFIA 28.......................... 95

FOTOGRAFIA 29/ FOTOGRAFIA 30........................................................................................... 96

FOTOGRAFIA 31/ FOTOGRAFIA 32/ FOTOGRAFIA 33.......................................................... 100

FOTOGRAFIA 34/ FOTOGRAFIA 35........................................................................................... 103

FOTOGRAFIA 36........................................................................................................................... 109

FOTOGRAFIA 37........................................................................................................................... 110

FOTOGRAFIA 38........................................................................................................................... 113

FOTOGRAFIA 39/ FOTOGRAFIA 40........................................................................................... 120

FOTOGRAFIA 41/ FOTOGRAFIA 42........................................................................................... 121

FOTOGRAFIA 43........................................................................................................................... 122

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FOTOGRAFIA 45/ FOTOGRAFIA 46........................................................................................... 134

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FOTOGRAFIA 49/ FOTOGRAFIA 50........................................................................................... 138

FOTOGRAFIA 51/ FOTOGRAFIA 52/ FOTOGRAFIA 53.......................................................... 151

FOTOGRAFIA 54/ FOTOGRAFIA 55/ FOTOGRAFIA 56/ FOTOGRAFIA 57......................... 152

FOTOGRAFIA 58/ FOTOGRAFIA 59........................................................................................... 153

FOTOGRAFIA 60/ FOTOGRAFIA 61/ FOTOGRAFIA 62.......................................................... 154

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

__________________________________________________________________________________

ABCRED Associação Brasileira de Gestores de Entidades de Micro-Crédito

CBCA Companhia Carbonífera do Araranguá

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

COMFIBRA Associação de Artesanato em fibras naturais de Jacarezinho

COMPRUP Cooperativa Mista de Produtores Rurais

CONAB Companhia Nacional de Abastecimento

CPR Centro Pastoral do Rosário

DRT/MT Delegacia Regional do Trabalho e emprego do Mato Grosso

EJA Educação de Jovens e Adultos

ELETRONORTE Centrais Elétricas do Norte do Brasil

EMPAER Empresa Mato-grossense de Pesquisa, Assistência e Extensão Rural

FBES Fórum Brasileiro de Economia Solidária

FUNASA Fundação Nacional de Saúde

GEPETE Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação

IFMT Instituto Federal de Mato Grosso

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INTERMAT Instituto de Terras de Mato Grosso

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

JEC Juventude Estudantil Católica

JUC Juventude Universitária Católica

MEB Movimento de Educação e Base

MEC Ministério da Educação e Cultura

MT Mato Grosso

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

NUEM Núcleo de Estudos Marxistas

ONG Organização não governamental

OPEP Organização dos Países Exportadores de Petróleo

PAA Programa de Aquisição de Alimentos

PBQ Programa Brasil Quilombola

PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária

SEPPIR Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

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SINFRA Secretaria de Estado de Infra-Estrutura

UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso

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SUMÁRIO

____________________________________________________________________________

INTRODUÇÃO

16

CAPÍTULO 1 – A PRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA: TRABALHO 29

1.1 O trabalho como categoria ontológica e histórica 29

1.2 O trabalho que segue a lógica capitalista não dignifica o homem, cega o homem 41

1.3 Da crise capitalista surge a reestruturação produtiva 47

1.3.1 Impactos da reestruturação produtiva no Brasil 56

1.4 A concha e a pérola: a produção associada

60

CAPÍTULO 2 – TRABALHO, SABERES DA EXPERIÊNCIA E CULTURA

POPULAR

72

2.1 Trabalho como princípio educativo 74

2.2 Saberes da experiência e Cultura do trabalho associado 79

2.2.1 A terra que eu afago me ensina e eu ensino os meus: os frutos da terra 83

2.2.1.1 A minha terra, a nossa terra 83

2.2.1.2 Sobreviver da terra 89

2.2.1.3 “Eu me desenvolvo e evoluo com meu filho, eu me desenvolvo e

evoluo com meu pai”

92

2. 2.1.4 Para além da comunidade, encontro trabalho digno? 101

2.2.1.5 Autogestão – a dialética entre objetividade e subjetividade

107

CAPÍTULO 3 – ESPIA AÍ, TEMOS BANANA! A PRODUÇÃO ASSOCIADA

EM CAPÃO VERDE

111

3.1 Nos confins de Mato Grosso surge a comunidade Capão Verde – memórias e

relatos

111

3.2 O reconhecimento de uma comunidade como quilombola 116

3.2.1 Contextualização histórica dos quilombos no Brasil 116

3.2.2 As comunidades remanescentes de quilombo 118

3.2.3 O reconhecimento dos moradores de Capão Verde como quilombolas

remanescentes

120

3.3. A produção associada em Capão Verde 123

3.3.1 O estado embrionário de uma produção associada 124

3.3.2 A organização do processo de produção associada – autogestão no chão da 131

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Agroindústria

CAPÍTULO 4 - EDUCAÇÃO POPULAR? EDUCAÇÃO QUILOMBOLA?

QUAL A EDUCAÇÃO IDEAL PARA OS TRABALHADORES DE CAPÃO

VERDE?

150

CONSIDERAÇÕES FINAIS

161

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

168

ANEXOS 177

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INTRODUÇÃO

_____________________________________________________________________

Com a consolidação do sistema capitalista industrial, por volta do século XIX, o

mundo do trabalho é tomado por uma onda de contradições. Há um grande progresso das

forças produtivas acarretado pelo avanço tecnológico e científico, mas norteado somente para

o aumento da extração da taxa de mais valia pelo capital. Diante dessa situação, os

trabalhadores (trabalho vivo) foram substituídos pelas máquinas (trabalho morto) e tiveram

que vender sua força de trabalho em troca de salários que não correspondiam ao que estes

produziam. Em outras palavras, o avanço das forças produtivas trouxe mais exploração e não

alívio para os trabalhadores. Era o domínio do trabalho pelo capital. Era a subsunção da

reprodução ampliada da vida pela reprodução ampliada do lucro que se consolidava.

A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras,

constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais

miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em relação

inversa à potência (Match) e à grandeza (Grosse) da sua produção, que o

resultado necessário da concorrência é a acumulação de capital em poucas

mãos (MARX, 2004, p. 79).

Não só o mundo do trabalho passou por mudanças e contradições, mas a própria

produção da vida foi influenciada, já que existe uma relação ontológica, histórica e dialética

entre trabalho e a esfera social. Assim, a burguesia, através do modo de produção capitalista,

forjou uma nova cultura do trabalho e passou a submetê-la à classe trabalhadora.

Thompson, em Os Românticos (2001), ressalta que a classe dominante inglesa

permitia que alguns costumes populares fossem cultuados -brigas de galo, esportes, dialetos-

desde que não questionassem a subordinação e a condição social a que estavam submetidos.

Essas concessões, de tom paternalista, eram controladas e evitavam “distúrbios populares”

(THOMPSON, 2001).

Contribuindo com a cultura do trabalho capitalista, estava a ampliação do mercado, a

criação de diversas maneiras de organizar o trabalho, a concorrência entre os capitalistas e a

escola. O trabalho assalariado e a possibilidade de mobilidade social passaram a ser uma

utopia coletiva dos trabalhadores. É preciso salientar que a educação passou a ser vista como

principal fonte de mobilidade social, já que o saber escolar/educação formal, além de ser

valorizado/reconhecido socialmente, passou a ser um dos critérios para a ascensão

profissional e incremento salarial.

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Um cenário tenebroso foi descortinado: muita riqueza produzida, mas muitas mãos

desempregadas. Nesse sentido, os trabalhadores precisavam lutar por trabalho – uma atividade

ontológica do homem e os que conseguiam se inserir no mercado de trabalho assalariado

precisavam aceitar salários precários, jornadas de trabalho exaustivas e péssimas condições de

trabalho.

Por volta de 1980, era evidente a crise do modo de produção capitalista, já que não

conseguia assegurar a expansão de capital. Com isso, iniciou-se um processo denominado

reestruturação produtiva ou acumulação flexível, apoiada em princípios neoliberais.

Para realizar essa reestruturação da produção, os capitalistas passaram a empregar

trabalhadores flexíveis -subcontratação, trabalho temporário ou terceirizado- em vários

setores de produção.

Foi um período de intensos movimentos sociais e resistências ao capital, encabeçados

pelos trabalhadores que passaram a reivindicar melhores condições de trabalho e de salários.

Nessa época, para inserir-se no mercado, devido à crise do emprego e/ou para resistir

ao regime capitalista, alguns trabalhadores lançaram mão de estratégias de trabalho e de

sobrevivência a partir de “novas” relações sociais de produção. Muitas estratégias foram

resgatadas de outros contextos históricos, mas neste período adquiriram contornos evidentes.

Com isso, houve uma movimentação por atividades laborais que possuíam justificativas

variadas para existirem: alternativa temporária de trabalho, servir como geração ou

complementação de renda, suprir o desemprego, entre outras.

Nas décadas de 1950-60, as atividades econômicas de iniciativa dos setores

populares eram consideradas ‘marginais’ e associadas a ‘ofícios da pobreza’

(...) ou consideradas como produtos do ‘capitalismo periférico’, nos países

onde se concentrava a maior parte do ‘exército industrial de reserva’,

necessário à substituição e reprodução da força de trabalho assalariada (...).

Na década de 1970-80 essas atividades admitidas como existentes à margem

da estrutura formal do capitalismo, passaram a ser explicadas como fruto da

heterogeneidade da economia (TIRIBA & PICANÇO, 2004, p.22).

Todavia, o senso comum tende a conceber todas as estratégias de trabalho, oriundas

dos setores populares, como em um mesmo “balaio”, acreditando que possuem iguais

objetivos e finalidades. Apesar de existirem diversos mundos do trabalho dentro do sistema

capitalista, atentamos que essas estratégias podem valorizar e reproduzir o capital ou

subvertê-lo.

Frente a essa constatação, esta pesquisa fundamenta-se em autores como Tiriba (2008,

2007, 2006, 2004, 2001), Fischer (2009), Icaza (2003) e Picanço (2004) que consideram as

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atividades oriundas da economia (popular) solidária, cujas características apontam para uma

cultura do trabalho de novo tipo, que se destoa da lógica capitalista vigente.

Uma das formas de realização da economia (popular) solidária acontece através da

produção associada, em que os trabalhadores envolvidos são proprietários dos meios de

produção, não exploram a força de trabalho de outrem, não valorizam o capital e têm, como

finalidade única, a reprodução ampliada da vida1. Além disso, esses trabalhadores aprendem a

ser solidários no cotidiano e criam redes de solidariedade para além do trabalho.

Dialogando com a história da humanidade, observamos que a produção associada

esteve presente na sociedade dos caçadores-coletores (era pré-histórica), na sociedade

escravista e na sociedade socialista, mas no contexto neoliberal da sociedade capitalista é que

ela teve mais destaque. Por esse motivo, o objetivo principal desta pesquisa é identificar o

significado da produção associada e os saberes provenientes dessa experiência construída por

trabalhadores/trabalhadoras rurais da Comunidade Capão Verde, localizada em Poconé – MT.

Para isso, fundamenta-se no materialismo histórico dialético como instrumento de

interpretação de uma realidade concreta e também da organização histórica da

produção/reprodução da vida. Além disso, partimos do pressuposto formulado por Marx

(1982), a saber, o homem se humaniza e se educa através do trabalho.

Como o tema central do estudo é o trabalho, Marx (1982, 1987, 1998, 2003, 2004,

2007) auxilia a compreensão da produção associada, enquanto sendo uma estratégia de

organizar o trabalho e a vida, que pode levar à emancipação do capital, a um novo projeto

societário e à liberdade como sujeitos históricos. Nas palavras de Singer (2002, p.138),

manifestamos que ela difunde “os alicerces de novas formas de organização da produção, à

base de uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista”.

Ademais, salientamos que a emancipação tem como requisito a formação de um

trabalhador de novo tipo e, nessa perspectiva, remetemos ao pensamento de Gramsci (que

destaca a importância do trabalho articulado à educação, pois ambos estão em constante

dialética).

Os trabalhadores se vêem diante do desafio de se tornarem

‘senhores’ do seu trabalho é o que dá sentido à reafirmação da necessidade

de garantir uma educação básica de qualidade para os trabalhadores; uma

escola de formação unitária que contribua para rearticular os saberes

fragmentados, resultantes da práxis utilitarista cotidiana; uma escola única,

na qual a apropriação do conhecimento científico-filosófico se dá em

1 Tiriba (2007, p. 87) salienta que a reprodução ampliada da vida consiste em objetivar a sobrevivência e uma

melhor qualidade de vida. Isso é alcançado através do “conjunto de atividades econômicas e práticas sociais” que

não visam à exploração do trabalho e nem ao lucro.

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consonância com os saberes construídos na produção da própria vida

(TIRIBA & PICANÇO, 2004, p.26).

Destacamos, porém, que tornar-se humano não é monopólio da escola, mas acontece

para além desta, sendo forjada pelos próprios trabalhadores nos seus locais de trabalho e a

partir de seus objetivos de classe. Nesse sentido, nos propomos a identificar os saberes da

experiência, a partir da produção associada, nos pautando nas análises de Thompson (1987 e

1998).

Além dos autores apontados anteriormente, muitos outros contribuíram nas nossas

análises: Frigotto (2009, 2001, 1989), Saviani (1994, 1996, 2007), Antunes (1999, 2004),

Harvey (1996), Nosella (2004) e Manacorda (2008), que compartilham com uma concepção

marxiana e gramsciana de mundo e com o desenvolvimento de ações formativo-educativas,

orientadas para a formação de um trabalhador de um novo tipo, ou seja, que articule

saberes/experiências no/do trabalho com o conhecimento erudito, comprometendo-se com a

transformação da sociedade de classes.

De onde partimos? De quem falamos?

Para identificarmos o significado da produção associada e os saberes mediados

por essa experiência, precisávamos encontrar um local em que os trabalhadores(as)

produzissem a vida ou somente o trabalho de forma associada.

Nas andanças por Mato Grosso, visitamos diversas comunidades e municípios (Santo

Antônio, Bom Sucesso, Chapada, Tangará, Limpo Grande, Comunidade Engenho Velho,

Varginha e Comunidade São Gonçalo Beira Rio), a fim de nos familiarizarmos e optarmos

por uma experiência/comunidade que apresentasse elementos constitutivos desse tipo de

organização do processo de trabalho, isto é, que produzissem a vida e/ou o trabalho de forma

associada, autogestionária, sem valorizar o lucro, pautando- se na solidariedade e tendo os

meios de produção em suas mãos.

Quando estávamos visitando uma Cooperativa Mista de Produtores Rurais

(COMPRUP) em Poconé, conhecemos Catarino que nos convidou para visitarmos algumas

comunidades da região. Fomos a Comunidade Campina da Pedra e Morro Cortado e no

caminho até estas, Catarino acabou nos contando que morava em uma comunidade que

produzia associadamente derivados de banana. Em outra ocasião, visitamos Capão Verde e a

recepção das pessoas, bem como as descrições de Catarino, que desenhavam na nossa mente a

possibilidade de ali encontrarmos concretamente uma experiência de produção da vida

associada, nos fizeram escolher aquela Comunidade como local da pesquisa de campo.

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Nas conversas informais com Catarino, descobrimos que Capão Verde era composta

por 14 famílias de mesmo parentesco e que estavam criando uma associação para a

comercialização dos derivados da banana, por eles produzidos. Nossa primeira visita a Capão

Verde, aconteceu no dia 20 de agosto de 2010 e nos deparamos com a produção de banana

chips que, na ocasião, acontecia na casa da presidente da associação. Além disso, conhecemos

alguns moradores e realizamos as primeiras entrevistas gravadas.

Das 14 famílias (60 pessoas, aproximadamente) que residem em Capão Verde, nos

aproximamos mais de Catarino, Eva, Andréia, Lourenço, Justino, Maria Albertina, Maria

Rosa, Welson, Ana Luiza, Wellington, Alessandra e Elves, os quais se tornaram os

interlocutores na identificação do significado da produção associada e dos saberes construídos

e reproduzidos por esses trabalhadores e trabalhadoras. Porém, as primeiras entrevistas foram

acontecendo sem a predefinição dos sujeitos pesquisados, mas as demais já foram realizadas a

partir dos interesses e objetivos da pesquisa. Logo, não só entrevistamos os trabalhadores e

trabalhadoras, como também, presenciamos festas, reuniões, capacitações, processo de

produção e de venda dos derivados de banana da terra e conversamos informalmente com as

crianças e os adolescentes da Comunidade. Também, entrevistamos dois voluntários que

colaboram com a Comunidade: Felinto e Antônio, a fim de verificarmos a inserção e a

atuação destes na mesma.

O período de pesquisa de campo durou aproximadamente 10 meses, num total de 13

visitas a Comunidade. Por ser uma viagem longa de 116 km (1 hora e 50 minutos),

geralmente, ficávamos na Comunidade por volta de 5 horas.

Como dissemos anteriormente, já na primeira visita presenciamos a produção de

banana chips que acontecia na casa de Andréia e a partir daí começamos a compreender como

acontecia a produção associada no âmbito material. Posteriormente, direcionamos as

entrevistas para contemplarmos os seguintes quesitos:

a) O histórico da Comunidade (como surgiu, quem fundou, o ano de fundação, o

nome da Comunidade, entre outras);

b) O censo da Comunidade (o tamanho da terra, a quantidade de pessoas/famílias,

homens/mulheres/crianças/adolescentes, a religião predominante, quais festas eram

realizadas, a quantidade de analfabetos, concluintes do ensino fundamental, médio e/ou

superior, entre outras);

c) A Produção da vida associadamente/saberes

d) A produção associada de derivados de banana

e) A educação formal em Capão Verde

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Todavia, somente em alguns momentos podíamos aparecer com um roteiro em mãos

porque isso os retraía. Então, disfarçávamos o gravador e seguíamos como uma conversa

informal, apesar de anunciarmos nossa intenção como pesquisadores. Por isso, os quesitos

descritos anteriormente por vezes se embaralhavam, mas isso teve como ponto positivo o

retorno para casa com outros questionamentos/angústias e os anotávamos no Caderno de

Campo.

Nas últimas entrevistas não era preciso levar o roteiro porque apenas buscávamos

esclarecer pequenas dúvidas e nas festas, reuniões, na unidade de produção, capacitações

aproveitávamos mais para observar do que perguntar.

Objetivos

A partir do objetivo principal de identificar o significado da produção associada e os

saberes mediados por essa experiência, apontaremos os objetivos específicos inerentes a ele:

a) Identificar a maneira como os trabalhadores e trabalhadoras da Comunidade Capão

Verde (Poconé – MT) produzem a vida associadamente;

b) Apreender a relevância da experiência com a produção associada, na produção de

saberes e como estes são compartilhados;

c) Verificar de que maneira as contradições e as divergências internas são resolvidas;

d) Refletir acerca da motivação de vivenciar a produção associada, através da criação

da Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade Tradicional

Capão Verde – Agriverde;

e) Analisar os sonhos, as utopias e o devir expressos por trabalhadores e trabalhadoras

de Capão Verde;

f) Identificar o significado da escola/educação e como se educam.

Aspectos metodológicos

Esta pesquisa adotará uma perspectiva marxiana de “leitura” de mundo, isto é, que a

experiência com o trabalho contribui para a formação humana omnilateral e para a

transformação da sociedade de classes. Esta postura se contrapõe à perspectiva positivista,

que trata o “fato social” com distanciamento, pois considera que o pesquisador e a pesquisa

são neutros. A pesquisa materialista e histórica pressupõe uma determinada visão de mundo e

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deve apresentar a totalidade que envolve o objeto estudado, isto é, que o mesmo foi

construído historicamente e concretamente.

Por isso, ressaltamos nas palavras de Frigotto (1989, p.78) que “não existe método

alheio a uma concepção de realidade” e este fato revela-se na reflexão do pesquisador,

partindo da pesquisa empírica. No entanto, o método não possui um fim em si mesmo, ele

acontece com o movimento dialético do pensamento, através da concretude histórica da

realidade - que é mutável e contraditória. Seguindo a perspectiva marxiana, “a construção do

pensamento se daria, pois da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e

chega-se ao concreto” (SAVIANI, 1991, p.6).

Por mais que a nossa leitura de mundo, a nossa sede por desvelar o mundo e as nossas

utopias para o mundo nos auxiliem na compreensão da realidade investigada, na utilização de

métodos e técnicas de pesquisa e, posteriormente, na análise dos dados, as conclusões desta

pesquisa também são mutáveis e fragilizadas pela própria práxis social em produzir a vida, já

que “o conhecimento não é algo acabado, mas uma construção que se faz e refaz

constantemente” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 18).

Porém, acreditamos que nossas intervenções contribuam não só para dar um novo

significado aos saberes da experiência, mas reconhecer que eles são fruto do movimento

histórico e dialético da realidade e do mundo do trabalho. Pensamos que o materialismo

histórico-dialético seja um “método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, é para

o pensamento, precisamente, a maneira de se apropriar do concreto, de reproduzi-lo como

concreto espiritual” (MARX, 2003, p. 248), é um ser e estar consciente e crítico no mundo.

Dessa forma, o materialismo histórico propiciará que reflitamos dialeticamente acerca

da interface existente entre trabalho e educação, tendo por um lado, como pano de fundo, os

processos históricos, econômicos e sociais e, por outro, a vinculação a uma determinada

realidade concreta, já que não podemos desvincular o universo pesquisado de sua totalidade.

A pesquisa materialista e histórica deve apresentar a totalidade que envolve o objeto

de estudo, isto é, apreender como foi construído historicamente e concretamente-síntese de

múltiplas determinações - o todo em que o objeto está inserido.

Para tanto, utilizaremos a abordagem qualitativa, a fim de nos aproximarmos da

complexidade do fenômeno social estudado, objetivando a compreensão dos seus aspectos

subjetivos, visto que ela possibilita

[...] maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais

explícito. Pode envolver levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas

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experientes no problema pesquisado. Geralmente, assume a forma de

pesquisa bibliográfica e estudo de caso (GIL, 2002, p. 43).

Assim sendo, nossa pesquisa se configura em um Estudo de Caso, já que decidimos

estudar um caso específico e, mesmo assim, estávamos cientes de que seus resultados podem

ou não ser generalizados para contextos similares.

Estudar o caso específico de Capão Verde nos possibilita analisarmos as

singularidades da produção associada constituída ali e compará-la com tantas outras

experiências existentes. Além disso, constatamos que essa maneira de organizar o trabalho

persiste mesmo dentro do sistema capitalista, assegurando a reprodução ampliada da vida

desses trabalhadores e trabalhadoras.

A referida Comunidade produz a vida associadamente, não só no âmbito material, e

isso pode ser observado desde a sua constituição. Os trabalhadores e trabalhadoras de Capão

Verde têm lembranças de produzir a vida associadamente, principalmente, através do

Muxirum e das redes de solidariedade que se estendem para além do trabalho, e almejam que

isso perdure/se consolide através da Associação Agriverde.

Dentre as especificidades encontradas, ressaltamos a valorização da posse coletiva da

terra que faz com que esses (as) trabalhadores (as), por quase um século, (re) criem estratégias

para manter os seus parentes morando e trabalhando naquele local. Assim, os saberes da

experiência com o trabalho associado e com a vida são compartilhados entre eles, o que

contribui para a permanência na Comunidade. Apesar de sofrerem influência externa (Felinto,

Antônio e SEBRAE), a gestão do processo de trabalho e da produção da vida social é

decidida, coletivamente, por esses trabalhadores e trabalhadoras.

Nesse sentido, esses trabalhadores discutem e decidem coletivamente sobre: o tempo e

o ritmo da produção, a função que exercerão em determinado dia, a divisão do fruto do

trabalho excedente, a venda e o valor das mercadorias. Portanto, da autogestão, da

solidariedade e do ideário de coletividade, emerge a Associação Agriverde, que procura

assegurar recursos e benefícios para toda a Comunidade.

Alguns costumes/práticas presentes na Comunidade são singulares, como por

exemplo, a interrupção do processo de produção em função de festividades; a utilização de

ervas, plantas e raízes na cura de doenças; o Muxirum; a Casa de Amparo; o interesse coletivo

que prevalece sobre o individual e o convívio fraterno2.

2 Essa afirmação não equivale pressupor a inexistência de conflitos, discussões ou divergências no interior da

Comunidade, mas sim, que a resolução dos mesmos se dá através da discussão e decisão coletiva.

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Dessa forma, a pesquisa de campo foi desenvolvida a partir dos seguintes

instrumentos/técnicas de pesquisa: entrevistas semi-estruturadas e gravadas, conversas

informais e observações registradas no Caderno de Campo. Já como dados secundários,

realizamos o levantamento e a análise bibliográfica, já que a “distinção entre o fundamental e

o secundário, o necessário e o fortuito é princípio epistemológico sem o qual não é possível

construir conhecimento científico” (FRIGOTTO, 1989, p.81).

Para a referida análise, buscamos nos pautar no materialismo histórico - dialético

como método que, nas palavras de Frigotto (1989, p.73), é “um método que permite uma

apreensão radical (que vai à raiz) da realidade e, enquanto práxis, isto é, unidade de teoria e

prática na busca da transformação e de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano

da realidade histórica”.

Tendo isso claro, realizamos entrevistas individuais, semiestruturadas e gravadas com

12 trabalhadores e trabalhadoras da Comunidade Capão Verde e também participamos de

conversas coletivas. Além dos moradores da Comunidade, entrevistamos Felinto e Antônio,

que são voluntários e ajudam nos processos administrativos referentes à Agroindústria.

Acompanhamos festas, a produção dos derivados da banana da terra, algumas aulas do Ensino

Fundamental e da EJA (Educação de Jovens e Adultos). Para maior clareza do objeto,

registramos os momentos pesquisados em áudios, fotografias, vídeos e Caderno de Campo.

O recorte desta pesquisa mostra que “não posso ser apenas o narrador de alguma coisa

que eu considerasse como um ‘fato dado’; devo ter uma mentalidade crítica, curiosa e sem

repouso, constantemente vigilante, consciente também dos leitores que têm de refazer o

próprio esforço de minha pesquisa” (FREIRE, 1974, p. 42). Desse modo, as perguntas que

nortearam a pesquisa de campo foram se ampliando ao longo de nosso contato com os

trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde. Elas estão anexadas ao final desta dissertação

para apreciação.

Estaremos apresentando, a seguir, os capítulos resultantes do nosso esforço enquanto

pesquisador.

No capítulo I, partiremos da análise ontológica do trabalho, considerando também as

suas condições históricas, pois entendemos que o “ser” humano somente se constitui como tal

através do surgimento do trabalho e das relações decorrentes deste.

Para discutirmos esse tema, buscamos aporte teórico, principalmente em Marx, que

passou parte de sua vida analisando e formulando reflexões críticas sobre “descaracterização”

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do trabalho como categoria ontológica na sociedade capitalista industrial e cujo pensamento

influenciou/repercutiu nos escritos de vários outros autores. Assim, perante a crise do trabalho

capitalista e, principalmente, a partir da reestruturação produtiva, em que muitos

trabalhadores foram relegados ao desemprego, subemprego, trabalho parcial, demos ênfase a

um tipo de organização do processo de trabalho – a produção associada, cujos princípios

diferem da lógica capitalista de mercado.

Posteriormente, no capítulo II, procuramos dissertar sobre a relação trabalho -

educação e buscamos apoio teórico especialmente nos escritos de Gramsci – que aprofundou

o pensamento de Marx sobre o trabalho, como princípio educativo. Gramsci viveu um

contexto de transformações no modo de produção e reprodução do capitalismo, nas primeiras

décadas do século XX na Europa, o que influenciou suas reflexões, pois “nenhuma batalha

pedagógica pode ser separada da batalha política e social” (MANACORDA, 1997, p. 360).

Além disso, a sua própria formação escolar (autoritária e discriminadora) e universitária o fez

construir percepções sobre educação. Então, Gramsci nos auxiliou a compreender a

propagação da educação como mercadoria pela classe burguesa. Essa disseminação serviu

para manter a hegemonia da classe burguesa, para disciplinar o trabalhador ao trabalho sob a

ótica capitalista, para estabelecer suas concepções de mundo. Ademais, ele aponta que a

formação omnilateral acontece para além da escola e, principalmente, é mediada pelo trabalho

para garantir a reprodução ampliada da vida. Diante dessa dicotomia, Gramsci propõe a

articulação entre trabalho manual e trabalho intelectual, através da escola unitária, dando

chances de o trabalhador refletir sobre o saber e o fazer, a fim de serem dirigentes de si e do

mundo do trabalho.

Thompson (1987), através do estudo da cultura popular inglesa do século XVIII, nos

ajudou a compreender a influência da cultura do trabalho, difundida pela classe dominante, na

concepção de educação como mercadoria, bem como entender que a experiência com o

trabalho e com outras instâncias da produção existencial revelam um processo educativo.

Tiriba (2008, 2007, 2006, 2004, 2001) e Fischer (2009) nos auxiliaram a compreender

que os saberes oriundos da experiência com o trabalho geram uma cultura do trabalho que

regulam as relações sociais e, através de seus estudos e pesquisas, apreendemos o significado

da produção associada e a construção de uma pedagogia pensada para e pelos (as)

trabalhadores (as) – a pedagogia da produção associada.

Dessa forma, apresentamos os saberes que identificamos da experiência com o

trabalho associado construído e vivenciado pelos trabalhadores de Capão Verde:

a) o sentimento construído pela terra e a influência do parentesco;

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b) a possibilidade de sobreviver da terra (meio de produção) e sem ter patrão;

c) a aprendizagem do trabalho com os pais (transmissão cultural);

d) as experiências com o trabalho sob a lógica capitalista;

e) a experiência embrionária da autogestão do processo de trabalho;

f) as aprendizagens e descobertas coletivas na produção de novas mercadorias;

g) o reconhecimento da Comunidade como remanescente de quilombo;

h) a atuação de Felinto e Antônio (voluntários) e o contato, mediado por eles, com

algumas instituições (SEBRAE, UNEMAT, Fundação Palmares);

i) a criação da unidade de produção associada: Associação dos Agricultores e

Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde - Agriverde.

Na seqüência, o capítulo III trará, especificamente, as experiências com a produção

associada no âmbito da vida material, da constituição da Comunidade até a formação da

Associação. Desde a compra da terra, esses trabalhadores e trabalhadoras produzem a vida de

forma coletiva e solidária, assegurando a reprodução ampliada da vida e a permanência na

Comunidade. Os trabalhadores e trabalhadoras foram “convencidos” e auxiliados por um

intelectual orgânico (Felinto) a organizar o processo de trabalho e a vender o fruto excedente,

através de uma associação que eles criaram (Associação dos Agricultores e Agricultoras

Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde - Agriverde). A constituição da

Associação trouxe alguns benefícios para a Comunidade, não só na possibilidade de produzir

valores de troca, mas desafiando os trabalhadores e trabalhadoras a serem dirigentes do

processo de trabalho (autogestão).

No capítulo IV, brevemente, nos deteremos na análise da educação formal em Capão

Verde, no Ensino Fundamental e na EJA, e nas reivindicações dos trabalhadores por uma

educação de novo tipo.

No decorrer da pesquisa de campo, nos deparamos com algumas dificuldades: não

conhecíamos o entorno de Cuiabá, o que dificultou a escolha da comunidade em que

realizaríamos a pesquisa; a distância existente entre Cuiabá e a Comunidade nos

impossibilitou de estarmos mais presentes nas reuniões, festas e capacitações; algumas

entrevistas gravadas foram pouco esclarecedoras; a pouca familiaridade com a linguagem

utilizada pelos pesquisados; a desconfiança inicial em relação à nossa presença e os motivos

de estarmos ali; a inexperiência, como pesquisadores, e a sensação -sempre presente- de que

não daríamos conta de “fazer do limão, uma limonada”.

Pretendemos, com esta pesquisa, não só dar visibilidade à produção associada e aos

saberes construídos a partir dessa experiência, como também, às novas práticas e culturas

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oriundas do trabalho, que asseguram a reprodução ampliada da vida. Além disso, refletimos,

por um lado, sobre as concepções de mundo, de homem, de trabalho e de devir, expressos

pelos trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde e, por outro lado, acerca dos anseios,

sonhos, medos e reivindicações que os mesmos compartilham. Nesse sentido, almejamos

questionar, em alguma medida, os estudos/análises que apontam o ideário neoliberal como

onipresente e, quem sabe assim, resgatar a utopia enquanto possibilidade histórica.

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3

3 Obras de Portinari que retratam diferentes processos de trabalho retiradas dos sites:

http://www.sergiogeremeias.blogspot.com; http://www.portalsaofrancisco.com.br;

http://www.catracalivre.folha.uol.com.br; http://www.citapense.blogspot.com; http://www.brasil.gov.br e

http://www.trabalhodecente.blogspot.com.

O centenário de

Cândido

Café

O centenário de Cândido Café

O lavrador de café

C

acau

A colheita Cacau

Cana

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CAPÍTULO 1 – A PRODUÇÃO DA EXISTÊNCIA HUMANA: TRABALHO

_____________________________________________________________________

1.1.O trabalho como categoria ontológica e histórica

E se somos Severinos

iguais em tudo na vida,

morremos de morte igual,

mesma morte severina:

que é a morte de que se morre

de velhice antes dos trinta,

de emboscada antes dos vinte

de fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

é que a morte severina

ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida).

(Morte e Vida Severina – João Cabral de Melo Neto)

Na obra de João Cabral de Melo Neto (2007), podemos visualizar a fome, não só

como conseqüência das intempéries climáticas, mas resultante da realidade do povo brasileiro

na luta e peregrinação pela sobrevivência em meados da década de 30. Nos dias atuais, os

problemas decorrentes da reestruturação produtiva marcam muitos rostos e podemos percebê-

los nas esquinas e ruas de qualquer cidade. São rostos que demonstram não só a fome, mas

angústias, tristezas, desalentos e incertezas, pois pela sua condição natural, são aptas ao

trabalho, mas onde está o trabalho? O trabalho assalariado lhes roubou.

Os peregrinos da obra de João Cabral de Melo Neto, depois de muito andarem,

encontraram uma fazenda aparentemente abandonada, mas que logo foi reivindicada por seu

dono. Para permanecerem na terra, tiveram que se submeter à exploração e ao logro do

fazendeiro. Ao longo da história, perceberam que a falta dos saberes escolares não lhes

permitiria reivindicar o que o fazendeiro lhes roubava e, por conta da seca, resolveram buscar

outro local para viver. Os saberes da experiência vivenciada por esses trabalhadores

permitiram que, mesmo sem a educação formal, enxergassem a desigualdade entranhada na

realidade e acreditassem no devir utópico, no qual seus filhos alcançariam um destino menos

cruel.

No pequeno resumo acima, se observa outra situação criada pelo capitalismo: a

exploração, a alienação e a mais valia a que os proprietários dos meios de produção submetem

O

lavrador de café

C

acau

A

colheita

C

ana

C

acau

Cana

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a força de trabalho. Contudo, ele nos mostra também que na produção da existência, os

trabalhadores podem perceber essa condição e buscar algo melhor.

A brilhante obra, miseravelmente aqui abreviada, nos inspirou a iniciarmos esta

pesquisa e nos instigou a buscar respostas para alguns questionamentos: O que é trabalho?

Como se constituiu o trabalho na história da humanidade? Quais as especificidades do modo

de produção capitalista? Como se deu a relação entre trabalho e educação? Como se produz a

vida associadamente? Como e para que se educam os trabalhadores? Esperamos ter

conseguido respondê-las.

Neste capítulo, prioritariamente, abordaremos o conceito de trabalho e as categorias e

as temáticas decorrentes deste, fundamentando-nos, principalmente, nas percepções de Marx

(1982, 1987, 1998, 2003, 2004, 2007) e de outros autores marxistas como Saviani (1994,

1996, 2007), Frigotto (2009, 2001, 1989), Antunes (1999, 2004), Harvey (1996), Cattani

(1997, 2002, 2009), Bottomore (2001, 2006), Braverman (2001), entre outros.

Como nossa pesquisa abordará a produção associada da vida, praticada por

trabalhadores e trabalhadoras rurais residentes em uma Comunidade chamada Capão Verde –

em Poconé/MT, consideramos que Marx já vislumbrava uma economia em que a meios de

produção e a gestão do trabalho fossem coletivas, em que fossem socializados os frutos do

trabalho, o que possibilitaria a introdução de um projeto universalizado de sociedade.

Compactuando com a idéia de Marx sobre a contradição entre forças produtivas e

relações sociais de produção, que somente poderiam se alterar com uma mudança no modo de

produção, Ferreira (2001, p. 56) afirma que

[...] ao vender sua força de trabalho em troca de salário, ele

(trabalhador) se aliena em relação ao seu trabalho e é alienado por ele, ao

mesmo tempo, o que ocasiona outra alienação em relação a si mesmo, que

levaria à perda da sua dignidade humana (...) a única forma possível de

emancipação dessa ‘alienação’ seria pela tomada do controle dos meios de

produção por parte dos trabalhadores, por meio de uma revolução proletária

que expropriaria os capitalistas e aboliria o regime assalariado, resgatando o

sentido coletivo do trabalho social.

No entanto, ressaltamos que a emergência do novo não é um processo natural e causa

perturbações nos modos de produção da vida, já que forças produtivas e relações sociais de

produção só podem ser entendidas como uma relação dialética.

Para compreendermos o pensamento de Marx, precisamos estabelecer um

movimento de idas e vindas com a pesquisa de campo: antever o objeto e ter idéias abstratas

sobre ele, ao mesmo tempo, fazer leituras sobre a produção histórica e social da vida material

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e imaterial e, a partir da experiência com o concreto real da pesquisa, forjar conceitos que o

expliquem. É claro que temos consciência que tais conceitos não são verdades absolutas, pois

cada realidade tem suas especificidades.

Desse modo, iniciamos a dissertação respondendo que, na concepção marxista, o

trabalho é uma categoria ontológica – intrínseca ao ser humano – ou seja, o ser humano

humanizou-se através do trabalho. O trabalho é o agente fundante do ser social. Mas é

também uma categoria histórica, porque foi se produzindo e reproduzindo ao longo dos

tempos e, assim, os modos e as formas pelos quais os bens materiais foram produzidos, em

cada sociedade, determinaram o seu regime social (MARX, 1982).

Cabe, nesse ponto, chamar a atenção acerca de que os modos de produção são

formados por suas forças produtivas e pelas relações sociais de produção. E, para Marx

(1982), as forças produtivas e as relações sociais de produção fazem parte do que ele chamou

de infraestrutura, relacionando-se diretamente e dialeticamente com a superestrutura formada

pelas relações jurídicas, políticas e ideológicas.

Alcançando o sentido ontológico e histórico do trabalho, podemos compreender

melhor o ser humano e seus arranjos sociais, já que observaremos que, com o tempo, “o

trabalho deslocou-se, em parte, do próprio esforço produtivo para a relação social

predominante” (WILLIAMS, 2007, p. 397).

No senso comum, observamos uma discrepância sobre o entendimento de trabalho.

Quando alguém pergunta: Você está trabalhando? E você, por estar somente dedicado aos

afazeres domésticos, responde que não, aludindo ao pensamento: quem trabalha é quem sai de

casa e desloca-se para outro local e recebe salário, em troca da sua atividade, por determinado

período de tempo. Ou, então, responde que faz um bico por não estar inserido no mercado

formal de trabalho.

E quem produz associadamente com a sua comunidade, sem ter direitos trabalhistas,

sem bater o ponto, definindo coletivamente a gestão do processo de trabalho e sem visar o

lucro, não está inserido no mundo do trabalho? O que define se a pessoa trabalha ou não? O

que é trabalho, afinal?

O discurso capitalista já está tão arraigado na produção da existência das pessoas que

estas vinculam o sentido do trabalho a um emprego formal, isto é, a uma atividade realizada

no mercado formal de trabalho, na qual se recebe um salário pela mesma; contribuindo para

acreditarem que o trabalho é algo externo ao trabalhador. Isso se deve porque, no período de

consolidação do capitalismo industrial, este ideário foi construído e reproduzido pela

burguesia. E, além disso,

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[...] a burguesia subjugou o país às leis das cidades. Criou cidades

enormes; aumentou em grande escala a população urbana, se comparada à

rural e, assim, resgatou uma considerável parte da população da idiotia da

vida rural (...). A burguesia coloca obstáculos cada vez maiores à dispersão

da população, dos meios de produção e da propriedade. Aglomerou

populações, centralizou meios de produção e concentrou a propriedade em

algumas poucas mãos. A conseqüência necessária disto foi a centralização

política. Províncias independentes, províncias com interesses, leis, governos

e sistemas de impostos separados foram aglomeradas em um bloco, em uma

nação com um governo, um código de leis, um interesse nacional de classe,

uma fronteira e uma tarifa alfandegária. (MARX, 1998, p.15-16).

Acreditamos que isso também aconteça porque muitas pessoas desconhecem a

existência de outras formas do processo de trabalho, em que sua organização e seus princípios

diferem do que é reforçado pela lógica capitalista. Onde inexiste o controle do tempo e ritmo

de trabalho determinado pelo patrão, não necessitam competir com seus pares e nem

vislumbram o lucro como atividade fim. Marx (1998, p. 3) elucida essa ignorância, ao dizer

que “nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido de laços naturais

que, em épocas históricas mais remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado

humano limitado e determinado”.

Lourenço, tesoureiro da Associação dos Agricultores e Agricultoras

Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde - Agriverde, teve uma

experiência ao plantar em terras externas à Comunidade, por conta dos instrumentos de

produção que o fazendeiro possuía. Ele tinha a intenção de abreviar o tempo de plantação e

colheita, mas em suas palavras, podemos perceber que o detentor dos meios de produção

sempre objetiva obter vantagens e lucros maiores que a força de trabalho e, quando isso não

acontece, dispensa o trabalhador:

Ano passado eu plantei com um fazendeiro ali. Eu falei: você dá a

terra? E ele me deu a terra, aí nóis plantou. Aí, eu plantei com ele lá, deu oito

carreta de milho, eu dou tudo coído e montoado; se dá duzentos sacos, é cem

prá ele e cem prá mim, aí ele num quis, ... que num sei o que e tal. Ele me

deu só a terra, eu plantei, cuidei, quebrei e eu dei o milho prá ele montoá. Aí,

esse ano, eu falei prá ele: e aí, você não vai querer? Ele: ah, num quero.

Então, tá beleza, tudo bem se num qué.

Devemos destacar que produzir associativamente não é uma novidade da conjuntura

atual, mas esta foi submersa ao longo dos tempos, principalmente, pelos ideários construídos

a partir do modo de produção capitalista, como o individualismo, competição, exploração, isto

é, “as ações humanas são (foram) determinadas por condições externas aos indivíduos

singulares” (COUTINHO, 1990, p. 37).

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Marx (1998, p. 4) enfatizou que, realizando um estudo sobre o indivíduo, na história

da humanidade, é possível ver que

[...] de início, este aparece de um modo ainda muito natural, numa

família e numa tribo, que é família ampliada; mais tarde, nas diversas formas

de comunidade resultante do antagonismo e da fusão das tribos. Só no século

XVIII, na “sociedade burguesa”, as diversas formas do conjunto social

passaram a apresentar-se ao individuo como simples meio de realizar seus

fins privados, como necessidade exterior.

Mesmo produzindo a vida associadamente, temos casos, em Capão Verde, em que

alguns trabalhadores privilegiam suas necessidades específicas e se rendem ao trabalho sob os

ditames capitalistas. Isso se deve porque o trabalhador não produz a sua vida fora da

sociedade capitalista e está sujeito às suas intervenções.

As pessoas ficam muito por causa do dinheiro, às vezes não é um

dinheiro rápido, num tem um resultado financeiro assim rápido, de imediato,

né. Então a pessoa que tá precisando a gente não tem como garantir, falar:

não eu vou te pagar, vai sair, depois a pessoa acaba se decepcionando,

quando chega o final do mês e não deu aquele que ele pensava, que ele

esperava, muitos que não tá preparado pra isso. As pessoas quer é mais

assim. A gente tá dando um tempo, esperando a coisa tiver mais

encaminhado, tiver mais embalado a coisa a produção. A gente já sabe, já

entende, já trabalhou tudo esse tempo, a gente tá amadurecido pra essa

questão e muitas pessoas não tão ainda e as pessoas quer salário, carteira

assinada, chegou o mês, tipo, quer ganhar seu salário e às vezes a gente sabe

que agora não tem condições de pagar (Andréia – presidente da Associação

dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade

Tradicional Capão Verde).

Contudo Marx (1982, p.148), com seus estudos, percebeu que, no seu sentido

ontológico, “o trabalho é condição natural da existência humana, uma condição do

metabolismo entre homem e natureza independentemente de qualquer forma social”. Mas, no

mesmo trecho, ele reitera que “trabalho que põe valor de troca é uma forma especificamente

social do trabalho” (idem), referindo-se à concepção de trabalho na sociedade capitalista.

Ligado a essa questão, Saviani (2007), no seu artigo Trabalho e educação:

fundamentos ontológicos e históricos, a partir do que Marx já havia concluído no capítulo:

Trabalho estranhado e propriedade privada dos Manuscritos Econômicos- Filosóficos (2004)

- que a essência humana é o trabalho - questiona se o dono dos meios de produção, que se

apropria da força de trabalho de outrem, em seu benefício, perde a sua essência. Ao longo do

texto, Saviani conclui que não e pondera que produzindo em seu benefício ou para o benefício

de outros, ambos realizam trabalho, mas sob condições e com implicações completamente

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diferentes. Para esclarecer melhor este posicionamento, Saviani afirma que o explorador do

trabalho de outrem não perde sua essência, já que o trabalhador produz a sua própria

existência e a do seu explorador.

Como dissemos anteriormente, Marx deixou claro, já nos Manuscritos Econômico-

Filosóficos (2004), que “o trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior

sensível (sinnlich). Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual [o trabalho] é

ativo, [e] a partir da qual e por meio da qual [o trabalho] se produz” (2004, p. 81). Em outra

obra, acrescenta (MARX, 1982) que todos os seres vivos só sobreviveram porque tomaram

posse dos produtos da natureza, em seu proveito, uns de forma direta e outros alterando o seu

estado natural para satisfazerem as suas necessidades. Por isso, ele concluiu que a definição

mais simples de trabalho é a transformação da natureza pelos seres vivos. E como os seres

vivos fazem parte da natureza, ao transformá-la, acabam se transformando também.

Lembramos que entre seres vivos estão englobados os animais irracionais e

racionais, mas Marx (1982) observou que havia uma diferença entre eles: que os animais

realizavam trabalho de forma limitada e, naturalmente, determinada e os seres humanos, por

seu lado, eram capazes de projetar/pensar a realização do trabalho, de forma consciente e

proposital, isto é, de abstrair a atividade a ser realizada posteriormente, e argumentou:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha

supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o

pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção

antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece

um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador.

Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera, ele imprime ao

material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei

determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua

vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos

órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através

da atenção durante todo o curso de trabalho (MARX, 1982, p.202).

Alguns pensadores marxistas como Gramsci (2006, 1991), Frigotto (2009, 2001),

Saviani (2007, 1996, 1994), Tiriba (2008, 2007, 2006, 2004, 2001), Fischer (2009), Ciavatta

(1990), entre outros, compreenderam a partir do excerto acima, que o trabalho manual do

homem é inseparável do seu trabalho intelectual, principalmente, quando se pensa o trabalho

como princípio educativo, pois com este, aprende-se a ser homem e a se relacionar com seus

pares, de modo a produzir a sua existência, através da produção material.

Diferente do animal, que vem regulado e programado por sua

natureza e, por isso, não projeta sua existência, não a modifica, mas se

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adapta e responde instintivamente ao meio, os seres humanos criam e

recriam, pela ação consciente do trabalho, a sua própria existência. Embora o

homem também seja um ser da natureza ao constituir-se humano se

diferencia dela assumindo uma autonomia relativa como espécie do gênero

humano que pode projetar-se, criar alternativas e tomar decisões (KONDER,

1992 apud FRIGOTTO, 2009, p.258).

Com o tempo, o ser humano percebeu que para garantir a produção da sua existência

e do seu grupo teria que organizar o trabalho e os trabalhadores. Percebeu, também, que ao

invés de consumir momentaneamente o produto do seu trabalho, deveria armazená-lo em um

local fixo, para utilizá-lo quando necessitasse, ou seja, realizar uma acumulação das

mercadorias produzidas.

Para organizar o trabalho desta maneira e acumular mercadorias, alguns homens

passaram a se apropriar de terras e do trabalho de outros homens e criaram, ao longo da

história, modos de produção que o reforçaram e que “podem ser caracterizados como épocas

progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção: asiático, antigo,

feudal e burguês moderno” (MARX, 1987, p. 30).

Da produção comunal e solidária, predomina-se e difunde-se a idéia de dominação e

exploração do outro para acumular riquezas e prestígio social. Eis a separação dos seres

humanos e “toda a sociedade tem de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos

trabalhadores sem propriedade” (MARX, 2004, p.79). Sobre isso, destacou Marx (1982, p.80)

que “desde que os homens, não importa o modo, trabalhem uns para os outros, adquire o

trabalho uma forma social”. E, com isso, já não realizam o trabalho pela sua própria natureza

e necessidade, mas dependendo de uma força externa motivadora, já que o “homem é (ou

melhor, passou a ser) uma máquina de consumir e produzir” (MARX, 2004, p.56).

Nesse momento, questionamos: é possível existirem, no contexto capitalista,

trabalhadores produzindo de forma comunal e solidária, sem explorarem ninguém e dividindo

o fruto do seu trabalho? Sim, é possível!

Para corroborar com a afirmação anterior, vemos nas imagens abaixo os

trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde, no momento em que estão produzindo banana

chips e bala de banana. Nas imagens, percebe-se a inexistência da divisão sexual do trabalho e

que o trabalhador de camisa marrom participou da produção cortando a bala de banana e

fritando a banana chips, indicando que a organização do processo de trabalho não é pautada

pelo parcelamento das tarefas e especialização das funções.

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Fotografia 1 - Colocando o doce da banana na forma (imagens da autora)

Fotografia 2 - Cortando a bala de banana (imagens da autora)

Fotografia 3 - Fritando banana chips (imagens da autora)

Todo mundo aqui pensa em ganhar igual né, não como empregado

um do outro, trabalhando igual do jeito que tá (Andréia – presidente da

Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da

Comunidade Tradicional Capão Verde).

Ao observarmos o processo de produção, vimos que eles o interrompem para

conversar, para dar entrevista e soubemos que não trabalham quando há festividades na

E

va

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Comunidade. A autogestão do processo de trabalho é clara quando afirmam que eles decidem,

coletivamente, os dias em que trabalharão; a duração, o início e o término da jornada de

trabalho; como serão divididos os frutos do trabalho; qual etapa da produção será

desenvolvida em um determinado dia e, isto tudo, transcorre sem a presença do patrão ou do

capataz. A normalidade da produção tem como pressupostos a solidariedade, a cooperação, a

liberdade, a autonomia, a democracia e a igualdade. Materializam-se assim, relações sociais

de produção nas quais não há exploração, pois como eles mesmos afirmaram: todos são

proprietários dos meios de produção.

Anteriormente às leituras efetuadas, pensávamos que não, que só existisse o que está

posto à nossa frente, o que é visível e perceptível - a aparência das coisas. A única

possibilidade se traduzia em ter ou não um emprego, com carteira de trabalho, após anos de

estudos ou qualificações.

Mas, após as primeiras leituras das obras Para a Crítica da Economia Política

(1998) Manuscritos Econômicos – Filosóficos (2004) e O Capital (1982), em que nos

detivemos na crítica formulada por Marx ao modo de produção capitalista, começamos a ficar

assustados com a essência das coisas, com o que está encoberto pela aparência da realidade

em que vivemos. Por mais que fiquemos indignados com a miséria, exclusão e exploração a

que os trabalhadores estão submetidas no modo de produção vigente, não conseguíamos

desvelar as determinações dessa realidade. E, aludindo, ao orientador deste estudo: “Somos

gratos ao bom e velho Marx” (palavras do orientador Prof. Dr. Edson Caetano, no grupo de

estudos GEPTE).

Além disso, Marx pressupunha que do fim da sociedade capitalista resultaria uma

sociedade de produtores livremente associados. Então, resolvemos buscar o que seriam esses

produtores livremente associados4.

Depois de leituras e muitas andanças por Mato Grosso, identificamos a Comunidade

Capão Verde, na qual os trabalhadores e trabalhadoras produzem associadamente não só

derivados de banana como a própria vida, com a única intenção de assegurar a reprodução

ampliada da vida, a partir de diferentes concepções de mundo e da própria existência,

contrapondo ao que se espera numa sociedade capitalista.

Durante a pesquisa de campo, percebemos que eles trabalham contentes, sempre

conversando sobre o processo de produção e sobre a vida, interrompendo o trabalho quando

4 Nas obras de Marx (1982, 1987, 1998, 2003, 2004, 2007), a produção associada aparece com as seguintes

denominações: trabalho associado, fábricas cooperativas, cooperativas de produção, cooperativas industriais dos

trabalhadores, cooperativas de trabalho, entre outras.

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desejam ou necessitam, como por exemplo: para amamentar um bebê ou dar atenção a um

recém-chegado. Isso pode indicar que o trabalho não tem o sentido penoso ou de sofrimento,

característica presente no modo de produção capitalista - baseado na produtividade, no

cumprimento do horário, na exploração, na prescrição, no controle etc.-. Além disso, as

crianças sempre estão presentes no processo de produção, porque para eles o trabalho infantil

não é sinônimo de exploração e sim da manutenção das tradições culturais.

O mais interessante é que o local de trabalho se torna um espaço em que

compartilham saberes, projetam/criam o produto do trabalho, discutem e decidem

coletivamente o processo de produção e, também, conversam sobre aspectos relacionados à

vida social. Sendo assim, o espaço de trabalho permite que os trabalhadores forjem a

formação humana omnilateral.

Tentamos reproduzir, em momentos diferentes, o que dissemos anteriormente, como

se pode perceber nas fotografias a seguir:

Fotografia 4 - Criando objetos com a fibra do caule da bananeira. Observem as

trabalhadoras sorrindo e conversando. Logo atrás está um menino observando o processo de produção

(imagens da autora).

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Fotografia 5 - Fazendo espetos na Festa de São Sebastião (imagens da autora).

Fotografia 6 - Um menino participando do corte do caule da bananeira. Ele

demonstrava estar contente por estar ajudando os parentes e, em alguma medida, o trabalho é

tido como um tipo de brincadeira (imagens da autora).

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Fotografia 7 - Wellington também participa da produção de artesanato, o que

demonstra não ser a atividade somente feminina. Ao fundo, observamos que Eva parou de

trabalhar para amamentar seu filho (imagens da autora).

Inferimos que, principalmente, Marx (1982) contribuiu com três aspectos

fundamentais para compreendermos a categoria trabalho e seus desdobramentos no modo de

produção capitalista: a projeção do produto final pelo ser humano (ação consciente); as

formas que o trabalho adquiriu, nos distintos modos de produção e o surgimento da

propriedade privada. Ele possibilitou que enxergássemos como o processo de trabalho se

alterou historicamente, nos diversos modos de produção e também a possibilidade de resistir à

lógica capitalista de mercado, que indica uma possível emancipação do trabalho frente ao

capital.

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1.2. O trabalho que segue a lógica capitalista não dignifica o homem, cega o homem

Está na luta, no corre-corre, no dia-a-dia

Marmita é fria mas se precisa ir trabalhar

Essa rotina em toda firma começa às sete da manhã

Patrão reclama e manda embora quem atrasar

Trabalhador(...) Vai pro serviço

É compromisso, vai ter problema se ele faltar

Salário é pouco, não dá pra nada

Desempregado também não dá

E desse jeito a vida segue sem melhorar

(música: Trabalhador – Seu Jorge)

Para contrapormos a lógica capitalista e mais precisamente voltarmos nossos olhares

sobre as contradições entre trabalho e capital, precisamos compreender melhor o que venha a

ser esse modo de produção e seus desdobramentos e, para isso, retomaremos alguns conceitos.

Ao citar De Decca (1985), Ciavatta (2009, p. 409) relembra como a categoria

trabalho foi concebida por autores clássicos:

A transformação moderna do significado da palavra deu-lhe o sentido de

positividade, como argumenta John Locke que descobre o trabalho como

fonte de propriedade; Adam Smith que o defende como fonte de toda a

riqueza; e Karl Marx para quem o trabalho é fonte de toda a produtividade e

expressão da humanidade do ser humano.

Portanto, o trabalho que até a reforma protestante, por exemplo, tinha sentido penoso

e de sofrimento para a redenção dos pecados terrenos, adquiriu uma conotação positiva e isso

foi utilizado pela classe detentora dos meios de produção (a burguesia). Nesse período, a

burguesia contestou o poder do rei e promoveu a Revolução Francesa e a Revolução

Industrial. Esse momento foi determinante para o triunfo do capitalismo.

Surgem várias teorias econômicas e, dentre os intelectuais da Teoria Liberal, citamos

os economistas clássicos David Ricardo (1985) e Adam Smith (2003)5. Num sentido amplo, o

discurso liberal pregava a sociedade livre para vender a sua força de trabalho e a liberdade de

concorrência. Mas, para incorporar os trabalhadores ao regime assalariado, tiveram de usar da

repressão, cooptação, persuasão e contar com os aparelhos do Estado (escola, instituições

religiosas e meios de comunicação).

Marx utilizava esses pensadores nas suas análises, mas fazia duras críticas como na

seguinte passagem:

5 Ver mais em Princípios de Economia Política e Tributação (Os economicistas), de David Ricardo (1985) e em

A Riqueza das Nações, de Adam Smith (2003).

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O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,

quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se

torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria (...). A

apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento (entfremdung) que,

quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto

mais fica sob o domínio do seu produto, do capital (MARX, 2004, p. 80).

Sob a égide do pensamento liberal se explicita quem explora e quem é o explorado, no

modo de produção capitalista, quem detém os meios de produção e quem é o detentor da força

de trabalho. Quem explora possui os meios de produção e a posse privativa do produto do

trabalho do outro – o capitalista - e quem é explorado é a força de trabalho, isto é, quem

possui sua ação corpórea e intelectual – o trabalhador.

Em primeiro lugar, os trabalhadores são separados dos meios com os

quais a produção é realizada, e só podem ter acesso a eles vendendo sua

força de trabalho a outros. Em segundo, os trabalhadores estão livres de

constrições legais, tais como servidão ou escravidão, que os impediam de

dispor da sua força de trabalho. Em terceiro, o propósito do emprego do

trabalhador torna-se a expansão de uma unidade de capital pertencente ao

empregador que esta assim atuando como um capitalista. O processo de

trabalho começa, portanto, com um contrato ou acordo que estabelece as

condições da venda da força de trabalho pelo trabalhador e sua compra pelo

empregador (BRAVERMAN, 1981, p 54-55).

Os “mamíferos de luxo” (capitalistas), parafraseando Gramsci (1991) têm como

objetivo primordial a maximização do lucro empregado para custeio da força de trabalho e

instrumentos de trabalho, que permitam atingir essa finalidade.

Nessa perspectiva, o trabalhador se torna, portanto, um “escravo” do seu objeto e “o

auge dessa sujeição é que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico

e apenas como sujeito físico ele é trabalhador” (MARX, 2004, p. 81-82, grifo do autor).

Dessa forma, o modo de produção capitalista se tornou hegemônico, porque os

trabalhadores não conseguiam trabalhar por conta própria e competir com o capital, só

restando a venda da sua força de trabalho, enquanto a única possibilidade de reprodução

ampliada da vida. O que resultava da compra e venda da força de trabalho era um processo de

trabalho para criar valor de uso, que se transformava em valor de troca e que servia para

expandir o capital (mais valia) do capitalista. No entanto, é bom destacar que o capitalista não

comprava trabalho e sim força de trabalho para executá-lo.

Destacamos, também, que na sociedade capitalista o referido trabalho passa a existir

sobre um duplo caráter - trabalho com a finalidade de produzir o que se deseja ou necessita

em certo momento (trabalho útil ou concreto) e também, trabalho que vem da necessidade de

“ganhar” dinheiro (trabalho abstrato). À segunda forma, está implícita a produção que gera

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valor e mais valia ao capitalista, sem ter a opção de realização pessoal, pois “têm de sacrificar

o seu tempo e executar trabalho de escravos, desfazendo-se (sich entäussernd) de toda a

liberdade a serviço da avareza” (MARX, 2004, p.26).

Vale ressaltar que, na Comunidade pesquisada, os trabalhadores associados têm a

possibilidade de integrar prazer e trabalho, já que a prioridade é a reprodução ampliada da

vida e não o sobretrabalho. Quando eles precisam deixar de trabalhar em razão de festas,

reuniões, cursos, entre outros motivos, isso não causa perturbações na vida desses

trabalhadores.

Quando eu não quero trabaiá eu não vou. Se eu vou pra cidade já

vou com corpo doído. Como hoje eu não vou trabaiá. Aí eu trabaio em casa,

aí eu vou arruma arreio, vou fazer arreio, vou fazer uma bainha de faca

porque aqui todos me conhece, eu não preciso correr atrás do dinheiro. Aí

quando amanhece chovendo e eu não quero sair na chuva pra ir na roça, aí

eu trabaio em casa. (Justino – morador de Capão Verde, que vive da roça e

da confecção de arreios, carroça e viola de cocho)

Dialogando com Marx (1982), compreendemos que a materialização da contradição

entre capital e trabalho se concretiza no salário que o capitalista paga ao trabalhador, já que

com isso ele aliena a força de trabalho e adquire o lucro. Além disso ser incoerente, é

extremamente injusto porque os trabalhadores recebem parcos salários pelo tanto que

produzem, não sendo ambos equivalentes. Isso se deve a concepção do trabalhador ter sido

comparado a um animal, que necessita do “básico” para sobreviver.

Nesse bojo, além do poder econômico, a burguesia se ergueu, também, sob forte

ideário político, o que consolidou sua hegemonia política sobre a classe proletária. Já que

“cada passo no desenvolvimento da burguesia foi acompanhado por um avanço político

correspondente” (MARX, 1998, p. 11).

A economia clássica contribuiu com a burguesia apregoando que a sociedade era livre

para vender a sua força de trabalho, pois não havia diferença entre as classes e também

incitava a livre concorrência. Com isso, se evidencia mais uma contradição entre capital e

trabalho – a lei da oferta e da procura e com esse fator, “o trabalhador não tem apenas de lutar

pelos seus meios de vida físicos. Ele tem de lutar pela aquisição de trabalho, isto é, pela

possibilidade, pelos meios de poder efetivar sua atividade” (MARX, 2004, p. 25).

Assim, Marx destacou, nos Manuscritos Econômico-filosóficos (2004, p. 82-83), que o

trabalho ganha novo sentido, ele é algo externo ao trabalhador, não lhe pertence e sim a quem

o explora

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[...] o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não

pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas

nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve

nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína

o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro

lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho.

Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O

seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório.

O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um

meio para satisfazer necessidades fora dele.

Portanto, a nova organização do processo de trabalho na sociedade capitalista estava

pautada no trabalho assalariado realizado em locais insalubres, utilizando também a força de

trabalho feminina e a infantil, por serem mais baratas. A princípio, eles produziam

mercadorias sem uma jornada fixa de trabalho, para intensificar o sobretrabalho. Com o

gerenciamento científico do trabalho, o tempo e o ritmo da produção passaram a ser

controlados, mas ainda com a mesma finalidade – a mais valia.

Com a introdução das máquinas para aumentar a produção e, conseqüentemente, o

lucro do capitalista, o trabalhador teve seu salário reduzido ou foi dispensado, porque

passaram a competir com o trabalho morto (máquinas) pelo espaço no mundo do trabalho.

Sobre isso, Marx (1998, p. 19-20), no Manifesto Comunista, expressou que

[...] devido ao uso extensivo de maquinarias e à divisão do trabalho, o

trabalho dos proletários perdeu todo o seu caráter individual (...) dele só é

exigida a habilidade mais simples, mais monótona e mais facilmente

adquirida. Por isso, o custo de produção de um trabalhador é restrito (...) aos

meios de subsistência que ele requer para a manutenção e para a propagação

da sua raça. Mas o preço de uma mercadoria, e, portanto, também do

trabalho, é igual ao seu custo de produção (...) trabalho aumenta, o salário

diminui (...) o uso de maquinaria e a divisão de trabalho aumentam, o peso

da labuta aumenta, seja pela prolongação das horas de trabalho, pelo

aumento do trabalho exigido durante um lapso de tempo determinado ou

pelo aumento da velocidade da maquinaria etc.

A respeito da citação acima, nos parece que Marx não era a favor da utilização das

máquinas. Pelo contrário, ele era a favor do investimento em tecnologia e na ciência, mas

atentava que essa expansão das forças produtivas, sob a égide capitalista, levaria muitos

trabalhadores à condição de descartáveis no mundo do trabalho, já que uma máquina

produzia, durante mesma jornada de trabalho, o que dez trabalhadores produziam

anteriormente.

Assim, o referido autor (1982, p. 201) acrescentou que “a utilização da força de

trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho consome-a, fazendo o

vendedor dela, trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se realmente no que antes era apenas

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potencialmente: força de trabalho em ação, trabalhador”, não importando o tipo de sujeição ao

capital.

Os trabalhadores só detêm a mercadoria - força de trabalho - e a vendem ao capitalista

(não é uma opção e sim um resultado do desenvolvimento das forças produtivas) e não

percebem a exploração e a alienação a que são submetidos.

Por isso, confirma Frigotto (2009, p. 261),

A acumulação e o lucro, no capitalismo, como assinalamos anteriormente,

advém de uma relação contratual da compra e venda da força de trabalho

entre forças desiguais: quem detém capital e quem detém apenas sua força

de trabalho. Estar de um lado ou de outro não é uma questão de escolha, mas

resultado de um processo histórico que precisa ser apreendido. A dificuldade

de perceber a exploração reside no fato de que o capital compra o tempo de

trabalho dos trabalhadores numa transação e contrato sob o pressuposto da

igualdade e liberdade das partes. Na realidade, trata-se apenas de uma

igualdade e liberdade formal e aparente. Mesmo que venha sob os auspícios

da legalidade de um contrato, pela assimetria de poder entre o capitalista e o

trabalhador, constrangido a vender sua força-de-trabalho, materializa-se um

processo de alienação – vale dizer, uma apropriação indevida, um roubo

legalizado.

Como é obrigado a trabalhar para sobreviver, o homem produz mercadoria que não lhe

pertence e, sim, ao capitalista. Essa mercadoria é produzida para ter valor-de-troca e deve ter

um valor mais elevado do que o investido pelo capitalista (mais-valia). Atentamos aqui que

esta foi uma grande observação de Marx ao analisar este modo de produção.

No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma

transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que o

qual atua por meio instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao

concluir-se o produto. O produto é um valor-de-uso, um material da natureza

adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho

está incorporado ao objeto sobre que atuou (MARX, 1982, p.205).

O valor dessa mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho gasto durante sua

produção e, dizendo somente isto, poderíamos entender que um trabalhador “vagaroso”

produziria mercadorias de maior valor. No entanto, é levada em conta a força de trabalho e o

tempo médio, socialmente necessário, para determinar o valor médio dessas mercadorias,

considerando também o quê o capitalista investiu na força de trabalho e nos meios de

produção. Sendo assim, destacou Marx (1982, p.45): “um valor-de-uso ou um bem só possui,

portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato” e

isso é medido pela quantidade de trabalho que, por sua vez, é medida pelo tempo de trabalho

socialmente necessário.

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Mesmo não tendo noção desse conceito, os trabalhadores associados de Capão Verde

conseguem atribuir valor às suas mercadorias. Como estão inseridos na sociedade capitalista,

não há como criar um valor ao acaso, por isso, eles procuram equipará-las aos valores

atribuídos aos produtos semelhantes vendidos no mercado capitalista em que, ao mesmo

tempo e sem eles se darem conta, estão embutidos quantidade de trabalho gasto para produzir

tais mercadorias.

Quando se determina que o proletariado venda a sua força de trabalho para produzir

valores de uso para outras pessoas consumirem (valor-de-troca), observamos que esse valor é

mais elevado do que o salário que recebem, em outras palavras, produziu-se mais valia

-trabalho excedente- sobretrabalho. Com isso,

[...] ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também

desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados, desvanecem-se,

portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se

distinguem uma das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de

trabalho, o trabalho humano abstrato. (MARX, 1982, p. 44-45).

A partir de então, o trabalho abstrato acaba sendo a alienação do trabalhador em

relação ao seu trabalho. Ele produz mercadorias, mas estas não lhes pertencem. Marx (1982),

ao constatar que o trabalhador é explorado pelo capitalista e que o produto do seu trabalho

não lhe pertence, afirmou que este se nega no objeto criado. Portanto, a mercadoria e o lucro é

que estão na raiz da alienação do proletariado.

Em Capão Verde isso não acontece. Como não há exploração da força de trabalho de

outrem e todos os trabalhadores e trabalhadoras participam solidariamente e autonomamente

da organização e controle do processo de trabalho e, ao final, o dinheiro obtido com a venda

da produção é dividido, concluímos que não são trabalhadores alienados.

Vimos que, para o capitalista, o que importa é transformar o trabalho útil do

trabalhador (individual) em trabalho abstrato (social), isto é, fazer com que o trabalhador sofra

um desgaste da sua energia humana num determinado tempo, para produzir valores de uso

que serão convertidos em valores, a fim de estabelecer condições favoráveis para a ampliação

do capital.

Por mais que o trabalhador seja qualificado ou que o seu trabalho seja complexo, seu

valor se equipara à mercadoria, ao produto de trabalho simples, por ter uma unidade de

medida definida pelo processo social.

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as

características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as

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como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos

do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhados

individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação

social existente, a margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho.

Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias,

coisas sociais [...] (MARX, 1982, p. 81).

Além da introdução das máquinas, o mercado capitalista se ampliou, havendo

concorrência entre os capitalistas e uma redução nos seus lucros. Com isso, existiu mais um

entrave na produção da vida dos trabalhadores do mercado formal: aceitar as condições

propostas pelo patrão (salário precário, condições de trabalho insalubres, longas jornadas) ou

perder definitivamente seu emprego. A partir disso, o trabalhador não é somente uma

mercadoria, mas uma “miserável mercadoria” (MARX, 2004, p. 79).

Portanto, “se a oferta é muito maior que a procura, então uma parte dos trabalhadores

cai na situação de miséria ou de morte pela fome. A existência do trabalhador é, portanto,

reduzida à condição de existência de qualquer outra mercadoria” (MARX, 2004, p. 24).

Assim, os capitalistas auxiliados pelos economistas clássicos liberais, para continuar a

aproveitar da capacidade da força humana de produzir excedente, propositalmente para

aumentar seu capital, criaram modelos de organização do trabalho, a fim de perpetuar o modo

de produção capitalista. Nesse sentido, o processo de trabalho tinha o mesmo propósito:

produzir mais valia e manter o trabalho alienado.

1.3. Da crise econômica surge a restruturação produtiva

Se eu ainda soubesse

Como mudar o mundo

Se eu ainda pudesse

Saber um pouco de tudo

Eu voltaria atrás do tempo (...)

Pra voltar pra ontem

Sem temer o futuro

E olhar pra hoje

Cheio de orgulho

(música: Nosso Mundo – Barão Vermelho

Composição: Maurício Barros e Guto Goffi)

A principal característica do capitalismo é a produção para obter lucros. Mas como

manter isso? Como se manter hegemônico?

Como resposta, os capitalistas das maiores potências industriais (Estados Unidos,

Alemanha, Reino Unido e França,), com a ajuda de estudiosos da área de Administração e

Economia, perceberam que precisavam não só organizar o processo de trabalho como,

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também, regulamentar hábitos e processos sociais. Além disso, em alguns casos, contar com a

intervenção do Estado para compensar as falhas do mercado.

Um dos estudiosos foi o americano Frederick Taylor, que pensou a organização do

trabalho e da produção a partir de um modelo científico– o Taylorismo.

A concepção da organização do trabalho de Taylor foi exposta, em 1911, na obra

Princípios de Administração Científica e enfatizava que o trabalho deveria ser intensificado

através da sua “racionalização científica (estudos dos tempos e movimentos na execução de

uma tarefa)”, como ressalta Larangeira (2002, p.91). Além disso, a intensificação do trabalho

se daria através da fragmentação e da rigidez do trabalho e também do controle do tempo para

os trabalhadores cumprirem a sua função. Assim, o trabalhador foi submetido a uma

disciplina e a uma jornada de trabalho controlada pelo gerente, que deveria ter domínio sobre

a totalidade do processo de produção, para melhor supervisioná-los. Os trabalhadores

deveriam executar suas funções num mesmo ritmo e sem refletir sobre o que e como estavam

produzindo.

Portanto, na concepção de Taylor, o processo de trabalho deveria ser dividido entre

quem concebe e planeja, quem controla e quem executa a produção, e fundamentalmente

entre trabalho intelectual e trabalho manual.

Todo tipo de trabalho exige concentração, autodisciplina,

familiarização com diferentes instrumentos de produção e o conhecimento

das potencialidades de várias matérias-primas em termos de transformação

em produtos úteis. Contudo, a produção de mercadorias em condição de

trabalho assalariado põe boa parte do conhecimento, das decisões técnicas,

bem como do aparelho disciplinar, fora do controle da pessoa que de fato faz

o trabalho. (HARVEY, 1996, p. 119).

Abrimos um parêntese para ressaltar que, por mais que a gerência acreditasse que

apreendia todo o processo de produção, “não há controle absoluto, sempre algo escapa”

(CAETANO, 2010, em orientação coletiva), já que nenhum operário executa o trabalho como

está prescrito, há sempre uma margem em que ele imprime algo de si no processo, pois quem

realmente conhece o processo é quem produz efetivamente – “isso é saber-fazer” (idem). Essa

atitude já expressa certa resistência ao que está posto/imposto.

Sob a ótica taylorista descrita acima, o Fordismo consolida-se nos Estados Unidos e

em partes da Europa. A grande contribuição de Henry Ford, seu idealizador, foi aplicar o

modelo científico de organização do trabalho – Taylorismo – em sua fábrica, mas inovando-o

ao introduzir na sua linha de montagem de carros a esteira rolante. A sua idéia de articular

princípios tayloristas às inovações fordistas apresentava virtualidades, no âmbito do

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desenvolvimento das forças produtivas, logo, até países socialistas concordaram com a sua

adoção.

Harvey (1996, p. 121) pondera e diz que

Ford também fez pouco mais do que racionalizar velhas tecnologias e uma

detalhada divisão do trabalho preexistente, embora, ao fazer o trabalhado

chegar ao trabalhador numa posição fixa, ele tenha conseguido dramáticos

ganhos de produtividade. (...) O que havia de especial em Ford (e que, em

última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu

reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de

massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova

política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova

psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,

modernista e populista.

Relembrando uma cena do filme A classe operária vai ao paraíso, situamos o

funcionamento dessa lógica de organização do trabalho. Um dos trabalhadores (Lulu Massa)

executava a sua função tão mecanicamente e rapidamente, que se assemelhava à máquina e

não se dava conta do que os demais companheiros estavam fazendo em seu entorno,

(quebrando lâmpadas e o alto-falante, emitindo sinais uns aos outros, entre outras coisas) e

quando ele compreendeu seu papel na fábrica, acabou perdendo um dedo:

Eu sou uma máquina, eu sou uma roldana, eu sou uma rosca, eu sou um

parafuso, eu sou uma correia de transmissão, eu sou uma bomba, aliás, a

bomba está estragada, não funciona mais, e agora não pode ser mais

reparada (Fala de Lulu Massa, no filme).

Sobre esse comportamento, remetemos a uma passagem de Gramsci, em

Americanismo e Fordismo (1991, p. 332), para ilustrar o funcionamento da força produtiva –

dos “gorilas adestrados”:

Assim como se caminha, sem necessidade de refletir em todos os

movimentos necessários para se mover, sincronicamente, todas as partes do

corpo, no modo determinado necessário para caminhar, assim acontece e

continuará a acontecer na indústria para os gestos fundamentais do ofício.

Realizando repetitivas tarefas, o trabalhador confundia-se com a máquina. Nas

palavras de Marx, o trabalhador era o apêndice da máquina.

Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na

fábrica, serve à máquina. Naqueles, procede dele o movimento do

instrumental de trabalho; nesta, ele tem de acompanhar o movimento do

instrumental. Na manufatura, os trabalhadores são membros de um

mecanismo vivo. Na fábrica, eles se tornam complementos vivos de um

mecanismo morto que existe independente deles. (MARX, 1982, p. 483).

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Como Chaplin brilhantemente retratou no filme Tempos Modernos, o trabalhador

permanecia fixo no seu posto de trabalho, na linha de montagem e realizava tarefas

repetitivas, em partes da mercadoria que passavam pela esteira rolante - a mercadoria

produzida é que se movimentava e não mais o operário.

Conclui-se que Ford pensou na produção e consumo em massa, a partir de inovações

tecnológicas, instalações grandiosas e de uma organização da produção em que concepção e

execução eram separadas. Por conta desse trabalho fragmentado, não exigia treinamento e

formação dos trabalhadores já que estes se dedicavam a uma só etapa da produção.

Para lucrar, ele instituiu prêmios para quem produzisse mais, gerando competições e

aumento da produção. Outra novidade foi ter o controle absoluto da vida do trabalhador

(controle moral), isto é, para o trabalhador ter a possibilidade de consumir os produtos que

produzia precisaria ter uma vida regrada, já que havia uma relação dialética entre forças

produtivas e relações sociais de produção, isto é, a vida material determinava a vida social,

porque a produção da existência dependia da questão econômica.

A maior divisão do trabalho permite a um operário fazer o trabalho de 5, 10

e 20; ela aumenta, portanto, a concorrência entre os operários de 5, 10 e 20

vezes. Os operários não concorrem entre si apenas por se venderem uns mais

baratos que os outros; mas também pela possibilidade de um só poder fazer o

trabalho de 5, 10 e 20; e é a divisão do trabalho, introduzida pelo capital e

cada vez mais intensificada, que obriga os operários a fazerem essa espécie

de concorrência (MARX & ENGELS, 1849, p.13)

Gramsci (2006) acrescenta, ainda, que Ford ao propor uma produção em massa

idealizava um consumo em massa, pois não queria só um novo tipo de trabalhador, mas um

novo tipo de homem e, por isso, pensava que seus funcionários deveriam ter um modo de vida

e um pensar específico e coerente com a racionalização do trabalho. Para isso, ele enviava

assistentes sociais às casas dos trabalhadores, para averiguar o aspecto moral (não beber, não

fumar, não jogar) e de consumo.

Ford apostou na produção e no consumo em massa, mas a disseminação do Fordismo

contou com vários entraves como, por exemplo, o aumento da concorrência entre os

industriais da área automobilística.

Era tal a crença de Ford no poder corporativo de regulamentação da

economia como um todo que a sua empresa aumentou os salários no começo

da Grande Depressão, na expectativa de que isso aumentasse a demanda

efetiva, recuperasse o mercado e restaurasse a confiança da comunidade de

negócios. Mas as leis coercitivas da competição se mostraram demasiado

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fortes, mesmo para o poderoso Ford, forçando-o a demitir trabalhadores e

cortar salários (HARVEY, 1996, p. 122).

Marx no Manifesto Comunista (1998, p. 9) alerta que “a história de todas as

sociedades que já existiram é a história da luta de classes” e, assim, os trabalhadores foram

tomando consciência da exploração que sofriam e das péssimas condições do trabalho e

passaram a criar resistências: organizaram greves, comícios, abandonaram seus postos de

trabalho, quebraram máquinas, organizaram sindicatos. Contando com a solidariedade de

alguns intelectuais, passaram a reivindicar melhores condições de trabalho, menos horas de

trabalho, descanso, direito ao voto e à escola, entre outras coisas.

Outro problema enfrentado foi a intervenção do Estado pela falta de demanda efetiva

por produtos. A solução foi direcionar excedentes para que fossem absorvidos, “em parte por

despesas produtivas e infraestruturas muito necessárias para a produção e o consumo (sendo a

outra parte, alocada para inúteis gastos militares)” (HARVEY, 1996, p. 124). Com isso, os

capitalistas precisavam chegar a um consenso entre a sua organização do processo de trabalho

e o poder estatal.

No período pós Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, nos anos 50, o

Fordismo passa por um período de êxitos, marcado por uma estabilidade econômica, pela

elevação do padrão de vida dos trabalhadores e pela ausência de crises. Houve crescimento

econômico na indústria siderúrgica, automobilística, na construção civil e nas fábricas de

eletrodomésticos. Além disso, o Estado conteve os movimentos operários, com acordos feitos

com os sindicatos. Se os sindicatos cooperassem com o Fordismo, ganhavam certo poder

dentro das fábricas, promoções, segurança e salários.

O Estado passa a ser responsável por promover “a educação, a saúde, o transporte, o

lazer e a cultura, a previdência social e o salário desemprego /.../ passaram a se constituir em

direitos sociais dos trabalhadores” (FRIGOTTO, 2001, p.76). Esse direito conquistado pelos

trabalhadores se denominou Welfare State ou Estado de Bem-estar Social que consistia no

Estado se responsabilizar e atender o bem estar do indivíduo, isto é, dar um mínimo de

condições para terem qualidade de vida. Os Estados capitalistas cederam para não

prejudicarem a acumulação do capital e evitarem conflitos de classes, mas esse direito só valia

para quem estivesse inserido no mercado formal.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Fordismo foi implantado na Europa e no Japão

“através de políticas impostas na ocupação (...) ou indiretamente, por meio do Plano Marshall

e do investimento direto americano subsequente” (HARVEY, 1996, p. 131).

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Contudo, em 1973, o Fordismo passou a contar com a competição internacional,

principalmente com a competição japonesa -Toyotismo-, que conseguia produzir mercadorias

diversificadas e não mais padronizadas, atendendo a nova demanda do mercado consumidor.

Além disso, Tóquio se tornou “num dos mais importantes centros financeiros mundiais”

(HARVEY, 1996, p. 156), por conta dos Estados Unidos importarem mais que exportarem e,

principalmente, porque seus fundos excedentes eram controlados por seus próprios bancos.

Para responder a essa crise, os capitalistas precisavam reorganizar o capital e sua

lógica e contaram com a política neoliberal que consistia na

[...] privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalhador

e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan

foi expressão mais forte; a isso se seguiu também um intenso processo de

reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do

instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão

anteriores (ANTUNES, 1999, p. 31, grifo do autor).

Os elementos intrínsecos à crise são complexos e têm especificidades de diversas

ordens em cada país, por isso, citaremos os que tiveram maior destaque e repercussão, tais

como: a queda do acordo Bretton Woods, que tinha o dólar como moeda mundial; ocorreram

inúmeras greves; aumento da taxa de inflação; a OPEP (Organização dos Países Exportadores

de Petróleo) aumentou o preço do petróleo e sua exportação foi embargada, o que causou um

aumento no custo da energia; aconteceu uma superprodução de mercadorias no Japão, os

industriais tipicamente fordistas passaram a ser pressionados pelo mercado consumidor, que

questionava a produção em massa, ocorreram também privatizações e reivindicações dos

movimentos operários por outro modelo de organização do trabalho.

Reconhece-se que a desregulamentação financeira em finais dos anos 70,

somada à mudança do padrão fordista anterior pelo da flexibilização

produtiva, baseada nas novas tecnologias informacionais, estão na origem da

crise da sociedade salarial. (PINTO, 2006, p. 22).

Com a crise do Fordismo, as empresas buscaram outros espaços territoriais em que a

força de trabalho fosse mais barata, para reduzirem os custos com a produção e também

concentrar algumas atividades da produção em pequenas empresas, deixando as atividades

mais especializadas/qualificadas para as grandes empresas. Eles faziam isso se utilizando de

terceirização e contratação temporária, o que ocasionou o aumento do desemprego e a

precarização das condições de trabalho.

De um lado, o segmento “primário”, formado por elementos qualificados,

melhor pagos, melhor protegidos e mais estáveis. De outro, um mercado

“secundário”, constituído pelo pessoal precário, menos qualificado,

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diretamente submetido às flutuações da demanda (...) recorre-se à

perspectiva da dualização sem ignorar a interdependência entre tais

segmentos, ou melhor, o quanto as empresas valem-se dessa dualidade para

reduzir seus custos (PINTO, 2006, p. 23).

Durante as décadas de 70 e 80, Harvey (1996, p. 140) apresenta que

No espaço social criado por todas as oscilações e incertezas, uma série de

novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e

política começaram a tomar forma. Essas experiências podem representar os

primeiros ímpetos da passagem para um regime de acumulação inteiramente

novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem

distinta.

Sob a égide Neoliberal, a acumulação flexível, se apoiava na flexibilização do

processo de trabalho6, do mercado, dos produtos e do próprio consumo. Com isso, surgem

novos setores de produção, apoiados em várias inovações tecnológicas, comerciais e de

comunicação. Além disso, contam com transporte mais barato para escoar a produção e a

imposição de contratos de trabalho flexíveis (trabalho parcial, temporário ou subcontratado).

Aqui, a “tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores “centrais” e

empregar cada vez mais uma força de trabalho, que entra facilmente e é demitida sem custos,

quando as coisas ficam ruins”. (HARVEY, 1996, p. 144).

Nas décadas de 80 e 90, a solução que a política neoliberal encontrou, definitivamente,

foi levar o mundo a uma Reestruturação Produtiva, por meio da acumulação flexível, sendo

que o “desemprego em dimensão estrutural, precarização do trabalho de modo ampliado e

destruição da natureza em escala globalizada tornaram-se traços constitutivos dessa fase de

reestruturação produtiva do capital” (ANTUNES, 1999, p. 34).

O movimento de ofensiva do capital, por meio da ideologia do capitalismo

manipulatório, em nome de um a liberdade fictícia impôs um processo de

desregulamentação e flexibilização monetária e financeira. Consolida-se um

processo de acumulação do capital calcado no predomínio do capital

financeiro, especulativo e parasitário. Desenvolve-se também um processo

de flexibilização das relações de trabalho, visando o desenvolvimento do

trabalhador flexível e capaz de adaptar-se às novas situações construídas

pela reestruturação produtiva. (BATISTA, 2011, p. 13-14).

Frente à situação de desqualificação e desvalorização, muitos trabalhadores adquiriram

uma nova consciência de classe e confrontaram-na com absenteísmo, com fugas, greves, entre

6 Essa flexibilização pretendia atender vários consumidores, produzindo diversos produtos com pouca

durabilidade, mas a produção não se daria em um local apenas e sim em variadas unidades de produção. “ A

Benetton, por exemplo, não produz nada diretamente, sendo apenas uma potente máquina de marketing que

transmite ordens para um amplo conjunto de produtores independentes” (HARVEY, 1996, p. 150, grifo nosso).

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outras formas de contraposição. Entretanto, como não tinham um projeto societário que

superasse o vigente e que fosse articulado com movimentos sociais efervescentes (feminista,

ecologista, homossexuais) tiveram que recuar.

Diante disso, os capitalistas observaram que se os trabalhadores eram capazes de se

organizar para reivindicarem benefícios, possivelmente, seriam capazes de administrar com

qualidade o processo de trabalho um dos outros. Então, resolveram aproveitar essa capacidade

dos trabalhadores e a agregaram ao modelo japonês que se consolidava nos Estados Unidos,

na Europa e na Ásia, apesar de já ser utilizado na Toyota desde 1945.

O interessante é que o Toyotismo, elaborado por Taiichi Ohno, já consistia na

produção flexível, isto é, produzir somente o necessário, segundo as predileções do mercado

consumidor. Nesse modelo propagava-se a gestão participativa, em que os trabalhadores

eram seduzidos a “opinar e sugerir soluções para os problemas cotidianos que aparecem”

(TIRIBA, 2006, p.73), mas continuavam alienados, porque isso não implicava interferência

nos processos decisórios, isto é, a última palavra era sempre a do patrão.

Para intensificar o trabalho, implantaram o Just in time que consistia em produzir,

aproveitando ao máximo o tempo, somente o que precisavam e na quantidade exata para

atender uma demanda precisa. Além disso, os capitalistas passaram a controlar a qualidade

total do produto, para que tivesse tempo curto de duração e pudessem ser repostos. Eles

precisavam fazer isso porque, constantemente, estava sendo produzida uma nova mercadoria

pelas empresas. Antunes (1999, p. 51) ressalta que este último é um “mecanismo produtivo

que tem como um dos seus pilares mais importante a taxa decrescente do valor de uso das

mercadorias, como condição para a reprodução ampliada do capital e seus imperativos

expansionistas”.

Nesse modelo são necessários poucos trabalhadores dentro da fábrica para operarem

as máquinas, já que um só consegue comandar várias máquinas ao mesmo tempo. Dentro da

fábrica são produzidos apenas vinte e cinco por cento das peças, sendo o restante direcionado

a empresas parceiras (verticalização da produção), que precarizam e desvalorizam mais a

força de trabalho contratada, com baixos salários e jornada de trabalho intensa.

Outro ponto é que, no Japão, eles agregam a esse modelo o emprego vitalício, que

garante certa estabilidade, porque “aos 55 anos o trabalhador é deslocado para outro trabalho

menos relevante, no complexo de atividades existentes na mesma empresa” (ANTUNES,

1999, p.55) e por ser o trabalho executado em equipe, eles transferem a responsabilidade de

eliminar o trabalho improdutivo para os próprios trabalhadores.

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Mas em outros países, a reestruturação produtiva exigiu um trabalhador que fosse apto

e qualificado para o posto que fosse ocupar, apoiando-se na escola. Esse pensamento

economicista norteou o relatório do Banco Mundial e construiu uma ideologia de escola

ligada diretamente ao mercado de trabalho. Portanto, quem estivesse de acordo com essa

exigência era absorvido pelo setor formal e os demais ficavam desempregados ou tiveram que

buscar outras formas de sobrevivência. Com esse sentido, o trabalhador ficou como

responsável pelo seu sucesso ou fracasso no âmbito do trabalho. Buscar a sobrevivência,

segundo Harvey,

[...] abre oportunidades para a formação de pequenos negócios e, em alguns

casos, permite que sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal,

familiar (patriarcal) e paternalista (“padrinhos”, “patronos” e até estruturas

semelhantes à da máfia) revivam e floresçam, mas agora como peças

centrais, e não apêndices do sistema produtivo (HARVEY, 1996, p. 145).

Então, o saber passa a ser uma mercadoria e as “Universidades e Institutos de

pesquisas competem ferozmente por pessoal, bem como pela honra de patentear, primeiro, as

novas descobertas científicas” (HARVEY, 1996, p. 151). Por isso, entendemos que quem

detém o saber, sai com vantagem na competição industrial e gera mais lucro.

Para os trabalhadores selecionados, era investido na sua educação e qualificação, para

que estes fossem aptos a executar várias funções (serem polivalentes). Ao mesmo tempo,

muitos trabalhadores perderam seus empregos e, induzidos pelo discurso do Estado de não

mais interferir na economia, da abertura comercial de compra e venda e da livre concorrência,

passaram a compor a cadeia produtiva na forma de microempresas, cooperativas,

empreendimentos associativos7, em função ainda do capital e também contrapondo a ele,

como veremos com detalhes no sub-capítulo 1.4.

Compreendemos com tudo que foi dissertado neste sub-capítulo que, apesar da

mudança na organização do processo de trabalho, o Estado continua a intervir em grande

medida no controle do trabalho, apontando uma continuidade e não um rompimento com o

Fordismo, contrariando o que é pregado pelo discurso neoliberal. Além disso, o Toyotismo,

como modelo de acumulação flexível, mantém uma participação manipulada e restritiva,

porque o que os capitalistas desejam na essência é manter a exploração e a alienação, a fim de

obterem mais-valia.

7 Lembramos que esse tipo de associação de trabalhadores é demandada pela flexibilização entre capital e

trabalho e não tem relação com a produção associada, que enfatizaremos nos próximos subtítulos.

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1.3.1. Impactos da reestruturação produtiva no Brasil

No Brasil, o capitalismo industrial, a partir da década de 1950, esteve voltado para a

produção de bens de consumo duráveis (carros, eletrodomésticos) para consumo interno, mas

intencionava produzir e exportar tanto produtos primários, quanto industrializados.

Os trabalhadores sofriam exploração da sua força de trabalho, recebiam baixos

salários, vivenciavam longas jornadas e duro ritmo de trabalho, mas possibilitaram o país “se

alinhar entre as oito grandes potências industriais” (ANTUNES, 2004, p. 15).

Na segunda fase do governo de Getúlio Vargas, os trabalhadores conquistaram

algumas reivindicações como educação, saúde, moradia e algumas políticas assistencialistas.

Para regular os direitos e deveres dos trabalhadores, foi criada a Justiça do Trabalho e normas

trabalhistas foram consolidadas na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).

Nos anos 80, após a ditadura militar, o Brasil ainda não tinha iniciado o processo de

reestruturação produtiva do capital, mas sofria influências da nova divisão e organização do

trabalho desenvolvida pelos países capitalistas centrais.

Os primeiros impulsos desse processo em nosso país levaram as empresas a

adotarem, de modo restrito, novos padrões organizacionais e tecnológicos,

novas formas de organização social e sexual do trabalho. Observou-se a

ampliação da informatização produtiva, principiaram-se os usos do sistema

just-in-time (grifo do autor), da produção baseada em team work (grifo do

autor), nos programas de qualidade total, ampliando também o processo de

difusão da microeletrônica (ANTUNES, 2004, p.16).

Com a influência das grandes potências industriais, o Brasil foi incitado a reduzir o

número de trabalhadores, principalmente nos setores automobilístico, têxtil e bancário, para

elevar a produtividade. Além disso, passaram a utilizar-se dos sistemas de produção just-in-

time, o kanban e os Círculos de Controle de Qualidade, bem como, ampliaram o uso de

tecnologias e introduziram a automação industrial, através da microeletrônica.

Na década de 1990, as mudanças no mundo do trabalho e as novas configurações do

capitalismo no Brasil foram mais visíveis, com a implantação de políticas de cunho

neoliberal.

Inspirando-se na acumulação flexível, uma nova significação ideológica surgia e os

capitalistas passaram a veicular que os trabalhadores participariam da gestão das empresas,

que desverticalizariam a organização das mesmas e abririam espaço para os sindicatos. As

empresas brasileiras aderiram a essa nova configuração da produção, porque precisavam

sobreviver em um mercado mundializado e competitivo.

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[...] especialmente nas décadas de 1980 e 1990, tem-se intensificado

o processo de reestruturação produtiva, visto que a articulação entre o

aumento da produtividade e a redução de custos é considerada a alternativa à

subsistência das empresas num cenário doravante marcado pelo acirramento

da concorrência. Esta, que até então permanecia, em certa medida,

circunscrita aos mercados nacionais, não mais observa as fronteiras

regionais, ou seja, a produção, a distribuição e o consumo de bens

mundializam-se. (CAETANO, 2008, p.132-133).

Nesse cenário, a reestruturação produtiva se intensificou e passaram a

terceirizar/subcontratar os trabalhadores e instalar suas empresas em estados cuja força de

trabalho demandasse menos investimento financeiro.

Ainda nessa mesma década, no contexto da desregulamentação do

comércio mundial, a indústria automobilística brasileira foi submetida a

mudanças no regime de proteção alfandegária, sendo reduzidas as tarifas de

importação de veículos (PREVITALLI, 1996 in ANTUNES, 2004, p. 19).

No governo Collor, em que tivemos a primeira eleição direta para presidência do

Brasil, a ministra Zélia Cardoso de Mello criou um plano para a recuperação da economia –

Plano Collor – que consistia em buscar recursos através do aumento de impostos, de

privatizações, com a abertura do mercado nacional, com a criação da moeda Cruzeiro e com o

confisco das poupanças que tivessem mais de cinqüenta mil cruzeiros.

Com tudo isso, as empresas, para se recuperarem, investiram pesado em automação, a

fim de produzirem com poucos trabalhadores e, com isso, o desemprego no país aumentou

drasticamente.

No governo Itamar Franco, por volta de 1988, foi idealizado um Plano de

Estabilização Econômica – o Plano Real - que consistia em lançar uma nova moeda - o Real –

para estabelecer regras de uso e de conversão da moeda, a fim de conter a inflação monstruosa

que o país passava. A nova moeda só pode ser lançada em 1994, porque precisavam conter

gastos públicos e realizar ajustes fiscais. Nos anos posteriores ao lançamento da nova moeda,

as contas públicas se equilibraram e os preços das mercadorias e a economia se estabilizaram.

Nesse contexto, a reestruturação produtiva se ampliou, principalmente no setor

financeiro. O novo discurso pautava-se na variação do salário do trabalhador, de acordo com

o aumento da sua produtividade. Como se não bastasse, ampliaram o trabalho em equipe, a

terceirização, o trabalho temporário, a diminuição da remuneração, a contratação de

trabalhadoras, “aumentando o processo de desregulamentação do trabalho e da redução dos

direitos sociais,” bem como dificultando a atuação e organização dos sindicatos (JINKINGS,

2002 e SEGNINI, 1998 in ANTUNES, 2004, p. 20-21).

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Grande parte das análises que priorizam a problematização acerca

dos efeitos da terceirização sobre as condições de trabalho indica a crescente

precarização, que atinge o conjunto de trabalhadores em diferentes níveis:

diminuição dos benefícios sociais; degradação salarial; aumento do

desemprego; ausência de equipamento de proteção/falta de

segurança/insalubridade; trabalho menos qualificado; trabalho sem registro;

desorganização sindical pelo esfacelamento e fragmentação do coletivo de

trabalhadores e jornada mais extensa (CAETANO, 2008, p. 135).

Essa racionalização econômica e do trabalho intensificou significativamente a

dominação e exploração dos trabalhadores, aumentou as contratações precárias e informais,

sobrecarregou os trabalhadores que possuíam emprego formal, contribuindo para o

surgimento de problemas de saúde e, também, intensificou outras estratégias de organização

do trabalho que contrastam com a lógica capitalista.

Foi nesse período, mais precisamente em 1999, que os trabalhadores e trabalhadoras

de Capão Verde começaram a produzir associativamente e, de forma solidária, derivados de

banana para venderem. Vale ressaltar que desde a fundação da Comunidade eles produziram a

vida em coletividade, mas somente em prol da subsistência:

Planta aonde ele quisé. Igual, aqui (mostrando a plantação) tem de

todo mundo, aqui tem roça prá todo lado. (Lourenço – tesoureiro da

Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da

Comunidade Tradicional Capão Verde)

Lourenço indicou que a plantação naquelas terras é uma tradição antiga e percebemos

que eles não determinam o tamanho que cada um pode utilizar, sendo esta decidida por cada

trabalhador de acordo com a quantidade que consegue gerir.

Na atual conjuntura, ampliam-se as exigências para a inserção ou permanência dos

trabalhadores no mundo do trabalho, tais como: dominar uma segunda língua, ter cursos de

informática, fazer capacitações, ter autonomia e iniciativa, ser comunicativo, entre outras, mas

o desemprego ou outras estratégias de sobrevivência continuam aumentando, dentre muitos

motivos, pela desigualdade de oportunidades sociais e educacionais, pois a opressão

capitalista leva os indivíduos a competirem por um “lugar ao Sol”.

Nesse cenário, o trabalhador praticamente não tem consciência da exploração do seu

trabalho e a sua felicidade é poder ter um emprego, uma carteira assinada, um salário

“garantido” e direitos assegurados, como se fosse uma identidade ou um pertencimento social.

Acreditamos que essa identidade é uma expressão subjetiva da concepção de mundo

que o trabalhador tem como sujeito histórico e pertencente a uma sociedade, em que o

trabalho assalariado é enaltecido como possibilidade de ascensão social, de status, de crédito

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para o consumo no mercado, entre outras, mesmo que muitos demonstrem insatisfação com as

condições de trabalho e com salários.

A reestruturação produtiva jogou uma parcela considerável de trabalhadores e

trabalhadoras na informalidade8 e na precariedade. Para os que desconhecem outras

formas/estratégias de garantir a produção da vida, o emprego formal é tido como um

privilégio e uma utopia. Face o aumento da escolaridade e formação profissional -

competências- exigidas pelo setor produtivo, o sonho da conquista do trabalho assalariado

impulsiona muitos (as) trabalhadores(as) na busca por qualificação e aumento da educação,

formal para se tornarem empregáveis.

No contexto do capitalismo industrial, Marx (1982), ao constatar as contradições entre

capital e trabalho, propôs a reorganização da sociedade através da reorganização do trabalho,

em que o ser humano pudesse exercer as atividades, de acordo com suas aptidões e prazer.

Assim, questionamos se trabalhar em troca de salário e de uma carteira assinada e, sobretudo,

nas condições que a reestruturação produtiva impõe é a melhor possibilidade de liberdade que

o trabalhador tem?

Acreditamos que não, pois liberdade é poder escolher o que, onde e quando se quer

produzir. Portanto, são poucos os que, efetivamente, podem se considerar como livres no

mundo do trabalho capitalista. Essa liberdade é uma das características proporcionadas pela

economia (popular) solidária e, mais especificamente, pela produção associada, gozada pelos

trabalhadores de Capão Verde.

Marx (1998, p. 42-44) afirmava que a sociedade só mudaria com uma revolução da

classe trabalhadora e que, depois desta, o primeiro passo seria “conduzir o proletariado à

posição de classe governante9, para vencer a batalha da democracia” e, posteriormente,

quando “as diferenças de classes tiverem desaparecido e toda a produção tiver sido

concentrada nas mãos dos indivíduos associados (...), teremos uma associação, na qual o

desenvolvimento livre de cada um é (será) a condição para o desenvolvimento livre de todos”.

Nesse sentido, na perspectiva de se tornarem donos dos meios de produção e,

efetivamente livres, alguns trabalhadores (re) criaram estratégias que

resistem/contrapõem/questionam a lógica capitalista, como veremos a seguir.

8 Advertimos aqui que o trabalho informal produz e/ou distribui bens e serviços em prol do capital, apesar de que

continuam marginais no mercado capitalista. Eles apenas flexibilizam as relações entre capital e trabalho e o

sentido ético-político do trabalho é a reprodução do capital. 9 Marx (1998) ressaltou que os proletários ao se tornarem classe governante/dominante, eliminariam as antigas

relações de produção e de classes antagônicas, portanto, deixando de serem dominantes.

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1.4. A concha e a pérola: a produção associada

[...] dir-se-á que o que cada indivíduo pode modificar é muito pouco,

com relação às suas forças. Isto é verdadeiro apenas até certo ponto, já que o

indivíduo pode associar-se com todos os que querem a mesma modificação;

e, se esta modificação é racional, o indivíduo pode multiplicar-se por um

elevado número de vezes, obtendo uma modificação bem mais radical do

que à primeira vista parecia possível. (GRAMSCI, 1991, p.40).

Unidos, venceremos! Foi esta frase que nos veio à mente ao ler o trecho acima, em que

Gramsci afirma que uma modificação na realidade só é possível através da associação das

pessoas. E a produção associada não poderia ser um instrumento de transformação? De

ruptura? De emancipação?

Ainda não temos resposta para esses questionamentos, mas algumas pesquisas

apontam que pode ser “estratégia de sobrevivência ou estratégia de ruptura com as relações

capitalistas de produção, como um paliativo à crise estrutural do capital ou como uma

instância dos processos mais amplos de construção de uma nova sociedade” (TIRIBA, 2008,

p. 2).

Nós vivemos sob a égide capitalista/neoliberal que é excludente, individualista,

autoritária, centralizadora e consumista e não foi possível, ainda, superá-la. Mas inserido no

sistema capitalista coexistem outras formas de fazer economia. Por esse motivo, utilizamos

como sub-capítulo a metáfora: a concha e pérola, em que o modo de produção capitalista seria

a concha, pétrea e rígida, e a pérola, o grande tesouro escondido, pronto para ser desvelado: a

produção associada.

Como dissemos anteriormente, não temos como assegurar que a produção associada

superará a economia capitalista, porque ela é produto das condições históricas, mas podemos,

a partir da investigação da realidade empírica, apontá-la como possibilidade de trabalhadores

associadamente e coletivamente apoderarem-se dos meios de produção, sem haver exploração

e com a única intenção de garantir a produção material e imaterial da vida, a partir de relações

de solidariedade, igualdade, liberdade, entre outras.

Independentemente desses que tá ou não tá associado os recursos vem prá

todos, todo o recurso que a associação busca vem prá toda a Comunidade.

(Andréia- presidente da Associação dos Agricultores e Agricultoras

Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde).

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Mas no nosso íntimo, temos a utopia que essas experiências e seus saberes, mesmo

acontecendo em grupos isolados ou experiências restritas, possam conter o germe da

construção de um processo revolucionário da sociedade em que vivemos.

É importante expormos que não temos um consenso quanto à conceitualização e

denominação da economia (popular) solidária, já que a mesma está em processo de

construção, pois, “os conceitos são produtos das condições históricas, e vão sendo formulados

ao mesmo tempo em que conseguimos apreender o fenômeno, considerando o contexto maior

onde se produz determinada realidade” (TIRIBA, 2003, p. 40-41). Por isso, fundamentaremos

nosso estudo em autores que optam por essa denominação10

como Tiriba (2008, 2004, 2003,

2001), Fischer (2009), Corragio (2006) e Razeto (2005), que desenvolvem discussões e

pesquisas a respeito do assunto.

Esses autores acreditam que a economia (popular) solidária e a economia solidária,

propriamente dita, têm alguns princípios semelhantes, mas se diferem porque a primeira parte

da premissa que os trabalhadores envolvidos realizam atividades resgatadas e ressignificadas

historicamente e culturalmente, portanto, adquirindo um caráter popular. Além disso, essas

atividades são, em sua maioria, iniciadas por trabalhadores da camada popular, porque essa

camada da sociedade foi e é mais prejudicada com a crise do mundo do trabalho que se

tornam donos dos meios de produção, não exploram a força de trabalho alheia, trabalham para

a subsistência e para trocar os excedentes. Outra questão é que estão ligadas ao pertencimento

familiar, a um grupo, a uma comunidade.

Razeto denomina a economia popular de economia de solidariedade e afirma que esta

“é uma economia na qual se expressa o modo de ser do povo, dando lugar a uma

racionalidade econômica distinta dessas formas econômicas11”. (RAZETO, 1990, p. 11 apud

GADOTTI, 2005, p. 14). Esse tipo de economia baseia-se em culturas e experiências prévias

concretas e heterogêneas, portanto, sua conceitualização está sendo construída – é uma

realidade viva e pulsante - e não pode ser tida como verdade absoluta.

Nesse sentido, a administração e a organização do trabalho (autogestão12

) são

coletivas, igualitária, sem explorar a força de trabalho alheia, na qual a disciplina é voluntária

10

A denominação economia (popular) solidária está sendo discutida pelo Grupo de Educação e Trabalho

(GPET), da Universidade Federal de Mato Grosso, sob direção do Prof. Dr. Edson Caetano, em parceria com o

NEDDATE (Núcleo de estudos, documentação e dados sobre trabalho e educação), da Universidade Federal

Fluminense, sob direção da Profª. Lia Tiriba. 11

Quando Razeto trata “dessas formas econômicas” (2005, p. 14), está se referindo à estatal e à capitalista. 12

Segundo Mothé (p.26, 2009), autogestão consiste em “um projeto de organização democrática que privilegia a

democracia direta. Esta constitui um sistema em que, voluntariamente, sem perceberem remuneração e sem

recorrerem a intermediários, os cidadãos debatem todas as questões importantes, em assembleias”.

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e autônoma. Contudo, a gestão do trabalho precisa estar de acordo com os anseios do grupo e

pressupor a construção de novas relações sociais e de produção. Assim existe a

[...] co-responsabilidade dos trabalhadores com o destino da

iniciativa e flexibilidade de funções e ritmos na produção. Isso, por sua vez,

implicando em maior comunicação com redução de conflitos e problemas no

processo de trabalho, em circulação de saberes, bem como no estimulo

moral, além do material (...) a finalidade está no retorno do trabalho para o

próprio trabalhador, seja em termos materiais ou imateriais, quanto para

aquele que consome o serviço e/ou produto ofertado (PINTO, 2006, p. 38).

Dentre as possibilidades de atividades ligadas à economia popular, citamos também

pequenas empresas de caráter familiar e/ou comunitário, cooperativas, bancos populares,

clube de trocas, entre outras.

Apesar de estarem inseridas no sistema capitalista, essas estratégias populares

apontam princípios que denotam uma velha/nova racionalidade econômica, tais como: a

autogestão, a administração/organização participativa e democrática do trabalho, a

cooperação, a autonomia, a distribuição igualitária dos frutos do trabalho e das perdas

monetárias, a liberdade individual, a reciprocidade e comensalidade, diferenciando-se e

constituindo-se em uma velha/nova organização do trabalho.

Icaza e Tiriba (2003, p.150), em suas pesquisas, nos esclarecem que são “conjunto de

atividades econômicas e práticas sociais desenvolvidas pelos sujeitos pertencentes às classes

trabalhadoras com objetivo de assegurar a reprodução da vida social com a utilização da

própria força de trabalho e mobilização dos recursos disponíveis”. Nesse intento, esses

trabalhadores garantem a satisfação de suas necessidades materiais e imateriais, já que são

construídos e socializados saberes e relações sociais intrínsecas a esse modo de produzir a

existência.

Vale esclarecer que a economia (popular) solidária pode ser composta por

trabalhadores excluídos (desempregados), pelos que nunca estiveram incluídos no trabalho

assalariado (subemprego) ou pelos que sempre fizeram parte dela, por conta de características

culturais e históricas.

Os trabalhadores da economia informal capitalista, como os camelôs, ‘picolezeiros’e

até vendedores de revistas ou de cosméticos pertencem à camada popular e são solidários

entre si, mas, inevitavelmente, servem ao capital. Apesar da solidariedade ser uma

característica da economia (popular) solidária, os empresários do agronegócio também se

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utilizam dela e, definitivamente, não pertencem à camada popular também. Podemos entender

melhor essa questão nas palavras de Razeto (2005, p. 45), ao advertir que

Nem toda economia popular é economia solidária, como observamos

anteriormente. Nem toda economia solidária é parte da economia popular,

pois há expressões solidárias também em outros níveis sociais e em

organização e atividades econômicas não-populares.

Apesar de termos feito leituras, a fim de diferenciar as específicas economias inseridas

na economia capitalista, reiteramos que nosso olhar estará voltado para a economia (popular)

solidária, mais precisamente sobre a produção associada que é uma forma de organizar o

trabalho dentro dessa lógica, e não nos deteremos em aprofundarmos nas demais economias.

Assim, estaremos abordando-as superficialmente nas linhas subseqüentes.

Na economia informal, os trabalhadores produzem e/ou distribuem bens e serviços a

serviço do capital, estando por trás de suas ações a exploração da força de trabalho pelos

empresários. “Daí as empresas verem, nos trabalhadores do mercado secundário, um

segmento mais ‘interessante’, visto que têm menos direitos, não são protegidos por

convenções coletivas e podem ser alugados para atender a cada necessidade pontual”

(CASTEL apud PINTO, 2006, p. 25). Além disso, o mesmo autor acrescenta que

[...] é também muito comum hoje no país que empresas, interessadas

em se ver livres das obrigações trabalhistas, constituam cooperativas de

trabalho a partir da dispensa de seus próprios funcionários. Pois conforme a

legislação não há caracterização de vínculo empregatício do cooperado com

a cooperativa e nem com o contratante dos serviços desta (PINTO, 2006, p.

33).

A economia solidária passou a contar com o apoio dos movimentos sociais e entidades

da sociedade civil, como “Igreja, sindicatos, universidades e partidos políticos” (SINGER,

2004, p. 3) e políticas públicas, que mobilizam um grupo de pessoas a criarem projetos para

iniciarem uma atividade econômica pautada na economia solidária, dando organicidade a

mesma.

Para fortalecê-la e promover a luta contra exclusão social e a diminuição nos índices

de pobreza do país, o governo Lula instituiu, em junho de 2003, o projeto que criava, no

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Secretaria Nacional de Economia Solidária

(Senaes13). Criou também o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), que contém “as

13

Uma das ações da Senaes foi criar fóruns estaduais e delegar a estes e as Delegacias Regionais do

Trabalho (DRT) a divulgação do programa Economia Solidária em Desenvolvimento e também passou a receber

recursos para apoiar outros projetos como: Centros de Referência de Economia Solidária (comercialização de

produtos), Feiras, Mapeamento da Economia Solidária, além de seminários, cursos, entre outros.

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principais agências de fomento da economia solidária, a rede de gestores municipais e

estaduais de economia solidária, a Associação Brasileira de Gestores de Entidades de Micro-

Crédito (Abcred) e as principais associações e redes de empreendimentos solidários de todo o

país” (SINGER, 2004, p.4)14

.

Tiriba nos alerta em seu artigo O trabalho no olho da rua: fronteiras da economia

popular e da economia informal (2003, p. 38) que a disposição do capital é diferente do

trabalho, isto é, não há trabalho para todas as pessoas e “ao invés de apenas um mundo do

trabalho, existem muitos mundo (s) do trabalho,” que apontam uma resistência ao que está

posto pelo sistema capitalista.

Nesse bojo, os trabalhadores para sobreviverem (re) criam alternativas que vão desde

se associarem para garantir a reprodução ampliada da vida, até utilizar a rua para trabalhar

(camelôs, malabaristas, pintores, catadores de papelão, guardadores de carros) ou se envolver

em atividades ilícitas (prostituição, roubo, revender drogas). Assim, “o desemprego e

subemprego, ao assumirem um aspecto funcional ao atual padrão de crescimento, se traduzem

em uma miríade de formas precárias e vulneráveis de trabalho ou mesmo de sobrevivência”.

(PINTO, 2006, p. 21).

Trata-se de um modo de fazer economia que implica

comportamentos sociais e pessoais novos, tanto no plano da organização da

produção e das empresas, como nos sistemas de destinação de recursos e

distribuição dos bens e serviços produzidos, e nos procedimentos e

mecanismos de consumo e acumulação (RAZETO, 2005, p. 40)

Contudo, Tiriba (2003) nos alerta que para diferenciar os “mundos do trabalho,”

precisamos diferenciar o tipo de sujeito, o espaço e o tempo histórico em que trabalha, para

explicitar a natureza do trabalho e seu sentido ético-político. Por esse motivo, no capítulo III,

que detalhará a pesquisa de campo, nos ocuparemos dessa questão.

Seguindo esse pensamento, estaremos mostrando nas linhas subseqüentes como que,

historicamente, esse tipo de economia foi resgatada/recriada pelos setores populares.

Desse modo, em meados da década de 1980, alguns trabalhadores do setor popular, o

mais atingido pela reestruturação produtiva do regime neoliberal, os trabalhadores que

estavam fora do mercado ou nunca puderam estar inseridos neste, recriaram alternativas de

organizar o trabalho, dentre elas a produção associada, e conquistaram o direito a propriedade

14

Ver mais em SINGER, Paul. A economia solidária no governo federal. Ipea: Mercado de Trabalho,

ago. 2004.

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coletiva dos meios de produção, mesmo no interior do sistema capitalista, com o intuito de

manter a reprodução ampliada da vida15

, isto é, a sua sobrevivência e qualidade de vida.

No Brasil, embora tenham sido introduzidas cooperativas de

consumo por trabalhadores imigrantes no início do século passado, a

perspectiva democrática voltada para a produção e o consumo é um

fenômeno marcadamente dos anos 90 e, portanto, algo incipiente. Ressalta-

se que no caso brasileiro a crise assume uma dimensão mais excludente,

responsável por dar centralidade à questão da geração de trabalho e renda.

Em que pese tal incipiência, verifica-se a presença de formas auto-

organizadas de produção e consumo mesmo antes desse período (PINTO,

2006, 31).

Nesse sentido, a produção associada se configurou também, de acordo com LEITE

(2009, p.32), por “um conjunto de movimentos empunhados por trabalhadores que perderam

seus empregos e que não conseguiram se reinserir no mercado de trabalho, ou, ainda, por

aqueles que sempre viveram na informalidade. Eles possuem como principal “ferramenta” a

sua habilidade de trabalho”.

Compreendem aí as mais diferentes atividades, desde as produtivas

voltadas para o mercado (como no caso do conta própria, cooperativas,

grupos produtivos, etc.), passando pelas destinadas ao auto consumo

(trabalho doméstico e formas de se obter acesso a serviços mínimos –

construção de casas em loteamento irregulares, ligações clandestinas nas

redes de água, eletricidade e comunicação, etc.), até as destinadas a

proporcionar acesso a serviços de consumo coletivo (trabalho em obras de

infra-estrutura na comunidade, redes de troca, etc.). (PINTO, 2006, p. 51).

Na América Latina, alguns trabalhadores ocuparam e/ou se apropriaram de empresas

falidas ou abandonadas e iniciaram pequenos negócios, organizados coletivamente. Podemos

citar como repercussões: o Movimento das Fábricas Recuperadas e Empresas Recuperadas no

Uruguai e Argentina, as primeiras indústrias autogestionárias no Brasil: a Companhia

Carbonífera do Araranguá (CBCA), a Cobertores Paraíba, a Markely Calçados, a Remington,

assim como a criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, em 2001 e a Secretaria

Nacional de Economia Solidária, em 2003, pelo governo Lula.

Assim, lembra-nos FISCHER &TIRIBA (2009, p. 294) que

As experiências históricas de autogestão revelam que, no embate

contra a exploração e a degradação do trabalho, não é suficiente que os

trabalhadores apropriem-se dos meios de produção. Estas práticas indicam

15

Para Coraggio (2000, p. 104-105), a reprodução ampliada da vida não implica, necessariamente, em se ter

acesso a maiores ganhos monetários, nem sequer a uma massa maior de bens materiais. A qualidade de vida

pode melhorar por alguma mudança, precisamente, na qualidade do consumo, nos padrões de relação social, nas

condições de habitabilidade, no contexto que nutre a vida das unidades domésticas. (CORAGGIO apud PINTO,

2006, p. 52).

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haver necessidade de articulação de saberes do trabalho fragmentado pelo

capital e de apropriação dos instrumentos teórico-metodológicos que lhes

permitiram compreender os sentidos do trabalho e prosseguir na construção

de uma nova cultura do trabalho e de uma sociedade de tipo novo.

Salientamos que a produção associada pode acontecer no campo ou na cidade, pelos

setores populares. Em qualquer um dos locais, as características principais são que os

objetivos, as finalidades, as estruturas e as normas são definidos em coletividade, bem como a

distribuição das tarefas. Por mais que um grupo menor de produção esteja inserido em uma

associação maior, elas não deixam de seguir o que explicitamos anteriormente, pois

[...] são iniciativas que não se limitam a um só tipo de atividade, mas

que tendem a ser integrais, no sentido de que combinam atividades

econômicas, sociais, educativas, de desenvolvimento pessoal e grupal, de

solidariedade e, freqüentemente, também de ação política e pastoral; em

outras palavras, buscam satisfazer uma ampla gama de necessidades e

aspirações humanas (RAZETO, 2005, p. 48).

Um exemplo é o que acontece na Comunidade Capão Verde, onde existe a Associação

Agriverde - Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade

Tradicional Capão Verde, mas os associados se reúnem em grupos menores para produzirem,

coletivamente e em âmbito familiar, o que gostam e/ou o que tem mais habilidade.

A idéia nossa junto com Felinto era que poderia estar criando vários

núcleos dentro da Associação, mais na questão da comercialização, tudo

coletivo. Nem todo mundo gosta de mexer com doce, de mexer com fritura e

nem todo mundo gosta da área de artesanato. (Andréia – presidente da

Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da

Comunidade Tradicional Capão Verde – Agriverde).

Então, eles podem manter relações com outras associações e/ou grupos, formando

redes ou cooperativas para trocarem conhecimentos ou se ajudarem. A vantagem disso é que

ganham força para continuarem conduzindo essa experiência, aumentam as chances de

levantarem recursos, bem como capacitações, podem expandir a comercialização, formulam

projetos, entre outros aspectos.

[...] essas organizações são expressão de um processo que parte da

economia popular, cujos integrantes tendem a se organizar para ser mais

eficientes na conquista de seus próprios objetivos. Tal processo se encontra

com outro, que tem sua origem em uma cultura transformadora, que busca

construir uma economia alternativa e solidária e que se constitui como uma

energia dinamizadora e organizadora da economia popular (RAZETO, 2005,

p. 55)

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Acreditamos que a eficiência dessas experiências esteja atrelada a valores como:

solidariedade, igualdade, cooperação, democracia, reciprocidade, comensalidade, e também

porque o conhecimento e as decisões são compartilhados coletivamente, o que reduz possíveis

conflitos e garante a satisfação de todos.

Além do mais, há uma identidade compartilhada por todas essas

experiências heterogêneas que justifica pensá-las em conjunto e perguntar

por seu destino, perspectivas, projeções e potencialidades, entendendo-as

como um fenômeno social específico (grifo nosso) dotado de personalidade e

dinâmicas próprias que, se não estiver completa e acabada, encontra-se

ativamente em formação, distinguindo-se crescentemente de outras

identidades sociais com as que se relaciona ou das quais provêm muitos de

seus integrantes (RAZETO, 2005, p.50).

Contrapondo a lógica capitalista, todos eles são proprietários dos meios de produção,

não vislumbram a acumulação e não almejam a obtenção da mais- valia e tão pouco a

exploração da força de trabalho alheia. O princípio da igualdade faz com que todos se sintam

pertencentes, sem exclusão social no grupo e sem existir competitividade. Além disso, a

questão da solidariedade e da cooperação é importante, porque mantêm redes de produção e

venda, onde todos os trabalhadores são participantes, bem como redes para além do trabalho,

isto é, na produção da vida em coletividade.

Os trabalhadores “são os produtores de suas representações, de suas idéias (...) o ser

dos homens é o seu processo de vida real” (MARX & ENGELS apud FRIGOTTO, 1989, p.

76). Assim, esses trabalhadores passaram a possuir autonomia e liberdade para utilizar a sua

força de trabalho, para utilizar o seu tempo de trabalho e produzir valores de troca,

manifestando que as condições do trabalho refletem ou são refletidas por outras concepções

de mundo e de vida.

A Comunidade Capão Verde está configurada na forma produção associada, que

Razeto (2005) caracteriza como uma organização solidária a partir da constituição de

pequenos grupos para enfrentarem os problemas econômicos, sociais e culturais mais

imediatos.

Contudo, Razeto (2005, p. 36-37, grifo nosso) menciona outras configurações como:

[...] Microempresas e pequenas oficinas e negócios de caráter familiar,

individual, ou de dois ou três sócios. [...] à pequena oficina de costura e

confecção de roupas, à padaria, ou pequena confeitaria, à fabricação de

artigos de couro, madeira [...] aos diferentes tipos de produção ou venda,

cujo local de funcionamento é habitualmente a própria residência ou um

lugar próximo à residência do proprietário, que é quem dirige e administra,

normalmente com a colaboração de outros membros da família;

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Iniciativas individuais não estabelecidas e informais, tais como o pequeno

comércio ambulante, serviços domésticos (jardinagem, pintura, limpeza e

colocação de telhas etc), [...] catadores e vendedores de entulhos [...],

guardadores de automóveis [...], ou seja, na provisão e prestação de bens e

serviços que o mercado formal não cobre [...] às vezes estão relacionados

com empresas formais [...];

Atividades ilegais e com pequenos delitos. Neste item incluímos todas

aquelas iniciativas que se realizam à margem da lei e das normas culturais

socialmente aceitas [...]. Inserimos aqui a delinquência de rua, a prostituição,

o pequeno ponto de venda de drogas e tantos outros;

Soluções assistenciais e inserção em sistemas de beneficência pública ou

privada, que vão desde subsídios oficiais para indigentes até a mendicância

de rua, passando pela participação em diferentes sistemas organizados de

beneficência e prestação de serviços orientados a setores de extrema

pobreza.

Além disso, o mesmo autor (RAZETO, 2005, p. 37-38, grifo nosso) distingue três

níveis de desenvolvimento dessas atividades, como explicitaremos a seguir:

[...] Estratégias de sobrevivência, quando a atividade é considerada de

emergência, transitória e permite apenas a satisfação das necessidades

básicas em termos de simples sobrevivência fisiológica [...];

Estratégias de subsistência, quando a atividade permite a satisfação das

necessidades básicas, mas não torna possível nenhuma forma de acumulação

e crescimento [...], embora dificilmente seja assumida como opção

permanente;

Estratégias de vida, quando as pessoas valorizam- certos espaços de

atividade que realizam (a liberdade, o companheirismo, a autogestão), ou as

consideram melhor que outras alternativas possíveis (por exemplo, porque

vêem a possibilidade de maiores recursos, ou porque preferem trabalhar por

conta própria em vez do trabalho assalariado dependente), [...] e, em

consequência, “apostam” (grifo do autor) na iniciativa empreendida como

opção permanente, através da qual buscam crescer e ir além da subsistência.

Lia Tiriba (2006), em Cultura do trabalho, produção associada e produção de

saberes, destaca que

[...] a “produção associada” deve ser concebida em dois sentidos. O

primeiro vincula-se à constatação (a olho nu) de que a reprodução da classe-

que-vive-trabalho, em especial dos trabalhadores oriundos dos setores

populares, requer uma verdadeira produção associada, pressupondo a criação

de redes de solidariedade, de colaboração para que, cotidianamente, possam

garantir sua sobrevivência. A reprodução ampliada de vida requer a

coordenação do esforço coletivo do conjunto de pessoas que compõem a

unidade de produção, seja ela unidade doméstica, cooperativa ou de qualquer

outro empreendimento econômico. O segundo sentido de “produção

associada” caminha no horizonte econômico-filosófico marxista, no qual a

mesma é entendida como unidade básica da sociedade dos produtores

livremente associados na produção.

Além disso, a mesma considera que a produção associada pode ser entendida como

uma resposta às crises de desemprego, como, também, a negação do trabalho assalariado e a

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subordinação do capital ao trabalho, a possibilidade de resistir ao capitalismo e de construir

um novo projeto societário. Por isso,

[...] as concepções de vida e de mundo dos trabalhadores associados

não independem da vida material, mas representam a síntese das relações

que, historicamente, os seres humanos estabelecem entre si na produção de

sua existência. Nas organizações econômicas inspiradas nos princípios da

autogestão, a nova consciência não emerge do discurso, nem do apelo para

que os trabalhadores passem a pensar de maneira diferente. É produto da

práxis social – entendida como fazer e pensar o mundo do trabalho; como

ação transformadora - que busca na teoria e na prática a constituição de

novas relações de convivência (TIRIBA, 2006, p. 82).

A respeito dessa questão, TIRIBA (2006, p.118) afirma que “o povo produz saber (...)

o saber se produz na prática de trabalho e nas relações sociais, sendo necessária uma

pedagogia que, na perspectiva de emancipação das classes trabalhadoras, tenha como

horizonte o fim da sociedade capitalista – a pedagogia da produção associada”.

De acordo com a autora, a pedagogia da produção associada16

é a que mais se

aproxima da formação humana e da emancipação desses trabalhadores, pois

[...] apresenta-se como campo teórico-prático que visa ao estudo e a

concretização dos processos educativos cujos objetos de ação e pesquisa são

a socialização, produção, mobilização e sistematização de saberes voltados

ao fortalecimento de atividades econômicas fundadas na autogestão do

trabalho e da vida em sociedade (TIRIBA, 2009, p. 5).

Portanto, as atividades ligadas à produção associada, são “estratégias populares de

trabalho e de sobrevivência, entendidas como a arte de criar condições favoráveis para

satisfação das necessidades humanas, tanto materiais como imateriais” (TIRIBA & ICAZA,

2003, p. 101). Com isso, observamos que os trabalhadores de Capão Verde além de

produzirem mercadorias, constroem relações sociais a partir dos saberes forjados na produção

associada.

Diferentemente do regime capitalista, em que os trabalhadores não têm direito à gestão

do seu trabalho, do tempo dedicado ao seu trabalho e muito menos a possibilidade de uma

educação que propicie a valorização desses sujeitos e da organização do trabalho que realizam

sob a lógica que contraria a do sistema vigente; os trabalhadores na produção associada

conduzem não só o trabalho como a vida social através de um sistema participativo, solidário,

cooperativo, coletivo e mais humano. Além disso, o excedente da produção associada não se

separa do produtor e não existe a propriedade individual dos meios de produção.

16

A pedagogia da produção associada pretende compreender o trabalho associado como uma instância

educativa, em que os trabalhadores têm a gestão do trabalho e da vida social.

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Com isso, há a possibilidade do “reconhecimento de novos sujeitos sociais e novos

direitos de cidadania, o reconhecimento de novas formas de produção, reprodução e

distribuição social, propiciando acesso aos bens e recursos públicos” (PRAXEDES, 2009,

p.57-58).

Concluímos que esse tipo de organização do trabalho adquire novos significados, em

cada contexto e a cada crise econômica e social, porque se trata de um fenômeno que precisa

ser mais bem investigado e avaliado. No entanto, em função dos seus princípios, acreditamos

na possibilidade de se construir novas concepções de trabalho e de mundo, pois tais princípios

têm um potencial educativo. Como ressalta TIRIBA (2009), é fundamental que os

trabalhadores transformem suas vivências pregressas e atuais, em experiências propriamente

formadoras, isto é, em terem efetivamente o trabalho como princípio educativo.

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“Vem, vamos embora

Que esperar não é saber ...

...Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer

... A certeza na frente

A história na mão”.17

17

Trechos da música: Prá não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré.

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CAPÍTULO 2 – TRABALHO, SABERES DA EXPERIÊNCIA E CULTURA

POPULAR

_____________________________________________________________________

Durante o processo histórico da humanidade, a educação adquiriu o papel de

humanizadora do ser humano e ficou a cargo de várias instituições: primeiro da família,

depois da Igreja, e por fim, das escolas que trouxeram várias implicações para a formação

humana.

Hoje, sabemos que o trabalho e o processo formativo/educativo andam de mãos dadas,

mas a cultura do trabalho da classe burguesa difundiu que eram processos separados, que

necessitavam de uma educação formal para se inserir em um trabalho formal e ter uma vida

digna.

Neste momento, nos vêm à mente algumas questões: os jovens e adultos analfabetos

ou com baixa escolaridade são despossuídos de saberes? O saber escolar/científico é

qualitativamente superior aos demais saberes? Somente o trabalho formal é propulsor de

dignidade?

Não desconsideramos a importância da educação formal, mas salientamos que as

experiências com o trabalho também revelam um processo criativo, educativo e transformador

do trabalhador, não só em relação à produção material, como a imaterial e isso se deve à

transmissão cultural. As questões culturais que estão imbricadas na vida dos trabalhadores e,

essencialmente, a cultura proveniente do trabalho.

Acreditamos ser importante que o trabalhador tenha conhecimento do seu passado,

principalmente em relação aos acontecimentos que ora estreitaram, ora alargaram a ligação

existente entre trabalho e educação, para poder refletir criticamente sobre a realidade e atuar,

nesta, de forma consciente, percebendo os interesses da sua classe e não mais aceitando

passivamente o que é imposto pela classe dominante. É um tomar consciência da sua história

que possibilita a transformação/ruptura com o status quo.

Em face dessa realidade dinâmica, argumentamos que a relação entre trabalho,

educação e cultura é histórica, ou seja, ao longo dos tempos ela foi transformada e delineada

pela ação humana até chegar à forma como está constituída na atualidade. E, ainda assim, está

virtualmente disposta a novas mudanças, de acordo com as exigências/desenvolvimento da

sociedade e da cultura.

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A partir do materialismo histórico dialético, compreendemos que a formação humana

não pode ser dissociada do concreto real e, principalmente, das relações no e com o trabalho.

Em relação a isto, FRIGOTTO (1989, p. 82) nos esclarece melhor:

O trabalho e as relações sociais de produção se constituem, na

concepção materialista histórica, nas categorias básicas que definem o

homem concreto, histórico, os modos de produção da existência, o

pressuposto do conhecimento e o princípio educativo por excelência.

É nessa perspectiva que este capítulo pretende apresentar algumas reflexões acerca dos

saberes subjacentes à experiência de trabalhadores e trabalhadoras, a partir da produção

associada da vida, seja ela no contexto social como no material, pois, de acordo com Marx

(1982), o trabalho é princípio educativo em todos os âmbitos da vida.

Para isso, estaremos atentos às concepções formuladas por Gramsci (2006) e de seus

leitores como Manacorda (2008), Nosella (2004) e Coutinho (1991), os quais a partir das

idéias de Marx apontaram o trabalho como princípio educativo, isto é, a formação humana

pelo trabalho e não para o trabalho.

Além desses autores, dialogaremos com Saviani (1994), Frigotto (2001, 1989),

Ciavatta (1990), Tiriba (2009, 2008, 2006, 2004, 2003, 2001), Kuenzer (2011, 1991), e

Thompson (1987).

Como dissemos anteriormente, a relação trabalho, educação e cultura é marcada por

aproximações e rompimentos. No grupo de pesquisa da pós-graduação (Grupo de estudos e

pesquisas em Trabalho e Educação - GEPTE), do qual que fizemos parte, procuramos

identificar e nos posicionarmos frente a elas.

Sem descartar a historicidade, partimos também do concreto para identificarmos e

ressignificarmos os saberes provenientes do trabalho, que se contrapõe a lógica vigente,

acreditando que a formação omnilateral possa acontecer a partir da articulação entre os

saberes da experiência, provenientes do trabalho associado e os saberes escolares.

Assim, apresentaremos a seguir nossas compreensões sobre o trabalho, enquanto

princípio educativo e, de acordo com o objetivo principal deste estudo, os saberes mediados e

construídos pelos(as) trabalhadores associados de Capão Verde, tentando ressignificá-los e

apontando uma possibilidade de cultura do trabalho de novo tipo.

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2.1. O trabalho como princípio educativo

Toda sociedade vive porque consome; e para consumir depende da

produção. Isto é, do trabalho. Toda a sociedade vive porque cada geração

nela cuida da formação da geração seguinte e lhe transmite algo da sua

experiência, educa-a. Não há sociedade sem trabalho e sem educação.

(KONDER, 2000, p. 112).

Partindo dos escritos de Gramsci e, fundamentalmente, da filosofia da práxis é

possível identificarmos que ele acreditava que o conhecimento se dava na e pela práxis, cuja

ação sendo refletida era capaz de transformar a realidade. Em suas palavras, “existe uma

‘relação ativa’ entre as partes, entre os indivíduos e o ambiente cultural. O ambiente que o

indivíduo quer modificar, assim como o ambiente reage sobre ele, numa mútua relação

pedagógica de trocas e influências” (GRAMSCI, 1991, p.37).

Portanto, Gramsci afirma que a formação humana omnilateral18

acontece não só na

escola, como para além desta, isto é, no trabalho, nas relações sociais, nas comissões de

fábricas, nos sindicatos, nos partidos, entre outros locais, pois o mesmo “como prática

cotidiana para garantir a reprodução da vida social – é fonte de saberes e, portanto, fonte de

riquezas materiais e espirituais” (TIRIBA, 2004, p. 88).

TIRIBA (2008, p. 48) também preconiza que a educação pode acontecer em outros

espaços e afirma que os saberes, provenientes do ambiente de trabalho, promovem uma nova

cultura do trabalho, ou seja, “códigos, padrões, normas, conhecimentos, saberes, crenças,

valores e criações materiais (instrumentos, métodos, técnicas), (...) que regulam as ações e

comportamentos humanos”.

Então, sendo o trabalho princípio educativo, os homens educam a si mesmos e aos

outros em uma relação dialética, pois não há separação entre o fazer e o saber; o que contribui

para valorização dos trabalhadores e da formação humana já que traz outra visão de mundo,

de homem e de prática social. No dizer de NOSELLA (2004, p. 34), Gramsci “afirmava ser o

trabalho (industrial) o princípio e o fato educativo da escola (moderna)”.

Para Gramsci (1991, p.35) “é impossível pensar um homem que não seja também um

filósofo, que não pense, já que o pensar é próprio do homem como tal”, já nos Cadernos do

Cárcere (2006), volume 1, o mesmo nos diz que, na vida social, somos apresentados a uma

18

A formação omnilateral consiste em uma formação completa e integral dos homens, articulando trabalho

intelectual e manual (escola unitária).

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filosofia espontânea19

e inconsciente que é uma concepção de mundo, presente na linguagem

(noções e conceitos), no senso comum, no bom senso, na religião popular e no folclore.

Entretanto, essa concepção de mundo é estabelecida pela classe hegemônica, de acordo com o

projeto societário que desejam construir.

Ressaltamos aqui, que o capitalismo pretende educar o trabalhador para submetê-lo

aos seus princípios de dominação e por isso a classe hegemônica tem o trabalho como fim

educativo, já que “ele não é mais o artesão que domina o processo produtivo em sua

totalidade, mas o assalariado que se submete real e formalmente ao capital” (KUENZER,

2011, p. 12).

Nosella (2007, p.180) atenta para o poder que a linguagem tem e acrescenta que “a

linguagem humana é sempre expressão histórica reveladora de intencionalidade e interesses

práticos e, portanto, instrumento essencial para a conquista da hegemonia”. Por isso, de

acordo com Gramsci, os saberes historicamente e socialmente construídos não devem ser

descartados, mas refletidos e amparados pelos saberes provenientes das experiências da vida

dos trabalhadores – a filosofia da práxis. Já que essa filosofia é o “movimento entre o sentir, o

compreender e o saber como condição para transformar os subalternos em senhores do

próprio destino, em homens livres” (NOSELLA, 2004, p. 14).

Gramsci critica o indivíduo (homem-massa) que se conforma com essa filosofia

imposta pela sociedade e argumenta que se deva participar da produção da história, a partir de

uma consciência crítica e coerente (homem-coletivo). Para isso, recomenda criticar “toda a

filosofia até hoje existente” (GRAMSCI, 2006, pag. 94), através de um inventário do que foi

construído historicamente e socialmente, isto é, conhecer a nossa história, a história do nosso

pensamento.

Dessa forma, Gramsci compreendeu a necessidade de educar/instruir os trabalhadores

para formarem intelectuais orgânicos, capazes de uma ação política contrária a imposta pela

classe hegemônica, porque essa classe aproveita o trabalho fragmentado e heterogerido e

proporciona uma educação que reproduz “relações de poder do capital sobre o trabalho”

(KUENZER, 2011, p. 13).

Ele argumenta que “toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação

pedagógica” (GRAMSCI, 1991, p. 37) e, por isso, a classe dominante se torna hegemônica. A

burguesia tem definida uma concepção de mundo e, através do convencimento, submetem os

19

A filosofia espontânea, proveniente do senso comum, é limitada porque parte da observação da realidade

simples e a filosofia da práxis toma concepções de mundo coerentes com o momento histórico-social e cultural,

obrigando o indivíduo a uma análise dessa realidade e a uma autocrítica.

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grupos inferiores a tal concepção/filosofia, que é transformada em senso comum,

conservando-se a ideologia do bloco social e fortalecendo-se.

Uma massa humana não só se “distingue” e não se torna

independente “para si”, sem organizar-se (em sentido lato); e não existe

organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes (...). Mas

este processo de criação de intelectuais é longo, difícil, cheio de

contradições, de avanços, recuos, de cisões e de agrupamento. (GRAMSCI,

2006, p. 104).

À revelia, não existe uma filosofia/concepção de mundo geral, “existem diversas

filosofias ou concepções de mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas (...) a escolha e a

crítica de uma concepção do mundo são, também elas, fatos políticos.” (GRAMSCI, 1991,

p.14-15).

A organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam

ocorrer se entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma

unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais

fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado

e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas

colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural

e social (GRAMSCI, 1991, p. 18).

Mas, nesse momento, questionamos: como e para que se educam os trabalhadores?

Quem os educa?

Como dissemos anteriormente, os ambientes não-escolares também podem ser

educativos, porque neles apreendemos valores relacionados ao trabalho e também a própria

vida social. Porém, Gramsci frisa também a importância da escola formal para que o

trabalhador reflita sobre a sua ação no mundo e possa escolher entre as concepções de mundo

dadas a ele.

Com essa intenção, a escola deveria ter constituição humanista, anti-enciclopédica,

articulada com a formação técnico-profissional. Para isso, Gramsci formula a escola unitária

“em que a teoria e o trabalho estão estreitamente unidos articulando a escola e a vida social e

material característica do século XX e, assim, superando a proposta marxiana e leninista de

escola politécnica” (SOARES, 2000 apud MANACORDA, 2008, grifo do autor).

Gramsci (1991, p. 148) apontava a necessidade de articular o conhecimento

erudito/científico com a cultura das massas para “ajudá-lo a elaborar criticamente o próprio

pensamento e assim participar de uma comunidade ideológica e cultural”. Em outras palavras,

era preciso promover a evolução intelectual do indivíduo, através da superação das filosofias

anteriores e das provenientes do senso comum.

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Se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se

uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era

‘paciente’ de uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é

mais paciente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor (...)

Uma parte da massa, ainda que subalterna, é sempre dirigente e responsável,

e a filosofia da parte precede a filosofia do todo, não só como antecipação

teórica, mas também como necessidade atual (GRAMSCI, 1991, p. 24).

Unindo teoria e prática, seria possível formar homens que se autogovernariam e

governariam ao mundo do trabalho, pois elevariam saberes construídos nos seus locais de

trabalho, a partir de seus objetivos de classe, e após reflexão sobre os saberes disseminados

pela classe hegemônica e sobre a realidade em que atuam e vivem, poderiam articular um

projeto societário que os retirassem da condição de alienados. Nesse sentido, “o instrumento

de trabalho para a escola unitária é um feixe de relações políticas, sociais e produtivas”

(NOSELLA, 2004, p. 19).

Isso mostra que Gramsci tinha um intenso interesse pedagógico, com rigor intelectual

e disciplinar, para com a formação militante da classe operária. O operário podia ser

oprimido, mas não alienado, pois teria consciência crítica da sua ação, isto é, iria saber fazer e

saber ser no mundo. Esse ideário o fez vislumbrar uma filosofia da práxis que seria a

coerência entre o agir e o pensar, propiciando uma leitura de mundo unitária e não duas

consciências teóricas conflitantes:

[...] uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os

seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra,

superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu

sem crítica. Todavia, esta concepção ‘verbal’ não é inconseqüente: ela liga a

um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção

da vontade (...) não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um

estado de passividade moral e política. (GRAMSCI, 2006, p. 103).

Resolvendo essas consciências contraditórias, o indivíduo adquire uma

autoconsciência, já que é levado a assumir uma postura crítica sobre o real, ou seja, a ter uma

ação política. Para Gramsci, esse é o conceito de hegemonia que significa ir

[...] além do progresso político-prático – um grande progresso

filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e

uma ética, adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum

e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos (GRAMSCI,

1991, p. 21).

Diante do que comentamos anteriormente, vemos que Gramsci não compreendia a

consciência revolucionária como espontânea, pois o proletariado não tem naturalmente uma

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consciência de classe, de sociedade, do seu papel na sociedade. Nesse sentido, a educação,

através de uma reforma cultural e moral, seria um dos meios de mudança de consciência, seria

uma revolução do/no pensamento.

Thompson (1987), em A formação da classe operária inglesa III – A força dos

trabalhadores, ressalta que muitos trabalhadores das fábricas industriais, no século XIX, eram

analfabetos, mas os que tinham um pouco de erudição liam, em seus tempos livres, panfletos,

periódicos, jornais e discursos para os demais, a fim de que soubessem os rumos da sociedade

industrial e da efervescência política. Pode-se pensar que esse período de excitação política

tenha levado alguns trabalhadores a adquirir consciência da sua situação de classe, bem como

reconhecer o esforço, a coragem e a vontade de mudança expressa pelos trabalhadores.

É difícil formular generalizações sobre o grau de alfabetização nos

primeiros anos do século. As “classes industriosas”, num dos extremos,

incluíam um milhão ou mais de analfabetos, ou de alfabetizados cujo grau de

instrução ia pouco além da capacidade de soletrar umas poucas palavras ou

de escrever seus nomes. No outro extremo, estavam indivíduos com

realizações intelectuais consideráveis. De forma nenhuma o analfabetismo

(devemos lembrar) excluía os indivíduos do discurso político (Thompson,

1987, p. 304).

Thompson nos elucida que mesmo sendo alguns trabalhadores ingleses analfabetos,

isso não impedia que tivessem uma concepção de mundo, da situação em que viviam e

proferissem suas opiniões aos demais trabalhadores. A maioria dos trabalhadores de Capão

Verde não esteve em uma escola formal e os que estiveram não concluíram sequer os

primeiros anos do Ensino Fundamental, no entanto, nos seus discursos, podemos perceber

suas posturas políticas.

Ah, eu vi que tem que estudar, porque as coisas a cada dia muda. Às

vezes a gente acha que a gente sabe e tem muita coisa que a gente tem que

aprender ainda. Os professores vêm da outra comunidade, é um grande

esforço que eles tão fazendo e a gente precisa fazer um pouco de esforço prá

aproveitar a oportunidade de estudar perto de casa (Lourenço).

Como disse Gramsci (1991), era necessário que os trabalhadores organizassem

primeiro o seu pensamento e não recebessem passivamente as ideias culturais, era preciso

criar hábitos de pesquisa e de leitura, com rigor e método, e a exposição de suas idéias para os

demais trabalhadores. Ele queria “conceber a cultura, de maneira não anárquica (...) ao falar

da emancipação da classe operária” (MANACORDA, 2008, p. 55), ou seja, organizar a

cultura e estreitar vínculos entre as escolas já existentes, com a escola unitária objetivada.

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No entanto, Gramsci tinha clara consciência que “a escola, quando funciona com

seriedade, não deixa tempo para a oficina e, vice-versa, quem trabalha seriamente apenas

através de um enorme esforço de vontade pode se instruir” (NOSELLA, 2004, p. 48).

Concordando com isso, Thompson salienta que, no fervor industrial, os trabalhadores

que ainda possuíam fôlego, procuravam escolas à noite, nas quais “eram pobres demais e não

podiam pagar o papel ou a lousa, mas aprendiam a escrever traçando as letras com o dedo

numa mesa com areia por cima” (THOMPSON, 1987, p. 310).

Assim, para chegar à organicidade do pensamento, precisavam articular indivíduo e

ambiente, espontaneidade e organização e que isso começasse “com os poucos: nada é mais

eficaz, pedagogicamente, que o exemplo” (GRAMSCI apud MANACORDA, 2008, p.38).

Para Gramsci, “o mais importante é criar um ambiente cultural rico, orgânico, de

amplos horizontes, um ambiente democraticamente participativo, pois não se alfabetiza ‘ à

força’ e sim a quem se motivou para ler e escrever durante a discussão cultural” (NOSELLA,

2004, p. 61).

Em linhas gerais, Gramsci nos deixa como contribuição que, apesar de todo indivíduo

ser intelectual e filósofo, precisa estar articulado com um projeto de sociedade, isto é, agir

sobre o ambiente, mas tendo uma autocrítica da sua ação e dos outros homens. Nas suas

palavras, “todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então, mas nem todos os

homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1991, p. 7) e por

isso, vemos que nem todos participam ativamente na produção da história e acabam por

aceitar as concepções impostas pelos grupos hegemônicos.

2.2 Saberes da experiência e cultura do trabalho associado

Neste sub-capítulo pretendemos dissertar sobre os saberes da experiência inerentes à

produção associada da vida e à possibilidade de apontar para uma velha/nova20

cultura do

trabalho. Esses saberes são resultados da experiência (Thompson, 1987, 1998) com o trabalho

associado, com os meios de produção (terra), com o mundo e com outros trabalhadores.

A centralidade do trabalho na vida social, além de ter como

fundamento o caráter ontológico do trabalho, traz consigo as práticas sociais

20

Reiteramos aqui que velha se refere às antigas formas de produzir a existência, como entre homens

primitivos, indígenas, entre outros, e nova porque a produção associada da vida, fazendo parte da economia

(popular) solidária, sofre contradições e é praticada de diversas formas. Devido a isso, já apresentamos no

subcapítulo 1.4. que a economia (popular) solidária pode ser uma nova estratégia de vida e de organização do

trabalho, que possibilite (re) pensar e contestar os princípios capitalistas ou contribua para a valorização do

capital, mascarando o desemprego.

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concretas e o conjunto de valores e representações que os trabalhadores

interiorizam, em cada momento histórico, em sua atividade laboral e em

outras redes de convivência social: escola, família, igreja, associações de

vizinhos, partido, sindicato etc..., ademais da influência dos meios de

comunicação (TIRIBA, 2001, p. 229).

Contudo, cada trabalhador tem uma experiência singular com o trabalho, mesmo

produzindo sob as mesmas condições as mesmas mercadorias. E partindo do pressuposto

marxista que a essência do ser homem é o trabalho (MARX,1982), inferimos que cada

experiência dessas contribui para a produção da existência social e histórica da humanidade.

Assim, ao produto da vida social humana denominamos cultura e este fenômeno é, em grande

medida, a expressão da atividade humana em relação à produção material e imaterial da

existência. Em outras palavras, da relação cultura e trabalho, apreendemos a dinâmica da

realidade material e social do trabalhador e a isso chamamos de cultura do trabalho.

Assim, não nos importa os saberes de um indivíduo singular e sim as relações que os

trabalhadores estabelecem no coletivo do trabalho e com a sociedade, já que estas relações

demonstram concepções, valores, utopias e “representações sobre si, sobre seu trabalho, sobre

o mundo que o rodeia” (TIRIBA, 2001, p. 237).

Vimos em Marx (1982) que, quando realizamos trabalho, utilizamos não só força

física como a intelectual. Dessa maneira, neste ato, produzimos conhecimento antes, durante e

depois de realizá-lo. Portanto, a experiência com o trabalho é educativa e cultural.

Thompson (1998, p. 90), em Costumes em comum – estudos sobre a cultura popular

tradicional, nos mostra que os aspectos da produção material aparecem em muitas tradições e

costumes da classe popular inglesa do século XVIII e que várias se perpetuaram pelo tempo.

No século XVIII, as florestas, as áreas de caça, os grandes parques e

algumas áreas de pesca eram arenas notáveis de reivindicações (e

apropriações) conflitantes de direitos comuns. Depois de uma revitalização

nas primeiras décadas do século, os tribunais florestais voltaram a cair em

desuso, de modo que diminuiu a vigilância da “Coroa”. Mas continuava a

existir a hierarquia dos donatários, administradores, guardas, funcionários

florestais, guardas subalternos, tão gananciosos como sempre, e a maioria

deles comprometida com os abusos que a sua posição ou as oportunidades

do cargo favoreciam.

No trecho acima, Thompson nos mostra que a disputa pelo direito comum da terra era

manipulada pela noção de direito de uso que a classe dominante detinha e impunha aos

plebeus. Ainda hoje, muitos fazendeiros se utilizam desse discurso para expulsar

trabalhadores rivais e se apropriarem de suas terras.

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Marx (1982) salientou que a própria natureza de quem realiza o trabalho é modificada

e não exclusivamente pela ação em si, mas também pelas concepções de mundo adquiridas e

construídas durante a vida. Por isso, faz-se importante investigarmos se os trabalhadores

permanecem ligados aos seus costumes e tradições ou foram subvertidos pela cultura da

classe dominante, pois no senso comum existe o culto à cultura dominante, o que contribui

para reforçar as desigualdades sociais e econômicas.

Esse culto à cultura dominante foi difundido principalmente a partir da consolidação

do capitalismo industrial, período em que propagaram que os trabalhadores deveriam

acostumar o corpo à disciplina do trabalho industrial. Somente a partir dessa internalização

que poderiam vender a sua força de trabalho e serem pagos por isso.

Diante das exposições sobre a importância do costume e da cultura do trabalho, mais

uma vez apontamos a necessidade de se utilizar o método histórico-dialético, para dar conta

dos saberes da experiência concreta com o trabalho associado e também das condições

históricas e sociais a que os trabalhadores investigados estão submetidos.

Frisamos que as experiências com o trabalho associado são específicas, mesmo

estando esses trabalhadores inseridos no modo de produção capitalista. Mesmo assim, elas

estão sujeitas a contradições: algumas podem sempre negar o que está posto pelo sistema

econômico vigente ou se adequar à cultura do trabalho da classe hegemônica, já que esta é

verticalizada na nossa sociedade. Isso acontece porque os trabalhadores realizam trabalho de

acordo com determinada cultura e estão inseridos no sistema capitalista, não é de se admirar

que de uma hora ou outra sejam impregnados pela cultura do trabalho dominante. Em Capão

será assim? Vejamos a seguir.

Por esse motivo, algumas questões vieram à tona durante a análise dos dados, mesmo

não tendo sido propostas por nós ao iniciarmos a pesquisa: as experiências com a produção

associada em Capão Verde podem apontar um rompimento real com o capitalismo? Elas

podem apontar um projeto societário ou projeto singular de classe? Esse projeto pode ser o

embrião de uma ruptura com o capitalismo?

Acreditamos que essas experiências/saberes revelam um velho/novo sentido do

trabalho que as diferencia de outras economias, mas não garantem a materialização de uma

nova realidade já que “esse setor da economia, embora “popular”, não tem conseguido fazer a

síntese de suas diferentes identidades21

– condição básica para poder manifestar-se como um

21

Lembramos que a economia popular pode ser composta de trabalhadores que sempre foram excluídos do

trabalho assalariado, de desempregados, de trabalhadores informais que servem ao capital, entre outros, o que

indica diferentes identidades.

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projeto hegemônico dos setores populares” (TIRIBA, 2001, p. 341). Além disto, “uma cultura

do trabalho de novo tipo pressupõe também uma sociedade de novo tipo” (Idem, p. 343).

Assim, podemos identificar a identidade desses trabalhadores, ou seja, identificar os

saberes da experiência com a produção associada e como se materializam no cotidiano para

depois ressignificá-los, a fim de compreendê-los como possibilidade de elementos da

formação omnilateral, de novas práticas sociais e de uma cultura do trabalho de novo tipo.

Para isso, nos pautaremos nos pressupostos teóricos formulados por Thompson (1998, 1987),

Gramsci (2006, 1991) e Tiriba (2009, 2008, 2006, 2004, 2003, 2001).

Marx e Engels (1986) afirmam que “o ser dos homens é o seu processo de vida real”

(MARX & ENGELS, 1986 apud FRIGOTTO, 1989, p. 76), onde plasmam as relações

materiais, culturais e sociais. Identificar essas relações estabelecidas no coletivo é possibilitar

conferir a construção de uma nova cultura do trabalho.

Gramsci (2006, p. 96) ressalta, nos Cadernos do Cárcere, que os trabalhadores

precisam construir uma nova cultura para a sua efetiva emancipação do capital e,

[...] criar uma nova cultura não significa apenas fazer

individualmente descobertas ‘originais’; significa também e, sobretudo,

difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer;

e, portanto, transformá-las em bases de ações vitais, em elemento de

coordenação e de ordem intelectual e moral.

Por isso, reafirmamos a importância de identificar as relações que os trabalhadores de

Capão Verde estabelecem no coletivo do trabalho, com seus iguais e com o mundo.

Para melhor compreendermos essa questão, precisamos ter claro que nessas relações

estão intrínsecos valores, concepções, utopias, práticas e conhecimentos que sinalizam uma

cultura específica de trabalho. E sob esta ótica, buscaremos identificá-las e ressignificá-las.

Com este intento, partimos da seguinte pergunta: quais saberes podem ser o embrião

de uma velha/nova cultura do trabalho?

Tiriba (2001) nos sinaliza que seriam saberes que implicam relações de produção de

valores de uso, em que inexiste a propriedade individual dos meios de produção, a alienação,

a hierarquia, a mercantilização da força de trabalho, o lucro individual, a exploração, isto é,

que objetivem somente a reprodução ampliada da vida social.

Na pesquisa de campo, reconhecemos alguns saberes da experiência com a produção

associada, que podem ser o embrião de uma velha/nova cultura do trabalho:

1. A experiência singular com a terra, que (re) cria saberes;

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2. A questão do parentesco, que influencia na permanência na Comunidade e na

manutenção da posse coletiva da terra;

3. A possibilidade de sobreviver da terra (meio de produção) e sem ter patrão;

4. A aprendizagem do trabalho com os pais (transmissão cultural) que se consolida

no processo de trabalho;

5. As experiências com o trabalho sob a lógica capitalista;

6. A experiência embrionária da autogestão do processo de trabalho e que se

transforma com a práxis;

7. As aprendizagens e descobertas coletivas na produção de novas mercadorias;

8. O reconhecimento da Comunidade como remanescente de quilombo;

9. A atuação de Felinto e Antonio (voluntários) e o contato, mediado por eles, com

algumas instituições (SEBRAE, UNEMAT, Fundação Palmares);

10. A criação da unidade de produção associada: Associação dos Agricultores e

Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde - Agriverde22

.

Estaremos analisando os saberes provenientes da experiência com o trabalho associado

e com a vida social em coletividade nas linhas que se seguem.

2.2.1 A terra que eu afago me ensina e eu ensino os meus: os frutos da terra

2.2.1.1 A minha terra, a nossa terra

Como já havíamos salientado, um dos saberes que identificamos está relacionado ao

sentimento construído em relação à terra e que redimensiona a relação entre natureza -

produção - homem.

A importância atribuída à terra pelos trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde

não é fruto de um sentimento intrínseco a esses trabalhadores e, sim, um saber partilhado por

seus fundadores. Eles socializaram o prazer/satisfação em trabalhar na terra que lhes pertence

e que faz parte das suas vidas. Além disso, anunciam a igualdade e a liberdade no processo

produtivo e da vida social. Esses saberes acabam por instituir uma tradição/costume

transmitida entre as gerações.

Segundo Thompson (1998, p. 18), essas “tradições se perpetuam em grande parte

mediante a transmissão oral, com seu repertório de anedotas e narrativas exemplares”. Assim,

eles cresceram ouvindo e vendo que a terra e o trabalho os elementos que garantem a

22

Optamos por chamar a unidade de produção de Agroindústria porque essa é a denominação dada pelos

trabalhadores entrevistados.

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reprodução ampliada da vida. Com isso, esses trabalhadores foram aprendendo com os seus

antepassados não só a cuidar da terra, mas como viver dela.

Tinha só a casa ali, outro mais ali e nóis aqui. Prá lá que tinha um,

prá lá que tinha outro. Aí depois que nóis situou bem, aí que acelerou, cada

um puxou a sua roçinha, um precisava de um, um precisava de outro e vivia

só dessa roça (Ana Luiza).

Fotografia 8 (Imagens da autora)

Fotografia 9 - Gerações diferentes contemplando os frutos da terra (Imagens da

autora).

Não só um meio de manter a reprodução ampliada da vida, a terra é o que passou a

dar sentido a própria existência da Comunidade. Podemos ver nas imagens que o contemplar a

natureza, muitas vezes expropriado do trabalhador formal, é legítimo para esses trabalhadores.

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Lá é possível ver as plantas crescerem, ouvir o canto dos passarinhos, deixar a terra correr

entre os dedos e provar lentamente o doce das frutas.

Mas como esse saber foi reproduzido? Acreditamos que o primeiro passo foi tornar a

terra comum a todos.

Aqui foi a terra do avô, aqui não era pra vender, era pra criar neto,

filho, neto, vizineto e por isso eu to fincado aqui, daqui ninguém me tira [...]

bobageira esse negócio de loteá porque um não quer que entra aqui, outro

não quer que entra ali..aqui a vida é esse (Dona Maria Rosa).

Não só nas palavras de Dona Maria Rosa, neta de um dos fundadores da Comunidade,

que identificamos esse saber, mas também nas de um adolescente, membro da quarta geração

e que já se encontra inserido na agroindústria Agriverde:

A terra aqui não tem dono, é tudo comum. Se quiser fazer uma roça

lá embaixo pode fazer, a quantia que quiser, o tamanho que quiser, ninguém

briga. Foi a decisão das pessoas mais velhas, porque antes veio aqui prá

dividir e aí não quiseram e falou: é melhor comum memo, assim fica prá

tudo (Elves).

Elves é a concretude da utopia de Seu Vitor e de seus irmãos, porque esse jovem já

esteve inserido na escola formal, teve/tem contato com meios de comunicação e com pessoas

de outras localidades, já esteve na ‘cidade’, enfim, já pôde sentir a lógica do sistema

capitalista.

Poder-se-ia dizer, à primeira vista, que Seu Vitor e seus irmãos acreditavam na

reprodução ampliada da vida por meio da terra, porque permaneceram por muito tempo

‘isolados’ em Capão Verde. Todavia, eles compraram as terras e para isso tiveram

experiências pregressas com tal lógica. Por isso, pensamos que a experiência com o trabalho

sob a égide capitalista contribuiu para que esse saber fosse construído.

Esse saber ficou enraizado nas vidas desses trabalhadores, perpassando gerações. Ter

um pedaço de terra era importante para manter viva uma Comunidade; ter onde morar, ter o

que comer e poder garantir a existência das gerações futuras, era o que importava para ele e as

pessoas deveriam compartilhar essa utopia e socializar com os demais. Por isso, “as pessoas

optou por não dividir e continuou assim mesmo” (Andréia).

Visitando Capão é possível perceber a imensidão de terra que possuem, mas o

interessante é que eles conservam suas casas próximas uma das outras, demonstrando que

optaram por ficarem unidos. Será mais um saber reproduzido pelos fundadores da

Comunidade?

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Nas conversas informais eles deixaram claro que esse posicionamento ocorreu por

espontaneidade e não por determinação dos genitores. Os filhos de Seu Vitor e de seus irmãos

quando formaram suas famílias, estabeleceram suas casas ao redor da casa dos pais e essa foi

uma tradição cultural mantida até os dias atuais.

Aqui não tinha cerca por parte nenhum, não tinha cerca, era tudo

aberto. Nóis criava tudo com dos outro, eu criava aqui, você ali, o seu vinha

aqui, o nosso ia prá lá. Quando ia campeá, andava o dia inteiro e não via

cerca (Justino).

Não só morar próximos dos pais, mas dos outros parentes fortaleceu a identidade com

a terra. Além disso, facilitou a ajuda mútua entre eles para ali permanecer

Cada um lutava com as suas casinha, um ajudava, um aprontava e aí

ia fazendo de outro. Papai queimou, plantou e na colheita do arroz é que veio

a família de tio Gregório com tia Ditinha, Tio Vitor que morava no Canelão,

veio tio Fi que morava no Córrego Fundo, veio cumpadre Benedito que

morava no Buriti. Aí reuniu tudo os fio aqui. Aí foi fazendo essas casinha,

era de capim, rançava capim prá cobri a casa, de tudinho, aí fazia a roça,

fazia currá (Dona Maria Rosa).

Além de permanecerem na terra, mantê-la comum a todos na Comunidade, não

deveriam vendê-la a terceiros. Logo, manter a identidade com a terra contribuiu para não

dividí-la, o que talvez pudesse fazer com que a venda fosse inevitável.

[..] se divide uma comunidade, a comunidade pode ser pequena, mas

se você divide ela, ela vai acaba (acabar) mais rápido [...] aqui não tem como

acaba (acabar) [...] eu não posso vender terra, aqui é tudo comum, eu

trabalho onde eu quero, faço roça onde eu quero, todo mundo é assim, aqui é

tudo parente, aqui é tudo de uma família só [..]. não dá muita confusão

porque a gente é tudo sangue de um sangue só (Lourenço – tesoureiro da

Associação Agriverde).

A terra nossa aqui é tudo comum, aqui é uma herança de nossos avô.

Então nóis mora aqui tudo comum. Eu planto na onde quiser, não quer roçar

lá roça pra cá. Aqui não tem negócio de medição. Tudo é comum (Maria

Albertina).

Todos os moradores da Comunidade que foram questionados sobre a divisão da terra

entre eles, responderam sem pestanejar que a terra, por ter sido adquirida pelos progenitores

da família, deveria ser mantida comum e, em hipótese alguma, ser vendida, já que pertencia a

todos. E, assim, os duzentos hectares de terra permanecem como um bem comum a todos.

A terra ficou comum entre todo mundo, não é dividido (Eva).

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É em comum...bobageira esse negócio de loteá, porque um não quer

que entra aqui, outro não quer que entra ali. Aqui a vida é esse, aqui é

sesmaria (Dona Maria).

Desde que passamos a conhecer esses trabalhadores e suas vidas, a questão da terra ser

comum e não dividida nos causava inquietude. Como isso era possível? Nós imaginávamos

que existia uma roça em comum e que todos sobreviviam desta, mas quando eles se referem à

terra comum, querem dizer que não existe um terreno determinado para cada família. Reitero

esse pensamento com a própria explicação que nos foi dada: “Se você tem sua casa em um

local e amanhã quer mudá-la de lugar, isso é possível porque a terra perde de vista e é de

todos. Se quiser ter sua casa em um local e sua roça em outro há a possibilidade de fazê-lo”

(Lourenço).

Essas inquietações são decorrentes de vivências sob a lógica capitalista. Se a avó

morre e tem uma casa como bem material, esta é disputada e dividida entre seus descendentes,

uns com mais direitos que os outros. Lá em Capão, essa cena é diferente, se o dono da casa

morre, eles a deixam intacta, para abrigar um possível casal que se constitua.

Além disso, outra justificativa para não dividirem as terras é que perceberam que

somente alguns seriam beneficiados com terras produtivas, com minas de água, com a

proximidade da estrada, entre outras questões.

[...] porque se separa, tem lugar que não fica com a água, não fica

com mato e nossa profissão é roça, trabaiá na roça, aí se fica sem mato como

que vai fazê? Aí nóis trabaia toda a vida, desde o meu pai, na roça (Justino).

Não tem nem como dividir, onde planta é longe, sobe morro, desce

morro. Aí um fica com terra, outro fica sem terra, aí não tem nem como

repartir. É melhor pra todos (Maria Albertina).

Esses trabalhadores perceberam que a relação com a terra é o que proporciona a

possibilidade de trabalho, de estabelecer uma relação de domínio da natureza e a garantia de

sobrevivência.

Como dissemos anteriormente, eles não divergem em relação ao tamanho da terra que

utilizarão para fazer as suas roças. Não há uma norma ou regra que determine isso, mas sim a

quantidade da roça que o trabalhador precisa para prover sua reprodução ampliada da vida.

Aqui é tipo assim: se eu tenho condição de fazer um hectare, eu faço

e quem tem mais, então faz duas né. Catarino.

Por isso, em Capão Verde, não vemos cercas e nem divisórias. Cada um construiu a

sua casa e a sua roça onde achou conveniente, mas sempre ligada às dos demais. Essa

proximidade faz com que os saberes sejam compartilhados indiscriminadamente e contribui

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para que o desejo de bem-estar comum entre os moradores da Comunidade seja uma

unanimidade. Com isso, eles direcionam o saber e o fazer em prol de uma mesma finalidade.

Assim, é produzida, por quase um século, a vida social e material naquele local.

Os costumes estão claramente associados e arraigados às realidades

materiais e sociais da vida e do trabalho, embora não derivem simplesmente

dessas realidades. Eles podem preservar a necessidade da ação coletiva, do

ajuste coletivo de interesses, da expressão coletiva de sentimentos emoções

dentro do terreno e domínio dos que deles co-participam, servindo com uma

fronteira para excluir forasteiros (THOMPSON, 1998, p. 22).

Através das palavras de Thompson, destacamos outro saber construído/reproduzido: a

não permissão de pessoas estranhas em Capão (que não tenham laços consangüíneos).

Somente seria permitido se a pessoa que viesse de outro local e se casasse com outra de

Capão Verde, e ali permanecessem morando. Assim, aconteceu com Andréia e Catarino, que

hoje estão à frente da agroindústria Agriverde.

Portanto, eles têm claro que a divisão de terras de uma Comunidade pode contribuir

para a sua extinção, para possíveis conflitos durante a partilha e a intromissão de pessoas

estranhas na produção da vida da Comunidade.

Tentamos captar esse fato em algumas imagens, como as que se seguem:

Fotografia 10 Fotografia 11 (Imagens da autora)

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Fotografia 12 - Algumas casas de Capão Verde (Imagem da autora)

2.2.1.2 Sobreviver da terra

A respeito da produção familiar e sobre os germes de uma economia (popular)

solidária, Coraggio (2000, p. 95) nos apresenta que

[...] a unidade doméstica como micro-unidade de organização dos

subsistemas de reprodução, é a célula da economia popular, da mesma forma

que as empresas, como micro-unidades de reprodução do capital, são as

células da economia capitalista. Neste sentido, a unidade doméstica pode ser

formada tanto por pessoas com vínculo de consangüinidade (...) ou até ser

formada por amigos, por comunidades étnicas, de vizinhos, por grupos que

se unem livremente para cooperar, ou agregações solidárias de outro tipo

qualquer, que compartilhem recursos e estratégias, explícitas ou implícitas,

para reproduzir sua vida coletiva. Em todos os casos, seus membros juntam

seus recursos, no todo ou em parte, a fim de satisfazer coletiva e

solidariamente as necessidades de todo o conjunto. (CORAGGIO, 2000, p.

95 apud PINTO, 2006, p. 52).

A produção associada da vida em Capão Verde teve início com experiências entre as

famílias, compartilhando não só os instrumentos de trabalho como os saberes, que eram

construídos. Assim que a terra foi comprada, os recém-moradores da Comunidade Capão

Verde tiveram de limpar o local para construírem suas casas e iniciar o plantio de alimentos

para manter a reprodução ampliada da vida. Inicialmente, eles experimentaram o plantio de

mandioca, arroz, feijão, banana, milho e algumas hortaliças.

Alguns tipos de culturas se adaptaram mais à terra e ao clima, e puderam nutrir por um

bom tempo os moradores e trabalhadores de Capão. Eles afirmam que preferem consumir os

alimentos que eles produzem, do que comprar os fornecidos pelos mercados, já que advém de

uma produção em larga escala que utiliza venenos, defensivos agrícolas, adubos, e outras

substâncias químicas para mantê-la.

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Aqui é totalmente diferente da cidade, na cidade você pega uma

banana agora, meio-dia tá madura. Você compra as coisa lá, tomate, e não

sabe de onde que vem e aqui você tem uma cebola do seu mesmo, você tá

plantando. Pimentão não tem veneno, não tem nada e dura mais (Elves).

Entretanto, nem sempre a preferência é que manda. Dona Maria Albertina nos revelou

que alguns alimentos demandam muito trabalho para serem produzidos. Além disso, para

viver somente da roça precisavam ter todas as frutas, legumes, hortaliças, grãos, entre outros

alimentos, em fartura e sempre prontos para a colheita. Contudo, lidar com a terra não é fácil

e exige muito suor do trabalhador. Mais que isso, a fome não espera e a única solução é dispor

de alguns alimentos industrializados.

Além da facilidade de encontrar alguns produtos já empacotados e com grande

durabilidade, a idade vem chegando e não conseguem produzi-los como antes.

Nóis tem banana, tem mandioca, planta milho, feijão. Nóis compra

na cidade outras coisa, arroz nóis compra, porque antes nóis plantava e

socava no pilão, agora ninguém soca arroz no pilão, já compra arroz limpo.

Pra mim acho que agora, aqui, esta super melhor, mudou né, cem por cento

(Maria Albertina).

No entanto, alguns costumes ainda são mantidos como assar a carne em grandes

espetos e com a brasa dentro de um buraco no chão, secar os ossos do boi e usar o tutano nas

feijoadas, cozinhar em fogão à lenha e preparar a comida para as festas em coletividade.

Apreendemos esses momentos em fotografias, como podemos ver:

Fotografias 13 e 14 - Churrasco: a carne é colocada em grandes espetos de madeira e sobre

um buraco com carvão (imagens da autora).

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Fotografias 15 e 16 - Os ossos são colocados para secar em cima dos telhados ou

pendurados em barracões (imagens da autora).

Fotografias 17 e 18 - Os trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde conversando sobre

assuntos cotidianos e sobre o trabalho que realizam (cortando carne para a festa do dia das

crianças) – (imagens da autora).

Uma idéia que vem circulando, atualmente, em Capão Verde é fazer uma horta

comunitária para que todos possam cuidar juntos e prover seus sustentos. Apesar de muitos

idosos ainda trabalharem na roça, muitos outros que não possuem a mesma vitalidade

poderiam ser beneficiados e aproveitar dos frutos da sua terra. A ideia foi trazida por Felinto,

um grande amigo que a Comunidade ganhou, mas sobre ele falaremos mais adiante.

Mesmo assim, da terra eles retiram não só o alimento para o consumo imediato, mas o

excedente que utilizam para trocar por outros valores de uso. Eles conseguem vender ou

trocar, principalmente, a fruta que mais prolifera no cerrado, a banana da terra.

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2.2.1.3 “Eu me desenvolvo e evoluo com meu filho, eu me desenvolvo e evoluo

com meu pai” 23

Alguns saberes em relação à terra são transpassados por gerações e um deles é a cura

de doenças/enfermidades por meio da utilização de ervas, raízes e plantas. A transmissão

dessa cultura que provém da relação ser humano-natureza, mediada pelo trabalho, acontece

oralmente de geração a geração.

O aprendizado, como iniciação em habilitações dos adultos, não se

restringe à sua expressão formal na manufatura, mas também serve como

mecanismo de transmissão entre gerações. A criança faz seu aprendizado das

tarefas caseiras primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde (freqüentemente) na

condição de empregado doméstico ou agrícola. No que diz respeito aos

mistérios da criação dos filhos, a jovem mãe cumpre seu aprendizado junto

às matronas da comunidade. O mesmo acontece com os ofícios que não tem

um aprendizado formal. Com a transmissão dessas técnicas particulares, dá-

se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da sabedoria comum

da coletividade. Embora a vida social esteja em permanente mudança (...)

ainda não atingiram o ponto em que se admite que cada geração sucessiva

terá um horizonte diferente. E a educação formal, esse motor de aceleração (

e do distanciamento) cultural, ainda não se interpôs de forma significativa

nesse processo de transmissão de geração para geração. (THOMPSON,

1998, p. 18).

Trata-se de um costume antigo que é praticado desde os indígenas, antes do

descobrimento do Brasil. Por mais que o mundo já tenha sofrido inovações e o acesso da

população às informações nesse campo tenha aumentado, ainda hoje muitas pessoas fazem

uso e repassam esse saber às demais gerações.

É uma coisa assim que a gente procura sempre nas pessoas mais

velhas porque eles que sabem as ervas prá que é bom e a gente vai

ensinando. Tem umas ervas que eles (filhos) já conhecem. Se você mandar

eles lá no mato pegar, eles já sabem (Andréia).

Quem nunca usou figa ou fita vermelha contra mau olhado? Quem já não foi benzido

contra cobreiro? Quem nunca utilizou um chá de boldo para curar dor de estômago? Esse chá,

hoje em dia, já é comercializado até em saquinhos de infusão nos mercados, dando crédito ao

saber popular.

Informalmente, no cotidiano, esse conhecimento foi transmitido desde os primeiros

habitantes da Comunidade, em função dos desafios que a boa saúde exigia. Além disso, eles

não precisavam pagar pela cura, já que a mesma brotava da terra que lhes pertencia.

23

Trecho da música Eu e meu filho, de Marcelo D2.

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Outro motivo para a utilização dessa sabedoria de cura ocorreu porque, ao se

mudarem para a região, o acesso a hospitais, farmácias e médicos na região era praticamente

impossível devido ao isolamento em que a Comunidade se encontrava. Não existiam estradas

e os moradores da região sequer conheciam outros meios de transporte, que não fossem o

cavalo, o burro e a carroça. Portanto, essas dificuldades e a difícil aquisição desses

“medicamentos” facilitaram a perpetuação desse saber.

É interessante observar que esse saber dota os seus portadores de respeito,

credibilidade e poder, já que detém algo que não é comum a todos e que precisa ser

compartilhado.

Dentre as ervas, raízes e plantas utilizadas para a cura de doenças, foram citadas: erva

cidreira, para fortalecer os músculos; a quina, no combate a verminoses e dores de cabeça; o

boldo, para dores no estômago e na barriga; a hortelã do campo, para vermes; a velame, como

diurético; a negramina, para dor de cabeça; gerbão, para tosse; vassorinha e arnica, como

anti-inflamatório; a camomila, para dores de barriga e crises alérgicas e a erva do bugre, que

limpa a garganta - colocada em cachaça para os curueiros beberem em festas de santo.

Eles possuem um posto anexo à escola, mas não tem ninguém da área da saúde

trabalhando lá. Por isso, eles continuam com a tradição de tratar seus males com as plantas,

raízes e ervas da região.

Cozinha folha de mato, essas coisa é bom, panha, cozinha, bebe. Eu

fui prá hospital quando eu fui ofendida de cobra e eu tava grávida de três

mês do caçula, ai fiquei 30 dia internada, nunca tinha internado, nunca tinha

visto hospital (Dona Maria).

Fotografias 19 e 20 (imagens da autora).

A existência de laços consanguíneos -parentesco- entre os moradores de Capão Verde

reduz a dificuldade em produzir a existência, pois quando alguém fica doente na Comunidade,

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eles se ajudam, improvisando um rodízio para cuidar do enfermo. A preocupação e o cuidado

expresso pela Comunidade em relação aos que adoecem é fonte de segurança e conforto, já

que, todos são sabedores de que não estarão sozinhos -à mercê do Serviço de Saúde Pública-

porque podem contar com os cuidados e a solidariedade dos demais moradores. Somente em

caso grave é que se dirigem ao Pronto Socorro de Cuiabá.

Quando num resolve vai em Poconé. Se precisa fazê exame vai lá no

Chumbo. Nóis não tem carro próprio, ai é difícil demais pra ir, o ônibus não

passa lá. Pra nóis é até mais fácil ir prá Cuiabá, porque aqui nóis mora na

beira da avenida, pega o ônibus e vai direto. Prá ir prá Poconé nóis tem que

ir lá no entroncamento do Livramento, é difícil.(Maria Albertina)

Outro saber era compartilhado entre as parteiras da Comunidade, que ajudavam as

mães a “dar a luz” aos seus filhos. Hoje em dia esse costume se perdeu, devido à morte dessas

parteiras e a não continuidade pelas mais jovens. Mesmo com a distância, as novas mães tem

de recorrer aos hospitais de Cuiabá e Várzea Grande.

[...] os fio era tudo com parteira, a cunhada, a irmã do meu marido

era parteira (Dona Maria).

A Comunidade também não possui benzedeiras, por não ter pessoas que dessem

continuidade a essa prática. Eles apenas utilizam a reza para auxiliar na cura das doenças.

Aqui não tem benzedeira, só rezadeira. (Dona Maria).

Não diferente de muitas comunidades mato-grossenses, Capão Verde, ao ser fundada,

trouxe com seus primeiros moradores algumas crendices e tradições populares que foram

incorporadas pelas gerações posteriores. Um exemplo são as festas religiosas, nas quais eles

manifestam a crença e o culto a determinados santos.

As festas geralmente duram cerca de três dias e o festeiro/devoto providencia comidas,

bebidas, o altar enfeitado para o santo, fogos de artifício, o mastro enfeitado com as cores do

santo, a iluminação, o barracão para o baile, o barracão para a comida e água. Além disso, ele

organiza a reza, a procissão e o levantamento do mastro.

É uma coisa tradicional que vem há anos, todo mundo já sabe o que

tem que fazer. Eles tiram os festeiros, rei, rainha, juiz, juíza. Aí tudo esses

festeiros que tira já fica sabendo no que ele tem que ajudar no próximo ano.

E, assim, quando chega na semana da festa toda a Comunidade já sabe que

ali tem serviço pra fazer né , aí todo mundo vai se reunindo prá fazer

(Andréia).

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Nessas festas “misturam-se o laico e o sacro numa simbiose natural, em que danças,

rezas, culinária, músicas, brincadeiras e religiosidade se juntam para formar como que uma

síntese, suporte e berço de muitas das diversões e crenças que embalam a população”

(LOUREIRO, 2006, p. 23).

Desde o nosso avô fazia festa, festona, aí meu pai casou e também

fazia, aí quem vai casando trocava e fazia do santo, pois essa festa que nóis

faz, faz mais de trinta ano que nóis faz, tá fazendo quase quarenta, aí tem

ano que as coisa tá mais difícil aí nóis não faz, aí no outro ano faz, essa é

tradição do tempo do avô. (Justino)

Fotografias 21 e 22 (imagens da autora).

Na festa em homenagem a São Sebastião, os cururueiros louvam o santo cantando

melodias que utilizam a viola de cocho, o mocho e o ganzá. A cantoria inicia na casa do

festeiro, onde se encontra o altar com a imagem do santo até o local da subida do mastro.

Cada cururueiro retira o chapéu para cantar e tocar uma música em frente ao altar. Depois

disso, reverenciam e beijam o tecido sob o altar.

Antonio Francisco24

também emitiu sua opinião sobre a realização dessas

festas:

Eu vejo assim como pessoa de fora que as tradições é que dá sentido,

né Andréia?

As festas também são transmitidas de pai para filho, dando sentido à cultura popular e

mantendo as tradições de um povo ou grupo. A Comunidade Capão Verde festeja todos os

anos o dia de Nossa Senhora Aparecida, São Gonçalo, de Santo Antônio e São Sebastião, em

datas programadas e com o apoio e incentivo dos residentes na Comunidade, bem como de

pessoas que moram fora dela.

24

Antônio Francisco também é voluntário na Comunidade.

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É festa de encontrar os conhecido, parente, amigo ,filho que fica

tudo esparramado..é do Santo. (Dona Maria Rosa).

Fotografias 23 e 24 – Festa de São Sebastião (imagens da autora)

O que contribui também para manter essa tradição cultural é a posse de imagens dos

santos, que foram passadas por transferência entre as gerações:

Eu festejo São Gonçalo e Santo Antônio porque Santo Antônio eu

ganhei de meu avô eu conheci meu avô ele já festejava e ele me estimava

muito. Dona Maria Rosa

Fotografia 25 – Altar da festa (imagens da autora)

Após a homenagem ao santo na casa do festeiro, a cerimônia continua com a reza e a

procissão com velas acesas nas mãos dos devotos até o local onde serão erguidos os mastros.

O interessante é que as crianças ficam por perto aguardando o momento para acenderem as

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velas, nos pés dos mastros. Isso contribui para que desde pequenas sejam responsáveis pela

continuação desse costume.

Fotografias 26 e 27 - Convidados e moradores de Capão Verde envolvidos na cavação

do buraco onde seria colocado o mastro da festa de São Sebastião (imagens da autora).

Fotografias 28 - As crianças acompanham e participam dos afazeres da festa (imagens da

autora).

Durante as rezas são servidos licores e bebidas a todos, a fim de que agüentem o ritmo

da cerimônia até a culminância com o baile. Eles servem bebidas feitas com guaraná ralado e

outras com erva de bugre. Também é servido um jantar com sobremesa a todos os

convidados.

O baile é realizado em um galpão que eles constroem com madeira e palha, no qual

predomina o rasqueado, música da tradição local.

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Fotografia 29 - Servindo guaraná ralado Fotografia 30 - Servindo a comida dos

participantes

da festa (Imagens da autora)

Mesmo com essa tradição, eles ainda não possuem igreja, mas um padre do município

de Poconé costuma celebrar uma missa todo mês. Movidos pela fé, eles também caminham

até as comunidades vizinhas, como: Passagem de Carro, Varal, entre outras, para assistirem

missas.

Contudo, para realizarem as festas, Seu Justino nos contou que precisam tirar um

alvará, passando pela Delegacia de Poconé, Fórum, Banco do Brasil, Secretaria de Saúde, na

Prefeitura de Poconé:

[...] aí falaram que o barraco da cozinha tinha que piso, que as

cozinheira não pode usar brinco, não pode usar anel, não pode unha pintada,

tem que ter dois banheiro [...] Eu acho que pelo jeito eles qué acabá com o

negócio das festa.

Essa é uma dificuldade imposta pela lógica do sistema capitalista em que vivemos. As

solicitações são resolvidas em pilhas de papéis, carimbos e assinaturas. Além de gastarem a

sola do sapato, os trabalhadores precisam se adequar às imposições de quem não participa

dessas festas. Mas eles sabem que nada disso é necessário, pois as festas sempre aconteceram

e essas exigências não interferiram na perpetuação desse costume.

Outras datas são comemoradas, como o Dia das Crianças e sobre isto nos relata Dona

Maria Rosa:

Hoje é festa das criança, hoje é um dia muito especial pras crianças.

Toda vida faz essa união com as crianças, pra ver se une mais

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Também acontece dos moradores de Capão Verde, comparecerem a festas de outras

comunidades ou municípios vizinhos, como nos conta Seu Justino:

[...] cada um tinha um cavalo, aí catava o milho botava atrás nos

cavalo pra ir na festa, aí reunia tudo aquelas rapaizada, era a coisa mais

bunita que tinha, os cartório assim sábado de tarde tava tudo com os cavalo

arreiado já pra ir na festa, tudo de poncho na garupa, aí reunia tudo num

lugar, aquela muntueira de cavaleiro, era dilúvio de rapaizada, ia reunindo

aqui debaixo, ia subindo junto com nóis, era bom que não tinha cerca, a

turma bebia não brigava e tudo andava armado com 38 na cintura, nunca

aconteceu de dá tiro um no outro, era buniteza andá armado.

Além das festas, desde pequenas, as crianças são mantidas juntas aos pais e acabam

por aprender o trabalho que realizam:

Eu trabalho aqui desde faz tempo, desde os nove anos. Sei tudo

como que é, como que funciona. Foi eles mesmo aí (pessoas da associação)

com o tempo foram ensinando eu e eu aprendi. Tinha uns 10 anos já mexia,

só que não fazia assim o processo que eu faço hoje, era coisa mais leve,

agora eu faço tudo né (Welson).

Diante dessa fala vemos que as crianças se inserem no mundo do trabalho sem

perceber, é porque isso faz parte do seu cotidiano - da produção associada da sua vida e dos

seus parentes. Ela aprende não só como se faz, mas o porquê se faz, já que valores são

partilhados.

Nas palavras de Seu Justino podemos ver que além de aprender a lidar com a roça,

aprendeu outros tipos de atividades: carpinteiro, pedreiro, sapateiro, marceneiro, o que é

resultante dos momentos em que observou as pessoas mais velhas nos seus ofícios.

Além de observar, como ele mesmo relata, aprendeu a produzir uma viola de cocho

ao desmontá-la e pegando suas partes como modelo. Esse saber da experiência com o trabalho

serviu para provar que era capaz de aprender outra atividade e aumentar a renda familiar.

Eu acho bom trabaia na roça, fico distraído, eu gosto de ver a planta

bonita, pois eu tenho, eu mexo, eu entendo de carpinteiro, de pedreiro, na

sapataria, tudo, aí eu tenho tudo as ferramenta aí...ia la um primo de minha

muié que tinha uma marcenaria, eu trabaiava o dia inteiro no domingo ,

amanhecia bem cedo eu pingava prá lá , sem ganhá nada, mas era um prazer

passar a tabua assim na praina, cortá a tabua, chegava assim ate tais hora pra

mim ate a sobrancelha tava pesada de pó, aí eu via ele risca , ele tava

riscando pra fazer uma charrete e eu reparando porque nesse tempo eu tinha

cabeça bom pra aprende aí depois eu vi , daí eu falei eu vou fazer uma

charrete , meu pai: ah, não faz nada. Eu vou fazê... eu tenho a charreta ali....

Aí eu ficá só em casa e larga da roça pra mim da mais dinheiro, mas eu gosto

de oiá a planta, eu gosto de trabaia na roça, porque se eu fica aqui em casa dá

muito mais: o arreio de charrete eu faço por 400 reais, eu faz viola de cocho,

eu aprendi assim: tinha a viola ali, eu tirava a madeira, estendia, riscava ele

por outro, aprainava bem ele, ficava de modelo, aí cortava acompanhando o

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risco... eu fez prum cara que levou pra Brasília, ele não sabe tocá, mas só prá

depindurá no apartamento (Justino).

Entretanto, o amor pela terra fala mais alto e apesar da produção de charretes e arreios

lhe render mais dinheiro, ele prefere trabalhar na roça.

A produção de doces em calda também foi uma aprendizagem do cotidiano, que as

mães transmitiam às filhas.

Eu aprendi com esses meu povo, com minha mãe. Eu sempre fazia

com os outros. Eu ajudava fazendo doce de banana, doce de batata, doce de

abobora, doce de leite. Eu fiquei com aquilo na cabeça e eu aprendi a fazê

(Ana Luiza).

Esses conhecimentos culinários foram de grande utilidade quando formaram a

Associação, mas a aprendizagem é contínua e, para a produção da bala de banana cristalizada,

tiveram de, coletivamente, experimentar até chegar ao ponto ideal.

Fomos aprendendo na experiência, ao longo dessas experiências nós

perdemos muita coisa, teve época da gente perder tachada de doce né, as

vezes fazia num ponto não tava bom, fazia no outro não tava bom, na época

não tinha nem um fogão, fazia na lenha e não dava certo... e a banana não, a

banana logo que começou já deu certo não teve assim desperdício... não teve

assim muita perda, agora o doce sim... e a farinha também não (Andréia).

Outra experiência foi contada por Dona Maria Rosa, que aprendeu a fazer redes,

tapetes (colchoninho) com sua mãe e com as mulheres mais velhas da Comunidade.

Aqui tudo fazia, a minha madrinha sabia fazê, a mamãe vendia

porque ela ficou sem o pai e ela vivia só de rede, só tecendo rede.. aí... eu

aprendi, só de eu vê. (Maria Rosa).

Uma forma de produzir a vida associativamente acontece desde a época da formação

da Comunidade, conduzida pelos mais idosos, que era o Muxirum. Essa atividade reunia

todos os moradores da Comunidade, bem como de outras mais próximas para se ajudarem em

alguma ação de beneficio singular ou coletivo. Esse saber é vivido e revivido pelos

trabalhadores de Capão Verde.

Uma senhora com mais de 80 anos nos contou que ainda trabalha com a roça e que,

recentemente, realizou o Muxirum:

Fazia demais... Hoje reunia no meu, aí quando é amanhã já reunia no

de outro, assim mesmo ia a semana inteira. Quando um colhia, tudo colhia,

não tinha esse negócio de eu faço hoje, aí outro vai fazê dispois de amanhã,

daí esse meu dá, do outro não dá (risos)... Era bom demais. Colhia

mantimento adoidado tudo no tempo certo.. tudo as pessoas ajudavam... eu

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fez o muxirum pra limpar a capoeira pra mim plantá a rama, aí reuniu oito

pessoas até o meio dia, limparam a roça tudo foi o ano passado, se eu avisa

todo mundo vem” (Ana Luiza).

O interessado em realizar o mutirão convida os vizinhos, parentes e pessoas da

redondeza, geralmente, para uma atividade em sua roça e depois, como “pagamento”,

colabora nos futuros mutirões promovidos pelos participantes do seu.

Essa tradição é conduzida pelo sentimento de solidariedade, mas também pela vontade

em realizar o trabalho em menor tempo possível.

Dessa forma, o Muxirum consiste na reunião de homens e mulheres para realizar

alguma ação na Comunidade. Durante a semana, eles realizavam uma ação - plantar, carpir,

colher- na roça de uma pessoa, no outro dia na roça de outro e assim por diante. O que uma

pessoa demoraria para fazer em uma semana era realizado em um dia, aproximadamente, com

o auxílio dos demais. Isso contribuía para efetivar a produção associada e construir relações

de solidariedade, cooperação, amizade, parceria, entre outras.

Nóis diz muxirum, aí a turma fala mutirão, aqui muxirum. Aí, por

exemplo, assim, hoje é sábado daí sai convidano, daí prá cá porque tem

comunidade: Passagem de Carro, Faval, Morro Cortado, daí sai convidano:

tal dia nóis vai fazê muxirum, limpa milho, tem vez que quando chega sexta-

feira já vem prá posá, o que não vem prá posá, vem madrugada, daí fazia

muxirum, fazia a semana inteira... pegava na segunda era de um, terça era de

outro, quarta era de outro, quinta era de outro e sexta era de outro, aí sábado

era de outro e quando fazia no sábado, quem fazia no sábado dava o farra,

porque era disparado de moçada, era quaiado, aí era o farra noite inteira, não

tinha esse negocio de baile era só esse função de erguer a bandeira, o siriri

né, o siriri oce num viu , era só esse que era a diversão, tempo que nóis era

sorteiro... o senhor falava tal dia é meu, muxirum eu vou fazer tal dia, outro

falava tal dia é meu, aí chegava o dia do Sr. Aí eu que ia paga seu dia porque

o senhor fez no meu. (Justino)

Não somente na plantação, mas na fiação de algodão e na confecção de tapetes, redes

e fio de lamparina era utilizado o Muxirum, como podemos observar nos dizeres de Dona

Maria Rosa:

Até hoje ainda existe muxirum. Convida o povo, aí reuni 10, 12

pessoa. Nós fazia muxirum de fiá algodão, plantava, colhia, descaroçava,

batia, fiava, aqui no terreiro que eu panha algodão. Em tempo de luar que

batia algodão, reunia tudo numa casa pra fiá de noite com claridade de Lua.

Todo mundo ia. Um dia era de um, outro dia era de outro. Aí tecia rede,

vendia, outro vendia o fio. Eu gosto, eu trabaio é de dia e de noite. Eu to

assistindo TV e fuxicando. Eu vivo só no meio da trapeira. Eu faço

colchoninho, pavio pra lamparina (Dona Maria Rosa).

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Fotografia 31 - Dona Maria Rosa nos mostra como se faz fio de algodão.

Fotografias 32 e 33 (Imagens da autora)

Nas fotografias acima, Dona Maria Rosa nos concede a entrevista e ao mesmo tempo

fia o algodão. Em seguida, ela nos mostra que ainda produz tapetes (colchoninhos) de

retalhos. Diferente do trabalho penoso capitalista, podemos observar em sua feição que é um

trabalho que lhe dá prazer ao realizá-lo e, por isso, mesmo com a “vista cansada” ela continua

perpetuando-o.

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Outro ponto interessante é que o Muxirum não se realiza com divisão sexual25

, são

homens, mulheres e crianças compartilhando o fazer e o saber:

Aí aquele bastante home covando e a muierada tudo por detrás

tampando as cova. Os home covando e as muié com as vasilha plantando e

tampando... esse foi a vida nossa, agora já tem as máquina né. Aí faz, já

limpa a terra, já põe na maquina e planta , mas querendo, ainda reuni (Maria

Rosa).

Isso demonstra mais um aspecto que difere da lógica capitalista, porque nesta, ainda

hoje, algumas atividades são direcionadas diferentemente para o homem e para a mulher,

como se fossem próprios do desempenho de cada gênero sexual. Sobre essa construção

cultural, Silva (1997, p. 61) relata que

[...] de modo geral, a esfera feminina situa-se no mundo doméstico

privado, da produção de valores de uso para o consumo do grupo familiar, da

reprodução da espécie e do cuidado das crianças, dos velhos e dos incapazes,

enquanto que as atividades de produção social e de direção da sociedade,

desempenhadas no espaço público, são atribuições masculinas.

Uma das vantagens do mutirão é que a atividade passa a ser realizada mais rápida - em

curto tempo - pela quantidade de pessoas que participavam e ninguém fica em desvantagem,

pois se tem o compromisso de sempre ajudar o outro quando solicitado. Além disso, por ser

desempenhado por homens e mulheres não contribui para sustentação da discriminação de

gênero no trabalho.

2.2.1.4 Para além da Comunidade, encontro trabalho digno?

Além de trabalharem em seus terrenos, algumas pessoas da Comunidade tinham que

desempenhar algum trabalho específico em terras de outrem, em busca de dinheiro ou valores

de troca.

No entanto, essa atividade não era regularizada como um emprego fixo e sim

esporádica, à medida que precisassem ter meios para comprarem algum item de suas

necessidades individuais.

Não trabaiava assim prosoutro, empregado assim nunca trabaiei prá

ninguém, eu trabaiava junto com meu pai aí quando nóis precisava de as

coisa, tinha as vez que precisava de uma gordura, um sal tem vez não tinha,

aqui tinha gente que tinha lavoura grande, roça grande, aí nós ia trabaia por 5

dia, tarefa, tirava uma tarefa prá comprá o que tava precisando, mas de

empregado nunca trabaiei, nenhum de nós nunca fomo empregado de

25

Segundo Silva (1997, p. 61), “a divisão sexual do trabalho é a separação e distribuição das atividades de

produção e reprodução social de acordo com o sexo dos indivíduos”.

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ninguém né, nóis trabaia prá nóis memo. Pois todo dia nóis saía de

madrugada, de a pé, de pé no chão, daqui 8km, chegava tava amanhecendo,

ia prá roça tirava tarefa, tal hora assim já jantava lá, a janta era firme pois a

gente ainda ia andá pisava de pé de novo, amanha madrugada de novo, ah,

eu já tava enjoado, mas aqui nosso é tudo junto, nóis trabaia tudo junto, aí

por exemplo se o mato for grande aí eu tiro, por exemplo, daqui prá cá é

meu, dali prá lá é do senhor, de outro prá lá, faz divisa de toco, planta

mudão, outro faz lá, o mato dá, faz tudo junto (Justino).

Muitas vezes os trabalhadores de Capão Verde eram pagos em alimentos que haviam

plantado nas tarefas. Com isso, eles pagavam os produtos industrializados que haviam

comprado nos armazéns adjacentes, com o montante de alimentos que conseguiam em suas

tarefas. Eles tinham como atividades: roçar, plantar e colher.

[...] já vai comprando fiado prá pagar a hora que coiê (colher),

comprava fiado, aí ia trabaiando, aí ia juntando em mantimento prá pagar a

conta (Justino).

Algumas mulheres também não ficavam isentas de ajudar na renda familiar. A tarefa

que realizavam constava de lavar e/ou passar roupas, cozinhar, limpar casa e cuidar de

crianças.

[...] trabalhei de cozinhá, torrá farinha, meche com fumo, eu ganhava

500 réis prá povo de finado Santinho (Dona Maria Rosa).

[...] meu pai, ele fazia a roça mais aqui tinha muito fazendeiro que

tinha gado né, ai num fazia cerca que presta e o gado invadia as roça,

acabava com as roça né, ele ficava trabalhando só pro zoutro, meu pai sofreu

pra cria nóis... agora a gente não trabalha mais pro zoutro né, assim como

trabalhava antes (Maria Albertina).

Mesmo já cientes do sentido do trabalho explorador, que requer o trabalho para

outrem, muitas pessoas ainda se evadiram de Capão Verde.

Os mais jovem que resolveram ir tudo embora prá cidade. (Seu

Justino).

Uns alegaram que foram em busca de escola para os filhos e outros por um emprego

formal, que trouxesse um retorno financeiro mais imediato. Fomos informados que alguns

continuam até hoje fora de Capão Verde e outros já retornaram desiludidos com o custo de

vida e com o desemprego.

Assim, em Capão Verde, temos trabalhadores que sempre viveram da produção

associada da vida e outros que já estiveram ou ainda estão ligados à cultura do trabalho

capitalista. Estes últimos anseiam por um emprego no trabalho formal e carteira assinada. Não

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tivemos contato com eles, mas os trabalhadores entrevistados nos relataram que ainda tem

esperança que os mesmos retornem a Comunidade.

Para os que foram embora e resolvem retornar, existe a possibilidade da Casa de

Amparo. A Dona Maria Rosa nos contou sobre essa experiência: alguns de seus filhos foram

embora da Comunidade, em busca de emprego e estudo, só que com o tempo acabaram

voltando. Não tendo como acolher esposa e filhos em uma casa nova, Dona Maria Rosa nos

disse que esses ficavam na Casa de Amparo, até que pudessem se restabelecer de novo no

local.

Fotografias 34 e 35 – Casa de Amparo (Imagens da autora)

A Casa de Amparo era a antiga casa de Dona Maria Rosa, feita de barro e madeira,

mantida por ela, em frente da casa em que mora atualmente, a qual foi construída pelo

programa “Nossa Terra, Nossa Gente - Projeto de Revitalização de Comunidades

Tradicionais”. A análise dos depoimentos indica o desejo de ter os seus por perto, a

solidariedade com a dificuldade do outro e a esperança que a desilusão com a vida fora da

Comunidade os faça retornarem. Eles já percebem que o sentido do trabalho formal

assalariado entra em conflito com seus valores e concepções de vida.

Os saberes construídos são relevantes para os que regressaram de experiências com o

trabalho assalariado, bem como, para os que nunca se evadiram da Comunidade. Os

trabalhadores que retornaram narram as dificuldades vividas, fazendo com que os demais

desistam de sair da Comunidade. Além disso, todos aprendem a valorizar o que estão

produzindo e o modo como organizam a produção.

O Felinto preocupa porque têm comunidades aqui vizinhas que já

não tem bastante gente. O pessoal tá indo todo mundo embora. O Norberto

viu com os próprios olhos as mudanças e decidiu volta (Andréia).

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Assim, as fábricas e umas pessoas já chamou, mas eu nunca

interessei em ir, porque aqui já saiu essa fábrica, deu uma melhorada, com

emprego aqui, escola aqui, prefiro não sair não. Pretendo arrumar um curso

né, que não precise sair daqui, seria bom é de informática né (Welson).

Mesmo para os que ainda estão morando fora da Comunidade, são oferecidas

oportunidades para se juntarem à produção de derivados de banana, como na questão da

distribuição de mercadorias. A intenção é fazer com que percebam a possibilidade de manter a

reprodução ampliada da vida e retornarem à Comunidade.

Tem outro também lá que tá interessado em questão das vendas:

distribuir, entregar. Inclusive a gente já tá fazendo contato com ele lá. Ele já

tá distribuindo as banana lá, até porque ele tem mais conhecimento lá em

Várzea Grande, né (Andréia).

A vida fora da Comunidade para os que se evadiram e a inserção na cultura do

trabalho capitalista, fazem com que alguns saberes construídos sejam questionados,

principalmente, os que são reproduzidos veementemente pelos mais idosos, como por

exemplo, quando surgiu a ideia de construírem uma represa para canalizar a água. Os mais

idosos são reticentes em relação às novidades, mas, em algumas situações, acabam sendo

convencidos a darem um voto de confiança para as idéias/concepções defendidas pelas novas

gerações. Não é que os seus saberes sejam desconsiderados ou desrespeitados, mas é o

exercício da decisão democrática que prepondera em Capão Verde.

A gente vê que eles tá errado, mas a gente não procura ficar

discutindo, fica quieto porque as vezes com o tempo vai ajeitando. Igual essa

represa mesmo, quando essa represa vinha. Rapaz! Essa veiarada não queria,

diz que ia entupir tudo o córrego aí pra baixo. Aí depois que viu que ficou

bom, já nado, tomou banho, já pescou. Só que uma coisa que eles falou que

não ia dar certo era que ia secar e esse aí eles falaram certo - tá seco

(Lourenço).

Nas entrevistas, ficamos sabendo que os mais velhos sempre comandavam e decidiam

as ações da Comunidade. Apesar de não concordarem com algumas inovações e não se

prontificarem a ajudar a concretiza-las, não impedem que as mesmas sejam implementadas e

permanecem produzindo a existência, de acordo com os saberes que construíram. Essa é uma

das poucas tensões que os trabalhadores associados enfrentam para desenvolverem a

produção, mas não causa nenhuma desavença interna, que não possa ser diluída com o tempo.

Como Lourenço nos contou acima, eles escutam as opiniões dos mais idosos e tentam mostrar

que a novidade pode dar certo.

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Gente de agora não obedece mais, hoje tá mandando no pai, hoje o

pai não governa mais no fio, antes só saía do governo do pai depois que

casava (Justino).

Outro exemplo que contrariou os mais idosos foi a criação da Associação Agriverde.

Eles queriam continuar a plantar banana e vendê-la in natura. Não acreditavam na

sobrevivência através da Agroindústria, visto que demandaria muitas dificuldades para

colocá-la para funcionar e também porque julgavam que, posteriormente, poderiam vender as

terras.

Por ser uma comunidade, as pessoas, os mais idosos assim são

difícil, eles num acreditam, num gostam muito dessa coisa, eles acham que a

associação é uma perda de tempo. Eles achavam que a associação ia hipoteca

terra, ia trazer problemas pra Comunidade (Andréia).

Então, ao invés de participar da associação, muitos idosos preferem continuar a viver

da roça:

A banana eu vende aí na estrada, eu tenho barraquinha porque aí na

estrada vende melhor, eu trago da roça e fico aí na estrada, como a carroça

não vai lá (na serra) eu trago no ombro, nos cavalos... porque desde criança, ,

desde a época de papai a gente vendia banana na beira da estrada. Aí eu

tinha guri que ele era inteligente, esperto, aí eu ia pra roça e deixava ele

vendendo banana na estrada. Eu panhava banana hoje de tarde pois amanhã

você vai vende a banana e eu ia trabaia, e ele ficava pois os caminhoneiro

não logra criança, nunca um caminhoneiro erguesse um cacho de banana e

não pagasse, com criança é melhor, se ele pegou a banana ele paga. Aí

chegava da roça aí já tava com dinheiro, dava dinheiro e banana vinha, aí no

outro dia cortava outro, tem vez ficava a semana inteira vendendo e eu com

o outro mais velho trabaiando porque as criança tudo criou assim junto

comigo, tudo na roça, pois já foram pra la o mais velho já tava criado

(Justino).

Outra resistência dos idosos é pela entrada de pessoas de fora na Comunidade, seja

para morar ou para realizar pesquisas. Na experiência com a pesquisa de campo, sentimos que

eles são um pouco reservados e por isso, precisamos realizar diversas conversas e entrevistas

para atingirmos o nosso objetivo: identificar o significado da produção associada e os saberes

construídos com a experiência com o trabalho associado.

As pessoas mais velhas eles ficam, como se diz, de orelha em pé,

qualquer movimento eles não qué, não gosta, não quer mais saber que as

pessoas venham morar, a não ser que for da família (Andréia).

2.2.1.5 Autogestão - a dialética entre objetividade e subjetividade

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Desde a fundação da Comunidade observamos que os trabalhadores já eram gestores

da produção da vida material e imaterial. Na mais simples relação com a terra, eles que

sempre determinaram quando e como trabalhar, sem explorar a força de trabalho alheio e

mantendo relações de solidariedade, como podemos ver através da prática do muxirum. A

solidariedade acabou por se constituir no valor que melhor orienta o processo de produção e

as relações sociais.

Singer esclarece que “a solidariedade na economia só pode se realizar se ela for

organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir ou

poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais, em vez de contrato entre

desiguais” (SINGER, p.9, grifo do autor).

Já na vida social, apesar de terem liberdade para tocar suas vidas, eles mantiveram o

costume de respeitar e seguir os passos dos mais idosos. Os saberes da experiência com a vida

são muito valorizados por eles, apesar de reconhecerem também a importância dos saberes de

pessoas mais escolarizadas. Por isso, quando Felinto surgiu na Comunidade os saberes

provenientes da experiência com a Educação Popular e com a formação em Agronomia foram

respeitados e, em certa medida, agregados à vida desses trabalhadores.

Podemos inferir que os saberes trazidos por Felinto foram fundamentais para a

transformação do processo de autogestão na Comunidade. Ele incentivou as mulheres a

utilizarem as frutas do local para a produção e comercialização de doces em calda. Apesar da

produção de doces em calda ser um costume passado de mãe para filha, a experiência

embrionária de comercialização não conseguiu seguir em frente. Elas alegaram que só podiam

produzir doces das frutas da estação e, como é uma tradição local, ficava difícil a

concorrência nas vendas.

Posteriormente, Felinto trouxe a idéia de criarem uma Associação para produzirem e

comercializarem derivados de banana, que era um fruto que podia ser colhido o ano todo. A

forma jurídica da Associação possibilitaria arrecadar recursos para a Comunidade, para a

compra de equipamentos e para a comercialização da produção em grandes mercados.

Até chegarem à forma como está organizada a Associação e a própria produção dos

derivados de banana, muitos aprendizados, relações e saberes foram sendo construídos e

reconstruídos. Mesmo com a sua criação, o processo de produção é constituído de relações e

práticas em que todos são responsáveis por ele. Não existe divisão por atividade, nem de

concepção e execução. Todos acabam fazendo um pouco de tudo: descascar banana, fritar,

empacotar, mexer o doce, cortar, etc. Eles acabam conhecendo todas as partes do processo de

produção e ficam livres para realizarem a atividade que mais gostam ou tem mais habilidade.

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Inferimos que através dessas experiências são construídos saberes que apontam para

“a organização do próprio eu interior, é tomada de posse de sua própria personalidade, é

conquistar uma consciência superior, através da qual consegue-se compreender seu próprio

valor histórico, sua própria função na vida, seus direitos e deveres” (GRAMSCI apud

NOSELLA, 2001, p. 44), mesmo não assegurando que essa resistência determine um

rompimento profundo com a cultura do trabalho da classe dominante.

A subjetividade do trabalhador não é só o resultado das relações

vividas no ambiente de trabalho, mas constrói-se e se reconstrói a partir de

diferentes experiências vividas em diferentes microprocessos e redes

complexas que se apresentam como expressão dos diversos planos de uma

realidade histórico-social mais ampla. (TIRIBA, 2001, p. 236).

Podemos adiantar que apesar de estarem em contato com a cultura do trabalho

capitalista, os produtores associados de Capão Verde construíram relações sociais e

organizaram o processo de trabalho de uma forma diferente, em contramão à lógica

capitalista. Lá os trabalhadores e trabalhadoras administram e organizam o processo de

trabalho, de forma participativa e democrática, preponderando a cooperação, a solidariedade,

a liberdade individual, a autonomia e a distribuição igualitária dos frutos do trabalho

excedente. Será o prenúncio de uma velha/nova cultura do trabalho? Consideramos que sim,

apesar de não anunciarem como objetivo um projeto hegemônico de nova sociedade.

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26

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Gravuras do artista plástico João Werner, retiradas do site:

http://www.joaowerner.com.br/images/rural/colhendo_laranjas.htm

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CAPÍTULO 3 – ESPIA AÍ, TEMOS BANANA! A PRODUÇÃO ASSOCIADA

EM CAPÃO VERDE

_____________________________________________________________________

3.1. Nos confins de mato grosso surge a Comunidade Capão Verde – memórias e

relatos

As comunidades rurais coexistem paralelas à realidade da zona urbana e resistem com

o seu modo de vida e identidades específicas. Elas carregam tradições, costumes, normas,

concepções oriundas de uma cultura tradicional de seus antepassados.

Geralmente, demonstram intensa relação com a natureza, já que dependem dela para a

reprodução ampliada da vida.

Para entendermos um pouco mais as transformações que a Comunidade Capão Verde

passou e ainda vem passando, buscamos algum documento que contasse a sua história.

Contudo, nos surpreendemos em ver que grande parte dos moradores de Capão Verde

desconhecia o seu passado. Assim, buscamos, prioritariamente, nas vozes e memórias das

pessoas mais idosas a possibilidade de reconstituir parte dessa história.

Fotografia 36 - Croqui da Comunidade elaborado pelos alunos da EJA (imagens da autora).

A Comunidade Capão Verde, segundo a depoente Dona Maria Rosa, de 70 anos, mãe

de 10 filhos, foi fundada por seu avô – Seu Vitor Teodoro dos Santos, no ano de 1935,

aproximadamente. No entanto, o registro do cartório apresenta a data de 01 de agosto de

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1941. Eles não conseguiram responder o motivo dessa diferença de datas, mas supomos que

na época fosse difícil provar e garantir a autenticidade da compra da terra, ou, então, porque

demoraram para a efetivação do registro e o cartório acabou por fazê-lo na data em que o

mesmo ocorreu. Dona Maria Rosa, em um de seus depoimentos, nos contou que até para

registrar as crianças era complicado e, por vezes, nascia em uma data e o registro de

nascimento acusava outra. Deixando essa questão de lado, salientamos que a Comunidade se

localiza na zona rural do município de Poconé, próximo ao km 594, mais precisamente à

esquerda da BR 070, na região conhecida por Morraria, como podemos observar nos mapas

abaixo:

Fotografia 37 - Imagens retiradas do catálogo elaborado pelo SEBRAE e cedidas pela

presidente da Associação Agriverde.

Não se sabe precisamente em que local o fundador da Comunidade (Seu Vitor) nasceu,

pois enquanto alguns membros antigos da Comunidade dizem que foi em Cáceres, outros

afirmam ter sido em Monjolo – Rosário Oeste. Somente é de conhecimento comum das

pessoas entrevistadas que ele sempre viajou por Mato Grosso (MT) a procura de trabalho,

como, por exemplo, quando esteve morando e trabalhando nas Comunidades Campina e

Buriti, antes de comprar a área correspondente a Capão Verde,

(...) porque antes eles vieram pra Campina, de Campina mudaram lá

pro Buriti. De lá do Buriti que meu avô e meu tio compraram, vieram pra cá

(Depoimento de Maria Albertina).

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Assim, Seu Vitor roçava e carpia terras, mas aceitava o que aparecesse de “tarefa” 27

para garantir a sua sobrevivência e da sua família.

Na época da 2ª Guerra Mundial28

, ele e seu irmão Guilherme, foram convocados para

se alistarem no quartel de Mato Grosso, mas como a guerra já estava ao final, restaram

somente os dois e o capitão.

Um dia, o capitão solicitou que os dois fossem buscar madeira para confeccionarem

espetos que serviriam para assar carnes. O senhor Vitor comentou com o irmão que deveriam

aproveitar e fugir do local porque acabariam morrendo. Atravessaram o rio Paraguai a nado,

caminharam dia e noite e chegaram novamente em Cáceres, possível local de seu nascimento.

Quando saiu a guerra ele (Seu Vitor) era soldado, teve chamada aí

ele foi e ficaram as família, mulher escondendo embaixo de boca de pedra,

afundaram pra esse fundão tudo escondido, aí que terminou a guerra, aí que

voltou, graças a Deus não mataram ele (Maria Albertina).

Em Cáceres, o senhor Vitor conheceu Nhana (Dona Ana Maria), com a qual se casou e

tiveram “um dilúvio de filhos” (palavras da Dona Maria Rosa). Com Dona Ana Maria, o

senhor Vítor teve 9 filhos: Antônio, Gregório, Vitorino, Manoel, Benedito, Silvério,

Martinho, Candita e Alemã.

Dona Maria Rosa, filha de Vitorino, ressalta que

Aqui (Capão Verde) nunca foi assentamento, nunca foi grilo. Aqui

foi a terra do avô. É ele que fundou aqui e deixou os filho tudo aqui. Dos

filhos dele, resta só um, mora lá em cima, cumpadre Antônio, o resto já

morreu.

Com o tempo, ele resolveu ir com a família para uma região conhecida por Buriti

Comprido, próxima de um grande capão verde. Quando estava passando por uma lagoa,

conheceu Dona Ana Luiza, que era dona de parte da região. Ela e seu marido Augusto de

Paula Bastos ofereceram aproximadamente 450 hectares da sesmaria Paratudo29

para Seu

Vitor, mas como a região era constantemente ameaçada por andarilhos, ele resolveu chamar

seus irmãos para morarem lá e ajudarem a comprá-la.

27

As pessoas da Comunidade dizem tarefa quando querem referir-se ao trabalho por empreitada. 28

A 2ª Guerra Mundial foi um conflito que durou de 1939 a 1945 envolvendo duas alianças: Aliados (União

Soviética, Estados Unidos, Império Britânico, França, China, Polônia e Brasil) e Eixo (Japão, Alemanha e Itália).

A guerra acabou com a vitória dos Aliados. Mato grosso teve a participação no 9º Batalhão de Engenharia em

Aquidauana. 29

A sesmaria Paratudo, conforme a escritura da terra, fica entre a sesmaria Mutum (ao Norte), as terras do

Corcunda (ao Sul), as terras do Aranha (a leste) e as terras do Rodeio (a oeste). Possui também o Córrego do

Potreiro como referência.

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Meu pai chegou aqui, acho que tava com uma base de uns 16 anos.

Ele não morava aqui, ele comprou, ele, o pai dele, aí que vieram pra cá, aí

ele casou e já morava aqui (Seu Justino).

Aquele (mostrando a imagem do pai, Antonio Gregório, emoldurada

na parede) que foi ajudá a pagá o serviço, ele era pedreiro, foi ajudá a pagá

lá no Japão30

, falou: você é mais ladino31

, você vem prá ajudá nóis... ele

durou um mês lá fazendo a casa prá pagá essa terra daqui... foi comprá de

Ana Luiza daí do Aranha (Dona Ana Luiza).

Contudo, eles não previam que o problema maior não seriam os andarilhos e sim os

fazendeiros que “cresciam os olhos” pela região. Com a abertura de estrada e instalação de

asfalto, esses fazendeiros resolveram criar animais e iniciar plantações.

Nóis morava pra lá dessa estrada, mas ai veio um fazendeiro quando

saiu esse asfalto e falou que lá era dele e que nosso era pra cá, que tinha

medido e o nosso tinha ficado pra cá (Dona Maria Albertina).

A região não possuía cercas para dividir as terras e os moradores de Capão Verde

conviviam harmonicamente com outras comunidades, mas as mãos gananciosas dos

fazendeiros que começaram a se instalar nas proximidades mudaram essa realidade.

Nós morava assim: porque, antigamente, aqui era tudo comum,

sesmaria. Aí trabalhava onde você quisé, fazia roçava do tamanho que quisé.

Aí nós morava ali onde tinha aquela fazenda, nós era tudo sorteiro quando

morava lá. Aí o fazendeiro aí debaixo quis dividi a terra, dividiu, aí saiu o

asfarto e nóis morava prá lá e trabaiava prá cá. Os mato era só prá cá, prá lá

não tinha, daí saimo de lá e viemo pra cá. Bem daí, dessa fazenda daí

(apontando para a fazenda), mas só aqui (na casa em que moram atualmente)

nós já tem 30 anos (Seu Justino).

Dona Maria Albertina e Seu Justino nos confirmam que a área da Comunidade era

maior e que foram coagidos a ficar com apenas 200 hectares.

Essa terra nós briguemo por essa área. Brigamos por essa terra,

corremo até risco de vida, aí largo demão né. Já tava tudo encaminhado, daí

vieram não sei da donde lá e viu que era bom, porque lá era área cultivada,

era nos que trabalhava lá né..aí fomos pra Poconé procurar medição e a terra

ficou lá. Nós entramo lá pra trabalhar, quando entrou apareceu lá um grileiro

falando que era dele, ameaçando nós, queria matar nós, aí nós mexemo com

justiça e ganhemo a area, mas depois eles compraram o juiz, aí fomo

perdendo. Os papel ta tudo pro tribunal. Nós se corre, nós ate ganha, mas

largamo mao, nós ganha, mas ficamos com medo porque com alguém mais

fraco tão matando..aí fica difícil (Dona Maria Albertina).

30

Segunda Dona Ana Luiza, Japão é uma pessoa. 31

No linguajar mato-grossense, ladino significa esperto.

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No princípio, os moradores não denominavam a terra de Comunidade e sim de Arraial.

Eles não possuíam água encanada e nem luz elétrica. Dona Maria Rosa nos contou que o pior

problema era transportar a água, porque em relação à iluminação utilizavam lamparinas que

eles mesmos faziam.

Não tendo a água não tá com nada, queria fazer um rancho lá prá

beira do Putreiro (córrego). Sai aí pra tomá banho, um balde d’água não dá

prá nada, a hora que chega aqui ta do mesmo jeito querendo volta (Dona

Maria Rosa).

Como a região tinha um enorme capão verde que chamava a atenção de todos,

começaram a chamá-la assim. Depois de roçá-la, com a ajuda de seus irmãos, Antônio

Gregório e Benedito, deram início à plantação de arroz, milho, rama, abóbora, melancia, entre

outros alimentos, para o consumo diário e iniciaram uma produção da vida em coletividade32

.

Meu pai sempre contava que, assim, quando chegaram aqui era um

matão, mato virgem. Aí vieram aqui, fizeram já um barraco, vieram prá cá e

começaram a roçar, a fazer a roça, aí já formou, os fio tudo casando tudo

morando ao redor do pai e formou o arraiá como tá aqui (Dona Maria

Albertina).

O senhor Vitor, ensinou desce cedo aos filhos que “aqui (Capão Verde) não era pra

vender, era pra criar neto, filho, neto, vizineto” (Dona Maria Rosa) e, assim, seus filhos foram

repassando essa idéia às gerações posteriores.

E, como uma tradição, os filhos sempre construíram suas casas ao redor da casa dos

pais.

Fotografia 38 – Casas de Capão Verde

32

É importante ressaltar que quando escrevemos coletividade estamos nos referindo a agrupamento, pois cada

um possuía a sua roça próxima de sua casa. No entanto, isso não impedia o usufruto de outrem.

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3.2. O reconhecimento de uma comunidade como quilombola

No passado houve homens que lutaram como bravos,

onde conquistamos liberdade de expressão

de poder decidir junto a um irmão.

São verdadeiros heróis brasileiros:

Quilombo, Zumbi e Lampião cangaceiro,

homens iguais a mim e a você,

que tiveram a coragem de lutar e vencer

(Música Quilombo – Numtemcaô).

Depois de tanto trabalharem de forma cruel e indigna como escravos, os negros e

miscigenados ainda precisam pedir para serem reconhecidos como quilombolas

remanescentes e conseguirem um pedaço de terra para viverem e garantirem a sobrevivência

dos seus descendentes.

A luta por direitos e por uma condição mais justa de vida é uma constante para essas

pessoas. O espaço que eles reivindicam significa trabalho, moradia e possibilidade de

perpetuarem sua cultura.

3.2.1 Contextualização histórica dos quilombos no Brasil

No século XVI, muitos negros foram trazidos da África em navios negreiros para

trabalharem na produção açucareira e, posteriormente, na mineração, criação de animais

e de obras públicas no Brasil.

Os nossos ancestrais negros vieram do continente africano,

viveram sob o regime escravista, submetidos ao trabalho forçado, sem

direitos. Além do trabalho pesado que exerciam nos engenhos, nas

fazendas, na mineração, os escravizados sofreram castigos desde o

momento em que foram capturados no continente africano e

transportados em navios negreiros. Tinham a alimentação e o vestuário

reduzidos (SEED-PARANÁ, 2010, p. 16).

Por volta do século XVII, no período colonial, o Brasil passou pelo período de

escravidão em que os negros, capturados pelos capitães-do-mato, eram forçados a

trabalhar para os senhores, detentores dos meios de produção.

Os escravos moravam nas senzalas em péssimas condições e, como pagamento

por seu trabalho, recebiam roupas e alimento. Eram constantemente mal-tratados com

açoites, amarrados no tronco e acorrentados para não escaparem. Outra forma de

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violência era a imposição da língua portuguesa e a proibição da prática religiosa

africana.

As pessoas eram presas em troncos com correntes de ferro,

chicoteadas e algumas, não resitiam e morriam. Contudo, muitas

lutaram e conseguiram escapar da escravidão, do sofrimento e das

humilhaçoes a que eram submetidas. Entre as maneiras de

enfrentamento à escravidão, as que alcançaram maior repercussão foram

as fugas e a criação de quilombos (SEED-PARANÁ, 2010, p.15).

Com isso, muitos negros conseguiam escapar e se refugiavam nas matas e

construíam locais protegidos chamados quilombos. Os quilombos podem se chamar

como: “terra de preto, mocambos, comunidades negras rurais, comunidade quilombola”,

entre outras (PARANÁ, 2010, p.23).

Nesse local, eles formavam pequenas comunidades que produziam a vida no

âmbito material e perpetuavam a sua cultura. Em alguns casos, os negros conseguiam

comprar a sua carta de alforria.

Os principais quilombos que tivemos conhecimento foram identificados em Mato

Grosso, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco e Alagoas.

O quilombo de Alagoas, conhecido por Quilombo de Palmares, data do ano de

1670 e abrigava mais de 50 mil escravos. Ele era comandado por Zumbi dos Palmares,

que se tornou um ícone da resistência negra à escravidão e à imposição cultural do

branco.

Em homenagem à grande representação de Zumbi dos Palmares para a população

negra, foi instituido o dia 20 de novembro, data de sua morte, como o dia da

Consciência Negra no Brasil.

Em Mato Grosso, 60 terras já são certificadas como quilombolas e estão

localizadas, em grande parte, nos municipios de Poconé, Livramento e Vila Bela.

Os quilombos significaram, acima de tudo, um movimento social de resistência e luta

contra a escravidão, proveniente de um modo de produção que forçava o escravo a

trabalhar/produzir em benefício de outrem -senhor-.

O termo quilombo surgiu oficialmente no Brasil na constituição do

século XVIII, quando, em 1740, o Conselho Ultramarino valeu-se da

seguinte definição, de que quilombo era: toda habitação de negros fugidos,

que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos

levantados e nem se achem pilões nele. Pelos tradicionais livros de história,

a idéia de quilombos está associada à reunião de escravos fugidos que

resistiam às tentativas de captura ou morte. Este exemplo poderia ser

compreendido na identificação de grupos de fugitivos que viviam na estrada

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à custa de assaltos às fazendas ou mesmo aos passantes, ou seja, uma espécie

de grupo nômade de economia predatória até uma organização complexa

(SANTOS, 2009, p. 514).

Além das conquistas em seu favor, como as leis Euzébio de Queiróz (proibia o trafico

negreiro), do Ventre Livre (libertava os filhos de escravos nascidos a partir de 28 de setembro

de 1871) e, por fim, a Lei Áurea que pôs fim a escravidão no Brasil, os negros contribuíram

para mudanças de mentalidades e na própria sociedade. Além disso, colaboraram para o

resgate e validação da cultura afro-brasileira.

3.2.2. As comunidades remanescentes de quilombo

Pega a faca,

Decepa a cana,

Revira a moenda,

Garapa já rolou.

Pega a foice,

Tora a banana,

Derruba a pindoba

Que o teto já furou.

Que dá tempo,

Dá, pro batuque,

Porque Quilombola

Já não tem mais sinhô!

(Quilombola – Sergio Santos)

As comunidades remanescentes de quilombo, segundo a Fundação Palmares, são

espaços de resistência de negros descendentes de ex-escravos. Mais que compartilhar um

pedaço de terra, essas pessoas compartilham uma identidade que é perpassada pelo tempo.

De acordo com o artigo 2º do Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, são

remanescentes quilombolas “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,

com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. (BRASIL,

2003).

A Fundação Palmares afirma que já certificou por volta de 1418 comunidades

remanescentes de quilombo no Brasil e, somente em Mato Grosso, esse número já alcançou

60 delas.

A Comunidade Capão Verde de Poconé – MT é um exemplo de comunidade

reconhecida como remanescente de quilombo, pois foi fundada, segundo seus moradores, por

um ex-escravo chamado Vítor Teodoro que servia como guerreiro e não como força de

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trabalho. No entanto, o diferencial é que a terra não foi ocupada e sim comprada por esse ex-

escravo.

No entanto, quando perguntamos se eles solicitaram o reconhecimento como

remanescente de quilombo ou se essa idéia foi partilhada por alguém de fora da Comunidade,

seu Felinto33

nos respondeu:

Não, não falavam sobre isso. Foi a partir do governo Lula que veio

toda essa luta pelos direitos humanos. Foi criada a secretaria SEPPIR34

e aí

que o professor Moura começou esse trabalho. Ele é engenheiro agrônomo,

depois fez mestrado e doutorado em Antropologia e ele pegou tudo como se

faz para o reconhecimento, porque os quilombolas só tem vantagens. Foi

feito todo um trabalho contra isso lá no município de Poconé prá num ter

quilombola, mas é politicagem entre eles. Então eles (moradores de Capão)

tem energia elétrica, água encanada e casa, os outros não.

Segundo o artigo 68 da Constituição de 1988 que trata do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que

estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-

lhes os títulos respectivos”. Portanto, amparados por lei, eles se auto definiram quilombolas

remanescentes e isso foi certificado pela Fundação Palmares, bem como tiveram garantida,

pelo INCRA35

(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a posse das terras de

Capão Verde.

As metas e recursos do PBQ envolvem 23 ministérios e órgãos

federais e têm como principais objetivos a garantia do acesso à terra; ações

de saúde e educação; construção de moradias, eletrificação; recuperação

ambiental; incentivo ao desenvolvimento local; pleno atendimento das

famílias quilombolas pelos programas sociais, como o Bolsa Família; e

medidas de preservação e promoção das manifestações culturais

quilombolas. (PROGRAMA BRASIL QUILOMBOLA, 2004).

33

Felinto é voluntário em Capão Verde desde 1994 e possui um grande papel de intelectual orgânico para

aqueles trabalhadores. Detalharemos mais adiante esta questão. 34

A SEPPIR significa Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e foi criada pelo governo Lula,

em 2003, a fim de criar iniciativas contra a desigualdade racial no país. Ela acompanha alguns programas e ações

do governo, entre eles o Programa Brasil Quilombola que se baseia no mapeamento da Fundação Palmares. Este

programa possui como ações: a Regularização Fundiária, a Certificação, o Luz para todos, o Bolsa Família, o

desenvolvimento agrário e o desenvolvimento local. 35

O INCRA é a autarquia federal responsável por regularizar as terras de remanescentes de quilombos. Antes de

passar pelo INCRA, as comunidades precisam solicitar uma certidão que as assegure como remanescentes

quilombolas, expedida pela Fundação Cultural Palmares. Feito isso, o INCRA realiza um estudo para a

delimitação da área e concede o título coletivo da terra. (Informações retiradas do site:

http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=252&Itemid=

274).

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A análise dos depoimentos indica que a Comunidade não compreende bem o

significado dessa auto definição, mas depois que foram reconhecidos como tal, passaram a se

intitular como quilombolas remanescentes, como podemos perceber na fala seguinte:

As pessoas não davam muita importância, nem sabiam o que ele

(Seu Vitor) era, eu mesmo não sei muita coisa sobre quilombola, eu tenho

alguma coisa assim, mas ainda falta um pouco de tempo prá gente ir

estudando... não teve momento de sentar com a Comunidade toda e falar o

que é quilombola, da origem.. foi falado mais sobre os benefícios que uma

comunidade quilombola tem (Andréia).

Andréia nos afirmou que eles já se consideravam quilombolas, apesar de não falarem

claramente. Isso era entendido e justificado pelas pessoas, por serem todos de origem negra e

por trabalharem muito na terra para garantir a sobrevivência., mas não tiveram um momento

de conversa no período de certificação.

Nas palavras da moradora Maria Albertina, podemos identificar essa justificativa. Ela

relata que seu pai era como escravo por ter que trabalhar duro para sustentar a família:

Meu pai assim trabaiô quase como um escravo... eu lembro quando

eu era pequena, trabaiava demais pra criar nóis, trabaiô duro, ele ia trabaiá

prá esses fazendeiro prá lá, às vez ficava o dia inteiro sem comê pois nóis

num tinha nada né, chegava de tarde com oio branco, tirava tarefa lá e trazia

mandioca no ombro prá dá de nóis de comê... chegava a hora de fazer a roça

tinha que trabaiá pra comê, aí trabaiava de ganho, trabaiava pros outro como

escravo né.... o que eu levo de ensinamento, , o que ficou pra mim foi

humildade, pois graças a Deus nós fomo criado, nosso pai, assim, foi uma

pessoa humilde e trabalhador. Isso que ficou pra nóis porque graças a Deus

eu sou uma pessoa humilde, tenho disposição pra trabaiá, eu vivo do meu

suor, luto né, respeitá as pessoas né, hoje a vida não ta fácil não.

Contudo, durante a pesquisa, não souberam explicar a importância dessa identidade

para eles. Pensamos que isso aconteça porque em outras comunidades, como Mata Cavalo –

MT, essa identidade apareça mais forte já que tiveram que lutar pela posse definitiva da terra,

ao contrário deles que a compraram.

3.2.3. O reconhecimento dos moradores de Capão Verde como quilombolas

remanescentes

Como dissemos anteriormente, os moradores de Capão Verde se auto-identificavam

como remanescentes de quilombo pela sua ancestralidade e pela relação que têm com a terra

visando à garantia da reprodução ampliada da vida.

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Conforme o relato de Andréia, a Comunidade estava há tempos sem pagar impostos e

a fim de regularizar a terra, a mesma foi designada como assentamento rural por um projeto

do governo federal – Projeto de Regularização Fundiária ou “Varredura”.

Esse projeto consistia em realizar um mapeamento das terras de produtores rurais

através do INTERMAT (Instituto de Terras de Mato Grosso), demarcando-a e regularizando-

a, o que dificultaria possíveis problemas fundiários.

Além de Poconé, outros municípios da Baixada Cuiabana foram contemplados:

Acorizal, Barão de Melgaço, Chapada dos Guimarães, Cuiabá, Jangada, Nossa Senhora do

Livramento, Rosário Oeste, Santo Antônio de Leveger e os municípios de Alto Paraguai,

Arenápolis e Jaciara (dados contidos no site: http://www.intermat.mt.gov.br).

[...] só que transformou em assentamento não, assim, prá trazer

gente, falô que seria no intuito de regularizar a terra e prá receber recurso, as

pessoas continuaram a ter os mesmos direitos sobre a terra e só ia entrá gente

se a Comunidade, as pessoas aceitasse...o grande medo aqui da população,

do povo aqui na época era trazer um monte de gente prá acampar igual os

assentamentos da reforma agrária. (Andréia).

Após a regularização das terras, o assentamento foi incluído no Programa Nossa

Terra, Nossa Gente - Projeto de Revitalização de Comunidades Tradicionais, que tinha

por objetivo realizar algumas benfeitorias, tais como: habitações de alvenaria, auxílio à

plantação, crédito para alimentação, materiais de construção e implementos agrícolas.

Não sei se foi o município, mas entro (entrou) um monte de

comunidade junta né no intuito das comunidades tá (está) recebendo

benefícios né, só que muitas comunidades não aceitaram por causa das

questões de terras, as pessoas têm suas propriedades já escrituradas, tudo

individual; mas todas as comunidades receberam certificado e algumas

comunidades nem sabiam para quê que era (Andréia).

Além do INTERMAT, esse programa estava conveniado com o INCRA e com a

Sinfra (Secretaria de Estado de Infra-Estrutura).

Portanto, Capão Verde recebeu quatorze casas de alvenaria para as famílias morarem

com mais dignidade. As casas possuem dois quartos, um banheiro e uma cozinha de

aproximadamente quarenta e dois metros quadrados.

As comunidades referidas anteriormente que quiseram participar do projeto, puderam

receber o título definitivo da terra e participar do Programa Nacional de Fortalecimento da

Agricultura Familiar (Pronaf).

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Único que acatou como comunidade tradicional quilombola ta sendo

só aqui, que as demais comunidades nenhuma aceitou, não quer nada em

comum (Andréia).

Posteriormente, a Fundação Palmares os reconheceu como Comunidade Quilombola

para que pudessem receber mais recursos, entretanto, até o momento relataram que só

receberam o poço artesiano da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde).

Aqui é comum, aqui fico fácil aceita por causa disso, primeiro foi

transformado em assentamento, houve um projeto varredura, aí essas

comunidades que eles falavam que tava com inadimplência, que tava sem

pagar, transformou em assentamento a fim de poder tá recebendo recurso do

governo federal, que foi na época que saiu essas construções das casas, daí

depois veio o reconhecimento como quilombola, mas aí só temos o

certificado (Andréia).

Fotografias 39 e 40 - Cartazes fixados nas paredes da escola (imagens da autora).

Assim que foram subsidiados pelos programas do governo federal, a moradora

Andréia nos contou que a Prefeitura de Poconé se eximiu de qualquer obrigação com a

Comunidade:

A prefeitura fala que não tem mais nada a ver, que eles não têm mais

obrigação de tá atuando com seus recursos na comunidade quilombola

porque nóis já tem verba prá isso (Andréia).

Eles precisam de peão, que sabe laçar o boi, faze cerca, ferrar o gado

e num ter carteira assinada, num ter nada, num saber de direitos. Então a

gente não tem respaldo nenhum, desses dez anos, a Prefeitura só fez é

atrapalhar. O fato de ser negro e quilombola é permitido injetar recursos nas

áreas de saúde, educação e outras prá poder beneficiar, mas num tem com

quem conversar, não tem respaldo (Felinto).

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3.3. A produção associada em Capão Verde

Afagar a terra

Conhecer os desejos da terra

Cio da terra, a propícia estação

E fecundar o chão

(Música O Cio da Terra

Composição: Milton Nascimento / Chico Buarque)

Em Capão Verde residem 14 famílias (53 habitantes), todas com laços consangüíneos.

Apesar de alguns terem se casado com pessoas de comunidades vizinhas, em sua maioria,

continuam morando lá.

Assim que adentramos na Comunidade, procuramos saber como produziam

associadamente a vida material e social, bem como mantinham a reprodução ampliada da

vida. Na ocasião, por volta de 29 de maio de 2010, alguns trabalhadores estavam produzindo

banana chips na casa da Andréia, atual presidente da Associação dos Agricultores e

Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade Tradicional Capão Verde – Agriverde, e bala

de banana na casa de Maria Albertina.

Durante o processo de trabalho, Lourenço nos mostra, com orgulho, as bananas chips

que acabara de empacotar para a venda.

Fotografias 41 e 42 - Casa da presidente da Associação (imagens da autora).

A justificativa para o processo de trabalho acontecer naquele local era porque estavam

aguardando o aval da vigilância sanitária para produzirem no estabelecimento construído pela

Eletronorte. As instalações deveriam obedecer as prescrições da vigilância sanitária, no que se

refere aos padrões técnicos e sanitários para, posteriormente, iniciar a produção.

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Fotografia 43 - Barracão construído pela Eletronorte (imagens da autora).

Precisamos esclarecer que optamos por seguir a ordem temporal dos fatos narrados

pelos trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde durante a nossa pesquisa de campo, para

compreendermos a luta desses trabalhadores pela produção coletiva das suas existências.

Dessa forma, estaremos identificando e ressignificando, a partir dos depoimentos

gravados e transcritos, bem como através de conversas, a produção associada da vida de uma

comunidade tradicional, rural e familiar.

3.3.1 O estado embrionário de uma produção associada

Como dissemos anteriormente, com a fundação da Comunidade Capão Verde, por

volta de 1935, os recém-moradores tiveram que limpar o local para construírem suas casas e

iniciar o plantio de mandioca, arroz, feijão, banana, milho, entre outros alimentos.

Diante da decisão de manter a posse da terra comum a todos, para começarem a

produzir, eles decidiram que o pedaço de terra para plantarem seria proporcional a força de

trabalho existente em cada família. Essa racionalidade econômica é construída a partir de

saberes que consideram a relação intrínseca entre a modificação da natureza e a reprodução

ampliada da vida. Pode-se perceber uma intencionalidade, não só visando à garantia da

produção material, mas para assegurar a fixação dos trabalhadores e trabalhadoras naquela

porção de terra e ao mesmo tempo consolidar um sentido de Comunidade. Manifesta, assim, o

pressuposto de Thompson (2001, p. 208) em que a economia e a cultura “estão presos à

mesma rede de relações”. É enfim, a tentativa de fazer com que um grande número de pessoas

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compartilhe uma concepção de mundo, que valoriza o viver e produzir associativamente, pois

trabalho e vida são indissociáveis.

Desde meu pai, todo mundo aqui só mexe com a lavoura. Dava prá cada um

viver da sua rocinha, sobrava pra come e prá vende (Dona Maria Albertina).

Neste ponto, lembramos Thompson em Folclore, antropologia e história social, ao

dizer que para entender um processo de produção, temos de investigar práticas hereditárias e a

economia familiar que “se apóiam nas obrigações e reciprocidades do parentesco” (2001, p.

235).

No começo, eles lidaram diretamente com a terra por meio do muxirum, que agregava

também pessoas de outras comunidades ou ficava restrito ao grupo familiar. Para realizá-lo,

eles utilizavam a sua força de trabalho e instrumentos de trabalho rudimentares.

Com a morte de lideranças antigas, responsáveis pela organização do processo de

trabalho, a geração atual teve de construir outras estratégias de sobrevivência e organização

da produção da vida social.

Conforme já mencionamos, para viverem somente da roça precisavam ter todas as

frutas, legumes, hortaliças, verduras, entre outros alimentos, em fartura e sempre prontos para

a colheita. Contudo, lidar com a terra não é fácil, exige muita aprendizagem, esforço físico,

condições climáticas favoráveis, entre outros pontos, e a fome não espera. Também já

comentamos que muitos homens foram trabalhar “de ganho” (tarefa) em fazendas vizinhas

(roçar, plantar e colher), para comprarem mantimentos ou trazer alguma mercadoria como

paga pelo trabalho, contando também com o trabalho das esposas e das crianças.

Desde a idade de 8 anos eu não fazia muita força mas já ia prá roça, hoje

fala: criança não pode trabaia, é proibido né? Por isso tá essa bandidagem né,

serviço não mata ninguém (Maria Albertina).

A utilização sistemática do trabalho infantil remonta à consolidação do capitalismo

industrial. A esse respeito Marx teceu severas críticas no tocante à exploração do trabalho de

mulheres e crianças, visto que os mesmos estavam submetidos a jornadas de trabalho

extremamente longas, em locais insalubres e, principalmente, as crianças eram privadas do

direito ao desenvolvimento físico e cognitivo36

.

36

Tornando supérflua a força muscular, a maquinaria permite o emprego de trabalhadores sem força muscular ou

com desenvolvimento físico incompleto, mas com membros flexíveis. Por isso, a primeira preocupação do

capitalista ao empregar a maquinaria, foi a de utilizar o trabalho das mulheres e das crianças. Assim, de poderoso

meio de substituir trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o

número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e idade,

sob o domínio do capital. O trabalho obrigatório para o capital tomou o lugar dos folguedos infantis e do

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A Constituição brasileira de 1988 trouxe como respaldo o Art. 227 que trata:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao

adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão. (CONSTITUIÇÃO

FEDERATIVA DO BRASIL, 1988).

Apesar de estarem cientes da proibição/condenação jurídica e social da utilização do

trabalho infantil, em Capão Verde, as crianças participam livremente do processo de produção

nos períodos em que não estão brincando ou frequentando a escola. O trabalho infantil, aqui,

não tem a conotação de exploração e tão pouco é realizado de maneira sistemática e diária. O

mesmo tem caráter eventual e percebe-se que o trabalho e o brincar quase que se confundem.

Pensamos que tal prática não deva ser confundida com a utilização clássica do trabalho

infantil que deve ser condenada de maneira veemente.

Para sobreviver, homens e mulheres de Capão Verde tiveram de (re) criar outras

estratégias. Uma delas foi manter a venda do excedente de banana na beira da estrada. A

autogestão do trabalho permite que essa prática persista ao longo dos tempos, como podemos

ver na imagem abaixo:

Fotografia 44 - Jovem vendendo banana na beira da estrada, em frente à

Comunidade no dia 08 de maio de 2011 (Imagens da autora).

A partir de 1999, algumas pessoas da Comunidade se reuniram e começaram a utilizar

o que plantavam como matéria – prima, mas esta idéia surgiu com a interferência de Seu

Felinto. Por isso, precisamos situar como ele passou a atuar como intelectual orgânico dos

trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro de limites estabelecidos pelos costumes. (MARX,

1982, p. 449 e 450).

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trabalhadores de Capão Verde. Nas próprias palavras de Seu Felinto, esclarecemos essa

questão:

Eu tava fazendo faculdade e eu era ligado à igreja. Aí apareceu a

oportunidade de fazer um curso em Goiânia de MEB (Movimento de

Educação e Base) e escola radiofônica. Eu tive contato com a equipe que

trabalhava com Paulo Freire naquela época de 63, 64. Fizemos cartilha e

todo mundo foi perseguido. Ninguém podia falar de educação popular e você

já era perseguido, poxa. Eu tive contato com a JEC (Juventude Estudantil

Católica) e com a JUC (Juventude Universitária Católica) e então eu fui

escolhido. Eu não sabia que eles estavam observando a gente. Os padres

tiraram a batina prá trabalhar com a CPR (Centro Pastoral do Rosário)

porque essa questão da religião não era importante e sim a luta pela vida

mais justa e humana, que é a idéia do Cristianismo, do Comunismo. Militei

em movimento estudantil, Centro Acadêmico, aí depois nós vimos a Igreja

do Rosário e unimos com os jesuítas que tavam lá. Os jesuítas programaram

um centro de formação lá, chamava Agente Pastoral, depois que conhecemos

o Passos. Então, através da CNBB37

nasceu a idéia da Fé e Alegria. A gente

atuava nessa região aqui, não sei se você ouviu falar na Comunidade São

Benedito que tem uma farinheira e a Comunidade Zé Alves. Lá em Poconé

começou um padre lá, Padre Joaquim, um espanhol, faleceu de desastre

recentemente. Ele trabalhou muito essa questão da comunidade, desde 80, e

eu ia com ele lá trabalhando. Na época da Amazônia eles iam pegar mão-de-

obra para as fazendas e a turma não voltava mais, morria lá. As mulheres

iam reclamar com o padre que os filhos tinham ido não sei pra onde e não

voltavam. Ai o padre Joaquim, preocupado com isso, falou que a teria que

gerar renda pra eles ficarem aqui. Na Zé Alves começou uma fábrica de

rapadura, mas eles não seguiram uma regra de deixar no mínimo dez por

cento de fundo e em São Benedito eles nunca conseguiram vender a questão

do coletivo como em Capão Verde. Aí o padre falou: porque vocês não vão

trabalhar lá em cima, porque lá ninguém vai, é esquecido, o povo de lá vai

prá Várzea Grande, tão largando as comunidades. Daí eu fui em Capão

Verde em 94, tinha o professor Urbano lá e nós começamos a nos entrosar

(Felinto).

De acordo com Gramsci (1991), todas as classes sociais possuem intelectuais, mas

existem variadas categorias de intelectuais e, dentre elas, pontuamos os intelectuais orgânicos.

Para ele, os intelectuais orgânicos surgem de uma classe específica, se misturam a ela para

organizá-los e conscientizá-los, politicamente, de uma nova concepção de mundo, bem como,

promover uma nova formação moral e cultural, utilizando-se também da escola, família,

jornais, sindicatos, entre outras instâncias.

Diante do que foi exposto, acreditamos que Felinto possa ser enquadrado em tal

categoria, já que possui uma função política e social, lança idéias, procura manter a

homogeneidade da produção social da existência, faz articulações entre os trabalhadores e

órgãos do governo, procura libertá-los do senso comum e elevá-los intelectualmente, e está

envolvido organicamente com a classe trabalhadora de Capão Verde.

37

Seu Felinto refere-se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

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Além disso, as experiências com movimentos de base da Igreja, bem como os

estudantis, a faculdade, as leituras de Paulo Freire e o próprio contato com trabalhadores da

área rural contribuíram para a formação intelectual de Felinto.

Não existe projeto, as coisas vão acontecendo, nós não chegamos e enfiamos

um projeto na Comunidade, aí não existe a educação popular, não tem

envolvimento com a comunidade. Nós só temos uma saída, através da união

do povo, da organização prá gente derrubar o capitalismo. Esse que é a idéia

da gente, nós temos que trabalhar unido e precisamos de um partido prá nos

representar, porque a educação popular atenta trabalhar pouco a pouco pro

pessoal ir crescendo, ir se empoderando, prá gente sair e eles continuarem.

Ah, não sabe ler e escrever? Então vamos montar uma sala de alfabetização,

aí já vai o método Paulo Freire. Agora tudo tem seu tempo certo, tem que

amadurecer e eu sempre falo: tá vendo essa semente aqui? É pequena. Você

tá vendo essa árvore aqui? Então, o que estamos fazendo hoje aqui? Estamos

plantando uma sementinha que vai nascer e um outro grupo vai ver ela

crescer (Felinto).

Após adquirir a confiança dos trabalhadores de Capão, ele discutiu a idéia de

começarem a viver da produção material de alguma mercadoria, que lhes fosse mais acessível

e pelas experiências anteriormente citadas, acreditamos que ele conseguiu mobilizar os

trabalhadores. É importante ressaltar que não foi um processo fácil e rápido, porque nessa

época muitos trabalhadores estavam querendo evadir de Capão Verde. Eles já não estavam

conseguindo sobreviver com o que produziam de alimentos e nem conseguiam ter dinheiro

para comprá-los. Além disso, os mais idosos eram reticentes com pessoas externas à

Comunidade. Eles pregavam que a terra não pertencia aos que advinham de outras

Comunidades e até Andréia e Ieiê sofreram discriminação, apesar de terem se casado com

pessoas de Capão Verde.

Lá pela terceira reunião eu me lembro da Andréia e da Ieiê: “ah, não adianta

você vim Felinto”, “nós vamos tudo sair daqui”. Na cabeça da Andréia e da

Ieiê, porque são três irmãs casadas com três irmãos, elas achavam que a terra

não era delas, porque a sogra falava: “cês não são daqui”. Aí eu falava: o que

tá aqui quem matou não foi você? Você não é casada com o povo daqui?

Vocês têm meio a meio, meio é seu e meio é dele. Vocês já têm direito

(Felinto).

Com o relato acima, percebemos uma das atuações de Felinto para homogeneizar a

produção da vida social em Capão Verde.

Felinto tem em mente a importância do processo educativo desses trabalhadores e

pronuncia a construção de um Centro de Cultura e de Educação Popular que contribua para a

emancipação e elevação cultural/intelectual desses trabalhadores. Nesse espaço, eles teriam

acesso a livros, à tecnologias e seria um espaço de reuniões, narrativas e debates.

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A gente vai ter que ter um local, o Centro de Educação Popular e Cultura,

porque na época de reza vem junto o povo mais antigo e contam histórias,

agora se tiver um espaço, utiliza esse espaço para fazer isso de uma maneira

mais constante (Felinto).

A fala abaixo nos mostra também que ele possui uma práxis coerente com a luta dos

trabalhadores pela produção da existência e com sua visão de mundo:

Nós queríamos provar que os quilombolas analfabetos, excluídos, tem

condição de fazer produtos de alta qualidade. Nosso cerrado é riquíssimo e

nós queremos provar isso. Não precisa desmatar, tocar fogo, vamos trabalhar

os frutos do cerrado, vamos replantar com as crianças, fazer mudinhas e ter

criação solta de galinha caipira (Felinto).

Por isso, ele se empenhou na mediação com órgãos governamentais em busca de

programas ou projetos que pudessem subsidiar a criação de uma unidade de produção e que

trouxesse recursos básicos para a Comunidade como água encanada, energia elétrica, entre

outros. E tudo isso foi possibilitado pela sua formação profissional e experiência com a luta

de trabalhadores.

Não só porta-voz, na intermediação com pessoas alheias à Comunidade, Felinto

passou a se sentir como parte dela e isso foi constatado nas inúmeras conversas que tivemos.

Pousa aqui uma característica diferente, um intelectual orgânico externo à Comunidade que

construiu um sentimento, não só de solidariedade com aqueles trabalhadores, como de

pertencimento àquela Comunidade.

Felinto continua a acompanhar a batalha dos trabalhadores de Capão Verde para

manter a reprodução ampliada da vida.

Ele sempre vem, acompanha todo o processo, todas as mudanças. No

começo não era com freqüência, vinha de vez em quando, aí depois ele

começou a vir mais (Andréia).

No início, quando adquiriu respeito e confiança dos trabalhadores, sugeriu que

produzissem doces em calda das frutas que possuíam plantadas na Comunidade:

Mexia com lavoura, carpi, plantá, colhê. Eu já trabaiei lá na fazeção de doce

de caju, fazeção de doce de goiaba, fazeção de doce de banana, aí foi indo,

foi indo, adoeci com este joelho, não guento ficá porque é prá fica só de pé

prá trabaiá, vai pra cá, vai prá lá, mas eu fez bastante coisa (Dona Ana

Luiza).

A produção começou com algumas mulheres, que além de colher as frutas preparavam

os doces em calda, mas não conseguiram levá-la adiante.

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Primeiro formou o grupo, aí era mais mulher, era só mulher, daí esse grupo

foi até um pouco, aí o grupo viu que não tava dando resultado, não tava

entrando dinheiro, aí desistiu, parou, acabou, depois nós começamos em

2002 a fazer de novo doce em calda e bala de banana. A banana frita só

começamo a fazer já em 2006. Pagava as despesas e dividia o lucro entre as

mulheres, mas a gente não tinha local, comércio prá entregá, dependia de

quando tinha alguma feira (Andréia).

À primeira vista, imaginamos que começar uma produção seja um processo

complicado para as mulheres, porque precisam gerir o tempo de produção com os afazeres

domésticos e cuidar dos filhos, mas Tiriba (apud Zaluar 2002, p.100-105) destaca que as

mulheres foram educadas para, além de cuidar dos filhos, administrarem o lar e reforça que

“nas famílias oriundas dos setores populares, a mulher/dona de casa é quem gerencia o

orçamento destinado ao consumo coletivo do grupo doméstico” (TIRIBA, 2004, p.82). Neste

caso, o que fez a produção de doces acabar não foi a ineficiência na autogestão do processo de

trabalho, realizado pelas mulheres, mas sim as dificuldades encontradas para a venda regular

da produção junto aos estabelecimentos comerciais da região.

Outro empecilho para o êxito da produção foi a localização da área destinada ao

plantio. Ela está localizada em uma serra, bem distante das casas e, por isso, dos problemas

relatados pelos trabalhadores, a falta de estrada e transporte para lá foi o mais ressaltado. Na

ocasião do inicio da pesquisa de campo, outro problema enfrentado era em relação à água, que

chegava em algumas residências e outras não, bem como a dificuldade em molhar as

plantações:

Agora nós tamo nessa peleja aqui resolvendo questão de água. Fez rede, mas

a água não chegou na minha casa, nas outra casa vai água tudinho

(Catarino).

Mesmo com tais dificuldades, Felinto insistiu na utilização da banana da terra como a

principal matéria-prima para a produção material, já que era um produto que permanecia o

ano todo pronto para a colheita.

Eu trouxe a Lourdes e ela ensinou Capão Verde a fazer balinha de banana,

porque eles tem no caso lá é a banana, mas não sabia o que fazer. Entao nós

começamos com seis a oito mulheres e o Lazaro da farmácia cedeu por um

ano o estacionamento dele pra todo sábado fazermos uma feirinha lá de

produtos orgânicos e balinha. Aí faltou produção porque não tinha água prá

produzir verduras e nem barragem tinha. Nós queremos o empoderamento

deles, eles são donos daqui, agora já tá partindo prá outra casa

(Agroindústria) de acordo com a vigilância (Felinto).

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Os trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde acolheram a sugestão de Felinto por

também terem conhecimento desse saber popular e começaram a produzir bala de banana e

depois a banana chips. Era uma produção artesanal e contavam com instrumentos bem

rudimentares, o que não permitia uma grande produção. Eles produziam em uma sala de aula

da escola da Comunidade, mas o processo de produção ficava comprometido com a

intromissão das crianças, bem como, as aulas destas com o barulho e cheiro da fritura das

bananas. Posteriormente, passaram a produzir a banana chips na casa de Andréia e a bala de

banana na casa de Dona Maria Albertina.

Na época que o Felinto deu a ideia de trabalhar né, eram vários tipos de

doce, porque aqui nós tentamos fazer doce de frutas de época né: goiaba,

mamão, laranja, só que ai o que deu mais, que continuou, que deu mais firme

foi a banana né, ai nos fomos vendo com a experiência, com os próprios

olhos que a banana se tem o tempo inteiro né... e a banana já é uma tradição..

daí começamo com doce, ai a banana frita e a farinha.. a bala foi o Filinto

que trouxe o curso pra Comunidade, aí não foi só aqui pra Comunidade foi

pra várias... eu não sei como é que surgiu a ideia de fritar, eu sei que na

época a gente tentou cortar na faca não deu certo, tentou vários jeitos não

deu certo até que fomos comprar esse cortador e fomos comprando e

fazendo (Andréia).

Pensando nisso, Felinto conversou com muitas pessoas, entre elas, Antonio

Francisco38

, seu companheiro no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), sobre a

inserção em projetos que auxiliassem a produção associada dos trabalhadores de Capão

Verde. E, como já estavam inseridos no programa, começaram a articular essa possibilidade.

O PAA foi criado no período do governo Lula, a fim de que o pequeno produtor

comercializasse os seus excedentes para uma instituição pública e esta os repassaria a

instituições como creches, hospitais, escolas, entre outras. No entanto, para realizar essa

comercialização os produtores precisariam criar uma associação, cooperativa ou ONG, isto é,

uma personalidade jurídica pra firmar o contrato de compra com a CONAB e receber o

dinheiro em troca.

Então, eles conversaram com os(as) trabalhadores(as) da Comunidade e os

convenceram a criar uma associação para comercializar somente os excedentes para a

CONAB, pois o objetivo principal era captar recursos para manter a reprodução ampliada da

vida. Para isso, criaram estatutos e um projeto de compra e venda para cumprir o processo

burocrático que envolvia essa relação.

38

Felinto nos contou que Antonio Francisco trabalha, atualmente, na área de projetos da Fundação Bradesco,

mas já trabalhou dezesseis anos na EMPAER, de técnico agrícola, fez Biologia e estudou em escola agrícola.

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Aí precisa do estatuto, tem que ter estatuto, que fala que a associação né

seria pra captar recursos pra melhoria da Comunidade, mais pra

Comunidade, que até no entanto , agora, pra registrara marca, tivemos que

mudar.. Reescrever, acrescentar mais artigo no estatuto, que na época que

nóis fizemos não foi na intenção do grupo, pra comercializar (Andréia).

Como Felinto tinha mais contato com Catarino e Andréia, solicitou que eles,

rapidamente, formassem uma diretoria para compor a associação, mas “a participação do

conjunto dos trabalhadores no processo de produção e socialização dos conhecimentos

independe da criação de comissões e de educação, mas é garantida, informalmente, no

cotidiano de trabalho” (TIRIBA, 2001, p. 322).

Tem alguns que não acreditam muito, ficam assim meio desconfiados: ah,

vou olhar primeiro, vou pensar. Poderia dizer que Andréia, Loro e Catarino

que deram a cara a tapa (Antônio).

Nesse sentido, todos foram convidados a participar das deliberações, mas somente

Andréia, seu marido Lourenço e seu irmão Catarino mostraram de pronto o interesse em

participar.

Assim, após várias reuniões, assessorias e decisões coletivas foi criada, em 2006, a

Associação dos Agricultores e Agricultoras Afrodescendentes da Comunidade Tradicional

Capão Verde - Agriverde.

Criou a associação pra fazer o projeto, pra captar recursos pra Comunidade e

pro que precisasse... tudo que fosse benefício conseguisse pra Comunidade,

nem num houve assim muita discussão com o pessoal, assim, sobre o que

iria trazer, porque se fosse, na época, se fosse criar, as pessoas ainda tavam

assim com uma mente mais, assim, fechada e fosse falar vamos criar, monte

de gente iam falar que não ia dar certo. Aí, por conta própria decidimos

vamos criar, aí o Tonhão e o Felinto falaram: ruma lá umas pessoas prá

montar a diretoria, forma a diretoria e cria a associação (Andréia).

Com a criação da Associação, os trabalhadores perceberam, efetivamente, que

poderiam captar recursos materiais para Capão Verde e outras comunidades em seu entorno.

A gente sabe que através da associação a gente tem força pra buscar as

coisas né, a gente sabe que sem ser por aí não acontece as coisa, outras

comunidade não tem nada (Andréia).

Dessa forma, as experiências cotidianas na Associação mobilizaram os trabalhadores e

trabalhadoras, no sentido de garantir a reprodução ampliada da vida, por intermédio da

produção associada. Presumimos que, por mais que “não tenham acesso à ‘economia’

enquanto uma ciência, existe um saber popular em matéria de economia” (TIRIBA, 2004, p.

76).

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As pessoas não têm capital do giro. As pessoas não têm como pega e entra,

porque é tipo uma cooperativa e têm que entra com alguma coisa. As

pessoas estão aguardando um projeto que crie capital de giro, prá todo

mundo começar igual (Andréia).

Ressaltamos que buscar ajuda externa através de projetos não desqualifica a produção

associada, pois “em alguns momentos, a cultura e os valores dessas comunidades podem

opor-se ao abarcante sistema de dominação e controle” (THOMPSON, 2001, p. 261), porém,

“não se pode passar a vida inteira protestando; é necessário dissimular e lidar com o status

quo” (idem, p. 262), já que a experiência real é que nos ensina a viver.

Salientamos que tal prática deve ser entendida enquanto uma estratégia, visando

assegurar a reprodução ampliada da vida e que a mesma não se constitui em uma

característica intrínseca da produção associada; até porque os trabalhadores não experienciam

as mesmas situações.

Além da busca de recursos para Comunidade, outro motivo que fortaleceu a criação da

Associação foi a evasão de algumas pessoas, desde o final da década de 90, para outros

municípios. A justificativa para esse subterfúgio foi a procura por emprego formal e estudo,

visto que na Comunidade viviam da agricultura familiar e existia apenas uma escola, que

atendia somente até o 5º ano. Apesar de saber que, principalmente, Cuiabá e Várzea Grande

possuem atrativos para além de trabalho e estudo, eles têm esperança que a Associação tenha

sucesso e consiga atrair de volta essas pessoas.

Segundo Chanial & Laville (2009, p. 21), a associação “é uma tradução em atos do

princípio de solidariedade que se expressa pela referência a um bem comum” e essas pessoas

se ajudam, valorizando a cultura herdada ou construída, desenvolvendo uma identidade

coletiva e laços sociais mais fortes e solidários.

Na ocasião da pesquisa de campo, a diretoria era composta de Andréia, como

presidente, Catarino, como vice-presidente e Lourenço, como tesoureiro, Welson, como

primeiro secretário e um conselho fiscal ocupado somente por membros da Comunidade. Eles

não abrem mão da autogestão do processo de produção e, por isso, não cogitam a

possibilidade de membros externos à Comunidade.

O mandato tem a duração de três anos e, atualmente, contam com aproximadamente

17 associados, mas somente 9 estão atuantes no processo de produção, a fim de manterem a

venda dos produtos, a sua divulgação e não desanimarem com as dificuldades.

Antes era ele (Catarino), eu era secretária, venceu o mandato me enveredei a

candidatar, deixo aberto pra quem quisesse e ninguém quis (Andréia).

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A diretoria é responsável pela parte administrativa, que compreende: criar projetos,

intermediar contatos com compradores, fazer o balancete, entre outras funções, mas existe

uma eleição para constituí-la e não restringe a participação dos demais, que não estão

associados, da sua eleição. Então, o próprio processo de constituição da Associação tornou-se

um espaço de saberes. Mas esse saber alcança aos outros trabalhadores e trabalhadoras

associados?

Contaram-nos que há duas eleições que a comissão da diretoria permanece com os

mesmos componentes, só alterando as funções. Quando questionamos sobre a participação

dos demais trabalhadores nesse processo, a presidente nos respondeu que falta o interesse, que

há uma resistência por parte dos demais trabalhadores associados.

A responsabilidade que pesa. Qué tá junto, mas não qué assumi,

principalmente, os cargo da linha de frente: tem que ver de perto, tem que

correr atrás, muitas vez desembolsar, tirar do bolso, as vez sair, deixar casa.

As pessoas não tem essa disponibilidade ainda. Entrou mais novos

associados e a nossa esperança é, quem sabe, na próxima eleição alguém

consegue e assume (Andréia).

Diferente de todos da Comunidade, Andréia concluiu o ensino superior em Pedagogia

e até já ministrou aulas na escola de Capão Verde. Apesar de não ter experiência, Andréia

aceitou o desafio de presidir a Associação e hoje mostra que aprendeu a ser dirigente de si

mesma e de parte do processo de trabalho associado. Na medida em que a Comunidade não

tem a figura de um líder, Andréia passou a ter autonomia até para resolver assuntos alheios à

Associação, como o problema da falta de água na Comunidade, por exemplo.

Andréia defende a construção de uma sede para a Associação, a fim de ter um espaço

para discutirem e resolverem problemas específicos da unidade de produção. Já para as

reuniões da Comunidade, por enquanto, as mesmas continuarão a ocorrer na escola ou até

debaixo de uma árvore. Contudo, Andréia nos revela que é muito difícil acontecerem reuniões

para discussões com a Comunidade, já que há muito tempo produzem a vida social sob os

mesmos princípios, costumes e valores. Quando é possível dizer que há uma reunião, esta

ocorre em função de festividades.

[...] só em época de festa né, aí tem as novenas, as rezas, assim que rezam no

período de nove dias antes da festa, aí reúne todo mundo, aí começa aquele

pessoal contando história, aí que é bom, aí você vai ouvindo né aquelas

pessoas antigas, contam cada história da época que eles viveram aqui né, aí

eles vão contando, contando, contando, um puxa assim e aí vai (Andréia).

Na roça via de regra não tem, porque é aquela coisa que eu falei né, as

vivências são diferentes da cidade, então, ali tá tendo uma reunião lá, ó, tá

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tendo uma oficina lá , um esquema de produção lá embrionário né, tão

fazendo biscoito prá poder vender né. Aquela família lá tem três jovens, uma

menina, quatro, tem mais o marido, cinco, tem mais a esposa, seis, seis

pessoas lá reunidas o dia inteiro né (Antonio).

Assim, podemos considerar a formação/constituição de um intelectual orgânico no

seio da Comunidade e no chão da Agroindústria. A liderança, o respeito e a atuação da

Andréia no interior da Comunidade sugere que a mesma possa ser considerada como tal.

O militante deve ser mais o mediador que permite aos grupos experimentar;

aquele que em qualquer situação experimenta os valores da experimentação.

É o mediador que ajuda, reenvia aos grupos suas próprias análises como

sendo as análises e não certezas, interpretações entre outras. (MOTHÉ, apud

NASCIMENTO, 2011, p. 113).

Diante desta constatação, lembramos o que Gramsci (1991, p. 27) sugeria sobre o

papel do intelectual orgânico e sobre o surgimento de outros da mesma categoria. Ele dizia

que era importante

[...] repetir constantemente, e didaticamente (de forma variada) os

argumentos que concorrerão para a ampliação da visão das massas; e a

elevação cada vez maior da cultura da massa, fazendo surgir dela mesma a

elite de seus intelectuais, capazes de uma ligação teórica e prática.

Além disso, Andréia carrega saberes oriundos de sua experiência de vida em

Comunidade e outros que se materializam na produção associada da vida. Hoje em dia, ela é a

principal referência na Comunidade. Ela já realiza algumas mediações com instituições e viaja

para divulgar os produtos em feiras e exposições. Vale ressaltar que a Andréia foi a principal

interlocutora/facilitadora da pesquisa de campo.

Não só Andréia, mas os próprios trabalhadores deveriam tomar conta do processo de

produção e da Associação. Essa foi uma decisão democrática e unânime. Seu Felinto sempre

discutiu os riscos da interferência externa, mas tinha em mente que, em alguns processos,

precisariam do auxílio de algumas entidades e instituições.

Nesse sentido, ele buscou primeiro a ajuda da UNEMAT, que estava trabalhando com

a economia solidária, mas não conseguiu retorno. Então, ele solicitou que o SEBRAE os

assessorasse na parte gráfica e em cursos de capacitação.

Em dez anos foi crescendo e em determinada hora eu sabia que nós íamos

esbarrar no rótulo, nas embalagens, aí chamou o SEBRAE. O SEBRAE

entrou pra fazer rótulo fazer embalagem e cada vez que a gente acha que

precisa de apoio, a gente vai buscando, mas o comando é deles

(trabalhadores de Capão), porque pro SEBRAE entrar lá nó tivemos uma

conversa: agora aqui é economia solidária, aqui não é empresa e eu sei que

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vocês trabalham pra uma empresa capitalista, então, eu respeito vocês e

vocês respeitam a gente.A concepção do SEBRAE é de transformar em

empreendedor e a gente pensa que não dá. Eu tenho essa vivência talvez da

Agronomia e o meu pai também tinha fábrica e eu fui criado um pouco

dentro da fábrica. E outra coisa, eu sou macaco velho e não vou deixar eles

chegar aqui e mandar no pessoal e fazer o que eles bem entende, num vai,

não vão fazer isso (Felinto).

O SEBRAE realizou um estudo junto à Comunidade e criou para a Associação o

símbolo seguinte, inspirado em pinturas africanas e cores da terra:

Fotografias 45 e 46 - Imagens retiradas do catálogo elaborado pelo SEBRAE e cedidas

pela presidente da Associação Agriverde – Andréia.

Sobre a sua utilização, Andréia nos ressalta que “todos da região de Morraria39

podem

usar a marca quando tiver tudo regularizado”. Portanto, a criação da Associação atinge outras

Comunidades vizinhas.

39

A região de Morraria abrange Poconé e Livramento e surgiu na época da exploração do ouro em Mato Grosso,

em que os trabalhadores fugiam do trabalho escravo. O nome foi escolhido pela sonoridade e por ser uma região

de morros.

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O sonho de todo mundo, todo mundo aqui na Comunidade ser dono do

próprio negócio. Assim a gente espera que, até assim, as pessoas (que) ainda

não acordou (acordaram) né, ainda não acredita, então, a maioria já tá aqui

de fora, só ali, do lado, esperando a coisa funcionar pra entrar, porque aqui,

algumas das pessoas aqui, o que eles querem é emprego, é trabalho, ainda

não quer assumir a responsabilidade de ser dono do próprio trabalho, já são

acostumado a ser empregado né, que hoje o que a maioria espera é trabalho,

salário, mas o SEBRAE tá acompanhando a gente, tá assessorando até

quando tiver caminhando com as próprias pernas (Andréia).

Marx afirma que, para as cooperativas populares funcionarem, não deve ter

intervenção do Estado e a nenhum órgão ligado a ele. Mas como classe popular avança sem

uma mínima “intervenção” do Estado? Acreditamos que se os trabalhadores associados de

Capão Verde não tivessem essa aproximação com o SEBRAE e outros órgãos do Estado

estariam em nível embrionário e não estariam produzindo na unidade de produção. Eles se

utilizam/incorporam as muitas noções técnicas, que se situam no âmbito da produção, como:

regras de higiene, logomarca, finalidade da mercadoria, entre outras, mas não alteram a

organização do processo do trabalho.

Eles rejeitam a proposta de empreendedorismo, defendida pelo SEBRAE, e se

identificam mais com os pressupostos da economia solidária.

Porque empresa já fica mais complicado né, mais difícil porque teria que ter

um dono e ter funcionários. O objetivo do projeto quando saiu não foi esse.

Era pra vender coisa da Comunidade, quem quiser também né, não

obrigando ninguém. Desde que a gente começou, a gente começou bem dizer

com a economia solidaria, sempre assim participando de encontros, feiras,

eventos, depois que entrou o SEBRAE, só que as versões são diferentes, a

economia solidária é voltado pro todo, para todos, levar todos juntos e o

SEBRAE não, quem quer qué, quem não quer, pega aquela pessoa que ta e

vambora. O SEBRAE não tem aquela paciência de esperar as pessoas

amadurece as idéias, ter vontade. Pra nóis teve um impacto bem grande

quando o SEBRAE entrou aqui, porque nós estávamos tendo os encontros da

economia solidaria, ainda tava tentando colocar pro povo a importância de

trabalhar junto na Associação, de tá todo mundo junto, de cada um assumir

sua responsabilidade dentro de um grupo, sobre associativismo,

cooperativismo, mas aí entrou o SEBRAE, o SEBRAE já entrou pra colocar

as coisas pra andar porque tem pessoas, como sempre falo, que não querem

assumir responsabilidade, ele quer um trabalho, salário, como uma firma.

Trabalho, carteira assinada e não pensa em assumir e ser dono, a gente tem

essa grande preocupação: como é que vamos fazer com essas pessoas?

(Andréia).

Como dissemos anteriormente, a Comunidade teve de se tornar um assentamento, pelo

Projeto Varredura, porque não estavam pagando impostos. Com isso, eles regulamentaram a

terra e foram incluídos no Programa Nossa Terra, Nossa Gente - Projeto de Revitalização de

Comunidades Tradicionais, o qual possibilitou a conquista de vários benefícios tanto para

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Capão Verde, como comunidades vizinhas: água, energia elétrica, telefone, internet, rádio

comunitária, Arca das Letras (biblioteca), entre outros. Embora, algumas dessas benfeitorias

não estejam funcionando adequadamente, é um grande passo para uma comunidade isolada

dos centros urbanos.

A dinâmica social é deles, agora a Associação é realmente uma instituição

através da qual eles negociam tudo (Antonio).

Não podíamos deixar de ressaltar o sentimento de gratidão que expuseram sobre o ex-

presidente Lula, porque foi no seu mandato que a Comunidade sofreu as transformações

citadas acima, que melhoraram a vida dos trabalhadores.

Ajuda de político só antes da política, papapa papapa (risos). Eu digo pra

toda parte: como Lula, ainda não existiu. Espia aí, se eu tenho essa casa

assim, foi ele. Tudo essas casinha aqui pro lado, por aqui foi (Dona Maria

Rosa).

Pra mim o primeiro presidente que ajudou os pobres foi ele , eu tinha um

sonho de ter uma casinha dessa, se fosse pra mim fazer eu nunca que ia

conseguir, graças a Deus eu to com uma casinha né, eu que acabei de ajeitar,

fiz a área, mas ficou bem mais fácil (Dona Maria Albertina).

Fotografia 47 - Casa de Ieiê Fotografia 48 - Casa de Dona Maria Rosa

(imagens da autora).

Uma das principais conquistas foi fruto de um projeto elaborado com o SEBRAE e

financiado pela ELETRONORTE. Com esse projeto, eles conseguiram a construção da

unidade de produção da Associação e os equipamentos que necessitariam para aumentar a

produção dos derivados de banana. Ficou acertado que a ELETRONORTE investiria R$ 137

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mil reais em mão-de-obra, materiais e equipamentos, mas até agora somente construíram a

unidade de produção da Associação.

Nós também estamos ansiosos pra começar até porque cada dia que passa o

pouco que a gente ta produzindo ta se espalhando e as pessoas tão

procurando bastante e a gente fica sem poder trabalhar, sem poder fazer

compromisso com ninguém, ate porque ta pouca gente trabalhando

(Andréia).

Mesmo sem poder produzir na sede, por conta da falta de equipamentos e do aval da

vigilância sanitária, eles continuaram a produção de derivados de banana e a qualificação dos

trabalhadores. Podemos citar a capacitação ministrada pela Comfibra, uma empresa do

Paraná, que por intermédio do SEBRAE ofereceu um curso sobre a fibra do caule da

bananeira. Eles aprenderam a retirar a fibra, esterilizá-la em água sanitária e também no

vinagre, secá-la ao Sol e tecê-la no tear a fim de produzirem descanso de panela, caminho de

mesa, caixinhas, entre outros produtos.

Esses dias teve um curso aqui de fibras né, de banana né. Ta começando

agora. Já ta fazendo alguns. As mulheres já tão fazendo alguns trabalhos. O

artesanato não quis ficar na área daqui da agroindústria, a Maria Albertina é

que ficou como articuladora da área do artesanato né, porque ela é que

entende mais (Andreia).

O curso foi curto e com poucos teares para colocarem em prática o que eles estavam

aprendendo, mas a Comfibra doou três teares para a Comunidade e com isso, puderam

aprender uns com os outros a produção dos produtos. A prática faz com eles discutam

coletivamente novas maneiras de fazer a mercadoria ou aprimorá-la, além de estipular o preço

e o local onde será vendido. Mas somente um pequeno grupo deu continuidade, no qual a

articuladora ficou a Dona Maria Albertina.

Fotografia 41 - Mulheres trabalhando no tear Fotografia 42 - Descanso de panela

(imagens da autora).

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Fotografias 49 e 50 - Duas formas de se vender bala de banana (imagens da autora).

Salientamos a existência de uma relação direta entre a concepção e a execução do

processo de trabalho, diferentemente do trabalho assalariado em que a concepção “é impedida

de realizar-se completamente em função de diversos fatores, entre eles, a pressão para

produzir mais” (TIRIBA, 2004, p.84). Nós presenciamos conversas sobre novas formas de

trançado da fibra e do fio, a possibilidade de criarem novas mercadorias.

Além disso, homens, mulheres, idosos, jovens e crianças participam, indistintamente,

do processo de concepção e execução. Porém, as crianças não são responsabilizadas pela

subsistência familiar. Elas apenas têm a oportunidade de autogestar a vida, conciliando

educação formal com a educação mediada através do trabalho.

Seu Felinto também trouxe, em dezembro de 2010, uma senhora para ensinar um

pequeno grupo a produção de biscoito de polvilho (peta). O processo de produção acontece na

casa de Ieiê, entre os trabalhadores que se sentiram mais habilidosos para a atividade.

Eu tenho um irmão que trabalha aqui também, ele que faz biscoito, ele faz

peta, agora ta fazendo pão. Vende aqui mesmo na Comunidade, as pessoas

procura, vem pessoas de fora (Elves).

Até a chegada dos equipamentos e o aval da vigilância, os trabalhadores continuaram

produzindo os derivados de banana em pequenos grupos.

Não tá muito a todo vapor ainda né, tá esperando chegar os equipamentos.

Não sei se a gente vai conseguir fazer esse ano, a gente tá torcendo que a

vigilância libera aí né (Catarino).

Um trabalhador/produtor, em conformidade com a lógica capitalista, buscaria se

adequar à demanda do mercado, mas os produtores associados procuram trabalhar com o que

tem mais afinidade, habilidade ou que lhes dê mais prazer em produzir. E, essas

características fazem parte da cultura do trabalho associado.

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3.3.2 A organização do processo de produção associada – autogestão no chão da

Agroindústria

Após uma vistoria da vigilância sanitária, foi constatado que ainda faltavam algumas

adequações na estrutura física da unidade de produção, mas obtiveram permissão para iniciar

a produção naquele local. Só não poderiam emitir nota fiscal porque ainda era necessário o

registro e o código de barras.

A vigilância falou que já pode entrá, ela fez uma listagem de materiais prá

gente comprá e aí já pode entrar, porque tá demorando muito a liberação dos

equipamentos (Andréia).

Eles direcionaram a unidade de produção para a fabricação de banana chips, da bala de

banana e para a produção e estocagem de farinha de banana por conta da maquinaria utilizada.

Já a fabricação do artesanato é realizada embaixo de uma mangueira nos teares cedidos pelo

SEBRAE.

Para eles terem uma retirada, eles têm que produzir mais, como não tem os

equipamentos, que são simples: liquidificador, fritadeira, em vez de caldeira

imensa, que se tem que contratar engenheiro mecânico e pagar de 8 a 10

salários mínimos por mês só pra ele assinar, nó eliminamos tudo isso aí. Eles

não vão montar uma mega indústria tipo Sadia e Perdigão, que todo mundo

fica escravo, dependente total (Felinto).

A Associação não possui regras definidas, mas todos sabem os seus deveres e direitos

para que sejam considerados iguais no processo de produção e desfrutem equitativamente dos

frutos excedentes40

do trabalho, sem perder a liberdade individual. Os valores e as

concepções, que eles já têm intrínsecos, fazem com que o processo aconteça naturalmente.

É o regime comunitário, no qual repousa a produção, que impede que o

trabalho do indivíduo seja privado e o seu produto privado, e que, pelo

contrário, faz diretamente do trabalho individual a atividade de um membro

do organismo social (MARX, 2003, p.19).

Além disso, os trabalhadores da Associação não possuem uma função definida no

processo de produção. Conforme chegam à unidade de produção, eles já se organizam e

começam a produzir. Geralmente, realizam a atividade que mais gostam ou tem mais

habilidade, e sempre ajudando uns aos outros. É o aprendizado pleno da solidariedade.

40

Optamos por escrever fruto excedente do trabalho porque o produto integral do trabalho não pode ser dividido,

já que qualquer tipo de produção gera despesas e precisa de um fundo de reserva. Retirado esses encargos, o que

resta é que se pode dividir equitativamente.

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Nóis trabalha tudo um ajudando o outro. Aqui não é assim cada um pega seu

setor. Vê que aquele não tá conseguindo vai ajudá ele, assim que funciona

(Welson).

Por mais que esteja disposta uma Associação, advertimos que podem existir grupos

menores de produção, desde que tenham um objetivo em comum, pois

[...] são iniciativas que não se limitam a um só tipo de atividade, mas que

tendem a ser integrais, no sentido de que combinam atividades econômicas,

sociais, educativas, de desenvolvimento pessoal e grupal, de solidariedade e,

freqüentemente, também de ação política e pastoral; em outras palavras,

buscam satisfazer uma ampla gama de necessidades e aspirações humanas

(RAZETO, 2005, p. 48).

Mesmo sem ter conhecimento do que Razeto (2005) nos informou acima, eles

resolveram formar pequenos grupos para produzirem o que mais gostam, mas o saber é

compartilhado entre eles. Mesmo se resolverem mudar de atividade em determinado dia, não

tem problemas para o processo de produção e para as relações entre eles.

Por isso, as experiências do cotidiano com a produção de novas mercadorias e com a

autogestão do processo de trabalho os desafiam a criarem estratégias que contemplem os

princípios em que acreditam para beneficiar a todos na Comunidade: solidariedade,

cooperação, divisão dos frutos do trabalho, decisões coletivas e democráticas, entre outros.

Ainda que associado, o trabalhador tem a liberdade de realizar outra atividade paralela

como pudemos observar na fotografia (p.120) em que Welson vende a banana in natura na

beira da estrada. Ademais, a própria Andréia e seu marido vendem bebidas em sua casa. Eles

possuem a ajuda dos filhos mais velhos na venda, enquanto estão na unidade de produção.

Porém, Bottomore nos adverte que

[...] a liberdade, em seu sentido mais universal, depende de um complexo de

instituições sociais, o qual constitui um tipo particular de ordem social. Os

seres humanos não “nascem livres” nascem dentro de uma rede preexistente

de relacionamentos sociais, como súditos de um império ou membros de

uma tribo ou nação, de uma casta ou classe, de um gênero, de uma

comunidade religiosa; e os limites de sua liberdade são condicionados por

essas circunstâncias (2001, p. 424).

Dessa forma, essa liberdade permite uma forma de auto-realização e autogestão, mas

ao mesmo tempo restringe a liberdade dos outros que continuam produzindo da mesma forma,

para manter a unidade de produção funcionando. Então, entendemos que os associados não

restringem que o trabalhador busque outra forma de prover suas necessidades materiais, com

o interesse que ele esteja, posteriormente, empenhado na produção de derivados de banana.

Seria materializar a economia da dádiva de Mauss (2003).

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Sobre esta, lembramos a sua discussão antropológica em Ensaio sobre a dádiva (2003),

em que o autor frisa a relação dar – receber – retribuir como uma forma de manter laços

sociais e políticos em diversas sociedades. Ele nos diz que a pessoa, ao dar algo, doa também

uma parte de si e espera que essa atitude seja retribuída – é um ato de espontaneidade, mas

também de obrigação.

De todos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas

sociais em movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços,

profundo mais isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente

livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações

(MAUSS, 2003, p. 187-188).

Diante deste fato, inferimos que o trabalhador associado não precisa sacrificar seus

interesses/necessidades individuais em prol da coletividade, ao contrário, eles podem se

complementar, diferente do capitalismo que faz com que sejam antagônicos. E, Andréia,

justifica que

[...] sempre no começo as pessoas não acredita, acha que não vai dar certo

porque aqui já tentaram varias outras coisas que parou, não deu em nada, aí

as pessoas já ficam meio desacreditadas. Ate esse grupo que nos estamos

hoje, se não fosse uma persistência nossa, nos tínhamos parado também,

porque a gente começou com um grupo que tinha mais pessoas, mais

famílias envolvidas, mas como aqui no começo a gente produzia e não

vendia, levava o produto e o produto voltava, aí as pessoas largaram de mão,

foram desanimando. Até poucos dias atrás muitos não acreditavam, só agora

que viram o prédio construído que já mudou um pouco mais a visão das

pessoas. Precisa acontecer alguma coisa pras pessoas acreditar (Andréia).

A descrença de alguns trabalhadores é uma das dificuldades, declarada por Andréia,

que a Associação enfrenta. Por enquanto, eles não estão tendo retorno para os trabalhadores e,

como dissemos anteriormente, o fruto do trabalho é destinado para o pagamento de despesas e

a compra de maquinário. Ela nos disse que se todos estivessem imbuídos, desde o princípio,

pelo mesmo sonho e objetivo, eles já tinham avançado muito mais. Mesmo assim, eles

esperam que todos da Comunidade trabalhem lá.

Se a Comunidade toda ajudasse desde aquela época, a gente já tava bem

mais avançado, mas aqui o trabalho foi de poucos, mas a gente vai tentando.

Agora com esse projeto da agroindústria teve bastantes encontros, reuniões

(Andréia).

Mesmo não participando diretamente da produção na unidade de produção, esses

trabalhadores continuam ajudando no que são solicitados ou, quando tem tempo livre, o fazem

espontaneamente.

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Nesse sentido, inferimos que a solidariedade e a liberdade presentes entre esses

trabalhadores sejam as condições primordiais que fazem com que a produção associada da

vida material e imaterial, resista às dificuldades/obstáculos que surgem.

O bem viver não se refere apenas à conquista de bens materiais, mas a todas

as necessidades da vida, aos bens imateriais e espirituais [...] no ambiente

onde vivemos e trabalhamos, implica manter relações interpessoais com

ênfase na ética, no respeito, no companheirismo (GADOTTI, 2009, p. 117).

Marx (1982, p.374) salientou também que a cooperação é “a forma de trabalho em que

muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em

processos de produção diferentes, mas conexos”. Assim, é possível que esses trabalhadores,

mesmo separados em pequenos núcleos ou afastados temporariamente, tenham consciência de

que a terra é comum e que precisam se ajudar para dar continuidade ao que seus ancestrais já

idealizavam para a Comunidade.

Para começarem a produzir na Agroindustria, os trabalhadores associados

implementaram uma estratégia para fazer funcionar a unidade de produção. Como nos conta

Andréia:

Nós compramos fritadeira, seladora, mesa de inox, lixeira. Gastamos R$

4.000,00. A associação teve que compra tudo, algumas coisas básicas pra

gente entrar aqui que a vigilância exigiu.

Além da compra dos equipamentos, passaram a pagar pessoas que possuem máquinas

apropriadas para prepararem a terra rapidamente para a plantação e também começaram a

comprar bananas in natura de comunidades vizinhas, porque as suas plantações não estavam

sendo suficientes para dar conta da produção.

A máquina é particular mesmo, nós que paga as hora (Catarino).

Ah, da região todo mundo que tiver a gente compra, a gente dá preferência

pra região aqui né, primeiro pra Comunidade, depois pra região, mas agora

como na Comunidade tem pouca, quase não tem, não tá tendo ai, a gente

compra de fora. Nesse final de ano nos compramos dois caminhão que veio

bem de longe, do Pará... se for trabalhar direto, consome muita banana, aí

não dá tempo... na região tem muitas pessoas que tá interessado em fornecer

direto, a gente tá segurando né, a gente falou não vamos aguardar, quando

tiver funcionando, tiver tudo ok né, pra gente pode fazer compromisso

(Andréia).

Os trabalhadores notaram a diferença na produção das mercadorias com a utilização

dos equipamentos industriais.

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Nóis não sabia fazer a farinha de banana, aí quem deu essa dica foi Felinto

né. Quando ele começou a vim aqui né, falou: vocês faz um teste né, corta,

coloca numa assadeira, coloca pra secar, ai fizemos, aí foi crescendo, foi

fazendo grande quantidade. Na época a gente socava no pilão né, a gente não

tinha triturador, fica até mais bonito, só que aí dá mais trabalho, só canseira e

não rendia nada, porque tipo assim se fosse pra gente socar um desse aqui no

pilão, acho que eu ia quase umas três horas de relógio e no triturador vai uns

dez minutos (Andréia).

Como estão produzindo uma maior quantidade de produtos, precisam saber o seu

prazo de validade e para isso eles criaram uma alternativa:

Uma coisa que a gente faz é teste de prateleira, a gente vai deixando e vê

quanto que agüenta pra ver a validade (Felinto).

Já havíamos dito que, ultimamente, o fruto excedente da produção é utilizado para

pagar as despesas e a compra dos equipamentos, por isso eles não realizaram ainda prestações

de conta com os trabalhadores desde que passaram a produzir na unidade de produção.

Não fizemos nenhuma prestação de contas, nunca assim trabalhou, não sei

como é, se isso só tem que fazer quando trabalha assim todo mundo em

grupo, que gera dinheiro né...é só o tesoureiro e o presidente que teve gasto,

aí ele vai prestar conta?, apresentar o que ele gastou pros associados?, não

vai valer de nada porque os associados não vai né...num paga, não tem taxa

ainda né, o pessoal, ninguém nunca pagou, não paga nenhum centavo, então

todas as despesas da associação é por conta do presidente e tesoureiro. Agora

não tem como entra muita gente, porque às vezes acaba não tendo o que

fazer e as pessoas ficam muito né por causa do dinheiro né, as vezes não é

um dinheiro rápido, num tem um resultado financeiro assim rápido de

imediato né, então a pessoa que tá precisando né a gente não tem como

garantir né, falar: não, eu vou te pagar, vai sair...depois a pessoa acaba se

decepcionando né, quando chega o final do mês e não deu aquele que ele

pensava, que ele esperava, muitos não tá preparado pra isso. Assim, a gente

tá dando um tempo, esperando a coisa tiver mais encaminhado, tiver mais

embalado a coisa da produção. A gente já sabe, já entende já trabalhou tudo

esse tempo, a gente tá amadurecido pra essa questão né, e muitas pessoas

não tão ainda e as pessoas quer salário, carteira assinada, chegou o mês tipo

né quer ganhar seu salário e as vezes a gente sabe que agora não tem

condições de pagar. a despesa que temos é a compra de banana, compra de

gordura, compra de margarina, de embalagem e energia (Andréia).

Antes de comprarem os equipamentos, o fruto excedente do trabalho era repartido

equitativamente entre os trabalhadores e o tempo dedicado ao trabalho ficava sob a

responsabilidade do trabalhador.

Eles são bom pra pagar né, pago durante o tempo que eu trabaiei pagaram

direitinho né, pra mim foi bom... nóis fazia os produtos levava lá né, ai eles é

que vendia né e passava o pagamento pra nóis (Maria Albertina).

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Sem que esses trabalhadores associados saibam, a não apropriação do fruto excedente

do trabalho do outro e a comunhão dos meios de produção configura o que Marx (1875, p.17-

18) enunciou: “a libertação do trabalho exige que os instrumentos de trabalho se elevem a

patrimônio comum da sociedade e que o trabalho colectivo seja regulamentado pela

comunidade, com repartição equitativa do produto”.

No entanto, Andréia nos explicou que eles idealizam trabalhar todos os dias para pagar

as despesas com equipamentos e alimentos utilizados na produção e poder continuar

dividindo o fruto excedente do trabalho entre eles. No entanto, mesmo com esse pensamento,

eles se permitem ficar sem trabalhar em dias de festividades e, conscientemente, sabem que a

produtividade cai, mas são novas relações sociais de produção, frutos da práxis social. Deixar

de trabalhar por conta de algo que envolve toda a Comunidade não torna a vida menos feliz e

indigna, pelo contrário. Dessa forma, “trabalho e ócio são possíveis de conviver na medida em

que a lógica da produção é a satisfação das necessidades de subsistência” (TIRIBA, 2006,

p.78). Assim, continuar a manter uma tradição popular e tradicional é manter a própria

existência da Comunidade.

Quando tiver essas coisas ajeitadas vai ser uma coisa assim né: a meta nossa

de trabalhar é todos os dias de segunda a sexta né, pra gente ter um bom

ganho, a gente tem que produzir pelo menos 1000 unidades desse diária né,

pra tirar as despesas e ter lucro pra dividir pra todo mundo, nós temos

condições pra fazer isso, mas já com os equipamentos né (Andréia).

Eles esperam que essa situação se resolva logo, pois sabem da força e importância que

um grupo numeroso tem para conseguir bem-feitorias, para fazer reivindicações bem como

para ampliar a produção.

Tem quase dois anos que eles (Eletronorte) estão para mandar esses

equipamentos e num mandam. Tem recurso? Tem, mas não manda, não

despacha, porque lá em Brasília é um jogo de força. Aí troca ministro, troca

todo o escalão, então, fica tudo parado (Felinto).

A associação não tem como regra o cumprimento de um tempo de trabalho pré-

definido, como a disciplina do trabalho formal prescreve. O trabalhador/trabalhadora de

Capão Verde tem liberdade para tomar parte ou não do processo de produção em determinado

dia, isto é, a disciplina é “voluntária e autônoma” (TIRIBA, 2006, p. 75) e permite o “direito à

preguiça” (IDEM). Contudo, para ser justa e poder dividir equitativamente os frutos

excedentes do trabalho, Andréia precisa “controlar”/estabelecer a participação dos

trabalhadores. Para isto, ela marca a participação em uma caderneta:

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A gente vai fazer por diária, porque chegou o mês quem tem tantos dias ele

vai ganhar pelos dias trabalhados. A gente tem mais ou menos o controle do

dia que trabalha, o dia todo, que trabalha só meio dia, o dia que é só

pouquinhas horas. Aí é hora, hora trabalhada, são oito horas, quatro horas ou

às vezes acaba não vindo, porque quando tem muito serviço não dá tempo,

as vezes a gente só almoça e volta pra cá, as vezes vai até as seis, até as sete

se tiver muita coisa pra fazer. Aqui não tem patrão e nem funcionário, então,

se tiver pouco serviço termina cedo. Mas ganha por produção também,

porque as vezes, que nem assim, esse mês aqui a gente produziu um tanto,

“um X”, mas não vendeu tudo, ai então o dinheiro vai cai um pouco,aí a

gente tira o das despesas, dai calcula e divide aquilo que tem no caixa.

Inclusive hoje a gente tem uma reunião a noite né, pra gente fazer um

balanço do quê que produziu, o quê que gastou, ai tem anotado aqui a

produção diária (Andréia).

A distribuição das mercadorias produzidas é realizada pelo seu marido Lourenço ou

por seu irmão Catarino. Eles entregam em lanchonetes, mercadinhos, bares da redondeza até

que tenha autorização para venderem em espaços maiores.

A gente já tem alguns pontos que a gente já entrega, mas, assim, pouco, só

pra não deixar de produzir mesmo, porque se a gente tivesse parado de

produzir e falado: ‘vamos esperar sair a fábrica’, talvez a gente tava mais

atrás. Prá sair isso aqui deu o que fazer, tivemos que suar pra falar que era

isso que a gente queria, que a gente queria trabalhar, que a gente ia colocar

em funcionamento, que a gente ia colocar em prática né. A gente mostrou

isso trabalhando, divulgando os produto. Foi uma forma da gente provar prá

eles (Eletronorte) que a gente tinha condições, capacidade e vontade de fazer

acontecer esse projeto. A gente entrega 100 (pacotes de bananas chips) toda

semana e não dá, passa muita gente e compra, aí lá eles vendem a R$ 1, 50.

cada bar, boteco assim eles pegam uns 50 (banana chips) (Andréia).

Além de produzirem, eles participam de feiras, para divulgarem os seus produtos e se

atualizarem. Seu Felinto discorre sobre a mudança que ocorreu na Comunidade e entre os

trabalhadores:

A Andréia e a Ieiê não falava com você olhando assim de um olho pro outro.

Hoje em dia, a Andréia conversa, discute e rediscute. Eu provoco discussão

mesmo, sabe. Já foram em vários encontros nacionais e internacionais. Nós

estamos incentivando os meninos, os jovens a assumir o negócio. Até o filho

da Andréia já atende o telefone, já sabe conversar, sabe discutir.

A insistência em manter a unidade de produção funcionando fez com que as pessoas já

reconheçam o produto do trabalho associado:

Inclusive até saiu uma matéria no Globo Rural e teve um senhor lá da Bahia

que ligou aqui né e ficou muito interessado, ele disse que vai fazer lá a

farinha de banana (Andréia).

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Como a experiência é dinâmica, eles estão pretendendo criar novas mercadorias

aliadas à questão ambiental:

Nós queremos fazer cumbaru, a barrinha de cereais, farinha de bocaiúva,

mandioca chip, rapadurinha, bananada sem adição de açúcar, eles tem um

biscoitinho de milho que só fazem em época de festas. Então, nós vamos

fazer alimentos prá vender prá merenda escolar, tá entendendo? Nós vamos

provar que não precisa usar trator, adubo, num precisa desmatar, nem

veneno, nada disso, nós vamos espécies que dá certo aqui como cumbaru,

jatobá, bucha... ir relacionando o que eles conhecem da área de alimentos e

plantas medicinais, depois sair um livreto de raízes e plantas medicinais. Nós

temos uma caixinha de surpresa, quando eu viajo e vejo produtos que nós

podemos fazer aqui então eu trago como exemplo (Felinto).

Nesse sentido, Tiriba (2002, p. 168) afirma que “a todo o momento, a todo instante, os

homens e as mulheres estão vivendo intensas relações econômicas, tanto na sua casinha de

brinquedo, como nas demais casinhas que se localizam no interior da casa comum, chamada

de Planeta Terra”, no qual os saberes da experiência são vividos e revividos/revisitados.

Além de criar novos produtos, os trabalhadores associados de Capão Verde pretendem

se unir com outros trabalhadores associados e criar uma cooperativa para facilitar as questões

burocráticas de comercialização dos produtos.

Nós estamos amadurecendo a idéia de uma cooperativa para comercializar a

produção, eles podem tirar nota em nome individual e sem pagar imposto

por isso é importante continuar artesanal, coletivo porque se industrializa

você tem que pagar imposto (Felinto).

Não temos como afirmar se a constituição da cooperativa fará com que mantenham os

princípios que movem a reprodução ampliada da vida, na Comunidade Capão Verde, ou se

renderão ao capital.

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41

41

Pinturas de autoria de Nilson Pimenta -pintor mato-grossense-, cuja sensibilidade consegue captar a produção

da existência humana e sua relação com a natureza. (Imagens dos quadros da autora)

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CAPÍTULO 4 - EDUCAÇÃO POPULAR? EDUCAÇÃO QUILOMBOLA?

QUAL A EDUCAÇÃO IDEAL PARA OS TRABALHADORES DE CAPÃO VERDE?

___________________________________________________________

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria,

aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.

Guimarães Rosa – Grande Sertão Veredas.

Sentimos que o autor Guimarães Rosa, neste pequeno trecho, quer nos mostrar que a

vida é cheia de contradições, desafios e inquietações e, já próximos ao final desta dissertação,

concluímos que temos mais perguntas que respostas. Contudo, não podemos esmorecer,

temos de tentar compreender a realidade que nos circunda, ousar responder às questões que

dela decorrem ou, pelo menos, apontar alguns caminhos.

Diante dessa tentativa, iniciamos este capítulo afirmando que precisamos ter

conhecimento profundo da realidade em que vivemos. E como possuir tal conhecimento?

Como formar um trabalhador de novo tipo?

A primeira resposta que se pensa é a escola, mas qual o conteúdo que nos possibilita

realizar a leitura de tal realidade? Qual o tipo de educação, se, sabemos, que a política

educacional é determinada, em grande medida, pelo Banco Mundial? Como nos proferiu

Marcio Pochmann em uma palestra42

realizada na UFMT: “os interesses dos de baixo não se

tornam políticas públicas”.

Desde a Constituição de 1988, a escola passou a ser direito de todos, mas ela não

atende a todos e, por isso, temos números exorbitantes de alunos fora dela. Também sabemos

que a educação não atende a todos com a mesma qualidade.

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será

promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno

desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho. (Art. 205) [...] O ensino será ministrado com

base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e

permanência na escola (Art. 206). (MEC, 1988).

Os trabalhadores de Capão Verde expressam que a educação pública não considera os

seus problemas, realidades, utopias e reivindicam uma educação destinada às crianças, jovens

42

Marcio Pochmann realizou, no dia 28 de setembro de 2011, uma palestra intitulada Desafios de um Projeto

Nacional de Desenvolvimento, no I Seminário de Desenvolvimento Social, Político e Econômico de Mato

Grosso, organizado pelo Núcleo de Estudos Marxistas da UFMT (NUEM).

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e adultos trabalhadores e para os quilombolas. Esta é uma solicitação coerente para quem vive

em uma sociedade cindida em classes e com interesses tão antagônicos.

Segundo Freire (1996), essa tomada de consciência depende de uma organização

autônoma e de formação constante, que podem acontecer, para além da sala de aula, como

vimos em Capão Verde: nas rodas de conversa, nas assembléias/reuniões, na produção

coletiva como o muxirum, na transmissão de saberes relacionados aos ofícios dos pais, na

relação homem-natureza-preservação e até durante a preparação das festas. São os saberes da

experiência com o trabalho e com a vida, que acontecem o tempo todo e em diversos espaços.

Esses trabalhadores e trabalhadoras valorizam os saberes transmitidos pelos mais

idosos, por isso, eles são tão respeitados e considerados na Comunidade, mas desde que a

sociedade capitalista difundiu ser a escola o principal instrumento transmissor de

conhecimento, da disciplina do trabalho e de alguns valores, os trabalhadores também a

desejaram para eles.

Todavia, a classe dominante não difunde que a escola reproduz e legitima seus

interesses de classe. A escola

[...] tornou-se uma peça do processo de acumulação de capital e de

estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto

sistema de classes. Em lugar de instrumento de emancipação humana, agora

é mecanismo de perpetuação e reprodução desse sistema (SADER, 2005, p.

15).

Dessa maneira, pontuaremos a luta desses trabalhadores por uma educação formal

na Comunidade.

A primeira estrutura de uma escola foi improvisada pelos próprios trabalhadores,

porque as demais eram muito distantes de Capão Verde e, para freqüentá-las, os alunos

passavam por muitas dificuldades: estrada ruim, calor, chuva, frio e a própria distância. Dona

Maria Rosa nos conta que seus filhos estudavam na Comunidade do Chumbo: “Era sete que ia

todo dia de bicicleta, tinha dia chuva em cima e eu ficava apavorado, mas fazer o quê?”.

O colégio nóis fizemos de barrote. A mulherada saía pro cerrado cortando

pau. Nóis fizemo porque não tinha nada, onde as criança estuda aí, nóis

mesmo fez um barracão (Dona Maria Albertina).

Estudei aqui mesmo numa escolinha de pau, depois que veio essa escola. O

pessoal daqui que dava aula, teve um professor meu que era de outra

comunidade vizinha e que vinha aqui pra dar aula, depois ele saiu e entrou

outro professor que era da cidade, depois saiu tamem e ai voltou outra

professora que era daqui da Comunidade memo -Dona Madalena-

(Lourenço).

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A preocupação com os conhecimentos básicos fornecidos na escola ocorreu desde a

fixação da Comunidade e soubemos que Seu Vítor procurou ensinar os filhos, que não

freqüentaram a escola, a assinar pelo menos o nome. Sua neta, Dona Maria Rosa, nos faz o

seguinte relato:

Um dia ele chamou meu pai, chamou tudo os fio pra reuni e disse que se

tivesse um pouco de estudo, uma sabedoria, nóis tinha tudo. Papai mesmo

estudou na escolinha do mato, aí ele passava no papel prá mim o meu nome

e eu assino. Eu comecei a estudar quando eu tava no Buriti, estudei um ano,

aí mamãe morreu e ficou as coisa tudo prá mim, debandei. Eu trabaiando não

tinha tempo de estudá. Quando dava tempo, cada um já tinha sua casa,

panela no fogo, oiá as criança. Ah, quer saber? Vou largar, aborreci, sei

assiná só o nome.

Não diferente de Dona Maria Rosa, muitos outros trabalhadores tinham a questão

material como prioridade, ao invés dos estudos. Gramsci (1991, p. 9) nos lembra que “a

escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis”, mas como garantir ao

trabalhador o acesso e a sua permanência na escola frente a necessidade de trabalhar para

sobreviver? E mais, a escola que temos permite a formação de um intelectual de novo tipo?

Seu Vítor até procurou trazer a educação formal para a Comunidade, pagando um

professor particular, mas essa experiência não durou muito tempo. Nesse período, a educação

já era vista como um meio de ascensão social, mas como Seu Vitor pregava que

permanecessem em Capão Verde, concluímos que seu interesse era realmente pela aquisição e

socialização de conhecimentos entre seus parentes.

Outra situação que ilustra a necessidade de ter os conhecimentos básicos nos foi

descrita por Seu Justino:

Tinha um tio meu que sabia e aí foi passando. Eu tinha vergonha porque a

gente tava começando a namorá e recebia cartinha, aí precisava dá outra. Fui

lutando e aprendi a assiná o nome, já tava leno até bem, mas ai fui

relaxando.

Depois de muita luta, a Comunidade conseguiu fazer com que a Prefeitura de

Poconé instalasse uma escola de 1º a 4º ano em Capão Verde, para atender as crianças das

redondezas. Mesmo assim, as crianças cresceram e, já jovens, a maioria evadiu de Capão

Verde, em busca de continuação dos estudos e trabalho formal.

Muitas crianças foram um pouco prá cidade prá aprende as coisa novo

porque prá trabaiá lá precisa de estudo, tem que mexer no computador e por

aqui não tem quem ensina. Eles foram mesmo prá desapurar. Eu sou

analfabeta, marido analfabeto, mas as criança tem o estudo prá viver (Dona

Maria Albertina).

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Fotografias 51, 52 e 53 – Escola (Imagens da autora)

Dona Maria Albertina é neta de Seu Vítor, mas podemos notar em sua fala que há uma

aceitação na evasão de Capão Verde para estudar e/ou trabalhar. Acreditamos que essa atitude

ocorre para justificar a ida de todos os seus filhos para Várzea Grande e Cuiabá. Ela nos

relatou que eles não pretendem retornar para Capão Verde. Até nos expos que, com sua morte

e de seu marido, vai deixar a casa em que reside para qualquer pessoa que tiver interesse em

morar nela. Já seu marido, Seu Justino, disse que nunca precisou de estudo prá viver e que,

por esse motivo, não pretende estudar no EJA.

Alguma coisa eu entendo, agora eu não quero mais, já vivi demais sem esse

e as idéia fica tudo atrapaiada (Justino).

A escola é multisseriada e atende, atualmente, poucas crianças nos períodos matutino e

vespertino. Eles possuem como recursos didáticos: uma biblioteca com livros variados, três

computadores, uma televisão, um aparelho de DVD e cursos em DVD do Telecurso 2000.

Mas nem sempre foi assim, como podemos ver nas fotografias abaixo:

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Fotografias 54 e 55 – Imagens da sala reservada para a biblioteca e para a sala de

informática. (Imagens da autora)

Na primeira imagem acima, podemos ver que os alimentos utilizados na merenda

escolar ficavam expostos e colocados ao lado da estante com os livros. Já na segunda, a sala

de informática possui apenas um computador por ser instalado e livros, que Felinto havia

conseguido com a Fundação Bradesco, e que ainda se encontravam encaixotados.

Hoje em dia, através das visitas recentes, constatamos que o espaço escolar está

organizado. Agora, livros e DVDs estão mais acessíveis, possuem um espaço para o estoque

dos alimentos e além de conseguirem mais computadores, estes se encontram instalados e

com internet a rádio.

Fotografias 56 e 57 – Livros (Imagens da autora)

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Fotografias 58 e 59 (Imagens da autora)

Apesar dessas mudanças, que facilitam o processo de ensino-aprendizagem, eles

ponderam que não possuem conhecimento em informática e apontaram a vontade de ter um

respaldo da UFMT e de outras instituições públicas, com projetos de extensão que atendessem

não só esse mote, como em relação à saúde, à questão agrícola, entre outras.

Seu Felinto fornece sua opinião a respeito do assunto:

Nós queríamos montar uma escola de agroecologia, fazer intercâmbio, com

apoio da Universidade, do IFMT pra extensão. Aqui é muito fraco de

extensão e eu defendo a opinião que se eu estudei em colégio público e

recebo até bolsa de estudo, tenho a obrigação moral de retornar isso pra

população. Um ano, dois, num sei, contribuindo lá e depois você vai prá

onde quiser.

Elves, um jovem trabalhador de Capão Verde, que conseguiu terminar o Ensino

Médio, substitui, às vezes, a professora Luzinalda quando esta precisa faltar. Ele nos conta

sobre o funcionamento da escola e como é possível dar continuidade aos estudos:

Aqui é desde o prézinho até a 4ª série. Na 4ª série eles já trabalham com

livro e o restante passa no quadro, divide o quadro. Depois que termina a 4ª

serie, eles vão pro Cavalo, no município de Livramento, já tem ônibus que

passa aqui. Lá é de 5ª ao 3º ano e o Ensino Médio era à noite, como a

maioria não tinha como sair daqui, ficou prá de dia. Aí teve que o 2º e o 3º

ano ficar numa sala só. Eu não pretendo sair daqui, quero fazer curso pelo

computador.

Em 2011, os trabalhadores conseguiram trazer a Educação de Jovens e Adultos (EJA)

43 para a Comunidade. Entrevistamos uma das professoras da EJA, Edinalva, que dá aula de

Geografia e Artes no período noturno, e ela nos contou que é a primeira escola dessa

43

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil tem como objetivo a alfabetização e a elevação de

escolaridade do trabalhador, mas “estão fundadas em estratégias de construção e manutenção da hegemonia que

perpetuam, sob diferentes roupagens, as relações fortemente assimétricas de poder, bem como os processos de

concentração de riqueza e renda que marcam o País”. (RUMMERT, 2008, p. 176).

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modalidade em Capão Verde. Por esse motivo, somente os professores possuem livros

didáticos, mas já foram escolhidos os do próximo ano e que serão disponibilizados também

aos alunos.

As expectativas deles é grande, até, às vezes, a idade mais avançada ainda

pensa: nossa, eu sei escrever o meu nome, sei contar uma historinha pro meu

netinho (Edinalva).

Além dela, a EJA conta com a professora Cristiane, que dá aulas de Português, com o

professor Francisco, que ministra Matemática e Educação Física, com a professora Roseane

que trabalha Ciências e História.

Fotografias 60, 61 e 62 – EJA (Imagens da autora)

Como é a primeira vez que leciona para trabalhadores remanescentes de quilombo,

Edinalva nos contou que procura articular e interligar o conteúdo tratado, com a realidade

deles. Além disso, procura atentá-los sobre direitos e deveres, bem como, problematizar

questões relacionadas à Agroindústria, a fim de valorizá-los, auxiliá-los e incentivá-los:

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A gente tem essa preocupação, de tá trazendo conteúdos, informações dentro

da realidade dos quilombolas porque é o primeiro ano que a gente tá tendo

essa clientela. Inclusive, a gente já pediu cursos porque eles não sabem da

origem, dos direitos, qual que é o dever com a sociedade, como que

progrediu, de acordo também com os conteúdos. A gente tenta trazer prá sala

de aula e tá orientando, tá ajudando, dar palavras de incentivo, através de

projetos que nós fizemos: falar de higiene, da coleta de lixo, da epidemia de

dengue e até na minha aula de Arte eu ensinei pra eles uma cesta de picolé,

de materiais recicláveis pra fazer embalagem e vender por um preço menor.

No cotidiano da produção associada da vida material, os trabalhadores vêem a

necessidade de aprender cálculos, redigir documentos e falar corretamente quando se dirigem

aos órgãos públicos e conversam com pessoas que estão acostumadas com uma linguagem

mais formal. Por isso, para eles, a conexão do trabalho manual com o intelectual é de extrema

importância. É um diálogo entre o saber popular da experiência com o saber científico.

Vale dizer que a autogestão realizada por esses trabalhadores viabiliza tanto o

desenvolvimento da produção associada, como é em si um processo educativo. Além de

proporcionar situações desafiadoras em que precisam, coletivamente, resolvê-las; uma

cultura do trabalho vai sendo construída cotidianamente.

Por trabalharem durante o dia na autogestão do processo de produção e a EJA ser

ofertada somente à noite, a professora Edinalva nos revela que é “normal” a desistência de

alunos. Eles reclamam de cansaço, problemas com a visão, ter de cuidar da família e do lar,

entre outras queixas. A professora salienta que é preciso esforço, força de vontade e incentivo

para que não desanimarem, mas os que ainda permanecem na escola revelam:

Faz tempo eu tava querendo estudar, mas não achava oportunidade porque

vinha sempre trabalhando, agora com a escola aí no nariz quero ver não

estudar. Eu vi que tem que estudar porque as coisas a cada dia muda e a

gente acha que sabe, mas tem muita coisa prá aprender ainda. Os professores

vem da outra comunidade, vem até aqui, e é um grande esforço que eles tão

fazeno e a gente tamem precisa fazer um pouco de esforço. Às vezes, a

pessoal tem oportunidade e não sabe aproveitar (Lourenço).

Eu estudei aqui (Capão Verde), aí depois a quinta série eu fui pra Várzea

Grande. Aí parei de estudar, agora que eu retornei tô relembrando de novo.

Eu acho que vai mudar muita coisa né, eu vou ter mais conhecimento, vou

aprender mais coisas. Tem coisas que a gente não sabe mesmo, mas tem que

caça jeito de aprender (Eva).

Diante do que nos foi relatado pela professora, resolvemos conversar com alguns

alunos que freqüentam a EJA e perguntamos sobre a trajetória escolar:

Parei tem uns oito, nove anos, eu casei e parei, já tinha esquecido bastante

coisa, agora estudando já to lembrando de novo e melhora em tudo né. Tem

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vez que a gente escreve palavra errada, faz conta. Eu até não sou ruim na

conta porque a gente trabalhou com venda, a gente fica meio treinado na

cabeça, mas a escola é bão demais (Lourenço).

Não podemos precisar se a empolgação de Lourenço advém da ligação com a

Associação, para agregar saberes ao processo de produção, ou se era uma vontade que ele já

tinha. Além dele, Catarino também demonstrou a necessidade de estudar, em função da

inserção na Agroindústria:

Estudei numa escolinha aqui na Passagem de Carro, aí eu iniciei fiz da 1ª a

4ª série lá, aí terminou. Eu parei acho que deve ter uns 16 anos, porque tinha

que ir pra outros lugar pra estudar. Aí surgiu essa oportunidade tão bem

próximo da gente, aí a gente resolveu pegar essa oportunidade. O que mais

motivou também que a gente sentiu a necessidade de a gente tá mais

envolvido na Associação, na parte da industrialização e até mesmo pra gente

pode tá pegano mais prática na administração. Eu acho que apesar das

dificuldades que a gente tem do dia-a-dia, eu espero que muitas coisas ainda

venham através do estudo. A gente espera dar continuidade né, agora quem

sabe até lá já tenha ai o tele-centro ,aí a gente já pode tá fazeno vários cursos

né através da internet, porque prá continuar o Ensino Médio teria só aqui em

Faval e é um pouco complicado pela distância.

Dos cinco alunos da EJA entrevistados, Welson, no seu relato, ainda se aproxima do

discurso capitalista de que a educação é propulsora de um bom emprego.

Eu estudava no Faval, parei três anos por causa do emprego, tava sendo

muito difícil tá estudano e num tê nem condição de comprar calçado, roupa,

tem que tá indo lá (escola) com chinelo, porque sei que sem o estudo a gente

hoje em dia não é nada vai mudar muito minha vida, emprego bão

Mas, ao ser questionado se pretende mudar-se de Capão Verde em busca de emprego,

Welson nos conta que pretende continuar vivendo e trabalhando lá:

Não. Continuar aqui, trabaiano por aqui memo, vendendo banana na beira da

estrada e na Associação. Pretendo continuar até o fim na Associação.

Até este momento, a nossa pretensão foi mostrar como aconteceu a demanda por uma

educação formal em Capão Verde e, fundamentalmente, como está sendo constituída a

educação ofertada aos trabalhadores e trabalhadoras naquele local.

Os trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde já possuem consciência que a

educação ofertada a eles não contempla suas necessidades e inquietudes, mas e os outros

trabalhadores que estão cegos à sua condição na sociedade capitalista?

As instituições formais de educação certamente são uma parte importante do

sistema global de internalização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos

participem ou não – por mais ou menos tempo, mas sempre em um número

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de anos bastante limitado – das instituições formais de educação, eles devem

ser induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos

princípios reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade,

adequados a sua posição na ordem social, e de acordo com as tarefas

reprodutoras que lhes foram atribuídas (MÉSZÁROS, 2005, p. 44).

Costurando este estudo com a pesquisa44

realizada por Caetano (2005) no canteiro de

obras de uma construtora em São Paulo, percebemos outras dificuldades a serem enfrentadas

pelos trabalhadores para freqüentar a escola noturna. Diferentemente dos trabalhadores de

Capão Verde, eles precisam cumprir uma jornada de trabalho determinada pela construtora e

ter disposição para vencer o cansaço e as condições adversas do tempo a que estão

constantemente sujeitos: sol, chuva, vento, entre outras. Mesmo assim, tanto os trabalhadores

de Capão Verde, como os do canteiro de obras, procuram na escola uma sistematização dos

conhecimentos, porque antes não tiveram oportunidade de concretizá-la. Porém, os

trabalhadores do canteiro de obras deixam claro que o mais importante é aprender a ler porque

faz parte da cultura do trabalho deles levar um jornal debaixo braço para o canteiro de obras,

o que contribui para distinguir os que sabem ler dos que não sabem. Já os trabalhadores de

Capão Verde, advogam a importância de aprender a ler, escrever e fazer contas por conta da

autogestão do trabalho que realizam.

Apesar do cansaço, do desânimo, da falta de perspectivas, estes

trabalhadores, muitos com idade acima dos 50 anos, superam-se e procuram

habituar-se ao manuseio de um instrumento que não requer força, mas sim

habilidade. Este instrumento é o lápis. Nas duas horas de escola, a força

física o se faz necessária e quando os observamos sentados tentando

desenhar as primeiras letras, quase que não enxergamos trabalhadores fortes

e calejados, mas sim crianças tentando, errando e, por fim, com o olhar

brilhante, conseguindo escrever alguma palavra. A leitura aparece para os

alunos do projeto como algo que alterou qualitativamente as suas vidas não

só no âmbito do trabalho, mas também no cotidiano [...] Uma grande parte

dos trabalhadores chega à obra para iniciar a jornada de trabalho com um

jornal embaixo do braço e isso, por si só, separa aqueles que sabem ler dos

que são analfabetos. Nos depoimentos, percebe-se que a importância

atribuída à leitura é superior àquela atribuída ao domínio da escrita

(CAETANO, 2005, p. 146-148).

Apesar de a escola atender aos interesses da classe dominante, para esses

trabalhadores ela possui outro sentido. Mais que um instrumento de auxílio para o/no

trabalho, a educação permite que se sintam inseridos no mundo, melhora a autoestima e

contribui para a auto-realização e auto-valorização do trabalhador. Diferentemente da lógica

44

A leitura do livro Educação e trabalho no canteiro de obras – desafios e perspectivas nos mostra a luta de

alguns trabalhadores da construtora, com idades entre 18 a 50 anos, para lidar com o cansaço, jornada de

trabalho, intempéries e ter disposição para estudar através do Projeto Educar para o amanhã.

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capitalista, nestes dois espaços de pesquisa, os trabalhadores não precisam da educação para

uma mobilidade no trabalho que realizam.

Todavia, como dissemos anteriormente, para muitos, a educação assim como o

trabalho não passam de simples mercadorias na sociedade capitalista e, por isso, a classe

dominante veicula que “o problema do desemprego será resolvido com investimento em

educação” (TIRIBA, 2004, p.97). Com isso, muitos trabalhadores que não conseguiram

estudar no tempo correspondente à idade – série para manterem-se no emprego, ou sair do

desemprego, recorrem a cursos noturnos, cursos de fim de semana, cursos oferecidos em

shoppings center, entre outros. Os donos desses cursos e a mídia difundem o falso discurso

de facilitação do acesso à educação, mas na verdade os mais beneficiados são eles.

Transformada em moeda de troca, a educação, nesse quadro, passa a

constituir reclamo comum às forças dominantes e às diferentes frações da

classe trabalhadora, do mesmo modo que se faz recorrentemente presente

nas recomendações dos organismos internacionais de financiamento, os

quais enfatizam a importância de que os países periféricos e semiperiféricos

(ARRIGHI, 1997) dediquem atenção à ampliação do acesso à educação

básica e à elevação da escolaridade da classe trabalhadora (RUMMERT,

2008, p. 180).

Além disso, temos mais um entrave, não só trabalhadores com idade avançada e que

não puderam estudar procuram a EJA. Hoje em dia, temos um número alarmante de jovens

freqüentando essa modalidade de ensino.

Diante da exposição de Rummert (2008), perguntamos: como ter uma educação básica

de qualidade se, como professores, vemos que em um ano letivo do ensino regular,

possivelmente, não é possível darmos conta do que é previsto pelo planejamento? E, para os

alunos da EJA, que cursam quatro anos do Ensino Fundamental regular, em apenas dois anos

letivos?

Pensamos que a concepção de educação no Brasil e as condições para que ela aconteça

precisam ser revistas. A educação fornecida pela EJA é simplificada e fragmentada, dando a

impressão de que realmente querem elevar o nível escolar, somente para o trabalho, o que

dificulta o crescimento intelectual do aluno-trabalhador.

Acreditamos que o trabalhador precisa de uma educação que, universalmente, os

auxilie a redescobrir velhas/novas relações com o e no trabalho. Além disso, é preciso uma

educação que transpasse as necessidades materiais e possibilite a construção do sentido de

viver em sociedade - do fazer e ser no mundo, visando o pleno desenvolvimento das

potencialidades humanas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

______________________________________________________________________

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, desviamo-nos dele.

A cobiça envenenou a alma dos homens, levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar

a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da produção veloz, mas nos

sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz em grande escala,

tem provocado a escassez. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa

inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.

Mais do que máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de inteligência, precisamos de

afeição e doçura! Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido."

(Discurso de Chaplin pronunciado no final do filme O grande ditador)

Esta dissertação procurou versar sobre a produção associada e sobre os saberes

construídos através dessa experiência realizada por trabalhadores e trabalhadoras rurais,

remanescentes de quilombo e ligados por laços de parentesco.

Consideramos que a relevância da pesquisa realizada se materializa na possibilidade

de vislumbrar, através das falas/depoimentos e da própria concretude do objeto, a produção

associada acontecendo, efetivamente, dentro do sistema capitalista e identificar os saberes

intrínsecos a essa experiência.

Na ânsia de apreendermos o significado da produção associada e dos saberes da

experiência, tivemos que buscar subsídios em Marx e em outros autores marxistas,

principalmente, para compreendermos o sentido do trabalho associado.

Marx (1982, 1987, 1998, 2003, 2004, 2007) nos auxiliou na compreensão do trabalho

como categoria ontológica e histórica e com isso, o trabalho enquanto categoria de análise, se

tornou central neste estudo, porque diz respeito à atividade vital do ser humano na produção

da sua existência e no desenvolvimento de determinadas relações sociais. Pelo trabalho, o ser

humano humaniza-se, isto é, torna-se diferente dos demais seres vivos, porque projeta na

mente o que deseja produzir.

Marx, ao analisar o modo de produção capitalista, afirma que no interior do mesmo a

auto-realização do ser humano é dilacerada porque o trabalho passa a depender de uma força

externa motivadora e, não mais, tão somente, da necessidade humana. A partir de então,

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muitos trabalhadores não possuíam mais o domínio do processo produtivo, tornando-se

alienados e explorados. Dessa forma, uma parcela crescente da classe trabalhadora perde a

possibilidade de manter a produção/reprodução da sua vida, porque inexiste a possibilidade de

trabalho como, por exemplo, a partir da diminuição do número de postos de trabalho

motivada pela reestruturação produtiva.

Para compreendermos a nova cultura do trabalho forjada pela burguesia, lançamos

mão de Thompson (1987, 1998, 2001) e Tiriba (2008, 2007, 2006, 2004, 2001), lembrando

que o avanço das forças produtivas levou os trabalhadores a receber salários não condizentes

com o que produziam e pelo tempo que produziam; a disputar com outros trabalhadores um

espaço de mercado de trabalho; a trabalhar sob condições desumanas e a aumentar a mais

valia do capitalista.

Cabe aqui, destacar que a realidade vivenciada pelo trabalhador e a educação ofertada

para o mesmo nos incitou a realizar esta pesquisa, além do desejo por tentar compreender

olhares melancólicos, rostos cansados e que demonstram mais idade do que realmente têm; o

grande número de pessoas mendigando pelas ruas, trabalhadores rabiscando papéis com

contas infindáveis, entre outras situações. Sem esquecermos a utopia de termos uma

sociedade igualitária e mais humana, ou seja, a sociedade dos produtores livremente

associados.

No discurso de Chaplin, supracitado anteriormente, fica claro que as mudanças no

mundo do trabalho promovidas pela classe burguesa, a partir do século XVIII, procuravam

transformar o trabalhador em um mero apêndice da máquina. Os capitalistas, movidos pela

ganância, intensificaram esforços para controlar a atividade laboral e a intelectual dos

trabalhadores e trabalhadoras.

Harvey (1996) e Antunes (2004), ao analisarem a organização do processo de trabalho

capitalista, salientam que os detentores dos meios de produção passaram não só a organizar

cientificamente o processo de trabalho como também, promover/incentivar mudanças no

âmbito da moralidade, dos costumes e das relações sociais. Segundo Gramsci (1991, p. 396),

os novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um

determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter

êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro. Na América, a

racionalização do trabalho e o proibicionismo estão indubitavelmente

ligados: os inquéritos dos industriais sobre a vida intima dos operários, os

serviços de inspeção criados por algumas empresas para controlar a

“moralidade”dos operários são necessidades do novo método de trabalho.

Quem risse destas iniciativas (mesmo falidas) e visse nelas apensa uma

manifestação hipócrita de “puritanismo”, estaria desprezando qualquer

possibilidade de compreender a importância, o significado e o alcance

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objetivo do fenômeno americano, que é também o maior esforço coletivo

realizado ate agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência

do fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem.

A nova cultura do trabalho difundida pela classe dominante fez com que grande parte

dos trabalhadores, ainda hoje, conceba o trabalho assalariado como sendo a única alternativa

capaz de assegurar a existência material e imaterial.

Gramsci (2006, 1991), aprofundando o conceito de trabalho, enquanto principio

educativo, bem como Saviani e Frigotto, nos auxilia a compreender que o conhecimento se dá

também na e pela práxis laboral e não como o discurso neoliberal apregoa ser: somente

através da escola. Além desse discurso, a classe hegemônica afirma que a formação escolar é

a responsável pela inserção no mercado de trabalho.

Não podemos culpabilizar os trabalhadores, porque essa ideologia foi produzida e é

reproduzida com a intenção de adaptá-los à lógica capitalista, que procura responsabilizá-los

por seus fracassos. Em outras palavras, quem não estuda/qualifica tem de se contentar com

trabalho inferior e com salário precário ou, então, lhe resta o desemprego.

Todavia, o trabalho assalariado garante dignidade, prazer e felicidade? Um trabalho no

qual se tem horário para entrar, sair e até para se alimentar? Em que o funcionamento do

organismo e do relógio biológico acaba sendo determinado pelo patrão, que reproduz a lógica

capitalista? Um trabalho no qual se espera um mês inteiro para ter dinheiro e poder comprar

valores de uso? Fazer horas-extras para acrescentar dinheiro ao salário? Em que se vive a

angústia de outro trabalhador ocupar seu lugar? Em que é preciso esperar as folgas ou até se

submeter a descontos no salário, a fim de cuidar da saúde? Perder reuniões/festas da escola

dos filhos? É possível ser feliz assim?

Thompson e Tiriba também nos incitam a perceber que a experiência com o trabalho e

a realidade vivida pelo trabalhador produzem saberes presentes em normas, comportamentos,

discursos, valores, crenças, e podem contribuir para uma cultura do trabalho de novo tipo e

para novas práticas sociais, mas para que isso aconteça precisam pautar-se em princípios que

se diferenciem da lógica capitalista.

Assim, nas leituras que realizamos vimos que, embora na sociedade contemporânea

estejamos submetidos a uma lógica neoliberal, existem trabalhadores que procuram organizar

o processo de trabalho de forma coletiva, igualitária, solidária e sem exploração do trabalho

alheio, almejando tão somente garantir a reprodução ampliada da vida. Esses trabalhadores,

coletivamente, determinam o ritmo e o tempo de trabalho, realizam atividades laborais que

lhes dão prazer e que tem afinidade, tem possibilidade de criar novas mercadorias, socializar

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saberes e até mesmo não comparecer ao trabalho, sem que isto cause danos à produção da sua

existência.

Destacamos que não só a possibilidade de identificar saberes inerentes a uma produção

da existência regulada por tais princípios, mas a própria realidade vivenciada pelo trabalhador

e a educação ofertada para o mesmo, nos motivou a realizar esta pesquisa. Cumpre destacar

que, de alguma maneira, não nos esquecemos da utopia de vivermos em uma sociedade

igualitária e mais humana, em que as pessoas vivam com dignidade e felizes.

Tais características foram observadas em uma comunidade da zona rural de Mato

Grosso, em que os trabalhadores produzem a vida associadamente e onde os meios de

produção são coletivos. Graças aos autores marxistas, com os quais dialogamos, conseguimos

compreender no espaço concreto da pesquisa, a premissa do trabalho como princípio

educativo, em que a relação com o processo de trabalho e com a natureza proporciona a

construção e socialização de saberes sobre o trabalho, sobre os homens, sobre o mundo e,

sobretudo, sobre a vida.

Percebemos durante a realização da pesquisa de campo que esses trabalhadores e

trabalhadoras produzem/reproduzem associadamente a vida, há quase 100 anos, constituindo

uma Comunidade chamada Capão Verde, localizada em Poconé – MT.

Não queremos aqui afirmar que a produção associada seja “o melhor dos mundos do

trabalho” ou que resolva os “infortúnios” dos trabalhadores e, sim, apontar uma possibilidade

de organizar o processo de trabalho, com princípios que se diferenciam da lógica capitalista,

cujo trabalho manual e intelectual caminham juntos e sem fragmentações. Até porque não há

como garantir que todas as experiências em produção associada tenham êxito em se

organizar, conforme esses princípios. Não existe uma receita para isso.

Em Capão Verde, a produção associada da vida gira em torno do saber construído em

relação à terra. A terra permite que todos os parentes vivam e trabalhem juntos em prol da

reprodução ampliada da vida.

Desde o início da constituição da Comunidade, os trabalhadores e trabalhadoras

estabeleceram que a terra seria de uso comum (posse coletiva) e não poderia ser vendida.

Com isso, as futuras gerações poderiam ter garantida a reprodução ampliada da vida.

Acreditamos que um dos motivos para que essa noção tenha resistido ao longo do

tempo seja a consanguinidade (parentesco). Por serem parentes, eles moram próximos uns dos

outros e fazem com que os sentimentos de solidariedade e de respeito prevaleçam sobre os

interesses individuais. Por esse motivo, a intenção de ter a roça do tamanho e no local que

desejassem não provoca conflitos entre eles.

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Além disso, o que reforça esta conclusão é a recusa em admitirem o ingresso de novos

moradores na Comunidade, que não tenham vínculos de parentesco com os que lá residem. A

justificativa para este posicionamento é que moradores não parentes podem incitar idéias

diferentes das que eles têm, por quase um século, o que poderia ocasionar desavenças no

interior da Comunidade.

Coletivamente, esses trabalhadores e trabalhadoras aprenderam como e o porquê

trabalhar e estabeleceram novos modos de pensar a vida e de se relacionar com o outro. Isso

possibilitou a autogestão do processo de trabalho e da vida numa configuração diferente do

que se espera em uma sociedade capitalista, egoísta e excludente. Como ressalta Saviani

(1994, p. 24), “o trabalho educativo é o ato de produzir, em cada indivíduo singular, a

humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Contudo,

a própria experiência com o trabalho, sob a égide capitalista, fizeram com que eles

organizassem e elaborassem práticas de produção pautadas na coletividade, solidariedade,

liberdade, autonomia e a distribuição equitativa do fruto do trabalho excedente. Retomando

Marx (1982), o trabalho transforma a natureza e ele é transformado por ela.

Os saberes da vida cotidiana e os proporcionados pela experiência com a produção

associada da vida foram identificados no Muxirum, na Casa de Amparo, nas festas de santo,

nas atividades compartilhadas pelos pais (lavar, cozinhar, limpar a casa, marcenaria, fazer

doces em calda, remédios à base de ervas e raízes), nas reuniões e rodas de conversa, nas

experiências iniciais de produção de mercadorias, na busca de reconhecimento da

Comunidade como quilombola, na preocupação com o meio ambiente, na criação e

manutenção da Agroindústria.

Salientamos que a apreensão do significado desses saberes só foi possível, graças à

utilização dos pressupostos do materialismo histórico, que permitiu que partíssemos da nossa

consciência abstrata sobre o objeto de estudo e, a partir do contato reflexivo com o concreto

pensado, desenvolvêssemos nossas reflexões a respeito do mesmo.

Em que pesem as dificuldades relatadas por esses trabalhadores e trabalhadoras, tais

como: falta de estrada para a roça, ausência de hospitais próximos, descrença e falta de

autonomia de alguns trabalhadores, burocracias exigidas para realizar festas e poder produzir

na Agroindústria, entre outras; os saberes compartilhados na/pela pesquisa nos mostram que é

possível manter comuns os meios de produção, trabalhar sem explorar a força de trabalho do

outro e, sem ter patrão, realizar a gestão da produção em coletividade e sem determinar

funções, ter ‘direito à preguiça’, trabalhar conforme o gosto e a habilidade pela atividade,

criar regras coletivamente e, apesar do contato com o SEBRAE, que prega o

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empreendedorismo, resistir e manter os princípios e a organização do processo de trabalho da

maneira que acreditam, garantindo-lhes, dessa forma, dignidade e felicidade.

Desse modo, se faz necessário destacar alguns saberes que mais nos sensibilizaram a

compreender as experiências com a produção associada da vida, como produtora de

conhecimento e propulsora da formação humana omnilateral.

Nesse sentido, foi gratificante perceber através da análise dos depoimentos,

principalmente de Andréia, a pretensão que todos vivenciem as mesmas condições de

existência, mesmo que alguns sucumbam ao capital. Isso é demonstrado quando ressaltam que

os benefícios conquistados, através da Associação, são direcionados a todos, mesmo aos não

associados. Ela sabe que muitos trabalhadores desejam ter um retorno financeiro rápido e até

uma carteira assinada e um contrato de trabalho, mas espera que a realidade mostre aos que

foram trabalhar fora da Comunidade que, produzir associadamente e solidariamente,

proporciona que todos sejam dirigentes do processo de trabalho e de si mesmos. Que há a

possibilidade real de projetar, criar, discutir e decidir coletivamente a produção material e

através desta, a produção da existência. Nas palavras de Andréia, “assumir a responsabilidade

de ser dono do próprio trabalho”.

A despeito da presença de algumas expressões características da lógica capitalista em

alguns depoimentos, como por exemplo: salário e capital de giro, entendemos, a partir dos

saberes identificados na experiência com a produção associada, que as mesmas não possuem

o mesmo significado. Além disso, a própria recusa à sedução proporcionada pelo SEBRAE

para que se rendam ao capitalismo e se tornem empreendedores é exemplar.

Por esse motivo, os saberes do trabalho associado permeiam a vida social e

compreendemos o motivo de todos os moradores de Capão Verde reafirmarem que a terra

deve permanecer comum a todos. Além disso, tais saberes são percebidos nos discursos dos

mais jovens que pretendem concluir os estudos, mas permanecer na Comunidade trabalhando

na Agroindústria.

Na reprodução desses saberes, identificamos a importância de Andréia como

intelectual orgânico. Além de aprender a organizar o processo de trabalho, a partir da

concretização do mesmo, ela procura conscientizar os trabalhadores e trabalhadoras sobre

novas concepções de mundo e de trabalho, bem como de suas capacidades e possibilidades.

Precisamos, também, destacar como os saberes da vida cotidiana e os saberes

intrínsecos à experiência com a produção associada são apropriados, reproduzidos e

valorizados por alguns trabalhadores e trabalhadoras de Capão Verde.

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Iniciamos com os saberes de Justino que, apesar de produzir mercadorias que lhe

rendem mais dinheiro, ressalta que o maior prazer proporcionado pelo trabalho é ver as

plantas de seu roçado crescerem. Ele nos mostrou que o trabalho não pode ser motivado por

uma força externa e, sim, pela necessidade humana de realizá-lo, segundo a sua vontade. Por

isso, Justino realçou o mau tempo, a preguiça e as festas como motivos que o fazem deixar de

trabalhar na roça e isso em nada interfere na produção da sua existência e da sua família.

Como esquecer o sorriso incontido de Maria Rosa ao nos contar sobre o Muxirum para

a produção de tapetes e redes, ao mesmo tempo, em que produzia manualmente um fio de

algodão, a partir da flor do algodoeiro. No final da conversa, ela exibe orgulhosamente o fio

produzido graças ao seu saber e confessa que pretende trabalhar “de dia e de noite”, até o fim

de seus dias. Ela nos diz, também, ter aprendido com seu avô Vítor, a não somente

compartilhar a terra com os demais moradores da Comunidade, como também, manter um

teto, para quando seus parentes necessitem recomeçar a vida (Casa de Amparo).

Merece ser lembrado o saber expresso por Lourenço, ao não utilizar agrotóxicos na

plantação e a manutenção de um espaço entre a roça e o rio, para não prejudicar o meio

ambiente. Além de participar da Associação como tesoureiro, função esta apreendida a partir

da experiência com uma vendinha que possui anexa à sua casa, Lourenço nos mostrou e

relatou os saberes adquiridos no cultivo da terra.

Outros saberes nos foram apresentados por Maria Albertina, que nos mostrou

indignação pela ganância dos fazendeiros quando tomaram parte das terras de Capão Verde,

bem como suas memórias e de Ana Luiza sobre a formação da Comunidade.

Não podemos esquecer os saberes compartilhados por Felinto que, com seu coração

generoso e perseverança, percorre muitos quilômetros até a Comunidade, para ajudá-los, e os

saberes de Catarino que vivenciou uma experiência com uma cooperativa fora de Capão

Verde.

Ressaltamos também os saberes observados e identificados na Agroindústria, enquanto

produziam derivados de banana da terra e nas festas de São Benedito e das crianças. Foi a

concretização da solidariedade, da felicidade e de humanidade.

A possibilidade de dialogar com esses trabalhadores e trabalhadoras e identificar os

seus saberes nos impeliu a repensar a formação humana e a práxis produtiva. Esperamos ter

conseguido desvelar não só aos saberes, mas as práticas, relações, novas concepções de

mundo e fragilidades permeadas pela produção associada da vida e incitar reflexões aos

leitores desta dissertação. Ressignificar esses saberes implica afirmar que o educar não se

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esgota na sala de aula, mas pode se efetivar através do trabalho associado e autogestionário,

enquanto princípio educativo.

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ANEXOS

_____________________________________________________________________

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1. Roteiro de entrevista – pesquisa de campo.

Quanto à identidade:

1. Quantas pessoas existem na Comunidade?

2. Quantas famílias existem na Comunidade? Quantas casas?

3. Quantos nasceram na Comunidade?

4. Quantos são homens? Mulheres? Crianças?

5. Qual a data de fundação da Comunidade?

6. Quem fundou a Comunidade?

7. Quantas pessoas trabalham somente na Comunidade?

8. Quantas pessoas trabalham na Comunidade e fora dela?

9. Quantos trabalham somente fora da Comunidade?

10. Quantas pessoas participam da Associação?

11. Qual a religião predominante?

12. Quais as festas tradicionais da Comunidade e suas respectivas datas?

13. Quais as Comunidades que estão em seu entorno?

14. Quem lidera a Comunidade?

15. Quantas crianças estudam?

16. Quantas pessoas terminaram o ensino fundamental?

17. Quantas pessoas terminaram o ensino médio?

18. Quantas pessoas fizeram curso superior?

19. Quantos fizeram cursos profissionalizantes?

20. Quantas pessoas são de fora da Comunidade e moram lá?

Quanto ao histórico da Comunidade:

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1. Qual a história da Comunidade?

2. Quem fundou a Comunidade?

3. Em que ano foi fundada a Comunidade?

4. A Comunidade sempre se chamou capão verde?

5. Você é da família que fundou a Comunidade?

6. Como vocês denominam a Comunidade (tradicional, quilombola)? Por quê?

7. A Comunidade é reconhecida como quilombola?

8. Como se deu esse reconhecimento?

9. A terra foi vendida ou doada? A pessoa que vendeu/doou a terra era ex-escravo? Quem comprou a

terra era ex-escravo?

10. A terra foi dividida no começo da fundação?

11. Tiveram que brigar com alguém pela terra?

12. Como era a vida no começo da fundação?

13. Do que viviam as pessoas no começo da fundação?

14. O que faltava para a Comunidade?

15. Como foi a sua infância?

16. As pessoas se preocupam umas com as outras? Em que situação?

17. Desde a época da fundação existem as festas?

18. O que as pessoas antigas deixaram de ensinamentos?

19. Alguém “mandava” na Comunidade no começo?

Quanto à vida em Comunidade:

1. Qual a importância de se viver em Comunidade?

2. O que facilita por morar em Comunidade?

3. Vocês divulgam a Comunidade? Como?

4. Tem contato com outras Comunidades? Como é esse contato?

5. A Comunidade tem um local de encontro coletivo? (reuniões, conversas)

6. Em que vocês são diferentes de outras Comunidades?

7. A Comunidade já teve ou tem uma horta coletiva?

8. São felizes em morar na Comunidade?

9. Tem algum sonho para a Comunidade?

10. O que falta para a Comunidade?

11. Todas as pessoas participam das atividades coletivas? Como são distribuídas as atividades?

12. Pensa em sair da Comunidade? Por quê?

13. Como percebem a contradição no modo de vida da Comunidade e dos que moram fora (modo de

vestir, lazer, assuntos, comportamento)?

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14. Vocês sabem como está a vida de quem evadiu da Comunidade? Gostaria de estar na situação

dessas pessoas?

15. Quem organiza as festas? Como as funções são divididas? Quem participa? Tem patrocínio?

16. Possuem igreja?

17. Como conhecem os remédios naturais? Procuram ensinar as crianças sobre esses remédios? O que

fazem em caso grave de doença? Recebem remédios do governo?

Quanto à produção associada:

1. Como é a organização da produção?

2. O que e quanto produzem?

3. Por que banana?

4. A produção é coletiva? Já foi individual?

5. Quando passou a ser coletiva?

6. Porque deixaram de vender somente banana in natura e começaram a vender seus derivados?

7. Há divisão de tarefas /rodízio? Como acontece a divisão de tarefas?

8. Alguém é responsável por liderar a produção? Essa pessoa que toma as decisões em relação à

produção?

9. Há quanto tempo existe a Associação? Por que ela foi criada?

10. Quem decidiu criar a Associação?

11. O que precisa fazer para se associar?

12. O que precisa fazer para se candidatar a presidência?

13. Alterou a realidade da comunidade e das pessoas, a criação da Associação?

14. Como se dá a relação dos associados com os que não se associaram?

15. Quais as funções da diretoria da Associação?

16. Quem escolheu o nome de morraria? A logomarca?

17. Quais as funções/cargos na diretoria?

18. Qual o tempo de mandato?

19. São remunerados? Pretendem empregar pessoas?

20. Quais as regras da Associação? Quem as criou?

21. Qual a relação da diretoria com os trabalhadores?

22. O fruto do trabalho é repartido igualmente? Como se dá este processo?

23. Para quem vendem os excedentes? Como estipulam o preço?

24. Tiveram interferência externa na organização da produção?

25. Como o governo os auxilia?

26. Vocês têm ou contam com algum projeto? Qual?

27. Qual o tempo de trabalho (estipulado ou não)?

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28. Alguém é responsável pela comercialização?

29. Como acontece a aprendizagem do ofício?

30. Qual o significado do trabalho?

31. Sente realizado no trabalho?

32. Pensa em trabalhar em outra atividade? Por quê?

33. Como é o transporte da matéria-prima e das mercadorias?

34. Tem preocupação com o plantio (rodizio de terra, agrotóxico)?

Quanto à educação formal:

1. Existe escola na comunidade/nome?

2. A escola é seriada, ciclada ou multiseriada?

3. Quem são os professores? São concursados?

4. Qual a escola mais próxima?

5. Quantas pessoas estudam lá

6. Tem transporte?

7. Quantas fizeram o ensino fundamental?

8. Quantas fizeram o ensino médio?

9. Acha importante a escola?

10. Qual a metodologia adotada?

11. Qual o material utilizado?

12. De onde vêm os livros da biblioteca?

13. Como é a avaliação?

14. Os alunos são frequentes?

15. Os alunos possuem materiais? Eles que compram??

16. Como se faz a conexão entre educação formal e produção associada?

17. Como consideram a questão ambiental?

18. Como consideram a questào quilombo?

19. Quantos cursam a EJA? Desde quando possuem a EJA?

20. O material da EJA é o mesmo material utilizado nas outras modalidades de ensino da escola?

21. Porque pararam de estudar (alunos da EJA)? Porque resolveram voltar a estudar?

22. O que esperam por voltar a estudar? O que muda na vida deles?

Felinto:

1. O que é educação popular para você?

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2. Você se considera militante?

3. Acha possível a educação popular em Capão Verde?

4. O que acha do movimento quilombola?

5. Quando iniciou sua atuação junto aos movimentos sociais?

6. Como surgiu em Capão Verde? Teve fácil aceitação na Comunidade? O que fez para conquistá-

los?

7. O que significa poder ajudar essas pessoas? O que já fez para ajudá-los?

8. Você quem deu a ideia de criar a Associação?

9. O que espera que aconteça no futuro em Capão Verde?

10. Sua atuação é inspirada em que ideologia politica?