a prudência da história
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
FACULDADE DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIAMESTRADO
A PRUDNCIA DA HISTRIAA Tradio da Retrica e as Aporias da Modernidade
Cludio Fernandes Ribeiro
GOINIA2012
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TERMO DE CINCIA E DE AUTORIZAO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES EDISSERTAES ELETRNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Gois(UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes(BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei n 9610/98, o do-cumento conforme permisses assinaladas abaixo, para fins de leitura, impresso e/ou down-load, a ttulo de divulgao da produo cientfica brasileira, a partir desta data.
1. Identificao do material bibliogrfico: [ X ] Dissertao [ ] Tese
2. Identificao da Tese ou DissertaoAutor (a): Cludio Fernandes RibeiroE-mail: [email protected] e-mail pode ser disponibilizado na pgina? [ ]Sim [ X ] No
Vnculo empregatcio do autorAgncia de fomento: CAPES Sigla:Pas: Brasil UF: Go CNPJ:Ttulo: A Prudncia da Histria: A Tradio da Retrica e as Aporias da Modernidade
Palavras-chave: Teoria da Histria, Retrica, ModernidadeTtulo em outra lngua: The Prudence Of History
Palavras-chave em outra lngua: Theory of history, rhetoric, modernity
rea de concentrao:
Data defesa:(dd/mm/aaaa)Programa de Ps-Graduao: HistriaOrientador (a): Carlos Oiti Berbert JniorE-mail:Co-orientador(a):*E-mail:
*Necessita do CPF quando no constar no SisPG
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________________________________________ Data: ____ / ____ / _____Assinatura do (a) autor (a)
1Neste caso o documento ser embargado por at um ano a partir da data de defesa. A extenso deste prazo suscita
justificativa junto coordenao do curso. Os dados do documento no sero disponibilizados durante o perodo de
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CLUDIO FERNANDES RIBEIRO
A PRUDNCIA DA HISTRIAA Tradio da Retrica e as Aporias da Modernidade
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Histria, da Faculdadede histria, da Universidade Federal deGois, como requisito para a obteno doTtulo de Mestre em Histria.
rea de Concentrao: Cultura, Fronteirase Identidades.
Linha de Pesquisa: Idias, Saberes eEscritas da (e na) Histria
Orientador:Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Jnior
GOINIA2012
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R484p
Ribeiro, Cludio Fernandes.
A Prudncia da Histria: a Tradio da Retrica e as Aporias daModernidade / Cludio Fernandes Ribeiro: Faculdade de Histria -Universidade Federal de Gois - UFG, 2012.
126f.
Inclui referncias
Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Histria - Universidade Federal de Gois
Orientador:Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Jnior1.Teoria da Histria. 2.Retrica.3.Modernidade. I.Ribeiro, Cludio
Fernandes.
CDU 930.24
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CLUDIO FERNANDES RIBEIRO
A PRUDNCIA DA HISTRIAA Tradio da Retrica e as Aporias da Modernidade
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, da Faculdade dehistria, da Universidade Federal de Gois, como requisito para a obteno do Ttulo de
Mestre em Histria, aprovada em _____/_____/_____, pela Banca Examinadora constitudapelos professores:
______________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Oiti Berbert Jnior (UFG)
(Presidente)
______________________________________________________________
Prof. Dr. Arthur Alfaix Assis (UnB)
(Arguidor)
______________________________________________________________
Prof. Dr. Cristiano Alencar Arrais (UFG)
(Arguidor)
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Adriano Correia (UFG)
(Suplente)
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Dedico este trabalho memria de duassbiaspersonagens com as quais aprendi muito sobre a
histria e sobre a vida:
Antnio Ribeiro da Silva (1930 - 2008) eRegina Fernandes dos Santos (1936 - 2009)
Meus avs maternos.
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Agradecimentos
Ao professor Carlos Oiti que, alm de orientador, um mestre por excelncia,
verdadeiramente preocupado com a formao de seus alunos e com a construo do
pensamento crtico. A ele devo um grande respeito e admirao e agradeo por
todos os ensinamentos valiosos e decisivos e, sobretudo, pela pacincia e
compreenso nos momentos crticos deste trabalho.
Agradeo aos meus pais, Domingos Fernandes e Luzia Ribeiro, pelo apoio
permanente em tudo e em todos os momentos, ao longo de minha existncia; soeles que me fornecem, gradativamente, o discernimento necessrio para algum dia
poder dizer, como disse o mais clebre personagem de Cervantes: Eu sei quem
sou.
minha irm, Fernanda Fernandes Ribeiro, pela compreenso e pela autntica
experincia fraterna.
professora Fabiana Fredrigo, por quem, desde a graduao, nutro uma grande
admirao e um profundo respeito, tendo sido ela personagem fundamental na
minha formao.
Ao professor Adriano Correia, com quem tive um dilogo muito profcuo a respeito
do meu trabalho, agradeo pela ateno e receptividade.
Aos colegas de mestrado que compartilharam, de uma forma ou de outra, as vrias
alegrias e angstias que este perodo suscita.
Agradeo aos meus amigos, antigos e novos, pela companhia e pela contribuio
singular que cada um, ao seu modo, me forneceu durante esta jornada. Em especial:
Henrique Domingues Nunes, Flvia Freire, Karla Vieira, Tiago Zancop, Mariana
Noleto, Raquel Arajo, Rayane Arajo, Vitor Hugo, Laura de Oliveira, Victor Creti,
Danielli Borges, Ademir Luiz, Carlos Augusto Silva, Daniele Maia, Philippe Sartin
e Priscilla Lima.
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Resumo
Este trabalho, intituladoA Prudncia da Histria: A Tradio da Retrica e as Aporias da
Modernidade, apresenta uma investigao sobre os elementos que a tradio da retrica e
da sabedoria prtica (phronesis) associada a ela oferece forma de conhecimento
especfico das humanidades (ou, como se convencionou denomin-las: cincias
humanas). Num primeiro momento (captulo 1), apresentaremos uma anlise sobre o
processo de marginalizao sofrido por esta tradio, na modernidade, no momento em
que se erigiu o mtodo das cincias naturais e em que houve uma expropriao da
experincia tradicional (experincia esta caracterizada pelo senso comum e pela atenoaos limites da ao humana). Num segundo momento (captulo 2), analisaremos os
desdobramentos desta marginalizao tomando como ponto de referncia a crise entre as
categorias da experincia do tempo. Por fim (captulo 3), abordaremos o fenmeno da
retomada da tradio da retrica no sculo XX, objetivando expor como tal retomada
constitui um esforo evaso do fenmeno que denominamos (a partir das teses de
Koselleck e Ivan Domingues) como Aporias da Modernidade, isto : a neutralizao da
ao (presente) na vida prtica, que decorre do (1) engessamento do passado e da
tradio e da (2) crena em um futuro perfectibilista e sempre adivel.
Palavras-chave: Histria, Retrica, Modernidade.
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Abstract
This work, entitled Prudence of History: Rhetoric Tradition and Aporiae of Modernity,
presents an investigation about the elements that rhetoric tradition and practical wisdom
(phronesis) associated to itprovide to the form of specific knowledge of humanities (or,
as it has been called: human science). At first (chapter 1), we will present an analysis
about the process of marginalization suffered by this tradition, in the modernity, at the
moment that the method of natural sciences was erected and also when there was an
expropriation of traditional experience (this experience means common sense and the
limits of human action). Secondly (chapter 2), we will analyze the consequences of thismarginalization taking the crises between the categories of time experience as a reference
point. Finally (Chapter 3), we will approach the phenomenon of the resumption of rhetoric
tradition in the 20thcentury, aiming to show how this resumption constitutes an effort to the
evasion of the phenomenon that we called (based on Koselleck and Ivan Domingues
theses) as Aporiae of Modernity, that is: the neutralization of the (present) action in the
practical life, which is caused by the (1) rigidities of the past and tradition, and by the (2)
belief in a perfectibilist and always deferrable future.
Key-words: History, Rhetoric, Modernity
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Sumrio
Agradecimentos ....................................................................................................................5
Resumo ..................................................................................................................................6
Introduo ...........................................................................................................................11
Captulo 1 A marginalizao da tradio da retrica na modernidade e suasconsequncias para as Humaniora ....................................................................................17
1.1.
Introduo ................................................................................................................17
1.2. O desenvolvimento da cincia moderna e expropriao da experincia tradicional.21
1.3. A problemtica do saber moral e do conhecimento cientfico na modernidade (notasobre uma transformao semntica) .............................................................................39
Captulo 2A temporalizao da histria e crise do tempo pr esente ............................52
2.1. Introduo ...............................................................................................................52
2.2. Secularizao, temporalizao da histria e o cisma entre as categorias meta-
histricas .......................................................................................................................56Captulo 3Por um possvel acrscimo de sentido ...................................................77
3.1. Introduo ..............................................................................................................77
3.2. A problemtica do kairs(o tempo oportuno) ........................................................80
3.3.
O enigma ontolgico do rastro e o paradigma indicirio (nota sobre um problemahistrico-filosficoI) .................................................................................................92
3.4.
A representncia e a retrica (nota sobre um problema histrico-filosficoII)..102Consideraes Finais .......................................................................................................118
Referncias Bibliogrficas .......................................................................................121
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Thus conscience does make cowards of us all;And thus the native hue of resolutionIs sicklied oer with the pale cast of thought;And enterprises of great pith and moment,With this regard, their currents turn awry,
And lose the name of action.1
William Shakespeare
El destino del hombre es, pues, primariamente,accin. No vivimos para pensar, sino al revs:pensamos para lograr pervivir.2
Jos Ortega y Gasset
1SHAKESPEARE, William. Hamlet, Prince of Denmark. In: The Complete Works of William Shakespeare.London and Glasgow: Collins, 1978, p. 1047.2 ORTEGA Y GASSET, Jos. Ensimismamiento y Alteracon. In: Obras Completas Tomo V (1933-1941). Madrid: Revista de Occidente, 1964, p. 308.
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Introduo
somente a partir da mais elevada fora do presenteque tendes o direito de interpretar o passado; somente na extrema tenso das vossas faculdadesmais nobres que adivinhareis o que grande dopassado, o que digno de ser conhecido econservado. 3
Friedrich W. Nietzsche
A epgrafe acima consiste em um trecho da Segunda Considerao Intempestiva, dofilosofo alemo Friedrich Nietzsche,publicada em 1874 e discorrida a respeito da utilidade
e dos inconvenientes da Histria para a vida . Apesar de no nos envolvermos aqui, de
forma aprofundada, com a complexa implicao filosfica que tal referncia pode suscitar
se observada estritamente no interior da obra nietzscheana , acreditamos ser
indispensvel abrir o caminho para a apresentao de nossa problemtica ressaltando a
atualidade de tal considerao. A preocupao presente na segunda considerao
intempestiva de Nietzsche , como o prprio subttulo indica, a problemtica da vantagem
(o valor) ou a desvantagem (inconveniente) da histria para a vida, ou seja, Nietzsche se
preocupou em pensar o que o sentido histrico pode significar como positividade para a
vida prtica. Nas palavras de Nietzsche, que escrevia em 1873:
E agora lancemos rapidamente um olhar sobre a nossa poca. Ficamos assustadose recuamos: no que se transformou esta ligao pura, clara e natural que deveriaunir a vida e a histria? Que problema confuso, disforme, inquietante temosdiante dos olhos! [...] um astro magnfico e luminoso se interps efetivamenteentre a histria e a vida; de fato, esta constelao foi modificada: atravs dacincia, pela vontade de fazer da histria uma cincia. No mais a vida somente
que governa e refreia o conhecimento do passado: todas as barreiras foramderrubadas e o homem submergiu no fluxo de tudo aquilo que um dia existiu.Todas as perspectivas foram estendidas ao infinito, para to longe at onde podiahaver um futuro. Nenhuma espcie jamais viu se desenrolar infinitamente umespetculo comparvel a este que nos apresenta a histria (Historie), esta cincia
3NIETZSCHE. F. W. II Considerao Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da Histria para avida. In:Escritos sobre a histria. Rio de Janeiro: Ed.PUCRio;So Paulo: Loyola, 2005.
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do devir universal (die Wissenschaft des universalen Werdens); verdade que elademonstra com isso a perigosa ousadia da sua divisa: fiat veritas, pereat vita[faa-se a verdade, ainda que a vida perea].4
Permeia essa considerao de Nietzsche uma profunda crtica ao excesso de
histria do sculo XIX. O ataque de Nietzsche pode ser encarado como tendo um alvo
principal: o historicismo alemo. Entretanto, a despeito das particularidades inerentes ao
historicismo, a dimenso desse ataque abrange o fato do engessamento do passado, da
memria e da tradio provocado por uma situao histrica na qual a prpria histria trata
o passado como objeto frio, esttico, sem relao com o presente. Nesse sentido, como
bem especifica a estudiosa da obra de Nietzsche e tradutora da referida considerao, Noli
C. de Melo Sobrinho, o sentido histrico nos trs modos como ele se verifica (histria
tradicional, histria monumental e histria crtica): efetivamente uma necessidade para
os homens, mas somente na medida em que este olhar para o passado seja impulsionado por
foras e fins que no criem amarras para a ao no presente, nem levantem obstculos
construo de um futuro que no seja mera repetio.5Nas palavras do prprio filsofo:
Quanto a saber at que ponto a vida tem necessidade dos prstimos da histria,esta uma das questes e das inquietaes mais graves que concernem sade deum indivduo, de um povo ou de uma cultura. Pois o excesso de histria abala efaz degenerar a vida, e esta degenerescncia acaba por colocar em perigo a
prpria histria.
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Essa digresso em torno da posio nietzscheana referente histria nos impele s
reflexes de uma pesquisadora contempornea que assume, em suas reflexes, uma postura
com relao atividade do historiador considerando essencial a relao entre histria e
ao (na vida prtica). No ensaio Verdade e memria do passado, publicado no livro
Lembrar Escrever Esquecer(2006), Jeanne Marie Gagnebin apresenta-nos indagaes que,
grosso modo, exprimem o cerne da problemtica de nosso trabalho. Escreve ela que:
o que se manifesta, tanto num plano terico como prtico, na nossa preocupaoativa com a verdade do passado? Por que fazemos questo de estabelecer ahistria verdadeira de uma nao, de um grupo, de uma personalidade? Para
4Ibid., p. 99.5MELO SOBRINHO, Noli. Apresentao e comentrio. In: NIETZSCHE, F. Escritos sobre a histria.Rio de Janeiro: Ed.PUCRio;So Paulo: Loyola, 2005, p. 32.6NIETZSCHE, Op. Cit., p. 81-82.
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esboar uma definio daquilo que chamamos de verdadeiro, no devemosanalisar primeiramente essa preocupao, esse cuidado, essa vontade deverdade (Nietzsche) que nos move? Entendo com isso que a verdade do passadoremete mais a uma tica da ao presente que a uma problemtica da adequao(pretensamente cientfica) entre palavras e fatos.7
Como sabido, Gagnebin possui vrias reflexes sobre os acontecimentos
traumticos do sculo XX, em especial sobre o genocdio promovido pelo regime nazista.
Considerando o envolvimento da autora com tais problemticas, torna-se perfeitamente
coerente o fato de a reflexo exposta no trecho acima reclamar uma unidade indissocivel
entre reflexes epistemolgicas (tericas), isto , sobre os limites e possibilidades do
conhecimento histrico, e o carter tico, pragmtico, que o prprio saber histrico implica.
Entretanto, Gagnebin entende que a responsabilidade tica da histria (enquanto saber) e do
historiador, no privilgio de intelectuais engajados isto , diretamente envolvidos com
alguma causa de implicaes ticas e polticas patentes , mas, nas palavras da autora, esse
carter de responsabilidadesignifica levar a srio e tentar pensar at o limite essapreciosa
ambigidadedo prprio conceito de histria, em que se ligam, indissociavelmente, o agir e
o falar humanos: em particular a criatividade narrativa e a inventividade prtica.8 Esta
relao inextricvel entre o saber histrico e as implicaes ticas dele decorrentes,
ressaltada por Gagnebin, nos conduz seguinte problemtica:
Uma tradio especfica, que fornecia elementos importantes compreenso e saes adequadas no mbito da vida prticae que, por possuir tal caracterstica, munia-se
de uma coerncia tica interna foi paulatinamente marginalizada da esfera do saber, a
partir da ecloso da filosofia e da cincia modernas, no sculo XVII. Referimo-nos
tradio da antiga arte retrica, erigida na Grcia antiga, a qual manteve configuraes
profcuas at o perodo do Renascimento. O desenvolvimento da cincia moderna e a
consequente transformao no sentido tradicional de experincia (pthei mthos)deu-se
de tal forma que a tradio da retrica e das virtudes que lhe eram inerentes, sobretudo a
virtude da sabedoria prtica (phronesis), perderam, paulatinamente, sua efetividade
cognitiva e pragmtica. A forma de raciocnio inerente tradio da retrica, o raciocnio
por ndices, que lida com rastros, pistas, grosso modo: com particularidades, tambm foi
7GAGNEBIN, J. M.Lembrar Escrever Esquecer. So Paulo: Editora 34, 2006, p. 39.
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relegado margem, em virtude de seu carter provvel e indireto. Somado a estes fatos, as
modernas filosofias utpicas da histria, fomentadas pela crtica iluminista, promoveram
a possibilidade de planejar o futuroe aperfeioar o homem. As consequncias morais e
polticas desta possibilidade provocaram, segundo nos informa Koselleckcomo veremos, a crise na qual estamos mergulhados at o momento presente. A crise, da qual trata
Koselleck, pensamos ns, no pode ser compreendida se no se levar em conta o
desenvolvimento da cincia moderna, as concepes de razo e racionalidade atreladas a
ela e as transformaes da concepo tradicional de experincia que contribui diretamente
para o obscurecimento da tradio da virtude daphronesise da arte retrica.
Contatamos, entretanto, que esta tradio foi retomada, no sculo XX, em reflexes
de filsofos e historiadores. Esta retomada, pensamos ns, pode ser compreendida pelo fato
de que tal tradio fornece subsdios que possibilitam uma crtica alternativa crise
advinda da experincia do tempo na modernidade, bem como possibilita histria
(enquanto saber) desvencilhar-se das aporias relativas oposio entre
racionalismo/irracionalismo, e, tambm, possibilita endossar as reflexes sobre o carter de
sentido, de orientao, que a histria pode fornecer vida prtica.
Todavia, faz-se necessrio, nesta introduo, especificarmos o que entendemos aqui
por Modernidade. Ao longo de nosso trabalho, utilizaremos a expresso modernidade
de forma aparentemente genrica. No entanto, o uso do termo se justifica a partir dos
pontos que compem nossa problemtica. Esclareamo-nos, ento. Nossa problemtica
ser pensada a partir da dade intuio do efmero/desejo de eternidade, elaborada pelo
filsofo Ivan Domingues, em sua obra O Fio e a Trama Reflexes sobre o Tempo e
Histria9. Estes dois termos citados so tidos pelo autor como operadores hermenuticos
(ou, poderamos classificar, tambm, como operadores antropolgicos) que permitem
analisar a relao entre experincia do tempo e da histria que os homens elaboram ao
longo de sua existncia. Segundo Domingues, a intuio do efmero, isto , a percepo de
8Ibid., p. 43.9DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: reflexes sobre o tempo e a histria. So Paulo: Iluminuras; BeloHorizonte: Editora UFMG, 1996.
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que o tempo destrutivo, corrosivo, de que existem as doenas, a velhice e a morte, nunca
se dissocia do desejo de eternidade, ou seja, da vontade de transpor esta realidade trgica
que o tempo nos apresenta. desta tenso entre o efmero e a procura do perene, de algo
que dure e garanta o mnimo de estabilidade, que se pode extrair um quadro interpretativode como os homens concebem a experincia do tempo e da histria. No entanto, Ivan
Domingues ressalta que, especificamente, no perodo da modernidade (isto , a partir da
segunda metade do sculo XVI at, propriamente, os nossos dias, a despeito da
complexidade que as discusses sobre a ps-modernidade possam suscitar, s quais, dados
os limites deste trabalho, no poderemos nos debruar com o devido cuidado), o desejo de
eternidade, da inscrio do homem e das coisas no registro do eterno, do perene,
experienciado como:
[...] a durao indefinida ou o infinito prolongamento do tempo, levando a umestado de dilaceramento em que a afirmao do eterno no temporalno presente
vai junto com a sua negao pelo prprio tempo, visto que a instncia que oabrigao presentese revolve, dele se desloca e abre-se ao tempo que flui, semdescanso, em direo ao infinito imperscrutvel.10
Compreendemos, pois, que, na modernidade, notadamente a partir do sculo XVII,
tentou-se agenciar o problema da intuio do efmero, do temporal, da contingncia, por
meio da razo de inspirao matemtica e da cincia (e da tcnica desenvolvida a partirdesta). Dessa forma, esta opo moderna erigiu-se, de forma progressiva, em duas aporias:
a primeira consiste na hipostasia do tempo presente (um presente que no se experimenta
mais como presente). Tal hipostasia relaciona-se, como explicitam as teses do historiador
alemo R. Koselleck, ao cisma entre as categorias meta-histricas de espao de experincia
e horizonte de expectativa. Pois, medida que o espao de experincia achatado,
devido acelerao proporcionada pelos ideais de progresso, desenvolvimento, revoluo,
etc., o passado desvalorizado e encarado como depsito morto e todo arcabouo detradicionalidade, de subsdios para a orientao no presente, torna-se fechado, rgido,
frio, sem capacidade de constituir sentido (isto , uma potencialidade criativa) no presente.
Paralelamente, o futuro encarado como novidade interminvel, sempre adivel, no qual o
10Ibid., p. 39.
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homem sempre o sujeito que se aperfeioa constantemente. A segunda aporia refere-se ao
fato de que, na medida em que a razo alou grandes patamares na modernidade, ocorreu,
paradoxalmente, a perda de uma racionalidade adequada a lidar com os problemas
caractersticos da falibilidade humana. Nossa hiptese a de que estas duas aporias estoentrelaadas e que o resgate da tradio da retrica e da sabedoria prtica, no sculo XX, se
d por conta de uma demanda transposio destes problemas.
Nesse sentido, em nosso primeiro captulo, sero expostas as reflexes sobre o
processo de marginalizao da retrica na modernidade, destacando-se o problema
concernente experincia tradicional e cincia. Em nosso segundo captulo, analisaremos
a relao entre o desenvolvimento das modernas filosofias da histria e a questo da crise
das categorias meta-histricas, bem como, destacaremos o fato da neutralizao (hipostasia)
que se impe ao no tempo presente. Em nosso terceiro captulo, estruturaremos uma
discusso histrico-filosfica, a partir da relao que autores como Heidegger, Ricoeur,
Ginzburg e Perelman, tiveram com a retomada de elementos da tradio da retrica para
pensar a histria e a experincia do tempo. Procuraremos pensar, a partir desta discusso, o
problema da relao entre sentido (ontolgico) da histria e a prpria operao
historiogrfica.
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Captulo 1A marginalizao da tradio da retrica na modernidade e suas
conseqncias para as Humaniora
Pollw~~|to_fronei~n eu0daimoni/avprw~ton u9pa/xei: xrh_de_ta/g )ei)v qeou/vmhde_n a)septei~: mega/loimega/lav plhga_v tw~n u(pepau/xwna)potei/santev
gh/ra|to_fronei~n e)di/dacan.11
Sfocles,Antgona
1.1. Introduo
O filsofo alemo Hans-Georg Gadamer publicou um breve artigo na quarta seo
de Verdade e Mtodo II, intitulado Problemas da razo prtica.12Em tal escrito, Gadamer
tece algumas reflexes sobre o problema fundamental que norteou toda a sua carreira, isto
, a auto-compreenso das "Cincias do Esprito (ou, humaniora, como o prprio filsofo
se refere), almejando uma base reflexiva alternativa quela na qual se erigiram as Cinciasda Natureza. O eixo central das reflexes de Gadamer gira em torno da seguinte questo:
Qual o carter epistemolgico das cincias do esprito? Evidentemente, a resposta a
essa questo consiste em toda a elaborao da hermenutica filosfica gadameriana,
exposta, em especial, no primeiro volume da obra mencionada. Ressaltaremos, por hora, a
essencial preocupao implcita indagao de Gadamer.
A concepo moderna de cincia est diretamente associada ao conjunto de
conhecimentos acerca da natureza, cujo fundamento consiste no conceito de mtodo, o11 SFOCLES, Antgona. In: ALMEIDA, Guilherme de; VIEIRA, Trajano. Trs tragdias gregas:Antgona, Prometeu, jax. So Paulo: Perspectiva, 2007, p. 130. Segue a traduo do respectivo trecho, feitapor Guilherme de Almeida, contida, tambm, no referido volume: H muito que a sabedoria a causaprimeira de ser feliz. Nunca aos deuses/ ningum deve ofender. Aos orgulhosos/ os duros golpes, com quepagam suas orgulhosas palavras,/ na velhice ensinam a ser sbios, p. 87.
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qual, por sua vez, congrega noes como: preciso, experimento, demonstrao,
objetividade, verdade, regularidade, leis gerais, etc. Galileu e Descartes so dois dos
principais atores histricos que promoveram a instituio dessa concepo revolucionria
de cincia. A preocupao de Gadamer est em saber como, a partir deste modelo decincia aplicvel ao conhecimento dos fenmenos naturais, uma cincia relativa ao humano
tentou se constituir, nos sculos que se seguiram, sendo que seu objeto de investigao de
ordem completamente diversa. As repercusses dessa tentativa das humanidades de se
adequarem ao paradigma da cincia moderna so de vrios matizes. Mas, como ressalta
Gadamer, evidente que essas cincias se ajustaram em boa medida ao conceito moderno
de cincia.13Por exemplo:
John Stuart Mill, o famoso autor daLgica Indutivaessa obra fundamental paraexplicar o surto cientfico dos sculos XIX e XX , designou as cincias doesprito com o termo moral sciences, com o nome antigo, portanto. Mas elecomparou seu carter cientfico e isso no nenhuma piada com ameteorologia: o grau de confiabilidade dos enunciados das cincias do esprito eassemelha ao prognstico do tempo, a longo prazo. Isso segue-se evidentementeda extrapolao do conceito de cincia emprica que se imps com o triunfo dascincias naturais na poca moderna.14
A comparao de Mill sintomtica, pois aponta para o amplo raio do mtodo das
cincias naturais, o qual permeou, com seu molde, as formas de conhecimento na
modernidade. Entretanto, as humaniora mantiveram uma antiga tradio, ainda que de
forma obscurecida, que tinha por caracterstica instruir um saber que lidasse com o que
tpico das coisas humanas, isto : a contingncia, a particularidade, os valores, as
controvrsias, a imprevisibilidade, etc., sem necessariamente enquadr-lo em leis gerais ou
padres precisos de verificao e experimentao. Gadamer nos mostra que a:
corrente tradicional que transmitia o saber humano de uma gerao outra semsubmet-la crtica era a retrica. Isso torna-se estranho ao homem moderno,
uma vez que a palavra retricaparece-lhe uma palavra depreciativa, usada parauma argumentao no objetiva. Mas preciso devolver ao conceito de retricaseu verdadeiro alcance. Abarca qualquer forma de comunicao baseada na
12GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II: complemento e ndice. Petrpolis, RJ: Vozes, 2002, p.369.13Ibid., p. 370.14Ibid., p. 370.
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capacidade de falar e o que d coeso sociedade humana. Sem falar uns comos outros, sem entender-nos uns aos outros, e at sem entender-nos quando faltamargumentaes lgicas concludentes, no existiria nenhuma sociedade humana.Da, a necessidade de recobrar nova conscincia da significao da retrica e dolugar que ocupa na cientificidade moderna.15
A antiga tradio da retrica possua elementos adequados forma de saber
especfica sobre as aes dos homens. A paulatina marginalizao dessa tradio (que, at o
Renascimento, ainda mantinha uma configurao profcua) coincide com o
desenvolvimento da cincia moderna no sculo XVII. Perguntar por um carter
epistemolgico especfico das cincias do esprito implica em avaliar os impactos que tal
marginalizao nos legou. Nesse sentido, uma segunda indagao decisiva colocada por
Gadamer em seu texto: Como se apresenta para a nossa civilizao, marcada pela cincia,
isto , pela cincia emprica moderna, o legado da antiga retrica e, portanto, a
possibilidade de uma fundamentao e justificao do saber sobre o homem transmitido por
ela?16 Em suma, podemos reiterar: que pertinncia epistemolgica teria essa tradio
atualmente se, quando falamos em retrica hoje, o que nos vm mente sempre
pejorativo: enganao, seduo, mentira, falta de certeza e de veracidade?
Todavia, h algo mais fundamental implcito nessa tradio que torna pertinente o
fato de recobr-la: ela est entrelaada ao tipo de sabedoria que, no mundo antigo, lidava
com a experincia da finitude do ser humano, com a experincia do mundo sublunar,corruptvel e contingente, exigindo a ao prudente na vida prtica. Os antigos gregos
denominaram tal sabedoria com a alcunha de fro&nhsij (phronesis), que seria
compreendida e traduzida pelos latinos como prudentia, prudncia. Foi Aristteles o
responsvel por desenvolver as reflexes sistemticas sobre essa forma de sabedoria, que
podem ser observadas, sobretudo, em sua tica Nicomaquia. A interdependncia entre a
retrica e a sabedoria prtica deve estar em primeiro plano, pois a busca pelo locus
adequado para a auto-reflexo das cincias do esprito nessa tradio indica uma
necessidade elementar que est alm de um suporte epistemolgico alternativo (entendido
no sentido estrito de validao, possibilidade e delimitao de seu alcance cognitivo).
Indica, sobretudo, uma necessidade de trazer luz a relao inextricvel entre
15Ibid., p. 370-371.
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conhecimento e tica, entre razo e aes na vida prtica, carregadas de valoraes e
conseqncias polticas, tomadas de deciso e juzos em situaes de conflito.
Entendemos que, a despeito do tom pejorativo a que foi relegada, a tradio da
retrica, quando encarada como tradio viva, fornece subsdios para se ampliar asconcepes de razo e racionalidadetendo ela, portanto, uma importncia similar s teses
de Max Weber sobre a racionalidade do sentido ou a de outros autores que se puseram a
pensar a racionalidade das cincias humanas (ou do esprito). Desde o incio do sculo
XX, as tradies da retrica e da sabedoria prtica, sistematizadas por Aristteles, passaram
a ser retomadas a partir do que se convencionou denominar neoaristotelismo.17
Notadamente, na Alemanha dos anos 1920, Martin Heidegger promoveria uma
interpretao apropriadora radical do pensamento aristotlico. Nos cursos ministrados antes
da publicao de Ser e Tempo, Heidegger concentrou-se no estudo da tica Nicomaquiae
da Retrica de Aristteles, extraindo delas a seiva para a sua analtica existencial (como
veremos no captulo 3). Este empreendimento de Heidegger reverberou no pensamento de
seus alunos: Hannah Arendt, Hans Jonas, Leo Strauss e, tambm, o j citado Gadamer.
Aliado a isso, aps a Segunda Guerra Mundial, um filsofo polons, estabelecido na
Blgica, empreendeu um projeto com o intuito de resgatar e reabilitar os elementos da
tradio da retrica, se concentrando, tambm, em Aristteles. Seu nome, Cham Perelman.
Suas teses ficaram conhecidas como teoria geral da argumentao, ou, simplesmente:a
nova retrica.18Todavia, observando os argumentos destes autores, percebemos que eles
ansiaram por uma possibilidade, oferecida pelo resgate da tradio retrica no sculo XX,
de desenvolvimento de dispositivos para lidar com a prxis a vida prtica cotidiana.
Sendo assim, entendemos que tal possibilidade (ou potencial contributivo) da tradio da
retricas pode ser compreendida se nos detivermos em alguns aspectos do modo como tal
tradio passou a ser desvalorizada. O prprio Gadamer, com quem introduzimos o
problema, poder nos conduzir, inicialmente, reflexo acerca deste processo.
16Ibid., p. 371.17Cf. BERTTI, Enrico.Aristteles no sculo XX. Edies Loyola: So Paulo, 1997.18Perelman ser abordado em nosso terceiro captulo.
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1.2.
O desenvolvimento da cincia moderna e a expropriao da experinciatradicional
Em um tpico de sua obra Verdade e Mtodo I, intitulado: O conceito de
experincia e a essncia da experincia hermenutica, Gadamer assinala que:
O objetivo da cincia tornar a experincia to objetiva a ponto de anular nelaqualquer elemento histrico. No experimento das cincias naturais isso alcanado atravs do seu aparato metodolgico. Algo parecido se d tambm pormeio do mtodo da crtica histrica no mbito das cincias do esprito. Em ambosos casos a objetividade garantida pelo fato de as experincias feitas ali poderemser repetidas por qualquer pessoa. Assim como na cincia da natureza osexperimentos devem ser passveis de verificao, tambm nas cincias do espritoo procedimento completo deve ser passvel de controle. Nesse sentido, na cinciano pode restar espao para a historicidade da experincia. 19
Gadamer escreve este tpico no momento em que est desenvolvendo sua tese sobre
a conscincia da histria efeitual. Gadamer recorre expresso da tragdia grega, pthei
mthos(aprender pelo sofrimento) para definir essa experincia da historicidade, que no
outra coisa seno a experincia da prpria finitude, que leva a reconhecer que toda
expectativa e toda planificao dos seres finitos , por sua vez, finita e limitada. 20Todavia,
se, como assinala Gadamer, na cincia no pode haver espao para a historicidade da
experincia, a pergunta que se faz : qual ento a base de sustentao que possibilita s
cincias humanas (a histria, em especial) tomar um ponto de partida para refletirem sobresua prpria especificidade? No incio da obra referida, Gadamer abre suas reflexes sobre a
resistncia que as humanidades, no momento de sua cientificizao, no sculo XIX,
teriam desenvolvido contra o mtodo das cincias naturais e expe a opinio de que o
humanismo dos intelectuais renascentistas fornecia o solo para uma fundamentao mais
adequada:
O que faz das cincias do esprito cincia pode ser compreendido bem melhor apartir da tradio do conceito de formao do que da idia de mtodo da cinciamoderna. Vemo-nos remetidos tradio humanista, que ganha um novosignificado a partir da resistncia que oferece s pretenses da cincia moderna. 21
19GADAMER, Verdade e Mtodo I: traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Petrpolis, RJ:Vozes, 2008,p. 454.20Ibid., p. 467.21Ibid., p. 54.
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O ato de se remeter tradio humanista como contraponto cincia moderna,
provocado pelo conceito de formao (Bildung) localizado por Gadamer em autores
alemes22 do sculo XIX tem seu sentido no fato de que este conceito expressa a
importncia que o humanismo destacava formao intelectual e moral do homem. Estaconcepo de formao, segundo Gadamer, pode ser elucidada se considerarmos que ela
est associada retomada da tradio clssica greco-romana no perodo do Renascimento e
conseqente valorizao da retrica antiga que a ocorre. Entretanto, para endossar seus
argumentos, Gadamer recorre a um pensador da virada do sculo XVII para o sculo XVIII
que empreendeu uma defesa da tradio humanista contra o racionalismo da cincia
moderna: Giambatista Vico. Gadamer cita a ltima das prelees (a de 1708) de cunho
pedaggico que Vico escrevera quando fora professor de retrica na Universidade de
Npoles: De nostri temporis studiorum ratione(A ordem dos estudos de nosso tempo). O
que Gadamer destaca nessa preleo o apelo que Vico (sendo ele prprio professor de
retrica) faz ao antigo ideal romano de sensus communis. Este ideal estava associado
tradio das virtudes da Grcia antiga, sobretudo virtude da phronesis, a prudncia, ou
saber prtico, que contrape o ideal da sophia, ou sabedoria, mais precisamente: o saber
terico. Diz-nos Gadamer, referindo-se a Vico:
Alm do momento retrico, seu apelo ao sensus communis recolhe da tradioantiga tambm o momento do antagonismo que encontrou sua primeira figura naimagem cnica de Scrates e possui seu fundamento objetivo no antagonismoconceitual entresophiaephronesis, elaborado pela primeira vez por Aristteles edesenvolvido nos Peripatticos como uma crtica do ideal terico de vida. Napoca helenstica, esse ideal determinou a imagem do sbio, principalmentedepois que o ideal de formao grega se tinha fundido com o extrato polticodominante de Roma. Como se sabe, tambm a cincia jurdica romana, no seu
perodo tardio, foi erigida com base na arte e na prtica jurdicas, mais prximasdo ideal prtico daphronesisdo que do ideal terico dasophia. 23
22 O conceito de Bildung possui uma complexidade muito vasta, cuja anlise excederia os limites destetrabalho. Entretanto, ressaltamos que tal conceito, encarado por Gadamer como um dos conceitos-guia dohumanismo, foi explorado por muitos autores alemes do sculo XIX. Dentre eles, destacamos Johann GustavDroysen, autor do Grundriss der Historik (conferir: DROYSEN, Johann Gustav. Manual de Teoria daHistria[2009]), que, a partir da relao entre o conceito deBildunge o mtodo histrico, procurou sustentarque a tica seria a verdadeira filosofia da histria (Conferir: CALDAS, Pedro S. P. A tica a verdadeirafilosofia da histria:Bildunge Hermenutica em Droysen [2011]).23Ibid., p. 56-57.
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Esta crtica do ideal terico de vida retomada por Vico, no incio do sculo
XVIII, para pensar a forma dominante dos estudos de seu tempo, ou seja, a cincia crtica
dos racionalistas, herdeiros de Descartes. Entretanto, Vico no contesta as vantagens da
moderna cincia, mas:
lhe indica seus limites. Ningum poder dispensar a sabedoria dos antigos, ocultivo da prudentiae da eloquentia, nem mesmo agora, diante da nova cinciamatemtica. O tema da educao tambm seria outro: a formao do sensuscommunis, que no se alimenta do verdadeiro, mas do verossmil. 24
As pesquisas de Vladimir Chaves dos Santos acerca da obra de G. Vico podem nos
auxiliar a compreender melhor a importncia da formao humanstica dosensuscommunis
em Vico e o porqu de seu interesse pela necessidade de preserv-la numa relaocomplementar com a cincia. No artigo Vico e a ordem dos estudos de seu tempo: a ligao
entre conhecimento e tica, de 2003, Santos aponta que, ao avaliar a ratiostudiorumde seu
tempo:
que seria baseada na crtica, ou arte de julgar, e contrastando-a com a ordem deestudos dos antigos, que seria baseada na tpica, ou arte de inventar argumento,Vico fez um diagnstico das conseqncias nocivas que a epistemologiacartesiana poderia causar pedagogia, partindo do princpio que o conhecimentono deve ser apenas verdadeiro, mas tem que ter um valor tico-social, isto ,
uma relao com o bem comum da sociedade.
25
Sabemos que, dentro da teoria do conhecimento de Descartes, havia a rejeio de
todo conhecimento que fosse somente provvel, e que no tivesse a garantia da plena
certeza, indubitvel. Nesse mbito, no havia espao para o verossmil, que lida exatamente
com o que controverso e particular, tendo assim uma caracterstica no redutvel razo
matemtica. Seguindo a argumentao de Vladimir Santos, vemos que:
a Vico desagradava o fato de os modernos afastarem-se da tpica. Aos modernos
interessaria unicamente a verdade; as coisas verossmeis que circundavam averdade deveriam ser vistas como falsas, sem tpica alguma. Vico ento se
24Ibid., p. 57.25SANTOS, Vladimir Chaves. Vico e a ordem de estudos de seu tempo: a ligao entre conhecimento e tica.In: Educ. Soc. Campinas. Vol. 24, n 85, dezembro 2003, p. 1278.
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lanou a uma defesa do verossmil, alegando que na maioria das vezes este verdadeiro e raramente falso. 26
Entretanto, Vico, ao defender o humanismo, almejava tambm suprimir a
deficincia tica presente na crtica racionalista da cincia moderna. Segundo Santos, Vicoesperava:
que os adolescentes fossem educados, sobretudo no senso comum, a fim de quena vida prtica da maturidade no prorrompessem em atitudes estranhas earrogantes; contudo ele temia que isso fosse sufocado pelo mtodo crtico dosmodernos, que afastava da mente tudo o que era verossmil. Segundo Vico, assimcomo a cincia nasce da verdade e o erro da falsidade, o senso comum nasce daverossimilhana. Tomadas de posio estranhas e arrogantes seriam derivadas deuma falta de prudncia e eloqncia, e isso ocorreria porque, ao se rechaar osenso comum, no restaria uma regra para a prudncia, tampouco se tornarianecessrio adequar o discurso opinio dos ouvintes. 27
V-se que a tradio humanista, como Gadamer j nos dizia, levava em
considerao a formao para o convvio em comunidade, tendo assim uma perspectiva
tica. A virtude da sabedoria prtica, ou a prudncia, decisiva para essa formao, pois ,
ao mesmo tempo, um procedimento intelectual, isto , capaz de conhecer as coisas
particulares, calcadas no senso comum e no verossmil, bem como, uma virtude moral, pois
leva em conta as aes e decises na vida prtica em sociedade. Nesse sentido, h uma
diferena essencial entre a cincia e a prudncia. Nas palavras do prprio Vico: na cincia
excelem aqueles que aduzem uma nica causa da qual so produzidos mltiplos efeitos
naturais; na prudncia, ao contrrio, prevalecem aqueles que investigam as quantas causas
mltiplas de um nico fato, para conjecturar qual seja a verdadeira.28
Assim, vemos que Vico tinha uma grande preocupao com a rechaa do
humanismo operada pela cincia moderna e cuidou em tentar preservar, dentro do possvel,
seus elementos, atravs, sobretudo, de seus escritos pedaggicos. Dessa forma, em oposio
direta ao que viria a ser chamado de racionalismo, Vico referiu-se continuamente s
limitadas possibilidades cognoscitivas de que o homem dispe e que no transcendemjamais os limites da experincia.29 certo que o filsofo napolitano ainda estava imbudo
26Ibid., p. 1279-1280.27Ibid., p. 1281.28VICO, G. apud SANTOS, Op. Cit., p. 1282.29SANTOS, Vico e a ordem de estudos de seu tempo, p. 1282.
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de elementos da antiga retrica, resgatados e renovados por seus conterrneos durante o
perodo do renascimento, e que ainda considerava a experincia em seu sentido tradicional,
o qual exigia a ao fundada na prudncia, no domnio do senso comum. Entretanto, as
propostas de Vico praticamente no tiveram repercusso alguma no curso do pensamentomoderno, sobretudo sobre os iluministas do sculo XVIII. Ren Descartes, ao contrrio,
viria a ser talvez a principal figura a dominar a cena intelectual deste perodo, fornecendo
subsdios para a fundamentao do racionalismo.
Num dos pargrafos iniciais do Discurso do Mtodo (1637), no momento em que
escreve sobre sua trajetria e escolhas intelectuais, Descartes afirma:
Eu apreciava muito a eloqncia e estava enamorado da poesia; mas
pensava que uma e outra eram dons do esprito, mais do que frutos do estudo.Aqueles cujo raciocnio mais vigoroso e que melhor digerem seus pensamentos,a fim de torn-los claros e inteligveis, podem sempre persuadir melhor os outrosdaquilo que propem, ainda que falem apenas baixo breto e jamais tenhamaprendido retrica.30
Podemos perceber, a partir destas linhas de Descartes, como a retrica estava sendo
concebida na primeira metade do sculo XVII o que, como vimos, justifica a posio
defensiva de Vico na virada do sculo. Os portadores de raciocnios mais vigorosos no
necessitariam mais, segundo Descartes, das tcnicas fornecidas pela retrica para persuadir
outros indivduos acerca daquilo que se discute. Evidentemente, tal assertiva tem total
coerncia com o pensamento cartesiano e, de maneira geral, com a filosofia e a cincia da
poca moderna. O Eu penso, o ego cogito, encarado como modo de pensamento claro e
distinto, funda a possibilidade da cincia a partir da idia de uma essncia objetiva, isto ,
de uma idia que o garanta a existncia e a natureza de seu objeto31. O sujeito da metafsica
cartesiana busca nas matemticas esta essncia do conhecimento verdadeiro. Nesse sentido,
a verdade sobre as coisas se mostra evidente a qualquer sujeito que pense orientado pelo
mtodo. Na eventualidade de alguma controvrsia, podemos dizer, na esteira dopensamento de Descartes, que algum dos interlocutores no estar racionalmente assentado
30DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. In:Obra Escolhida. So Paulo: Difuso Europia do Livro,1973, p. 45.31Cf. GRANGER, Gilles-Gaston. Introduo. In: DESCARTES, R.Op. Cit., 1973.
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naquilo que evidente e que, dessa maneira, estar incorrendo em erro. Se assim o , de
fato a retrica se apresenta como algo que, se no banal, est relegada margem do
conhecimento.
Compreendemos melhor esta posio de Descartes acerca da retrica se levamos emconta o fato capital de que ele, ao lado de Galileu, foi um dos principais personagens da
grande revoluo cientfica do sculo XVII. Percebemos que h um contraste fundamental
entre este sculo em que se deu o desenvolvimento da moderna cincia, e os sculos
anteriores, isto : o perodo que compreende o que se convencionou denominar
Renascimento. O processo de marginalizao da tradio da retrica figura no interior deste
contraste, no momento em que o sculo XVII se volta contra o Renascimento e a tradio
humanista. Este processo de ruptura contrape as interpretaes tradicionais que
estabelecem uma conexo ininterrupta entre as conquistas que os homens renascentistas
teriam obtido ao superar os elementos negativosda Idade Mdia e o desenvolvimento da
cincia moderna e do ideal de progresso da modernidade. Esta interpretao tradicional se
enquadra naquilo que Stephen Toulmin denomina como narrativa padronizada (standard
account) da modernidade.
Toulmin, em suas investigaes expostas na obra CosmopolisThe hidden Agenda
Of Modernity (1992), se contrape interpretao convencional sobre as origens da
modernidade e identifica uma ruptura essencial entre 1) humanismo, cujas caractersticas
permanecem aproximadamente at o incio do sculo XVI, tendo por principal expoente
Michel de Montaigne e 2) racionalismo, que se desenvolve aproximadamente a partir de
1630, tendo por principal representante Ren Descartes. Para Toulmin, a passagem do
humanismo para o racionalismo (que ele denomina Contra-Renascimento) implicou em
perdas, tanto no mbito epistemolgico quanto no mbito tico, significativas, haja vista
que h uma predominante rejeio dos valores da tradio humanstica. Toulmin se
pergunta:After 1600, the focus of intellectual attention turned away from the human
preoccupations of the late 16th century, and moved in directions more rigorous,or even dogmatic, than those the Renaissance writers pursued. Something needsexplaining here. To begin with, how far did the later scientists and philosophers
positively reject the values of the earlier humanistic scholars, and how far didthey merely take them for granted? Further, to the extent that they truly turned
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their backs on those values, how far did the birth of modern philosophy and exactsciences involve something of an actual counterRenaissance?32
A preocupao de Toulmin est em saber que tipo de conseqncia a rejeio dos
elementos do humanismo acarretaria para a modernidade, erigida sobre o racionalismo.Comparando os perodos, anterior e posterior a 1600, Toulmin nos d uma avaliao dessa
conseqncia:
If we compare the research agenda of philosophy after 1640s with what is was acentury before, however, we find notable changes. Before 1600, theoreticalinquiries were balanced against discussions of concrete, practical issues, such asthe specific conditions on which it is morally acceptable for a sovereign to launcha war, or for a subject to kill a tyrant. From 1600 on, by contrast, most
philosophers are committed to questions of abstract, universal theory, to theexclusion of such concrete issues. There is a shift from a style of philosophy that
keeps equally in view issues of local, timebound practice, and universal, timelesstheory, to one that accepts matters of universal, timeless theory as being entitledto an exclusive place on the agenda of philosophy. 33
Portanto, segundo Toulmin, antes do sculo XVII, as investigaes dos intelectuais
se desdobravam em questes relativas ao oral, ao concreto, ao particular, ao temporal.
Depois, as investigaes se invertem; passa-se abstrao, generalidade, ao atemporal,
etc. Isto se d pelo fato de que o programa da filosofia se amalgama com os
desdobramentos da moderna cincia, a qual se insurge contra o domnio do senso comum
(isto : o domnio que lidava com o temporal, o impreciso e o contingente). NoRenascimento, o senso comum e a tradio da retrica tinham seu domnio especfico em
disciplinas como direito, a moral e a medicina e conviviam de forma complementar com o
domnio da lgica34, ao contrrio do que ocorreria no sculo XVII, em que o padro da
cincia e da lgica atrelada a ela constituiria o nico modelo de conhecimento.
Segundo Toulmin, um acontecimento histrico emblemtico, ocorrido em 1610,
teria marcado essa passagem do humanismo para o racionalismo: o assassinato do rei
Henrique IV da Frana pelas mos de Franois Ravaillac. Haja vista que, com a morte do
rei Henrique, o projeto que este pretendia levar a cabo, isto , a construo de uma poltica
que considerasse a tolerncia entre as religies, no se realizou. Este projeto estava
32TOULMIN, Stephen. Cosmopolis.Chicago: The University Of Chicago Press, 1992, pp. 23-24.33Ibid, p. 24.34Ibid. p. 27.
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embasado nos ideais pragmticos do ceticismo do sculo XVI (presentes, sobretudo, no
pensamento de Michel de Montaigne35) e considerava a possibilidade de negociao e
apaziguamento dos conflitos e divergncias entre as religies, com o objetivo de se
eliminar as guerras civis-religiosas. Aps a morte do rei, desencadeia-se na Europa aguerra dos trinta anos, 1618 a 1648, entre protestantes e catlicos, deflagrando-se uma
instabilidade poltica e religiosa que no favoreceria o florescimento do pensamento ctico
(no sentido especfico do sculo XVI), pluralista e tolerante. Todavia, como acentua
Toulmin, o racionalismo cartesiano ganhou corpo durante este perodo turbulento.
Descartes, nascido em 1596, passou toda a vida adulta sombra da guerra dos trinta anos,
tendo esta comeado quando ele tinha 22 anos e terminado dois anos antes de sua morte,
ocorrida em 1650. A busca cartesiana por uma fundamentao do conhecimento em
idias claras e distintas, instituindo assim uma segurana na certeza e na evidncia
racional deriva, em grande parte (podemos assim afirmar), das conseqncias desse
acontecimento. O fato que tal busca de Descartes passou a determinar o cenrio
intelectual da modernidade. Diz-nos Toulmin que o programa cartesiano
for philosophy swept aside the reasonable uncertainties and hesitations of16th-century skeptics, in favor of new, mathematical kinds of rational certaintyand proof. In this, it may (as Dewey and Rorty argue) lead philosophy into a deadend. But, for the time being, that change of attitude the devaluation of the oral,
the particular, the local, the timely, and the concrete appeared a small price topay for a formally rational theory grounded on abstract, universal, timelessconcepts. In a world governed by these intellectual goals, rhetoric was of coursesubordinate to logic: the validity and truth of rational arguments is independentof whopresents them, to whom, or in what contextsuch rhetorical questions cancontribute nothing to the impartial establishment of human knowledge. For thefirst time since Aristotle, logical analysis was separated from, and elevated forabove, the study of rhetoric, discourse and argumentation.36
35Toulmin mostra que a postura do rei Henrique, no que se refere ao carter pragmtico e pluralista de suaprtica poltica, corroborava com o pensamento de Montaigne pelo fato dos dois terem convivido comocolegas: [] Henri IVs attitude to practical politics reminds one of Michel de Montaignes attitude in the
intellectual realm. This is no coincidence: the two men were trusted colleagues. Montaigne supposedly ranconfidential missions on Henrys behalf in negotiations with the Protestant and Catholic leaders: they mayeven have been members of the same secret society. Henry no more let doctrinal dogmatism outrun political
pragmatism than Montaigne let philosophical dogmatism override the testimony of familiar experience. Bothmen placed modest experiential claims above the fanatical demands of doctrinal loyalty, and were (in the truesense) skeptics. Op. Cit., p. 50.36TOULMIN, Cosmopolis, p. 75.
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Essa desvalorizao do carter razovel da retrica pela instituio da certeza
pautada numa racionalidade matemtica que, como vimos, desconsidera fatores como a
experincia da temporalidade e a particularidade das situaes que envolvem controvrsia,
encontra sua formulao mxima em um dos principais escritos cartesianos: Importa lidarunicamente com aqueles objetos para cujo conhecimento certo e indubitvel os nossos
espritos parecem ser suficientes.37Este o enunciado da Regra II do conjunto de Regras
para a direo do esprito(publicadas por volta de 1628). Nesta regra, Descartes admite a
possibilidade de controvrsia em cincia, entretanto, no reconhece que haja uma forma de
saber legtimo apto a trat-la. Para ele:
Dificilmente se encontrar nas cincias qualquer questo sobre a qual os homens
versados no tenham muitas vezes discordado entre si. Mas, sempre que duaspessoas tm sobre a mesma coisa juzos contrrios, de certeza que pelo menosuma ou outra se engana, e nenhuma delas parece mesmo ter cincia; porque, se asrazes de uma fossem certas e evidentes, poderia exp-las outra de modo afinalmente convencer o seu entendimento. Parece, pois, que sobre todos osassuntos deste gnero podemos obter opinies provveis, mas no a cincia
perfeita, visto que no nos permitido sem temeridade esperar mais de nsmesmos do que os outros fizeram. Assim, das cincias j encontradas, restam sa Aritmtica e a Geometria, s quais nos reduz a observao desta regra. 38
Esta certeza calcada na linguagem matemtica constitui a marca da racionalidade
cartesiana. A controvrsia, ao contrrio, sinalizada a como falta de racionalidade. A
retrica, nesse sentido, j no possui o seu espao prprio de atuao para o exerccio de
sua racionalidade especfica, do qual gozava durante o Renascimento. O conflito de
opinies (a controvrsia em si mesma) era justamente o objeto da retrica. Faz-se
necessrio determo-nos, agora, em um ponto especfico do desenvolvimento da cincia
moderna que nos auxiliar a compreender esta instituio da certeza matemtica. Este
ponto se concentra no problema da eliminao do carter cognitivo do senso comum. Isto
porque como compreenderemos logo adiante , o terreno no qual a retrica (e todo o
arcabouo cognitivo associado a ela) germina o terreno contra o qual a cincia modernase insurgir. Este terreno a experincia do senso comum. Ou seja, a experincia
qualitativa dos fenmenos do cotidiano. A passagem desta experincia do senso comum
37DESCARTES, Ren.Regras para a direo do esprito . Lisboa: Edies 70, 1989, p. 14.38Ibid., p. 15.
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para uma experimentao cientfica, cuja finalidade a ao, no sentido interventivo de
dominao e subjugao da natureza, a sntese do processo revolucionrio, cientfico e
filosfico, do sculo XVII. O historiador da cincia Alexandre Koyr nos legou anlises
detidas sobre este processo. Em seu ensaio Galileu e Plato, de 1943, ele afirma que:
no devemos esquecer que a observao e a experincia, no sentido daexperincia espontnea do senso comum, no desempenhou um papel capital ou, se desempenhou, foi um papel negativo, de obstculo na fundao dacincia moderna. A fsica de Aristteles, e mais ainda a dos nominalistas
parisienses, de Buridan e Nicolau Oresme, encontrava-se muito mais prxima,segundo Tannery e Duhem, da experincia do senso comum do que a de Galileuou de Descartes. No foi a experincia, mas a experimentao, quedesempenhou apenas mais tarde um papel positivo considervel. Aexperimentao consiste em interrogar metodicamente a natureza; estainterrogao pressupe e implica uma linguagem com a qual formulemos as
questes, bem como um dicionrio que nos permita ler e interpretar as respostas.Para Galileu, sabemo-lo bem, era em curvas, crculos e tringulos, em linguagemgeomtrica no a do senso comum ou de puros smbolos , que deveramosfalar natureza e receber as suas respostas.39
A experincia do senso comum, como se percebe, tida pelos protagonistas do
processo do desenvolvimento cientfico moderno como um entrave que deve ser superado
para que haja um livre desenvolvimento deste mesmo conhecimento. No h como
estabelecer regularidades, no h como matematizar algo encarado como qualitativo. O
livro da natureza de Galileu no pode ser lido em caracteres que no sejam matemticos.
necessrio encarar o mundo como algo quantitativo. Em uma conferncia proferida em
1955 (Galileu e a Revoluo Cientfica do sculo XVII), Koyr enfatiza que:
O livro da Natureza escrito em caracteres geomtricos. A nova fsica, ade Galileu, uma geometria do movimento, do mesmo modo como a fsica deseu verdadeiro mestre, o divus Archimedes, era uma fsica do repouso. Ageometria do movimento a priori, a cincia matemtica da natureza, como
possvel? As velhas objees aristotlicas matematizao da natureza por Platoforam finalmente refutadas? No totalmente. certo que no h qualidade noreino dos nmeros e por isso que Galileu como Descartes obrigado a
renunciar a ela, renunciar ao mundo qualitativo da percepo sensvel e daexperincia quotidiana, e a substitu-lo pelo mundo abstrato e incolor deArquimedes.40
39KOYR, Alexandre. Galileu e Plato. Lisboa: Gradiva Publicaes, 1986, p. 15-16.40 KOYR, Alexandre. Galileu e a Revoluo Cientfica do sculo XVII. In: Estudos de Histria doPensamento Cientfico. Rio de Janeiro, Forense Universitria; Braslia: Ed. UnB, 1982, p. 194.
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Esta renncia ao mundo qualitativo da experincia foi necessria, tambm, pelo fato
do senso comum ter, por definio, um carter de impreciso. O mundo qualitativo o
mundo do mais ou menos, do aproximadamente, da incerteza. A forma de
interrogao da natureza por meio da experimentao (experimentum), estabelecida por
Galileu, s possvel quando o mundo do aproximadamente se transforma no universo
da preciso. Isso ocorre por meio do instrumento de preciso, desenvolvido pela cincia,
mas que, paulatinamente se vulgariza e passa a fazer parte do cotidiano das pessoas
comuns, alterando significativamente sua relao com a experincia do tempo. Mais uma
vez, Koyr esclarece:
Pelo menos na primeira metade do sculo XVI, porque, na segunda, a situao semodifica de modo sensvel, a impreciso e o aproximadamente reinam, semdvida, ainda. Mas, paralelamente ao crescimento das cidades e da riquezaurbana, ou, se o preferirmos, paralelamente vitria da cidade e da vida urbanasobre o campo e a vida campestre, o uso dos relgios espalha-se cada vez mais.So peas sempre muito belas, muito trabalhadas, muito cinzeladas, muito caras.Mas j no so muito raras, ou, mais exatamente, tornam-se cada vez menosraras. E no sculo XVII deixaro completamente de o ser.41
Este exemplo do uso de relgios emblemtico, pois, o relgio de preciso no foi
desenvolvido propriamente por relojoeiros. No , definitivamente, uma criao de
engenharia. um excelente exemplo de um instrumentofruto da criao do pensamento
cientfico, ou, melhor ainda, da realizao consciente de uma teoria.42
O instrumentoauxilia a experimentao interrogao metdica da natureza e esta serve teoria. O
carter da revoluo cientfica e filosfica do sculo XVII , ento, antes de tudo, terico.
A teoria se sobrepe prxis. A abstrao se sobrepe ao concreto e ao singular,
caractersticas da experincia do senso comum.
Outro exemplo, talvez o mais importante deste processo, a inveno do telescpio
por Galileu a partir da luneta de aproximao holandesa. Foi a formulao de uma teoria
que aumentou o alcance de observao dos vidros da luneta para responder a necessidades
puramente tericas, para atingir o que no cai na alada dos nossos sentidos43, que
proporcionou a Galileu a criao dos perspicilles, aps aperfeioamento dos ngulos de
41KOYR, A. Galileu e Plato, p. 82.42Ibid., pp. 82-83.43Ibid., p. 76.
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refrao desta luneta por meio de medidas e clculos. Assim, o telescpio nascia como
instrumentumcapaz de estender o alcance dos olhos infinitude dos cus.
A transio deste mundo do mais ou menos ao universo da preciso trouxe
implicaes de ordem cosmolgica e ontolgica para o homem moderno, pois esta tambm a transio que vai do cosmos fechado ao universo infinito, ou seja:
o desaparecimento dos conceitos vlidos, filosfica e cientificamente, daconcepo do mundo como um todo finito, fechado e ordenado hierarquicamente(um todo no qual a hierarquia de valor determinava a hierarquia e a estrutura doser, erguendo-se da terra escura e pesada e imperfeita para a perfeio cada vezmais exaltada das estrelas e das esferas celestes) e a sua substituio por umuniverso indefinido e at mesmo infinito que mantido coeso pela identidade deseus componentes e leis fundamentais, e no qual todos esses componentes socolocados no mesmo nvel de ser. Isso, por seu turno, implica o abando, pelo
pensamento cientfico, de todas as consideraes baseadas em conceitos de valor,como perfeio, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a completadesvalorizao do ser, o divrcio do mundo do valor e do mundo dos fatos.44
O homem est agora lanado em um mundo de indefinio entre a natureza do que
celeste e do que terrestre. No h mais a diviso tradicional entre a perfeio das esferas
celestes e a imperfeio do mundo terreno. Ambos, agora, so passveis de ser
interrogados pela experimentao, lidos em linguagem geomtrica e reduzidos a leis
gerais. A vida cotidiana torna-se precisa, calculvel, planejvel, em meio infinitude. A
cincia traz certeza e retifica a contingncia; ultrapassa o obstculo da experincia do
senso comum. Nesse sentido, podemos dizer, seguindo as teses do filsofo italiano Giorgio
Agamben, na primeira parte de seu ensaio Infncia e histria - Ensaio sobre a destruio
da experincia, que a expropriao da experincia estava implcita no projeto fundamental
da cincia moderna.45
Este ensaio de Agamben de 1977 e, junto com o seminrio Il linguaggio e la
morteum seminario sul luogo della negativit (A linguagem e a morte ensaio sobre o
lugar da negatividade46
) desenvolvido no perodo do inverno de 1979 ao vero de 1980,
44KOYR, A.Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010, p. 6.45 AGAMBEN, Giorgio. Infncia e histria Ensaio sobre a destruio da experincia.Belo Horizonte:Editora UFMG, 2006, p.25.46Cf. AGAMBEN, G.A linguagem e a morte: um seminrio sobre o lugar da negatividade.Belo Horizonte:Editora UFMG, 2006.
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tendo sido publicado em 1982, constitui o que seu autor denomina como uma obra que
permaneceu obstinadamente no escrita.47 Estas pesquisas antecipam o projeto de
Agamben propriamente centrado na filosofia poltica. A referida obra no escrita tinha
como pretensos ttulos:La voce umana(A voz humana) ouEtica, ovvero della voce(tica,ou da voz). E sua hiptese partia do hiato entre voz e linguagem, phone lgos. Um hiato
que possibilitava o nascimento da tica. Agamben segue o trecho da Poltica de
Aristteles para explicitar o ponto de partida dessa reflexo:
Somente o homem entre os viventes possui a linguagem. A voz, realmente, ndice da dor e do prazer e, por isto, pertence aos outros viventes (de fato, a suanatureza chegou a ter a sensao da dor e do prazer, e a signific-losreciprocamente); a linguagem, por sua vez, serve para manifestar o conveniente eo inconveniente, assim como o justo e o injusto; isto prprio e exclusivo aos
homens perante os outros viventes, o ter a sensao do bem e do mal, do justo edo injusto, e das outras coisas do mesmo gnero, e a comunidade ( koinona)destas coisas produz a habitao (oika) e a cidade (polis).48
Agamben considera que o espao entre a voz e a linguagem um espao vazio e
que, somente porque o homem se encontra lanado na linguagem sem ser at a conduzido
por uma voz, somente porque, no experimentum linguae, ele se arrisca [...] neste vazio e
nesta afonia, algo como um ethos e uma comunidade se tornam para ele possveis.49
nesta linha reflexiva que o ensaio Infncia e histria, cujo tema, como o subttulo indica,
a destruio da experincia, se enquadra. Nele, Agamben tenta construir uma tese sobre ain-fncia do homem, um estgio que no seria biolgico, mas um momento no qual o
homem adquire conscincia da sua condio de ser falante e mortal, isto , de um ser cuja
linguagem constitui uma experincia negativa, uma experincia que possibilita saber-se de
sua prpria finitude, bem ao contrrio dos outros viventes que, por definio, permanecem,
em sua voz natural, completamente alienados desta condio.Entretanto, a despeito das
implicaes filosficas que esta tese comporta, o que nos interessa so os desdobramentos
que Agamben efetua at chegar a ela, pois tais desdobramentos corroboram com a
problemtica por ns enfrentada. O ensaio abre com as seguintes afirmaes:
47AGAMBEN, G.Infncia e histria, p. 10.48Ibid., p. 15.49Ibid., p. 16.
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Todo discurso sobre a experincia deve partir particularmente daconstatao de que ela no mais algo que ainda nos dado a fazer. Pois, assimcomo foi privado de sua biografia, o homem contemporneo foi expropriado desua experincia: alis, a incapacidade de fazer e transmitir experincias talvezseja um dos poucos dados certos de que disponha sobre si mesmo.50
Aqui, Agamben faz referencia ao pensamento do filsofo alemo Walter Benjamin.
Notadamente ao ensaio Experincia e Pobreza, de 1933, no qual seu autor analisava a
perda da experincia tradicional nas geraes aps a Primeira Guerra Mundial. Esta
experincia caracterizava-se por seu carter de transmissibilidade. Agamben prossegue:
Porm, ns hoje sabemos que, para a destruio da experincia, umacatstrofe no de modo algum necessria, e que a pacfica existncia cotidianaem uma grande cidade , para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia-a-diado homem contemporneo no contm quase nada que seja ainda traduzvel emexperincias: no a leitura do jornal, to rica em noticias do que lhe diz respeito auma distncia insupervel; no os minutos que passa, preso ao volante, em umengarrafamento; no a viagem s regies nferas nos vages do metr nem amanifestao que de repente bloqueia a rua; no a nvoa dos lacrimogneos quese dissipa lenta entre edifcios do centro e nem mesmo os sbitos estampidos de
pistola detonados no se sabe onde; no a fila diante dos guichs de umarepartio ou a visita ao pas de Cocanha do supermercado nem os eternosmomentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no nibus.O homem moderno volta para casa noitinha extenuado por uma mixrdia deeventos divertidos ou maantes, banais ou inslitos, agradveis ou atrozes entretanto nenhum deles se tornou experincia. 51
A perda da experincia e o carter inexperiencivel das aes so as caractersticas
do tempo presente, para Agamben. Este diagnstico possui uma contigidade com nosso
problema, posto que, como ser visto nas argumentaes que se seguiro, levantamos a
hiptese de que esta perda da experincia tradicional constitui um fenmeno intrnseco
marginalizao da tradio retrica. Nas prprias argumentaes de Agamben, vrios sinais
apontam para esta direo. Como dizamos acima, ao defrontarmo-nos com as
investigaes de Koyr, a expropriao da experincia, segundo Agamben, fez parte do
projeto fundamental da cincia moderna.
Para Agamben:
A comprovao cientfica da experincia que se efetua no experimento permitindo traduzir as impresses sensveis na exatido de determinaesquantitativas e, assim, prever impresses futuras responde a esta perda de
50Ibid., p. 21.51Ibid., pp. 21-22.
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certeza transferindo a experincia o mais completamente possvel para fora dohomem: aos instrumentos e aos nmeros. Mas, deste modo, a experinciatradicional perdia na realidade todo o seu valor. Porque como o demonstra altima obra da cultura europia a ser ainda inteiramente fundada sobre aexperincia: os Essais de Montaigne a experincia incompatvel com a
certeza, e uma experincia que se torna calculvel e certa perde imediatamente asua autoridade.52
A perspectiva do filsofo italiano corrobora o que procuramos argumentar aqui,
isto : a cincia moderna, ao definir o conhecimento luz da preciso do mtodo
matemtico e da instituio da experimentao, acaba por expropriar da experincia
tradicional o seu valor cognitivo. A referncia a Montaigne de suma relevncia. Como
vimos com S. Toulmin, Montaigne foi o ltimo representante do pensamento tolerante e
pluralista. Seu ceticismo humanista fugia s determinaes da certeza e da segurana na
evidncia matemtica que viriam ser a marca do racionalismo. Alm disso, continuando
com os argumentos de Agamben, percebemos mais uma aproximao com as teses de
Toulmin a respeito de que, antes da cincia moderna, a experincia possua um lugar
prprio, co-habitvel com a cincia, sem interferncias desta. Diz-nos ele:
A idia de uma experincia separada do conhecimento tornou-se para nsto estranha a ponto de esquecermos que, at o nascimento da cincia moderna,experincia e cincia possuam cada uma o seu lugar prprio. E no s: distintoseram tambm os sujeitos de que lanavam mo. Sujeito da experincia era o
senso comum, presente em cada indivduo ( o principio que julga deAristteles e a vis estimativa da psicologia medieval, que no so ainda o quechamamos de bom senso), enquanto que o sujeito da cincia o nousou intelectoagente, que separado da experincia, impassvel e divino.53
Prossegue Agamben:
o problema central do conhecimento no , para a antiguidade, o da relao entreum sujeito e um objeto, mas o da relao entre o uno e o mltiplo. Por isso o
pensamento clssico no conhece um problema de experincia como tal; aquiloque se coloca, para ns, como problema da experincia, apresenta-senaturalmente, para ele, como problema da relao [...] entre o intelecto separado e
os indivduos em sua singularidade, entre o uno e o mltiplo, entre o inteligvel eo sensvel, entre o humano e o divino. E esta diferena que o coro da Orstiadesquilo sublinha, caracterizando contra a hbris de Agamenon o saberhumano como um pathi mthos, um aprender somente atravs de e aps um
52Ibid., p. 26.53Ibid., p. 26.
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sofrimento, que exclui toda a possibilidade de prever, ou seja, de conhecer comcerteza alguma coisa.54
A tragdia grega trazida tona por Agamben em um momento muito oportuno. A
hbris, a desmesura, associada aqui possibilidade da previso, do prognstico; fato queconfiguraria um dos desdobramentos da modernidade. A atividade cientfico-filosfica dos
modernos, que destruram o cosmo finito, promovendo a indefinio entre o terreno e o
celeste, poderamos dizer, revelou-se como a hbrispor excelncia. O limite que assinalava
a separao entre experincia e cincia, ou o saber humano e divino, era, grosso modo, a
conscincia da morte, ou a conscincia do carter finito do mundo sublunar. Michel de
Montaigne permaneceu na esteira dessa tradio e, por isso, pde formular o fim ltimo da
experincia como uma aproximao morte, ou seja, como um conduzir do homem
maturidade por meio de uma antecipao da morte enquanto limite extremo da
experincia.55
parte disso, para o filsofo italiano, o problema maior se instala quando:
Em sua busca pela certeza, a cincia moderna abole esta separao e faz daexperincia o lugar o mtodo, isto , o caminho do conhecimento. Mas,
para fazer isso, deve proceder a uma refundio da experincia e a uma reformada inteligncia, desapropriando-as primeiramente de seus sujeitos e colocando emseu lugar um nico novo sujeito. Pois a grande revoluo da cincia moderna
no consistiu tanto em uma alegao da experincia contra a autoridade [...]quanto em referir conhecimento e experincia a um sujeito nico, que nada mais que a sua coincidncia em um ponto arquimediano abstrato: o ego cogitocartesiano, a conscincia.56
A integrao destes dois sujeitos do conhecimento em um s foi efetuada pela
metafsica cartesiana. Agamben, entretanto, identifica a fonte que possibilitaria esta
integrao na experincia mstica, que teria sido assimilada por Descartes:
Com essa interferncia de experincia e cincia em um nico sujeito (que, sendouniversal e impassvel e, ao mesmo tempo, um ego, rene em si as propriedadesdo intelecto separado e do sujeito da experincia), a cincia moderna reproduzaquela liberao do pthei mthose aquela conjuno do saber humano com osaber divino que constituam o carter prprio da experincia mstica, e que
54Ibid., p. 27.55Ibid., p. 27.56Ibid., p. 28.
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haviam encontrado na astrologia, na alquimia e na especulao neoplatnica a suaexpresso pr-cientfica. Pois no foi na filosofia clssica, mas na esfera dareligiosidade dos mistrios da antiguidade tardia, que o limite entre humano edivino, entre opthei mthose a pura cincia [...] foi superado pela primeira vezna idia de umpathemaindizvel, em que o iniciado consumava a experincia da
prpria morte (conhece o fim da vida, diz Pndaro) e obtinha assim previsesmais doces a respeito da morte e do tempo concludo. 57
Sendo assim, por meio da cincia, a cultura moderna recebeu a entrada da mstica
neoplatnica e da astrologia contra o cosmo incorruptvel de Aristteles e a separao dos
sujeitos do conhecimento e da experincia. Fato que, dentre alguns personagens
encarados como precursores da moderna cincia, encontravam-se, tambm, astrlogos. o
caso, por exemplo, de Tycho Brahe, Kepler, Roger Bacon e Coprnico. Esta assimilao
dos elementos da mstica pela cincia ocorreu, segundo Agamben, pelo fato de o seu
princpio essenciala unio entre experincia e conhecimento havia sido to assimilado
como princpio da nova cincia, com a constituio de um sujeito novo, que o aparato
mtico-divinatrio tornava-se suprfluo.58 Entretanto, Agamben compreende nessa co-
participao originria entre mstica, astrologia e cincia a raiz da oposio, refletida em
nossa cultura, entre racionalismo e irracionalismo.
Devemos assinalar que Agamben se apia aqui na tese de Aby Warburg, que
entende que a reestruturao humanstica da antiguidade foi uma restaurao no da
antiguidade clssica, mas da cultura da antiguidade tardia e, particularmente, doneoplatonismo e do hermetismo.59 Esta tese, em dada medida, se confronta com as
opinies dos autores que j elencamos aqui, H.- G. Gadamer e S. Toulmin, os quais
defendem que a cultura humanista resgata a tradio clssica (greco-romana) e, por
conseqncia, os valores associados tradio da retrica e da sabedoria prtica. Todavia,
cremos que tal divergncia no estabelece nenhum comprometimento com relao s
interpretaes que aqui estamos a desenrolar, seja a interpretao do fenmeno da
expropriao da experincia, seja a do fenmeno da banalizao dos elementos da tradio
acima referida. Ao contrrio, julgamos que ambas as teses sobre a cultura humanista
convergem, proficuamente, para esclarecer elementos de um s fenmeno, o qual exigiu
57Ibid., p. 28.58Ibid., p. 30.59Ibid., p. 30.
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chaves analticas distintas, de acordo com os interesses e tradies intelectuais inerentes aos
autores aqui mencionados. Sendo assim, seguindo os argumentos de Agamben:
Por isso, uma crtica da mstica, da astrologia e da alquimia devenecessariamente implicar uma crtica da cincia, e somente o restabelecimento deuma dimenso na qual cincia e experincia encontrassem individualmente o seu
prprio lugar original poderia levar a uma definitiva superao da oposioracionalismo/irracionalismo.60
Porm, continua Agamben,
enquanto a coincidncia de experincia e conhecimento constitua, nos mistrios,um evento inefvel, que se cumpria com a morte e o renascimento do adeptoemudecido, e enquanto, na alquimia, ela se efetuava no processo da Obra, do qualconstitua a realizao, no novo sujeito da cincia, ela torna-se algo de indizvel,mas aquilo que j sempre dito em cada pensamento e em cada frase, ou seja,no umpthema, mas um mthemano sentido originrio da palavra: isto , algoque sempre j imediatamente conhecido em cada ato do conhecimento, ofundamento e o sujeito de todo pensamento.61
A exortao da tragdia grega, aprender pelo sofrimento, que tem sua raiz no
pthema, no possui a mais nenhuma serventia, pois o desenvolvimento da cincia, a
expropriao da experincia tradicional e a transformao do sujeito a eliminam, por meio
da crena na certeza e na capacidade de fazer a experincia inserindo-a num processo
infinito , direcionando-a a um processo emancipatrio, que, como veremos adiante, seestende a um futuro utpico inalcanvel, atrelado s filosofias da histria; sendo estas
ltimas, segundo algumas teses, a secularizao da escatologia crist.62
A concluso desta primeira parte do ensaio de Agamben sintomtica:
Enquanto o seu fim [o da experincia tradicional] era o de conduzir o homem maturidade, ou seja, a uma antecipao da morte como idia de uma totalidadeconsumada da experincia, ela era de fato algo de essencialmente finito, e logo,era algo que se poder tere no somentefazer. Mas, uma vez referida ao sujeito dacincia, que no pode atingir a maturidade, mas apenas acrescer os prpriosconhecimentos, a experincia tornar-se-, ao contrrio, algo de essencialmenteinfinito, um conceito assinttico, como dir Kant, ou seja, algo que se pode
60Ibid., p. 31.61Ibid., p. 31.62Estas teses sero abordadas no captulo seguinte.
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somente fazer e jamais ter: nada mais, precisamente, do que o processo infinitodo conhecimento.63
A experincia se torna infinita em um processo infinito de conhecimento. Ambos,
experincia e conhecimento (cientfico), se entrelaam e se confundem, pois esto, a estaaltura, amalgamados no mesmo sujeito. No h mais um saber prprio que instrua o homem
para a contingncia, a incerteza e a finitude. H apenas um saber possvel: o saber da
cincia. E a partir deste modelo de cincia que, nos sculos que se seguiro revoluo
cientfica de Galileu e Descartes, ashumaniora, humanidades, ou, como se convencionou
denomin-las, as cincias humanas tentaro engendrar seu edifcio epistemolgico.
Antes que abordemos as conseqncias estritas que todo o processo aqui exposto
acarretou s cincias humanas, sobretudo histria, no que se refere, principalmente,
transformao da relao entre as categorias meta-histricas de experincia e expectativa,
tal como acentua R. Koselleck, faz-se necessrio determo-nos em um ponto essencial, isto
: um acontecimento que pode ser rastreado na esteira da histria dos conceitos. Este
acontecimento se refere transformao semntica do conceito de saber (sapere) durante
a transio da cultura humanista do sculo XVI para a atmosfera do desenvolvimento
cientfico no sculo XVII. Para tal empreendimento, utilizaremos o arcabouo
metodolgico do historiador alemo Reinhart Koselleck acerca da histria dos conceitos,
sem, contudo, adentrarmos no mbito de suas pesquisas especficas acerca da modernidade,tema que nos ser til num segundo momento.
1.3. A problemtica do saber moral e do conhecimento cientfico na modernidade:
nota sobre uma transformao semntica.
Vemo-nos impelidos a retornar a um ponto especfico da investigao de StephenToulmin para esclarecermos que, com o programa cartesiano, a forma de saber especfico
relacionado tradio da retrica e, junto a esse processo, o carter propriamente tico que
63AGAMBEN, G.Infncia e Histria, p. 33.
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este saber implicava (equilibrando-se com a lgica), foram, grosso modo, relegados
margem. Toulmin assinala que:
This change had far-reaching consequences. Aristotle saw intimateconnections between ethics and rhetoric: for him, every ethical position was thatof a given kind of person in given circumstances, and in special relations withother specific people: the concrete particularity of a case was of the essence.Ethics was a field not for theoretical analysis, but for practical wisdom, and itwas a mistake to treat it as a universal or abstract science. That is just what 17thcentury philosophers had to do, if ethics were to join physics and logic on therational side of fence, and escape from the chaos of diverse and uncertainopinions.64
Nesta relao entre retrica e tica, a noo de sabedoria prtica (practical
wisdom) a que Toulmin se refere identificada quela do sensus communis, retomada
pelos humanistas do Renascimento e defendida por Vico, no incio do sculo XVIII. Massua acepo estrita e sistemtica remete virtude da prudncia, a fro&nhsiv (phronesis),
que, no pensamento aristotlico, possui um carter ambivalente: uma virtude intelectual,
mas , tambm, uma forma de saber moral, um saber que est sempre diante de um limite.
Este limite a desmesura, a u3briv (hbris) que vimos Agamben trazer baila e
relacion-la com a conscincia da morte/finitude em Montaigne.
Neste momento de nossa argumentao, significativo trazer discusso as
pesquisas de Pierre Aubenque sobre a virtude da prudncia na obra aristotlica, contidas nolivro A Prudncia em Aristteles (La prudence chez Aristote, 1963). Neste trabalho,
Aubenque efetua uma crtica s interpretaes tradicionais da prudncia no pensamento
aristotlico (em especial as teses do erudito Werner Jaeger contidas na obra de 1923,
Aristteles), revisando os textos em que ela tratada, como as ticasNicomaquia e
Eudemia, MagnaMoraliae os Protrticos. Segundo Aubenque, para Aristteles, a hbris
nada mais que o desafio lanado aos deuses, a ambio quase risvel na disputa p elo
saber absoluto, a pretenso usurpada imortalidade e, a partir da, o desprezo pelos outros,
o desdm soberano pela escolha dos meios e pelo clculo das conseqncias da ao
julgada boa [...].65Nesse sentido, evitar a hbris, isto , a insolncia contra aquilo que est
64TOULMIN, S. Cosmopolis., pp. 75-76.65AUBENQUE, Pierre.A prudncia em Aristteles. So Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, pp. 7-8.
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alm dos limites do fazer humano a tarefa e funo da sabedoria prtica. Evitar a
desmesura a funo do saber prtico.
A pergunta norteadora que Aubenque nos convida a fazer, para entender Aristteles,
por que o homem temque ser prudente neste mudo?66 O