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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE
ANA PAULA THOMAZ RIBEIRO
A Propriedade Intelectual, o Acordo TRIPS e o monop ólio
do conhecimento
Como as patentes de remédios determinam as chances de vida
Belo Horizonte
2010
ANA PAULA THOMAZ RIBEIRO
A Propriedade Intelectual, o Acordo TRIPS e o monop ólio
do conhecimento
Como as patentes de remédios determinam as chances de vida
Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte
como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais.
Áreas de concentração: Propriedade
Intelectual e Direitos Humanos
Orientador: Professor Leandro de Alencar Rangel
Belo Horizonte
2010
1
A Propriedade Intelectual, o Acordo TRIPS e o monop ólio do conhecimento:
como as patentes de remédios determinam as chances de vida
Ana Paula Thomaz Ribeiro 1
Leandro de Alencar Rangel 2
RESUMO
A patente é um instrumento que confere aos fabricantes de produtos de qualquer
natureza, o direito de impedir a fabricação, venda e importação de produtos e
processos patenteados. No caso da indústria farmacêutica, este instrumento permite
o estabelecimento dos preços acima dos custos marginais, que garantam a
recuperação das despesas com pesquisas e desenvolvimento e a geração de lucro.
Segundo a UNAIDS3, 33,4 milhões de pessoas no mundo vivem com AIDS, sendo
dois terços deste total, habitantes da região da África subsaariana, onde o vírus
figura como a principal causa de morte, e o acesso aos remédios e tratamentos é
restrito. Para discutir o acesso limitado de países pobres e em desenvolvimento a
medicamentos e tratamentos, a OMC introduziu mudanças nas normas
internacionais de direitos de propriedade intelectual através de mecanismos como o
Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), que se
caracteriza como um dos componentes mais controversos do sistema da Instituição.
Palavras-Chave: Patentes de remédios, Acordos TRIPS, pobreza, e liberalismo
econômico.
1 Aluna do 8º período de Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte E-mail: [email protected] 2 Coordenador do curso de graduação em Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte E-mail: [email protected] 3 O UNAIDS é o programa das Nações Unidas que reúne os recursos e esforços de dez organizações da ONU que em alguma instância trabalham o aspecto da epidemia - UNHCR, UNICEF, WFP, UNDP, UNODC, ILO, UNESCO, WHO, Banco Mundial, dentre outros -, para a prevenção, tratamento e estudo dos impactos da epidemia em mais de 80 países.
2
INTRODUÇÃO
O presente artigo relaciona os aspectos de produção e comercialização de
medicamentos e tratamentos de saúde e itens essenciais à garantia da saúde
humana, às formas como esta acessibilidade está distribuída entre as populações do
mundo de acordo com seu poder aquisitivo.
Neste contexto, serão demonstrados os diretos das regras de proteção à
propriedade intelectual/concessão de patentes, e o quão impactante para a saúde
de algumas populações do mundo é o gozo destes direitos por parte da indústria
farmacêutica. Em países pobres, a alta incidência de doenças chamadas
‘negligenciadas’4 como doença-do-sono, malária, doença de Chagas, leishmaniose,
dentre outras, e de epidemias como a da AIDS – todas elas (exceto a AIDS)
possuem tratamento5 -, ocasiona a morte de milhões de pessoas anualmente.
No caso da África, algumas doenças – já erradicadas no restante do mundo e de
tratamento conhecido – continuam assolando muitas populações e é muito difícil
prever quando esta situação terminará. Neste ponto da discussão, as contendas
relacionadas a este limitado acesso à saúde – um direito universal - circundam a
esfera econômica na medida em que a limitação se dá por negligência
governamental, incapacidade econômica nacional para adquirir e prover remédios
gratuitamente ou a preços acessíveis, não-produção destes remédios – que
deixaram de ser economicamente interessantes -, ou sua disponibilização a custos
muito altos. As farmacêuticas (sediadas em países desenvolvidos) têm o direito de
decidir sobre suas patentes – mesmo que estas decisões possam determinar a
continuidade ou não da vida para as populações pobres de outros países.
No embate para tentar melhorar o acesso universal à saúde, figuram as
organizações internacionais, organizações não-governamentais, os governos, os
tratados internacionais, sociedade civil e as instituições privadas. Todos eles
4 Grupo de doenças tropicais endêmicas em países pobres da África, América Latina e Ásia. Sua prevenção e tratamento são conhecidos, porém indisponíveis a estas populações. 5 Tratamento: s.m. Ato ou efeito de curar./Maneira de tratar alguém./Conjunto de meios postos em prática para combater uma doença; terapêutica./Cura: s.f. Ação ou efeito de curar./Recobramento da saúde. (FERREIRA, 2001)
3
participam e contribuem para que os bônus deste sistema possam continuar a
pertencer a um grupo limitado ou ser mais bem distribuído. A história recente nos
mostra que cada vez mais os países pobres têm questionado esta situação frente à
indústria farmacêutica - amparados pelos acordos TRIPS e convenções
internacionais de defesa dos direitos humanos – e que há vencedores dos ambos os
lados.
Ao final da leitura será possível chegar a uma conclusão ou questionamento acerca
da eficácia de tais medidas e do quão realmente empenhadas estão as instituições
envolvidas (que são, de certo modo, responsáveis pela disponibilização de tais
recursos às populações).
OS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os direitos de propriedade intelectual concedem aos inventores o uso exclusivo de
suas criações por um determinado período através do registro de patentes. As
patentes, segundo Barbosa (2003) e Oliveira (2000), poderão ser definidas como um
título de propriedade concedido pelo Estado, que garante ao seu titular exclusividade
temporária para a exploração da determinada invenção, embora todo o
conhecimento envolvido no seu desenvolvimento e produção deva ser
obrigatoriamente, de domínio público.
Anteriormente à criação das leis que regulamentam internacionalmente a defesa da
propriedade intelectual, cada país possuía uma norma interna relacionada ao tema,
que se distinguia das dos demais países. À medida que essas novas invenções e
tecnologias se tornaram importantes para todos, tendo assim intensificado sua
importância para o comércio mundial, surgiram contendas nas relações econômicas
internacionais (BARBOSA, 2003).
Foi necessário, então, desenvolver documentos comuns que vinculassem os países
à mesma interpretação e procedimentos relacionados à defesa da propriedade
4
intelectual. Foi o caso da Convenção da União de Paris (1883/1967), primeira
tentativa de converter todos os diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, e que
deu origem ao Sistema Internacional da Propriedade Industrial. Seguiu-se a
Convenção de Berna sobre propriedade intelectual, copyright e direitos autorais
(1886) e o estabelecimento do Sistema Internacional de Patentes6 pela Convenção
Européia para a Classificação Internacional de Patentes de Invenções (1954). Em
1967 foi criada a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) 7, e mais
tarde, em 1970, instituído o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes – PCT
(Patent Cooperation Treaty), cujo objetivo de desenvolver o sistema de patentes e
de transferência de tecnologia. Em 1995, foi elaborado o mais atual tratado
internacional do gênero, o Acordo TRIPS, que prevê dois mecanismos contra as
infrações à propriedade intelectual: além de observar o respeito ao exercício do
direito de propriedade intelectual alheio, elevou seu nível de proteção entre os
Estados-membros. A principal mudança trazida pelo TRIPS foi, segundo Almeida e
Vieira (2009), o estabelecimento da obrigatoriedade de proteção da propriedade
intelectual para todos os campos tecnológicos – incluso o setor farmacêutico -,
priorizando agora o aspecto comercial do tema.
Para Lampreia (1995), o Acordo TRIPS dispõe sobre a aplicabilidade dos princípios
do GATT8 e dos acordos internacionais sobre propriedade intelectual, estipula quais
são os direitos de propriedade intelectual, as medidas eficazes para fazê-los valer, e
prevê mecanismos para a solução multilateral de controvérsias.
O Acordo envolve três âmbitos: o das disposições gerais e princípios básicos, a
caracterização de cada um dos direitos (marcas, apelações geográficas9, desenhos
6 A Classificação Internacional de Patentes (Int.CI.) é uma classificação especial utilizada para indexar documentos de patentes de invenção e modelo de utilidade. Instituído em 1971 pelo Acordo de Estrasburgo, conta com 57 estados-membros. 7 Organismo especializado do sistema da Nações Unidas, de caráter intergovernamental, que estimula a proteção da Propriedade Intelectual no mundo mediante a cooperação entre os Estados, e a promoção da atividade intelectual. 8 General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), instituição criada em 1947 e base da Organização Mundial do Comércio. Grupo de normas e concessões tarifárias criadas para impulsionar a liberalização comercial e combater as práticas protecionistas entre as nações. 9 O nome de um lugar pode ser usado para identificar um produto. Esta ‘indicação geográfica’ não indica somente onde o produto original é fabricado, como caracteriza suas qualidades essenciais, conferidas pelas características físicas deste local. Exemplos: Champagne, Roquefort e Scoth.
5
industriais, copyright10 e patentes), e a definição das obrigações que os países
membros devem assumir para garantir a efetividade do Acordo. O estabelecimento
de tais regras de proteção busca, além de estimular e reconhecer a inovação e a
criação de tecnologias – através da concessão dos direitos exclusivos de uso -,
permitir que a longo prazo11, o conhecimento necessário para a produção seja
compartilhado por todos, promovendo, segundo Chaves e Oliveira (2007, p. 3) “o
equilíbrio adequado entre esses dois interesses” (o público e o privado).
Com relação ao período de detenção exclusiva, pode haver exceções com relação à
sua duração: os pedidos de prorrogação por parte do titular ou de quebra da patente
serão analisados por uma comissão da OMC, de acordo com a legitimidade das
argumentações de ambas as partes. No caso de alguns produtos como os
medicamentos, as discussões acerca do quanto estas patentes limitam o acesso
universal à saúde através das práticas de mercado executadas pelas indústrias
farmacêuticas, faz com que frequentemente países apelem para a abertura de
painéis para discussão no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC12.
OS ACORDOS TRIPS E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
Os medicamentos são, de acordo com a denominação comum brasileira (ANVISA -
Resolução RDC - n.° 84/02), produtos farmacêuticos, tecnicamente obtidos ou
elaborados, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico.
O acesso a medicamentos pode se traduzir em acesso à saúde, um direito
mundialmente reconhecido e previsto em tratados internacionais de Direitos
10
O Acordo TRIPS assegura que softwares serão protegidos como trabalhos literários segundo a Convenção de Berna de 1886. 11 A concessão de uso exclusivo de um invento pode chegar a 20 anos. Após este prazo, o titular pode pedir extensão da concessão, ou anteriormente a este período, países componentes da OMC podem requerer quebra de patente. 12 O Órgão de solução de Controvérsias da OMC possui o objetivo de autorizar a criação de painéis, adotar o relatório do painel ou aquele elaborado pelo órgão de apelação, acompanhar a implementação das recomendações sugeridas pelo relatório do painel, e autorizar a imposição de sanções àqueles países que não se adequarem ao relatório.
6
Humanos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem13 e firmado como
um direito social por constituições nacionais no período pós-Segunda Grande
Guerra.
Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças ou enfermidades. Gozar do mais alto nível de saúde é um dos direitos fundamentais de cada ser humano, independentemente de diferenças de raça, religiosas, crença política, econômica ou condição social. (OMS, 1946)
O processo de produção de medicamentos passa por pesquisas e desenvolvimento
de um agente farmacêutico apropriado, a produção em si, controle de qualidade,
distribuição, controle de inventário, informações seguras para os profissionais e para
o público, diagnóstico, prescrição, acessibilidade financeira, observação e vigilância
sanitária. As farmacêuticas, segundo Pavitt (1984), indústrias intensivas em
conhecimento, possuem licença para a execução de tais atividades e embasam seu
argumento para a manutenção das patentes como uma forma de recuperar o
investimento – o desenvolvimento de uma nova droga pode levar de 8 a 12 anos -, e
obter lucro. Alcançar inovações significa para tais indústrias, ganhar o mercado.
As patentes são um elemento fundamental para a apropriação dos benefícios futuros resultantes dos investimentos em P&D, que culminaram no desenvolvimento de um novo medicamento e criam vantagens absolutas de custos para as empresas que as detêm. (HASENCLEVER, 2002:14)
A questão é que uma vez que detenha a patente, a indústria pode, além de praticar
preços abusivos devido ao monopólio temporário do produto e à conseqüente
inexistência de concorrência, decidir inclusive não produzir determinado
medicamento. Muitas delas deixam de produzir principalmente as drogas para as
quais não há mercado consumidor atrativo (caso das doenças negligenciadas), e se
negam a conceder a transferência de tecnologia que permita a produção do remédio
por outra indústria ou país.
13 Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). Documento elaborado e aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III). Artigo XXVI – parágrafo 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda pessoa tem a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.”
7
As farmacêuticas alegam uma série de motivos para que a pesquisa e
desenvolvimento de drogas para o tratamento de determinadas doenças não sejam
priorizados (BULARD, 2010). Dentre eles estão o foco nos segmentos mais
lucrativos do mercado (doenças infecciosas, cardiovasculares, dermatológicas,
neurológicas e câncer), o prejuízo financeiro causado pelo alto índice de falsificação
de seus produtos em países em desenvolvimento (há casos de apropriação da
marca e aparência dos produtos) e a aprovação em controles de qualidade (boas
práticas clínicas, laboratoriais e de produção) a partir do cumprimento de
regulamentos rigorosos que certificam a indústria a comercializar, mas que elevam o
preço final de seu produto.
As alegações para a manutenção de altos preços por parte das farmacêuticas são
contestáveis: ocorre atualmente, uma escassez de surgimento de inovações. Os
investimentos em pesquisa e desenvolvimento continuam, mas o pilar sustentado
pela promessa de geração constante de inovações já não constitui uma verdade,
uma vez que muitos dos medicamentos lançados no mercado como ‘novos’ são na
verdade, modificações de fórmulas já existentes (LAMPREIA, 1995).
A figura 114 relaciona os principais grupos farmacêuticos do mundo a seus
respectivos faturamentos anuais em 2009. Também estão indicados os países-sede
destas corporações, responsáveis por representar os grupos farmacêuticos em caso
de formação de painel de discussões relacionados na OMC. Juntos, apenas oito dos
grandes grupos do mundo faturam o equivalente a US$ 329,1 bilhões de dólares ao
ano, segundo relatórios financeiros de 2009. Além disso, apenas 20% da população
mundial (e que vivem nos países desenvolvidos) consome 80% do mercado
farmacêutico segundo levantamento do International Market Service (apud MSF,
2002).
14 Mapa elaborado de acordo com ensinamentos absorvidos nas aulas de GIS (Geographic Information System) ministradas à turma de 8º período de Relações Internacionais pela professora Patrícia de Sá Machado no primeiro semestre de 2010. Dados retirados dos relatórios financeiros anuais das corporações representadas (vide referências bibliográficas).
8
Figura 1 – Localização dos países-sede dos principais grupos farmacêuticos do mundo e seus respectivos faturamentos anuais em 2009. Fonte: Relatórios financeiros anuais dos laboratórios Pfizer, Merck, Abbott, Novartis, Roche, Sanofi-Aventis, GlaxoSmithKline e Johnson & Johnson.
Entre 1910 e 1970, os grandes laboratórios contribuíram imensamente para o
tratamento de epidemias tropicais através da produção de distribuição de drogas
para o tratamento a preços acessíveis. Mas desde então seus procedimentos de
desenvolvimento e fornecimento de medicamentos voltados para tais doenças
mudaram, dando prioridade à produção de remédios destinados à cura das doenças
denominadas globais, como as cardiovasculares, o câncer, as epidemias – que
também atinjam os países desenvolvidos -, dentre outras. O índice de que apenas
21 das cerca de 1.556 fórmulas desenvolvidas em 29 anos foram destinadas ao
tratamento das doenças tropicais (CHAVES E OLIVEIRA, 2007), demonstra que
menos de 10% dos investimentos em pesquisa foram destinados à busca da cura de
tais doenças, responsáveis por 90% das doenças e mortalidade em países pobres.
Ainda que o medicamento seja um bem que ao ser indicado, deve ser consumido independente do seu preço, o determinante real do consumo é dado pelo nível de renda da população. (HASENCLEVER, 2002)
Desde novembro de 2001 a OMC reconhece, através da Declaração de Doha15, a
gravidade dos problemas de saúde pública que atingem países pouco desenvolvidos 15 Originalmente nomeada ‘Agenda de Doha para o Desenvolvimento’, constitui uma rodada de negociações para a liberalização do comércio mundial. Seu objetivo é implementar os acordos alcançados na rodada anterior (Rodada Uruguai, de 1986 a 1994): acordos sobre comércio de serviços e propriedade intelectual.
9
e em desenvolvimento, mas reforça o papel da proteção à propriedade intelectual
para o desenvolvimento de novos medicamentos:
Nós concordamos que o acordo TRIPS não impede e não deveria impedir seus membros de adotar medidas para proteger a saúde pública. Em conseqüência, enquanto reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, afirmamos que o acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos. (OMC, 2001)
Segundo a Declaração seus membros têm direito de adotar um princípio
internacional de extinção de direitos (que permite importações paralelas) segundo o
qual podem estabelecer seu próprio regime de extinção, sem contestação, ainda que
sejam licenças compulsórias nos termos determinados por eles próprios.
A flexibilidade do acordo TRIPS em nível nacional implica em questões políticas e
jurídicas: os painéis e o Órgão de Solução de Controvérsias devem interpretar o
Acordo, bem como as leis e os regulamentos adotados, para que a implementação
se ajuste às necessidades de saúde pública de cada país-membro.
Os países signatários da Declaração de Doha com insuficiente ou nenhuma
capacidade de produção fazem uso constante da licença compulsória, por não
possuírem recursos para fabricar seus próprios remédios (não podem produzir
ingredientes ativos e formulações, ou mesmo desenvolver estudos e pesquisas), e
pelo fato de a produção farmacêutica estar irregularmente distribuída pelo mundo.
Quando o Acordo TRIPS entrou em vigor, a produção e exportação de
medicamentos genéricos por parte de países passou a ser proibida. Um país que
queira requerer o direito de produção de um medicamento anteriormente ao término
do prazo de exclusividade concedido ao titular da patente, deve recorrer às
chamadas salvaguardas previstas no Acordo: licença voluntária, licença compulsória
(quebra de patente), importação paralela, dentre outras.
A licença voluntária deve ser concedida pelo titular da patente, que passa a permitir
a fabricação e comercialização do medicamento ou tratamento por terceiros. Já a
10
concessão da licença compulsória16 implica na autorização por parte do governo do
país onde foi registrada a patente, da produção e comercialização por empresas
públicas e privadas do mesmo país. Esta é uma forma de limitar possíveis abusos
referentes ao controle do mercado por determinada empresa, mas não derroga seus
direitos. O governo, ao conceder a licença, deve garantir uma compensação justa ao
titular da patente, mediante pagamento de royalties17 por parte de quem estiver
produzindo e comercializando segundo a fórmula patenteada. O Acordo assinala
que alegações nacionais de emergência ou extrema urgência, uso público não-
comercial, e práticas anti-competitivas podem levar às concessões de licenças
compulsórias (PÉCOUL, 2005).
O recurso de importação paralela permite importar um medicamento patenteado por
um preço inferior. Estes medicamentos são originais, e devem ter tido licença para
comercialização por outrem distribuída no mercado por decisão do próprio titular da
patente. Neste caso, não é necessário que alguém do grupo farmacêutico esteja
envolvido; esta será uma relação puramente comercial entre a parte interessada na
compra e um distribuidor, que comercializa legalmente. O recurso de ‘exceção bolar’
– reconhecido como legal pela OMC - consiste em providenciar todos os materiais,
treinar pessoal e montar laboratórios para que quando a patente de interesse expire,
o processo de fabricação de sua fórmula leve menos tempo, uma vez que a infra-
estrutura já esteja pronta.
A ÁFRICA SUBSAARIANA, AS DOENÇAS E O ACESSO LIMITAD O A
MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS
16 A licença compulsória emitida para exportação conterá as seguintes condições: - Apenas a quantidade necessária para atender as necessidades do membro importador habilitado pode ser fabricada ao abrigo da licença, e a totalidade dessa produção será exportada aos países que tiverem notificado o Conselho do TRIPS a respeito de suas necessidades. - Os itens produzidos ao abrigo da licença serão claramente identificados como produzidos em conformidade com o sistema definido por meio de etiquetagem ou outra marcação específica. - Antes do embarque, o licenciado publicará o seguinte: 1 – quantidade fornecida para cada destino, e 2 – Características distintivas do produto. 17 Importância paga ao proprietário de um território, recurso natural, produto, marca, patente de produto, processo produtivo, obra original, direitos de exploração, distribuição ou comercialização do referido produto ou tecnologia.
11
A região da África subsaariana18, segundo reportes da UNAIDS/OMC (2009), teve
mais de 1,9 milhão de novos infectados pela AIDS em 2008, elevando o número de
pessoas vivendo com o vírus na região para 22,4 milhões. Apesar de a expectativa
de vida das pessoas infectadas ter aumentado em razão do aumento do acesso aos
tratamentos, esta continua sendo a região mais afetada pelo HIV, respondendo pela
concentração de 67% dos infectados, e por 72% dos óbitos relacionados à doença
no mundo.
As populações desta região são as que mais sofrem com a incidência de outras
doenças como malária19, tuberculose, AIDS, doença do sono20, leishmaniose, dentre
outras (UNAIDS/OMC, 2009). Este grupo é exatamente aquele que menos possui
acesso aos tratamentos. As populações destes países sofrem com a pouca
qualidade ou falsificação de remédios, inacessibilidade às drogas essenciais em
razão da variação da produção ou preços abusivos, falta de desenvolvimento de
novas drogas que possam otimizar os tratamentos, e restrições provenientes dos
acordos firmados sobre a disposição de remédios e desenvolvimento de novos,
firmados pela Organização Mundial do Comércio.
A falta de acesso às drogas essenciais ou vacinas por motivos econômicos levanta novos questionamentos relacionados aos Direitos Humanos no planeta que continua dividido entre países saudáveis e desenvolvidos, e o resto do mundo. (CHIRAC, PÉCOUL, PINEL e TROUILLER, 1999)
Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde (2010), a soma dos
investimentos em saúde per capita na região da África subsaariana em 2007 não
passou dos US$ 1.000 em países como Gana, Namíbia, Botsuana e África do Sul.
Os casos mais críticos da região são Mali, Serra Leoa, Níger e Etiópia, que contam
com investimentos de menos de US$ 25 dólares per capita em saúde.
O resultado destes índices ajuda a constituir a situação de miséria e inacessibilidade
à saúde neste continente. O impacto do não investimento em um setor tão
18 Região composta por 47 países, cuja população representa pouco mais de 10% da população mundial, vivendo abaixo da linha de pobreza, com menos de US$ 1 por dia. 19 Na África subsaariana, é a principal causa de morte de crianças menores de 5 anos, levando a óbito uma delas a cada 30 segundos, ou cerca de 3.000 crianças a cada dia. 20 Também na África subsaariana, infecta 70 mil pessoas e vitima fatalmente 48 mil delas a cada ano.
12
fundamental à vida humana implica na classificação de IDH21 (Índice de
Desenvolvimento Humano) da maioria destes países como ‘baixo’. Isto significa,
dentre outros fatores, uma expectativa de vida 30 anos menor do que a de uma
pessoa nascida em um país com IDH elevado, um baixo nível educacional, científico
e tecnológico, dependência econômica, escassez de água potável e de saneamento
básico.
Ao limitar a análise ao âmbito da saúde, observa-se atualmente que a qualidade das
drogas, sua efetividade e sua segurança também são um fator preocupante: elas
são cada vez menos levadas em conta, principalmente no que diz respeito àquelas
que serão destinadas às populações mais pobres, e que somente terão acesso ao
tratamento através de baixos custos (PÉCOUL, CHIRAC, TROUILLER e
PINEL,1999). Este é um cenário em que falsos remédios (laboratórios clandestinos),
remédios de pouca ou nenhuma efetividade, falsas vacinas e circuitos ilegais de
distribuição encontram espaço: situação de sub-sobrevivência, falta de fiscalização e
negligência dos governos locais. Além disso, existem as guerras civis, os
deslocamentos populacionais, e a precariedade dos sistemas de saúde nacionais.
Os preços abusivos cobrados por remédios para o tratamento da Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS)22 são comumente conhecidos, assim como outros
tantos medicamentos de acesso restrito a doentes, comercializados e protegidos por
patentes. Segundo Chaves e Oliveira (2007), as vacinas anti-Haemophilus23 por
exemplo, não são produzidas devido ao alto custo repassado a clientes que não
podem pagar. Ocorre que, quando um medicamento eficaz para doenças tropicais é
identificado em laboratório, o fabricante geralmente decide por não comercializar a
droga, sabendo de seu elevado custo final. A partir de então a companhia decide
entre fazer acordos excepcionais para promover a doação de tais medicamentos
21 Lista divulgada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) anualmente, que constitui medida comparativa de riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida e natalidade entre 180 estados-membros da ONU, Hong-Kong e territórios palestinos. 22 Estágio mais avançado da infecção pelo vírus HIV. Síndrome que ataca as células de defesa do corpo, tornando o organismo vulnerável a diversas doenças, de um simples resfriado a graves infecções, tuberculose e câncer. Não há cura, e seus portadores devem submeter-se a tratamento através da ingestão diária de medicamentos durante toda a vida. 23
Vacina indicada para imunização de rotina para crianças entre 2 meses e 5 anos de idade, contra doenças causadas por esta bactéria.
13
(como nos casos do ‘Albendazol’24, ‘Atovaquone’25 e ‘Ivermectina’26), ou suspende a
produção.
Os laboratórios podem, por outro lado, criar/participar de ações que gerem
cooperação entre corporações, governos e organizações internacionais/não
governamentais para o fornecimento destes medicamentos a um custo mais baixo
para as populações. Tomemos como exemplo o laboratório farmacêutico Bayer, que
em 1997 adotou uma solução ad hoc em parceria com a Organização Não-
Governamental ‘Médicos sem Fronteiras27’ – dedicada a prover saúde a
comunidades excluídas do sistema de saúde, através de tratamentos e
medicamentos - para tornar acessível o tratamento da disenteria tipo 128 a 50.000
pessoas na África. A disenteria tipo 1 é uma doença contagiosa que, sem o devido
tratamento, torna-se letal em 5% a 15% dos casos. A bactéria causadora da doença,
Shigella dysenteriae, se tornou resistente aos tratamentos oferecidos, e o único
medicamento eficaz no combate é o ‘Fluoroquinoles’29, cujo preço era dez vezes
maior do que o do antigo tratamento oferecido. Para resolver a questão do acesso, o
laboratório Bayer e a MSF fixaram um acordo que previa o tratamento da doença
através do ‘Ciprofloxacin’30, um medicamento genérico do ‘Fluoroquinoles’ - que
seria produzido pelo laboratório e distribuído pela MSF - ao preço de US$ 2 por
pessoa em dados países africanos, cujos governos assumiram o pagamento
(CORREA, 2010).
Para aumentar o acesso de populações pobres a medicamentos, seria necessário
enriquecer o sistema de pesquisa e desenvolvimento de novas fórmulas para
remédios já existentes, bem como tratamentos mais rápidos e não por isso menos
eficazes. Além disso, deve-se investir também na construção de uma infra-estrutura
adequada por parte das nações que desejam ter maior acesso aos tratamentos e
24 Nome oficial: carbamato de metil N. Medicamento prescrito para o tratamento de verminoses. 25 Medicamento feito com produto natural e prescrito para o tratamento de malária. 26 Droga antiparasita, tradicionalmente prescrita para o tratamento de verminoses. 27 Organização médico-humanitária internacional, criada em 1971 na França, com o objetivo de oferecer socorro médico a populações em situação de risco/países em crise. 28 Infecção intestinal causada pela ameba Entamoeba histolytica, de ocorrência comum em países tropicais. 29 Medicamento prescrito para o tratamento da tuberculose. 30
Medicamento antibiótico prescrito para o tratamento de bronquite bacteriana, gastroenterite, gonorréia, infecção articular, infecções cutâneas, ósseas, urinária, periodontite e pneumonia.
14
medicamentos.
O PAPEL DO GOVERNO, SOCIEDADE, ONGs E ORGANIZAÇÕES
INTERNACIONAIS
A alta ocorrência da AIDS, dentre outras tantas doenças, em um país não configura
somente um problema nacional de saúde, mas primordialmente um assunto de
cunho social. Os países cujos índices de desenvolvimento humano acusam baixos
níveis de acesso à saúde e educação se vêem em meio a uma combinação de
fatores que pode expor seriamente suas populações à doença.
A sociedade sul-africana especificamente é marcada por diferenciações de classe,
raça e gênero ao longo de muitas décadas, e isso contribuiu, dentre outros muitos
fatores, para a situação e modelo de saúde pública. Separada por ‘grupos
populacionais’, a sociedade sul-africana era distinta entre raças pelo regime de
apartheid31, sendo elas: branca, indiana, colorida e africana e, embora este tipo de
segregação interna tenha sido banido, suas marcas estão enraizadas no cotidiano
do país (SANTOS, 2009). Os níveis de desenvolvimento humano do grupo
populacional dos brancos superam os dos demais grupos (incluindo o acesso à
educação e saúde). De acordo com Gilbert e Walker (2002), quase 58% do
orçamento total para a saúde foi gasto com o sistema de saúde particular que
atende somente a cerca de 20% da população no ano de 1991, e este é o reflexo da
cultura de oferta mínima de saúde pública para a maior parte da população.
A situação sócio-econômica é um bom indicador da disseminação da doença. Quanto pior a situação de uma comunidade, maior a probabilidade de seus habitantes não serem saudáveis. (UNISA, 2000).
Desde o primeiro caso registrado de contaminação pelo HIV na África do Sul em
1982, o governo do país demonstrou inabilidade em criar políticas públicas de 31
Regime de segregação racial vigente entre 1948 e 1994 a África do Sul. A legislação separava a população entre grupos raciais; saúde, educação e serviços públicos eram diferentemente ofertados, sendo a minoria branca o grupo beneficiado.
15
contenção da doença, criando de certa forma pressupostos para que os índices de
contaminação colocassem seu país no topo da lista de contaminados no mundo
(SANTOS, 1999, p. 3). Houve falta de planejamento e de organização, além da
vigência de programas de prevenção distintos para negros e brancos, disseminando
a idéia de que era uma doença limitada a um ou poucos grupos da sociedade –
vinculando a doença à raça ou opção sexual -, que dentre outras condutas, foram
ineficazes antes e após o apartheid.
Segundo Butler (2005), Schneider e Fassin (2002), a falta de sinergia entre a
sociedade civil e o governo também é amplamente apontada na literatura como
outro fator decisivo no "fracasso" das respostas do governo sul-africano à epidemia
de AIDS. O governo centralizara a gestão da política de combate à AIDS, o que
dificultou o diálogo e a cooperação entre setores da sociedade civil e os órgãos
estatais, quando não os colocou em conflito aberto (JOHNSON, 2004).
Considerar a atuação das instituições internacionais e investir na participação da
sociedade nos processos teria sido de grande valia ao governo sul-africano.
Segundo Keohane (1989), as instituições podem estimular a cooperação entre
atores racionais egoístas na medida em que reduzem incertezas, diminuem o custo
das transações, provêem informações e estabilizam expectativas. Pode-se portanto,
analisar a intervenção da OMC para o estabelecimento do Acordo TRIPS, as
pressões exercidas pelos grupos sociais em prol de uma distribuição mais justa dos
recursos à saúde, as pressões das farmacêuticas por disposições que melhor
atendessem seus interesses, e o aceite dos governos ao que foi proposto, como um
complexo decisório em que a participação de múltiplos atores definiu, de forma
peculiar, o processo decisório.
A comunidade política nacional, entendida como "uma definição patrocinada pelo
Estado de quem está ou não incluído na 'nação' e de que forma" (GAURI;
LIEBERMAN, 2004, p. 12), possui grande influência nos níveis gerais de apoio às
políticas de combate à AIDS por meio do impacto que ela promoveria nas
percepções dos riscos e das responsabilidades, assim como nos cálculos em
relação aos benefícios da ação de combate à epidemia" (GAURI; LIEBERMAN,
16
2004, p. 12). Segundo os autores, a comunidade política nacional sul-africana é - em
razão de seu histórico de segregação racial e conflitos étnicos – fraca, impedindo a
formação de um sentimento de pertencimento a uma sociedade singular da qual
todos fariam parte, ainda que possuindo peculiaridades físicas e culturais. Esta
desunião, bem como os fatores citados anteriormente, impedem a formulação e
implantação de políticas públicas (GAURI; LIEBERMAN, 2004).
A presença das organizações não-governamentais (ONGs32) no cenário
internacional por sua vez, configura um tipo de sociabilidade responsável por
descentralizar a execução pública e buscar maior participação da população na
formulação de projetos e programas.
Política social e política econômica são intrinsecamente relacionadas e portanto, a gestão das crises deve manifestar-se também como defesa do Estado Protetor, exigindo rigor nos seus objetivos, mas permitindo avanços em direção à Sociedade de Bem-Estar. (OCDE, 1980)
Em relação às iniciativas globais de parceria focadas no estímulo de interesse pelo
desenvolvimento e fornecimento de medicamentos para algumas33 das doenças
negligenciadas, a tendência se mostra negativa, embora estejam sendo firmadas
algumas iniciativas globais de parceria.
No contexto das patentes de remédios e do debate ético sobre os direitos à vida e à
propriedade intelectual, nota-se a atuação da ‘Médicos Sem Fronteiras’. Após tanto
conviver com as condições precárias que limitam e por vezes comprometem a
eficácia de sua atuação, alguns médicos afiliados propuseram uma campanha que
hoje é um dos carros-chefe da Organização, a ‘Campanha de Acesso a
Medicamentos Essenciais’. Através dela, são reivindicadas melhores condições
(equipamentos, quantidade de remédios e profissionais) de saúde para as
populações, seja divulgando informações em meios de comunicação, publicando
artigos e por vezes representando a própria Organização em eventos internacionais
em que possa haver espaço para a discussão e propostas de soluções para o tema.
32 Associações de terceiro setor com finalidades públicas e sem fins lucrativos, responsáveis por desenvolver ações em diferentes áreas da sociedade. Podem receber doações do Estado ou da iniciativa privada para o desenvolvimento de projetos. 33 AIDS, malária e tuberculose.
17
Embora as questões político-financeiras sejam a principal barreira para a produção
desses remédios, pesquisas básicas estão sendo desenvolvidas em universidades e
laboratórios públicos, e o modelo de parcerias público-privadas34 vem favorecendo
imensamente o acesso aos medicamentos. Este modelo estimula a descoberta de
novos tratamentos financeiramente viáveis e igualmente eficazes (PÉCOUL,
CHIRAC, TROUILLER e PINEL, 1999). Um bom exemplo foi a campanha contra a
catarata35 no oeste africano. Ela foi apoiada pela Carter Foundation, do ex-
presidente norte-americano Jimmy Carter, pelo Programa de Pesquisas sobre
doenças tropicais da Organização Mundial de Saúde, por governos de países do
oeste africano, e pela doação do medicamento ‘Ivermectina’ pela farmacêutica
Merck (OLIVEIRA, 2000).
Outro caminho são os grupos da sociedade civil que trabalham insistentemente para
a conscientização popular sobre a AIDS. Dentre eles, se destaca o TAC (Treatment
Action Campaign), referência no combate à doença na África do Sul e indicado ao
Nobel da Paz em 2004. Em um continente que sofre com a escassez de recursos e
educação, a atuação de grupos como o TAC se faz imprescindível. Desde 1998, o
grupo – que conta com doações da iniciativa privada nacional e internacional para
manter seu trabalho – desenvolve um trabalho de conscientização para a prevenção
da contaminação pelo vírus e segundo Natalia da Luz (2009), chega a tratar de
cerca de 750 mil soropositivos.
Para evitar que os investimentos do setor privado sejam em vão, os governos devem
assumir um papel muito maior do que o simples apoio às iniciativas: devem definir
um plano de pesquisa e desenvolvimento de uma agenda que guie os tomadores de
decisão, criar agências específicas (por exemplo, um órgão que assegure a
distribuição correta e eficaz dos medicamentos) e definir detalhadamente as
prioridades de seu país, para direcionar os investimentos da forma eficaz. Seu papel
de liderança é importantíssimo, além da demonstração de comprometimento em
34 Parceiro privado assume o compromisso de disponibilizar à administração pública ou à comunidade uma certa utilidade mensurável mediante a operação e manutenção de uma obra/projeto previamente planejado, financiado e construído. Em contrapartida, recebem uma remuneração periódica do Estado vinculada ao seu desempenho no período referente. 35
Lesão ocular que atinge e torna opaco o cristalino (lente situada atrás da íris cuja transparência permite que os raios de luz o atravessem e alcancem a retina para formar a imagem), o que compromete a visão.
18
manter a campanha longe de qualquer suspeita de corrupção (CHAVES e
OLIVEIRA, 2007).
NA OMC: ÁFRICA DO SUL vs. GRANDES FARMACÊUTICAS
Ao menos cinco países africanos moveram representações na OMC em protesto à
atuação de indústrias farmacêuticas em seus territórios entre os anos de 2001 e
200536 (ALMEIDA e VIEIRA, 2009). Todas foram iniciadas via apresentação de
queixa aos governos nacionais por parte de ONGs vinculadas à saúde, e alguns
destes governos37 decidiram levar a discussão à OMC.
Os casos envolvendo a África do Sul – recordista africana em números absolutos de
casos de AIDS – serão analisados, em razão de terem envolvido em sua discussão
na OMC, o governo nacional, governos internacionais, grupos da sociedade civil sul-
africana, indivíduos portadores do vírus da AIDS, grupos farmacêuticos e opinião
pública mundial, pelo fato de a opinião pública ter influído na decisão final e portanto
ter sido um dos fatores que concederam ao caso, maior projeção mundial.
O país foi envolvido em duas destas representações em que o direito à propriedade
intelectual e o acesso à saúde caminhavam em direções opostas. No primeiro deles,
iniciado em 1998, o governo sul-africano moveu um recurso a favor da quebra de
patentes de medicamentos para a AIDS contra indústrias farmacêuticas sob a
alegação de tornar o tratamento da doença no país mais acessível.
O governo sul-africano, que já desenvolvia políticas públicas para o combate à
contaminação pelo vírus – dentre elas a produção interna de remédios a partir de
fórmulas patenteadas no exterior, e distribuição local de medicamentos anti-
36 África do Sul versus GlaxoSmithKline e Boehringer Ingelheim (2003), Camarões versus GlaxoSmithKline e Boehringer Ingelheim (2005), Moçambique versus Boehringer Ingelheim e Bristol-Meyers Squibb (2004), Zâmbia versus GlaxoSmithKline, Boehringer Ingelheim e Bristol-Meyers Squibb (2004) e Zimbábue versus GlaxoSmithKline, Boehringer Ingelheim e Bristol-Meyers Squibb (2002). 37 África do Sul, Eritréia, Gana, Moçambique, Zâmbia e Zimbábue.
19
retrovirais (ZANDONAI, 2003) - se viu diante da possibilidade de extinção de seus
recursos e processos internos em nome da preservação dos acordos de patentes
intelectuais.
Nesta época, os índices de AIDS no país acusavam a contaminação de 11,4% da
população nacional - de acordo com a organização Avert -, o que caracterizava uma
situação de emergência nacional que concedia ao governo portanto, direitos
firmados na Declaração de Doha no que tange ao combate à doença (RIVIÈRE,
2003).
Em 1997, o governo da África do Sul promulgou a chamada Emenda do Controle de
Medicamentos e Substâncias Relacionadas38 (REBRIP, 2005), que tinha por objetivo
facilitar o acesso ao tratamento contra a AIDS, principalmente através da
autorização da importação e/ou produção de genéricos.
Em 5 de março de 2001, 39 indústrias farmacêuticas (Anexo I), e a Associação da
Indústria Farmacêutica da África do Sul (PMASA), entraram com processo contra o
governo sul-africano, alegando ser inconstitucional a lei de 1997 (ZANDONAI, 2003).
A seu ver, a emenda atribuía poderes inconstitucionais e arbitrários ao Ministério da
Saúde sul-africano ao permiti-lo fabricar e importar fórmulas medicinais protegidas
por patentes. A ação fora levantada com base no Acordo TRIPS, fixado no âmbito
da OMC.
O processo tramitou na Alta Corte de Pretória e foi levado a cabo no dia 18 de abril,
admitindo a participação de uma ONG – cuja escolha ficara a cargo do governo sul-
africano e que teria por função apresentar evidências que justificassem a violação do
sistema de patentes.
38 Seu texto propõe quatro disposições principais: o principio de substituição de medicamentos das corporações farmacêuticas, cuja patente de 20 anos já esteja expirada, por medicamentos genéricos mais baratos ; a criação de um comitê para fixação dos preços dos medicamentos ; a possibilidade de efetuar importação paralela ; a introdução do recurso as chamadas de ofertas internacionais lançadas pelo governo sul-africano em caso de falta de medicamentos.
20
Com o desenrolar dos fatos aumentaram as pressões da opinião pública sobre o
caso, que envolviam agora grupos da sociedade civil sul-africana e diversas
organizações não-governamentais. O resultado de tudo isso foi que o julgamento
sequer chegou a ocorrer, devido à mudança de discurso das grandes farmacêuticas,
que optaram por dialogar com o governo da África do Sul em busca de uma
conciliação: “Das 39 empresas que conduziram a ação, é sabido que 37 já haviam
abandonado o caso’’ afirmou Kevin Watkins, da Oxfam39 (ZANDONAI, 2003).
As corporações ofertaram medicamentos a um preço mais acessível40 para o
governo, que ainda assim se via longe de alcançar a solução dos problemas
relacionados ao embate.
Em 2002 o país se viu em meio a mais um embate envolvendo a propriedade
intelectual e a questão dos medicamentos ao receber queixa da TAC41 (Treatment
Action Campaign) - uma organização não-governamental promotora do combate à
AIDS no país - contra os laboratórios GlaxoSmithKline e Boehringer Ingelheim,
acusados de elevar absurdamente os preços dos anti-retrovirais42 AZT, ‘Combivir’,
‘Epivir’ e ‘Viramune’ (GILBERT, WALKER, 2002). Estes dois grupos de laboratórios
eram os únicos autorizados a produzir e comercializar os anti-retrovirais no país,
protegidos pela lei de proteção a patentes (MSF, 2004).
Neste mesmo ano, segundo o censo nacional sul-africano e o departamento
nacional de saúde, havia 4,74 milhões de sul-africanos infectados com o vírus da
AIDS (ALMEIDA, VIEIRA, 2010).
39 Confederação internacional que agrupa 14 organizações atuantes conjuntamente em 99 países, juntamente a aliados e parceiros em busca de soluções para a pobreza e injustiça. Sua missão é desenvolver ações que possam melhorar a vida das comunidades menos providas de recursos à preservação dos Direitos Humanos. 40 O preço médio do coquetel de medicamentos anti-AIDS varia entre US$ 10.000 a US$ 15.000 por ano aos pacientes dos países desenvolvidos. As contrapropostas que emergiam nesse cenário ficaram, além dos US$ 1.000 oferecidos pela Big Pharm, a cargo da CIPLA, empresa indiana que fabrica genéricos no valor de US$ 600, e da ONG Médicos Sem Fronteiras no valor de US$ 350. Alguns dias após receber a proposta de US$ 1.000, as corporações Merck Abbot Laboratoires e Brystol Myers Squibb anunciaram a disposição de fornecer os medicamentos com ‘lucro zero’ ao governo, isto é, por cerca de US$ 500 por paciente. 41 Organização sul-africana, fundada na Cidade do Cabo em 1998 com o objetivo de promover o acesso aos medicamentos anti-retroviraisatravés da ação direta de grupos norte-americanos, sindicatos e movimentos anti-apartheid. 42 Medicamentos para tratamento de infecções oriundas da ação de retrovírus
21
A AIDS é a maior causa de mortalidade na África do Sul, tendo levado aproximadamente 200.000 sul-africanos a óbito somente no ano de 2001. (THE IMPACT Of HIV/AIDS ON ADULT MORTALITY IN AS, 2001) HIV/AIDS representam hoje a maior ameaça à saúde pública do nosso país. (SOUTH-AFRICAN DEPARTMENT OF HEALTH, 2001)
A maioria das pessoas mortas em decorrência do vírus não teve acesso a
tratamentos e medicamentos que pudessem prolongar sua vida conferindo-lhe
também maior qualidade (MSF, 2004).
Na representação enviada pela TAC à Comissão Sul-Africana de Concorrência43,
constam como reclamantes tanto cidadãos africanos portadores do vírus HIV,
quanto médicos, a COSATU (Congress os South African Trade Unions)44, a própria
TAC e a CEPPWAWU (Chemical, Energy, Paper, Printing, Wood and Allied Worker’s
Union)45. Estes grupos, ao terem sua queixa representada pela África do Sul na
OMC, formaram uma “combinação de atores dentro das decisões de política
externa” (KAUPPI E VIOTTI, 1999, p. 132). Sua alegação era a de que os preços
praticados na venda de tais medicamentos eram “responsáveis diretos pelas
prematuras, previsíveis e evitáveis mortes de pessoas portadoras do vírus HIV,
incluindo crianças e adultos.” (Competition Comission of South Africa, 2001, p. 21).
Segundo o documento de queixa enviado à Comissão Sul-Africana de Concorrência,
o tratamento com coquetel anti-retroviral custava a um doente adulto 19.248,67
rands sul-africanos46 ao ano (ou 1.832 dólares americanos), enquanto o coquetel de
genéricos aprovados pela OMC lhe custaria 3.339 rands (ou 318 dólares
americanos) no mesmo período (Competition Comission of South Africa, 2001). Esta
comparação demonstra os altos preços dos medicamentos (em detrimento da
garantia de saúde aos doentes) e quão mais acessíveis eram seus genéricos fora do
país – impossibilitados de serem comercializados dentro da África do Sul devido à lei
43
Órgão governamental sul-africano, responsável por regular, fiscalizar, prevenir e apurar abusos de poder econômico. 44
Organização política sul-africana lançada em 1985, com o objetivo de firmar uma nação democrática, sem segregação racial ou entre sexos. Para saber mais, vide www.cosatu.org.za. 45
Grupo formado em 1999 entre a CWIU – União dos Trabalhadores das Indústrias Químicas – e a PPWAWU – União dos Trabalhadores das Indústrias de Papel. Seu objetivo é o de estabelecer e contribuir para a luta por uma África do Sul democrática isenta de qualquer tipo de segregação racial ou entre sexos. Para saber mais, vide link www.ceppwawu.org. 46 Rand: moeda da África do Sul.
22
de proteção de patentes. O resultado era que o governo não podia arcar com a
compra de quantidade ideal para o tratamento de todos, oferecendo-o apenas para
um grupo limitado de pessoas.
(...) os críticos apontam que o regime internacional de saúde continua sendo condicionado por uma lógica econômica limitada, que tem contribuído para acirrar a desigualdade no acesso à saúde. (HERZ E HOFFMAN, 2004)
A representação da África do Sul foi aceita, levando a discussão para a OMC sob a
perspectiva de exigir a liberação da importação e produção de remédios genéricos
para o tratamento da AIDS em seu país. A resolução do caso se deu a favor da
África do Sul, que desde então pode contar com as vantagens provenientes da
concessão de licenças voluntárias para a produção à farmacêutica Aspen
Pharmacare e outras três farmacêuticas sul-africanas, permissão para que possa
exportar estes remédios para países da África subsaariana, permissão para
importação de medicamentos para a distribuição na África do Sul caso a demanda
não seja suprida pelo licenciado, e proibição da cobrança de mais do que 5% de
royalties47 por parte das farmacêuticas sobre o valor líquido das vendas de anti-
retrovirais no país (LOVE, 2003).
O país adquiriu melhores condições para o tratamento de seus cidadãos infectados.
Não representou a solução total nem sequer imediata deste problema, cujas
proporções são imensas no país. O governo sul-africano assumiu a
responsabilidade de elaborar e cumprir um plano de oferta de tratamento à sua
população (LOVE, 2005). De acordo com determinações da Declaração de Doha
(2001) para a saúde pública, seria imprescindível a implementação de leis que
promovessem o acesso à saúde para todos. Nathan Geffen, então diretor nacional
do TAC declarou que “com o anúncio do governo sul-africano de um novo plano
para a saúde pública e a decisão tomada na OMC há poucas semanas, existe agora
uma real chance para os portadores do HIV/AIDS, seus amigos e seus familiares.”
(RIVIÈRE, 2003, p. 2).
47
Termo utilizado para designar a importância paga/a pagar ao detentor de uma propriedade qualquer (território, obra, produto, marca, patente) mediante sua utilização.
23
A análise do caso entre a África do Sul e a questão da propriedade intelectual em
consonância à questão da saúde pública e corporações farmacêuticas pode ser vista
sob duas perspectivas: a da defesa do direito à vida (por parte da África do Sul) e a
defesa do direito à propriedade intelectual (por parte da OMC).
O caso do recurso da África do Sul à OMC é um dos aspectos que evidenciam o
quanto a participação de múltiplos atores e o surgimento de novos temas na agenda
internacional reforçam a ideia da complexidade da interdependência sistêmica.
Segundo Zandonai (2003), estes novos e amplamente participativos movimentos no
sistema internacional pressupõem que o Estado nacional esteja na ‘corda bamba’: a
sociedade civil se mostra mais consciente e ativa, e as leis de mercado provocam
efeitos sobre ambos. Estas interações do sistema internacional atuais refletem-se,
segundo Hurrel (1999), na mudança de orientação da agenda política internacional
pós-Guerra Fria, antes especialmente voltada às questões de alta política e de
segurança.
A partir da década de 80, a redução da importância dos temas relacionados à
segurança permitiu a emergência de temas até então negligenciados como os
Direitos Humanos, desenvolvimento sustentável, democracia, dentre outros
(ZANDONAI, 2003). A presença de tais temas no espaço político mundial é uma
tentativa de coordenação das demandas e interesses da agenda através de
negociações e cooperações internacionais. Neste contexto, o mercado e suas leis
atuam como uma força de caráter transnacional que apesar de toda sua
abrangência tem ação determinada por grupos e indivíduos detentores dos meios de
produção – o que limita suas resoluções por vezes, a interesses privados (SANTOS,
2009).
Em se tratando do direito de acesso à saúde (programas de prevenção de doenças,
tratamento e medicamentos), devidamente assegurado por convenções e tratados
internacionais48, não se viram progressos relativos ao alcance de resultados
48 As tentativas de garantir legitimidade aos direitos dos indivíduos iniciaram-se com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Com a formalização, na Convenção de Viena de 1993, mais de 170 governos expressaram seu compromisso com a universalidade dos direitos humanos (Eide, 1998; Trindade, 1998).
24
significativos. A responsabilidade dos governos signatários é clara, porém, a
aplicabilidade das disposições dos tratados depende de uma série de fatores, dentre
eles o mercado, o interesse público e as condições internas de estabelecer e fixar as
normas. Segundo Eide (1998), a viabilização dos direitos sociais depende do
cumprimento de certas premissas dos direitos econômicos.
Seria preciso consolidar os direitos sociais49 por meio de sua positivação e efetivação, dotando-os de aplicabilidade na legislação doméstica e criando condições sociais e culturais que sustentem essa aplicabilidade (EIDE, 1998).
Embora sejam recorrentes as discussões acerca do acesso à saúde, esta continua
sendo uma questão de difícil resolução. As duas lógicas em questão – dos direitos e
do mercado – sustentam-se em razões totalmente opostas e que possuem
defensores muito bem embasados e por vezes, detentores de muito poder. De um
lado está defesa de uma atuação ética e justa dos fins, que possa favorecer a
ambos; de outro, figura uma razão instrumental, totalmente voltada à realização e
potencialização dos fins, sem se importar com os meios empregados.
O mercado (neste debate) impõe dificuldades para que os direitos humanos possam
gozar de respaldo internacional, e conta com um elevado grau de institucionalização
de seu sistema – OMC, FMI e Banco Mundial -, o que lhe assegura mais valor e
poder, principalmente quando envolvidos em barganhas (ZANDONAI, 2003). Não
significa que os mecanismos de defesa dos princípios fundamentais sejam fracos ou
de pouco valor; o que se busca evidenciar é a prevalência da lógica de mercado
frente aos Direitos Humanos, facilmente observada através de resultados de painéis
na OMC – um país deve lutar muito para prevalecer sobre a ordem questionada,
geralmente vigente em seu território – assim como seus resultados – há muito
tempo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
49 Remetem a um padrão de vida adequado, através de meios de subsistência que vão desde condições adequadas de nutrição até as condições necessárias aos serviços de saúde (Eide, 1998).
25
As duas esferas em debate – o direito à vida e o direito à propriedade intelectual -
evidenciam inúmeros aspectos do desafio dos governos dos países pobres frente ao
mundo desenvolvido. A calamidade da saúde pública na região da África
subsaariana, tida como a mais pobre do mundo, e todas as ações que vêm sendo
passíveis de serem tomadas para tentar minimizar os índices de infectados, de
mortalidade, de subnutrição, dentre outros é um exemplo disso. Nesta região, onde
é escasso o acesso à educação e à informação, e onde todas as campanhas de
conscientização para a prevenção de doenças atingem baixo nível de eficácia,
surgem idéias para ofertar às populações serviços básicos de saúde, e que vêm se
mostrando essenciais à evolução dos programas atuais.
O embate principal envolve os grupos farmacêuticos e as leis de proteção à
propriedade intelectual. Tais leis certamente são válidas por reconhecer inventores e
creditar-lhes mérito sobre suas inovações, mas por outro lado - e principalmente em
termos de medicamentos e tratamentos – representam a via que traz ao mundo
elementos necessários à manutenção da qualidade de vida frente o combate a
doenças; a mesma via que impõe altos custos para a sua comercialização, limitando
o acesso a uma parcela da população necessitada.
Existem atualmente, recursos para que se tenha acesso a medicamentos e
tratamentos; a entrada em vigor do Acordo TRIPS ocasionou uma uniformização das
legislações nacionais de propriedade intelectual, desconsiderando os diferentes
níveis de desenvolvimento tecnológico. Foi exemplificado o caso da África do Sul,
que nas ocasiões em que recorreu à OMC reivindicando acesso a medicamentos
genéricos de antiretrovirais, conseguiu a licença compulsória para sua produção e
importação, podendo a partir de então remodelar o seu sistema público de
tratamento a pacientes com HIV/AIDS. A proliferação da epidemia na década de 90,
associada ao empobrecimento das nações, fez da AIDS um dos temas centrais de
debate na política internacional.
Os índices de AIDS em um país indicam seu desenvolvimento socioeconômico, pois
quanto maior a incidência, mais elevado será o seu índice de empobrecimento geral,
menor o poder de consumo, maior o absenteísmo ao trabalho, maiores os gastos
26
com financiamento e a provisão pública e/ou privada dos serviços previdenciários,
securitários, de saúde, entre outros.Acreditava-se que a prevalência da epidemia em
10% da população de um país em desenvolvimento significaria 0,5% de redução no
crescimento econômico/ano (GILBERT, WALKER, 2002).
Ainda que se reconheça a importância e legitimidade das leis de proteção à
propriedade intelectual, as disparidades e efeitos da proteção às patentes por vezes,
contribuem para a elevação dos alarmantes índices de contaminação e morte por
doenças negligenciadas. Este paralelo demonstra que a questão da exposição
destas populações às doenças e a falta de perspectiva de tratamentos continuam
não atingindo a universalidade das ideias dos direitos; continua prevalecendo a
lógica de mercado, que coloca a comercialização da saúde em primeiro plano.
A AIDS traz consigo uma grande carga de estigma e preconceito, e o seu combate
envolve mudanças de hábitos e práticas fortemente enraizadas nas crenças e
valores culturais de uma determinada sociedade, dificultando com isso a ação dos
poderes públicos. A mudança deste cenário exige muitos esforços de muitos setores
da sociedade que a reivindica, e é importante observar que há cada vez mais casos
exemplificadores de que seja possível mudar este cenário.
O problema não está em levantar recursos financeiros para resolver a questão da
má distribuição do acesso à saúde no mundo. Por outro lado, a discussão está em
repensar as prioridades e rever os conceitos do que de fato é importante, assumindo
assim uma responsabilidade que, uma vez compartilhada por todos com seriedade,
será cada vez menor e custará cada vez menos para cada um.
27
Intellectual Property, TRIPS Agreement and the know ledge monopoly: how
drugs patents determine the life chances
Ana Paula Thomaz Ribeiro
Leandro de Alencar Rangel
ABSTRACT
The patent is an instrument that gives manufactures of all kinds, the right to prevent
the manufacture, sale and importation of patented products and processes. For the
pharmaceutical industry, this instrument allows the setting of prices above marginal
costs, guarantee the recovery of expenditure on research and development and the
generation of profit. According to UNAIDS, 33,4 million people worldwide are living
with AIDS, two thirds of this total, inhabitants of sub-Saharan Africa, where the virus
appears as the leading cause of death, and the access to medicines and treatments
are restricted. The WTO has changed some of the international standards of
intellectual property rights through mechanisms such as TRIPS (Trade-Related
Aspects of the Intellectual Property Rights), characterized as one of the most
controversial components of the Institution’s system.
Keywords: Patents, TRIPS Agreement, poverty, economic liberalism.
28
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