a questao agraria no brasil vol 5

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A QUESTãO AGRáRIA NO BRASIL A classe dominante agrária – natureza e comportamento 1964-1990

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Quinto volume de uma serie de oito

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  • a questo agrria no brasilA classe dominante agrria natureza e comportamento

    1964-1990

  • a questo agrria no brasilA classe dominante agrria natureza e comportamento

    1964-1990

    sonia regina de Mendona

    2 edio

    so Paulo - 2010

    editora expresso popular

    Joo Pedro stedile (org.)Douglas estevam - assistente de pesquisa

  • Copyright 2006, by editora expresso Popular

    Este trabalho realizou-se com bolsa de pesquisa do CNPq, consistindo originalmente em relatrio final encaminhado agncia

    reviso: Geraldo Martins de Azevedo Filho e Otacilio Fernandes Nunes JniorProjeto grfico e diagramao: Zap DesignCapa: Marcos Cartumimpresso e acabamento: Cromosete

    todos os direitos reservados. nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizao da editora.

    edio revista e atualizada conforme a nova ortografia

    2 edio: janeiro de 20101 reimpresso: outubro de 2013

    eDitora exPresso PoPularrua abolio, 201 bela VistaCeP 01319-010 so Paulo sPFone: (11) 3522-7516 / 4063-4189 / 3105-9500editora.expressaopopular.com.brlivraria@expressaopopular.com.br

  • Desde 1964, entraram em cena na sociedade brasileira novos atores sociais do

    capital no campo, semeando a fazenda, a grilagem, a injustia e a brutalidade. Mas semearam, tambm, a resistncia popular, semearam novas significaes para velhos atos, novos atos para velhas significaes,

    novos atos e novas significaes .Jos de Souza Martins

  • Sumrio

    aPresentao ......................................................................................9Joo Pedro stedile

    introDuo ........................................................................................17

    Captulo 1entiDaDes Patronais e reForMa agrria: Do estatuto Da terra ao liMiar Dos anos De 1980 ................31

    estatuto da terra e reforma agrria: contextualizando ............................35Presso e reao reforma .....................................................................43Da reforma modernizao .................................................................51

    Captulo 2 rePresentao agroinDustrial e reForMa agrria: o Plano naCional De reForMa agrria (i-Pnra 1985) ....71

    Modernizao da agricultura e questo agrria no brasil ......................71questo agrria e reforma agrria: uma discusso poltica .....................77terra e transio democrtica: o Pnra .............................................90sociedade nacional de agricultura e sociedade rural brasileira: protestos e projetos .....................................................95

    Captulo 3 a eMergnCia Da uDr ...................................................................117

    uDr: origens e organizao ...............................................................124uDr: objetivos e atuao ...................................................................138

    Captulo 4 uDr e Constituinte: iMPasses na transio DeMoCrtiCa ..................................151

    Constituinte e uDr: os primeiros lances ............................................160o crescimento da uDr ......................................................................165Constituinte e uDr: o ltimo round. .................................................182

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  • 9existem diversas formas para analisar e estudar a questo agrria no geral e no brasil em particular. nesta coleo, o enfoque principal est na economia poltica e na histria, utilizadas como instrumento cientfico de interpretao da questo agrria pelos autores e teses publicados. uma forma especfica de analisar a questo. se quisermos mais abrangncia, poderemos buscar outras reas do conhecimento, como a anlise da evoluo das classes sociais no campo, ou do desenvolvimento das foras produtivas, ou do desenvolvimento das lutas e dos movimentos sociais. Para todos esses vieses, existe uma ampla literatura de pesquisa e de es-tudos, realizados e publicados pelos nossos historiadores, cientistas polticos e socilogos.

    A questo agrria I O debate tradicional 1500-1960Primeiro volume da coleo, traz uma coletnea de autores,

    considerados clssicos, que se debruaram na pesquisa, durante a dcada de 1960, para entender a questo agrria brasileira no perodo colonial. Foram estes os primeiros autores que, do ponto

    A HiSTriA DA QuESTo AGrriA No BrASiL

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    de vista da economia poltica e da histria, procuraram interpretar as relaes sociais e de produo na agricultura brasileira.

    A questo agrria II O debate na esquerda 1960-1980o segundo volume rene textos que aprofundam ainda mais os

    estudos, que chegam aos anos 1980 com a publicao do histrico documento A Igreja e os problemas da terra, uma anlise sociolgica da natureza dos problemas agrrios. esta anlise representou um elo entre a polmica criada pelos estudos da dcada de 1960 at o fim da ditadura nos anos de 1980.

    A questo agrria III Programas de reforma agrria 1946-2003o terceiro volume uma coletnea dos diversos projetos e pro-

    gramas polticos que setores sociais, classes e partidos ofereceram sociedade brasileira como interpretao e soluo do problema agrrio. a opo pela publicao desses textos se baseou no fato de representarem vontades coletivas de partidos ou de movimen-tos sociais, e no simples expresses individuais. assim, reunimos todas as principais propostas desde a do Partido Comunista do brasil (PCb), na Constituio de 1946, at o programa unitrio dos movimentos camponeses e entidades de apoio, de 2003.

    A questo agrria IV Histria e natureza das Ligas Camponesas 1954-1964

    o quarto volume tem o objetivo de divulgar as experincias de luta e as iniciativas de organizao das ligas Camponesas num perodo especfico da histria recente do brasil, mobilizando, na luta direta, durante dez anos, milhares de camponeses.

    A questo agrria V A classe dominante agrria natureza e comportamento 1964-1980

    o quinto volume um profundo estudo realizado por sonia regina de Mendona sobre a natureza das principais organizaes

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    polticas da classe dominante no meio rural, em especial a so-ciedade nacional de agricultura, unio Democrtica ruralista (uDr), a sociedade rural brasileira, bem como seus represent-antes. a autora analisa tambm as relaes promscuas entre as classes dominantes e o estado brasileiro, particularmente no que se refere sua influncia nos rumos da poltica agrria e agrcola.

    A questo agrria VI A questo agrria na dcada de 1990o sexto volume foi inicialmente publicado pela editora da uni-

    versidade Federal do rio grande do sul (uFrgs), de Porto alegre, com o ttulo A questo agrria hoje. Como havia uma demanda da prpria universidade para atender s necessidades do intenso debate que houve naquele perodo permeado pela redemocratizao do pas, ele acabou sendo publicado antes dos demais. Foi um esforo para publicar anlises e polmicas de diversos autores, pesquisadores da questo agrria, que surgiram, ou ressurgiram, aps a queda da dita-dura, sobretudo com a reapario dos movimentos sociais no campo.

    A questo agrria VII O debate na dcada de 2000-2010o stimo volume resgata o debate ocorrido nestes anos de

    2000-2010, marcado pela derrota poltico-eleitoral do programa democrtico-popular que inclua a implementao de uma reforma agrria clssica no brasil. Com essa derrota, implantado no pas um novo modelo de dominao do capital na agricultura, dentro da lgica do neoliberalismo, conhecido como agronegcio.

    A questo agrria VIII Situao e perspectivas da reforma agrria na dcada de 2000-2010

    o oitavo volume da coleo rene o debate havido, e que ainda est em curso, sobre as mudanas que tm ocorrido na natureza da reforma agrria. aglutinam-se aqui diversos textos analticos de pesquisadores e representantes dos movimentos sociais que atuam

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    no campo que procuram refletir sobre as diferentes interpretaes que ocorreram na natureza da reforma agrria a partir das mudan-as estruturais analisadas no stimo volume. o debate central gira em torno do argumento da classe dominante de que no h mais necessidade de reforma agrria no brasil.

    * * *

    este volume que ora apresentamos, da coleo que pretende recuperar a histria da questo agrria no brasil, nos traz um estudo sobre as classes dominantes no meio rural brasileiro. De autoria da professora sonia regina de Mendona, especialista no assunto, este excelente texto analisa o comportamento dessas classes num perodo especial de 1964 a 1990 quando foi implantada, por meio de um golpe, a ditadura militar e os movimentos camponeses foram derrotados.

    nesse perodo, ocorre a promulgao (pela prpria ditadura militar) do estatuto da terra (que representou a primeira lei de reforma agrria do pas), a queda da ditadura, o ressurgimento da democracia formal, o reascenso dos movimentos camponeses na dcada de 1980 e, com isso, o progressivo fortalecimento da luta pela reforma agrria, que plasmou a elaborao do (posteriormen-te engavetado) i Plano nacional de reforma agrria i Pnra (1985), coordenado por Jos gomes da silva, ento presidente do instituto nacional de Colonizao e reforma agrria incra, no governo da nova repblica.

    o texto nos auxilia no entendimento do papel que essas classes dominantes desempenham no cenrio poltico-econmico-ideo-lgico, suas formas de organizao, seus vnculos com o estado brasileiro, o domnio que exercem sobre esse estado e sobre os Poderes constitucionais e o uso que fazem das instituies e da legalidade para manter seus privilgios. aps sua leitura, passamos

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    a entender melhor os novos conceitos surgidos na modernidade (agronegcio, por exemplo), que substituem os velhos conceitos (latifndio, tambm por exemplo), mas que caracterizam a mes-mssima forma de explorao do capital sobre o trabalho, agora com maior intensidade, fruto que da nova roupagem assumida pelo capitalismo brasileiro na era da globalizao. Vamos tambm entender melhor a interao desse setor com o capital comercial, industrial e, principalmente, financeiro e sua constituio como classe dominante que atua no meio rural, mas que tem seus inte-resses em todos os setores da economia.

    Dessa natureza, podemos, no texto, apreender a vocao pa-trimonialista dessas classes dominantes e, como consequncia, a sua feroz oposio s ideias de reforma agrria, que so apenas propostas reformistas da forma selvagem que o desenvolvimento do capitalismo, de extrema concentrao/excluso, assumiu nestas terras tupiniquins.

    na verdade, as classes dominantes brasileiras sempre se opuse-ram, por princpio e a qualquer custo, reforma agrria, em defesa da propriedade privada. e essa postura custou centenas de vidas de camponeses que por ela lutaram.

    Portanto, a essncia do debate sobre a reforma agrria, originrio do estatuto da terra e com seus nimos acirrados na nova rep-blica com o i Pnra, no a expectativa de um novo modelo de desenvolvimento econmico que poderia ser engendrado no meio rural brasileiro com a sua implantao, mas, sim, a defesa do direito absoluto propriedade privada da terra, como condio sine qua non da existncia da classe dominante no meio rural.

    possvel concluir que as classes dominantes tinham, assim, mais conscincia de classe em si do que aquilo que os prprios movimentos camponeses poderiam presumir. e que, apesar da re-democratizao no pas e do carter democrtico e republicano do i Pnra, os segmentos das classes dominantes ligados agroindstria

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    brasileira se uniram e promoveram uma intensa mobilizao, com apoio dos meios de comunicao, com um vigoroso trabalho de sua bancada ruralista, na defesa da propriedade, na defesa da terra como objeto de reserva de valor de uma classe social (e no como meio de organizao da produo agrcola), que entende os bens da natureza apenas como meio de apropriao e acumulao de capital.

    o texto nos esclarece, por fim e principalmente, o papel, o carter e a natureza de um dos instrumentos mais ativos de organi-zao das classes dominantes do meio rural, a unio Democrtica ruralista uDr, de triste histrico de atuao, e seu jogo na luta de classes, em especial entre os anos de 1985 e 1989, que foi o perodo em que essa organizao se constituiu de fato como uma represen-tao formal dessas classes. a uDr surge na nova repblica e tem seu ponto mximo com o lanamento de ronaldo Caiado, da liderana dessa entidade, presidncia da repblica, marco representativo do encerramento desse curto porm violentssimo ciclo, em que as classes dominantes do meio rural disseminaram o uso da violncia fsica, com um intenso doutrina rismo ideolgico, tendo a seu lado, para isso, o apoio dos meios de comunicao e de outros setores burgueses da sociedade brasileira.

    igualmente interessante observar, nesse processo histrico, para a defesa de seus interesses de classe, o relacionamento e a complementaridade da uDr com outras organizaes da burguesia rural, em particular a sociedade rural brasileira srb, a Confe-derao nacional da agricultura Cna, a Frente agrcola para a agropecuria brasileira Faab e a organizao das Cooperativas do brasil oCb.

    o pice a que chega essa ampla complementaridade ideolgica o novo perodo idealizado pelas burguesias rurais, com o aval do imperialismo e insistentemente divulgado pela imprensa como o rumo ideal para a economia brasileira: o agribusiness, atualmente conhecido como agronegcio, com o seu lder maior, roberto ro-

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    drigues, assumindo o Ministrio da agricultura do governo lula. o latifndio muda de nome, muda de forma, moderniza-se, mas na sua essncia a mesma fera peonhenta que se une e se arma para conservar seu status, manter seus privilgios e continuar a oprimir o povo brasileiro. e, finalmente, o pas, pelo projeto deles, deve ser apenas produtor de matrias-primas.

    Por essas e outras razes, este livro da professora sonia regina de Mendona, A classe dominante agrria natureza e comportamento, da coleo a questo agrria no brasil, torna-se indispensvel para a compreenso do recente comportamento das classes domi-nantes no meio rural brasileiro, importantes atores sociais que so no cenrio poltico, econmico e ideolgico do brasil.

    Joo Pedro Stedile

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    a questo das relaes entre classe dominante e estado no brasil j de h muito constitui-se em objeto de minhas reflexes, ao longo de uma trajetria acadmica de mais de 20 anos, particularmente no que se refere s suas fraes agrrias, como o confirmam as inmeras pesquisas por mim desenvolvidas, desde meu mestrado e doutorado, junto aos quadros do Departamento de Histria da universidade Federal Fluminense e como pesquisadora do CnPq desde 1991.1

    iNTroDuo

    1 esse investimento junto ao tema pode ser ilustrado por alguns dos trabalhos j de-senvolvidos, tais como a primeira poltica de valorizao do caf e sua vinculao com a economia agrcola fluminense. niteri, dissertao de Mestrado em Histria, uFF, 1977; representaes sobre o trabalho livre na crise do escravismo fluminense. Revista Brasileira de Histria. sP, 6:11, set. 85/fev. 86, pp. 85-98; o ruralismo bra-sileiro na Primeira repblica. Margem. rJ, i:1, jan/abr. 1993, pp. 25-40; estado e excluso social no brasil agrrio. Margem. rJ, i:3, nov./fev. 93/94, pp. 16-25; o ruralismo fluminense na 1a repblica. Revista do Rio de Janeiro. rJ, uerJ, i:2, jul/dez. 1993, pp. 53-64; o sindicato rural na 1a repblica: as mltiplas leituras de uma noo. Reforma Agrria. Campinas, abra, 1:24, jan/abr. 1994, pp. 82-93, es-

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    Coerentemente a essa linha de preocupaes e interesse, conso-lidada por ocasio da elaborao de minha tese de doutoramento,2 uma problemtica crucial vem reincidentemente suscitando o in-teresse por investigaes cada vez mais aprofundadas, a cada novo projeto perpetrado: a dos mecanismos mediante os quais certos grupos de interesses agrrios ou seus representantes buscam inserir-se junto a agncias da sociedade poltica3 ao longo do tempo ou junto a elas canalizar, com prioridade, suas demandas especficas, resultando na permanente redefinio de monoplios de posies estratgicas junto a organismos do estado voltados para a discusso, administrao, gesto e regulao da agricultura e do mundo rural, respaldando, por sua vez, a construo de uma rede de atores sociais que se perpetua e interfere no permanente processo de construo do estado brasileiro e, por consequncia, de suas polticas agrria e agrcola.

    num momento como o da turbulenta atualidade socioeco-nmica e poltica da histria brasileira, em que questes to premen-tes como as da reforma agrria e do acirramento das contradies

    tado, violncia simblica e metaforizao da cidadania. rJ, Tempo, Depto. Histria/relume-Dumar, 1, abr., 1996, pp. 94-125; grandes propriedade, grandes proprie-trios: velhas questes, novas abordagens. In: silVa, s. e sZMreCsnYi, t. (orgs). Histria Econmica da Primeira Repblica. sP, Hucitec/Fapesp, 1996, pp. 171-186; O ruralismo brasileiro. sP, Hucitec, 1997; a escola superior de agronomia e Medicina Veterinria no rio de Janeiro: agronomia, classe dominante e estado na 1a repblica. In: Carneiro, M.J. et alii (orgs.). Campo aberto, o rural no Estado do Rio de Janeiro. rJ, Contra Capa, 1998; Agronomia e poder no Brasil. rJ, Vcio de leitura, 1999; A poltica de cooperativizao agrcola do Estado brasileiro. niteri, eduff, 2002, dentre vrios outros.

    2 ruralisMo: agricultura, poder e estado na primeira repblica, defendida junto FFlCH da usP, em 1990, e publicada pela editora Hucitec sob o ttulo O ruralismo brasileiro, em 1997.

    3 o referencial terico com que trabalho a questo deriva da concepo ampliada de estado elaborada por gramsci, 1978 e 1980.

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    sociais no campo, materializadas no Movimento trabalhadores rurais sem terra, ainda esbarram em bices polticos crescentes, que inviabilizam ou postergam sua soluo, tendo a concordar com Palmeira quando afirma que os estudos acerca do tema exploram pouco a questo do papel que as coalizes de interesse desem-penham na obstaculizao da efetividade de uma soluo para a questo agrria/reforma agrria no pas.

    Diante dessa peculiaridade, as facilidades ento oferecidas pelo estado comearam a atrair para o setor agrrio capitais mais diver-sificados e a maneira como se verificou a articulao entre estado e negcios privados criou no uma aliana entre classes, mas o que o autor denomina de coalizo de interesses, individualizados em torno dos negcios ligados terra e envolvendo toda uma gama de beneficirios dos incentivos estatais, o que emprestou questo agrria no brasil uma nova configurao e dimenso4 de amplitude insuspeitada at ento.

    essa questo o ponto de partida para fazer a ponte com a d-cada de 1980, marcada, na histria recente do pas, pela chamada transio democrtica cujo fruto ltimo seria a dita nova rep-blica (Fernandes, 1987). os desdobramentos desse processo, no entanto, ultrapassariam a prpria capacidade de tutela do projeto dos militares que, originalmente, a tinham concebido.

    a dinmica interna da abertura j apontava para seus prprios limites. as eleies estaduais de 1982 representaram a vitria das oposies, consistindo num marco da extino do projeto dos mi-litares ligados aos rgos de informao. inaugurava-se, a, o que alguns autores chamam de diarquia brasileira (lamounier, 1986),

    4 segundo simon (1994), p. 39, 70% das grandes propriedades na regio norte do pas pertencem a grandes empresas do sudeste, com destaque para as paulistas. apenas a empresa Manasa detm, sozinha, uma rea equivalente a 90% tamanho do estado do rio de Janeiro.

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    referida coexistncia de dois fulcros de poder, ambos incapazes de impor seu prprio projeto. ainda assim, a transio permaneceria altamente negociada, mesmo com recuos significativos no processo, como aquele verificado com a derrota da emenda Dante de oliveira, em 1983, que congregara uma ampla frente de segmentos oposi-cionistas, incluindo at PMDb, PDt, Pt, e entidades como oab ou abi. entretanto, se a democracia poltica fora adiada, ela se impunha como reivindicao obrigatria na agenda da transio.

    Com a vitria do primeiro candidato civil presidncia, em 1985 mesmo que por via ainda indireta passava-se a uma conjuntura de arriscado malabarismo entre o compromisso com o projeto democrtico e as negociaes com segmentos militares (Fontes & Mendona, 1996). a impossibilidade da posse do novo presidente e a ascenso de seu vice, Jos sarney, ex-presidente da arena, trouxeram ao pas nova onda de insegurana, ampliada, ainda mais, pela crise econmica que, desde 1974, abalava o pas.5

    talvez exatamente por isso, o novo bloco no poder, ainda em desenho, tenha tentado empreender algumas iniciativas reforma doras, no sentido de capitalizar prestgio e, sobretudo, legitimidade. entre 1985 e 1986, descortinaram-se aquelas que pareciam ser novas possibilidades, em face da presso popular por um projeto democratizante, diante do qual a nova re-pblica no tinha como recuar. Desse novo contexto fizeram parte o Plano Cruzado do ministro Funaro e o lanamento do Plano nacional de reforma agrria (o Pnra). este ltimo visava conter a violncia que grassava no mundo rural brasilei-ro vitimando dezenas de trabalhadores abatidos sob a pecha de invasores da propriedade privada na mesma proporo em que crescia a capacidade de organizao e mobilizao dos

    5 sobre a crise do milagre, ver Mantega & Moraes, 1979; Mendona, 1986; oliveira, 1977; singer, 1977, dentre inmeros outros.

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    homens do campo.6 o plano procurava resgatar um aspecto fundamental do j finado estatuto da terra da gesto Castelo branco: a preocupao de neutralizar alguns setores de grandes proprietrios mediante o fio condutor da penalizao da pro-priedade especulativa, desapropriando o que foi definido como terras improdutivas. buscava, igualmente, atender s demandas sociais mais urgentes, visando desapropriaes que permitissem o assentamento de trabalhadores sem terra nas reas de maior potencial de conflito do pas, sobretudo o norte Par e Ma-ranho e o nordeste.

    sintomaticamente, no entanto, os mais virulentos ataques ao Pnra partiram para surpresa de seus idealizadores7 no de latifundirios tradicionais, mas justamente de so Paulo, capita-neando outros estados desenvolvidos do sul e sudeste, j que a maior parte das desapropriaes era contra os grandes conglome-rados econmicos do sul do pas, que ali tinham adquirido terras pertencentes ao estado at a dcada de 1970.

    essas aquisies, por seu turno, representavam um dos frutos mais importantes da modernizao da agricultura brasileira, j que as redes entre as diversas fraes do capital agrrio, industrial, financeiro atingiram um grau tal de imbricao e complexidade que se torna extremamente difcil separar o joio do trigo. afinal, malgrado a permanncia de tradicionais estruturas e mecanismos de dominao/expropriao no campo, criaram-se novas modali-

    6 sob o impacto das mobilizaes pelas Diretas-j e com a incluso da reforma agrria dentre as bandeiras de mudana pregadas em palanques e praas, iniciou-se, em 1984, a preparao do iV Congresso nacional de trabalhadores rurais, promovido pela Contag (Medeiros, 1989, pp. 172-174).

    7 naquele momento, Jos gomes da silva, ento presidente do incra, manifestava sua sur-presa com as declaraes de membros da sociedade rural brasileira (principal entidade de classe dos proprietrios rurais de so Paulo) e de algumas federaes de agricultura que diziam no temer a reforma agrria, mas sim o problema da interrupo da produo...

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    dades de faz-lo, mormente aquelas presididas pela associao da categoria terra com a de reserva de valor. Por certo, os efeitos desse novo processo deslanchado pela consolidao do agribusiness no brasil foram os mesmos para os trabalhadores rurais: expulso, xodo rural, misria, pobreza e, claro, conflito. o que mudara fora a extrao socioeconmica desses novos latifundirios, que, na maior parte dos casos, eram tambm empresrios industriais ou financeiros.

    a situao agrria brasileira quando da emergncia do Pnra deixa claro os aspectos da concentrao fundiria e demonstra seus efeitos na transformao das relaes de trabalho no campo, cujo produto final a mais brutal excluso. simultaneamente, esses dados vo delineando o cenrio em movimento de onde emergiu o principal objeto de estudo desse projeto: a uDr (unio Demo-crtica ruralista), criada, justamente, em 1985.

    sua emergncia, algo imprevisvel e inusitado, viria tona tornando ainda mais complexo o jogo poltico intraclasse dominante agroindustrial em face da reforma agrria. ela viria a aguar, nas teias de disputas e conflitos vigentes entre inmeras entidades de organizao dos interesses agrrios vigentes, definindo, para junto a eles afirmar-se, uma dada estratgia de atua o contra qualquer ataque ao sagrado direito da propriedade, que faria com que a nova entidade se tornasse a mais visvel dentre as demais, com as quais em momento de crise de representao poltica viria a lutar pela liderana inconteste e nica da classe.

    exatamente esse processo de medio de foras e realinha mento poltico no seio da prpria classe dominante agrria brasileira suas nuances, estratgias e peculiaridades conjunturais no plano das entidades de representao poltica que este trabalho se prope a analisar, visando, ao faz-lo, contribuir para desnudar tanto aspectos essenciais da ao poltica da uDr na nova repblica, quanto sua afirmao como partido nacional da burguesia agroin dustrial no pas, ainda que por um determinado perodo.

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    Vale dizer, ainda, que, para os autores dos poucos estudos exis-tentes acerca da uDr, a entidade teria representado algo totalmen-te novo, ainda que no campo do conservadorismo e reacionarismo, em meio j citada complexificao dos processos de produo e de representao poltica patronal no meio agrrio e, por extenso, de multiplicao das agncias da sociedade civil agremiadoras dos mais variados segmentos da classe dominante agrria.

    essa novidade, ademais, poderia ser explicada por trs caracters-ticas basilares da entidade emergente: seu meterico crescimento tanto em termos de quadros, quanto de publicidade, logo aps a emergncia do Pnra;8 a capacidade de articulao nacional dos grandes pro-prietrios, pecuaristas em maioria, atravs de uma eficiente estrutura organizacional que vinculava os ncleos regionais s representaes estaduais e direo nacional da agremiao; e, finalmente, o fato de ser a uDr uma agremiao de interesses de grupos dominantes agrrios paralela estrutura sindical patronal oficial, a quem ela sempre se recusou a se filiar, tendo em vista sua subservincia ao estado e seus interesses (ronaldo Caiado in Senhor, 15/6/86).

    sem discordar completamente dessa caracterizao global, este estudo busca resgatar, num processo histrico mais amplo, algumas modalidades de atuao de outras agremiaes patronais rurais em particular a sociedade rural brasileira (sP) e a sociedade nacio-nal de agricultura (sna) de modo a verificar at que ponto e em que medida a uDr teria, de fato, se constitudo como to inovadora nos anos de 1980.

    Do ponto de vista aqui assumido, tal emergncia no po-deria deixar de deitar razes num quadro bem anterior ao Pnra, dado que, como j analisei em outro estudo (Mendona, 1997), o ruralismo ou ruralismos no consiste to somente em de-

    8 segundo noticiado pela imprensa, a uDr, tendo por base o eixo gois, so Paulo e Minas, passou de 3 mil associados em 1986, para 130 mil em 1987 (Veja, 11/11/87).

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    signativo ou mera ideologia, mas sim em movimentos polticos de determinadas fraes da classe dominante agrria brasileira em busca da afirmao de um dado projeto de hegemonia ou contra--hegemnico desde incios do sculo atual, ainda que redefinidos seus agentes.9

    assim sendo, este estudo resulta de uma pesquisa voltada para a documentao produzida por duas entidades patronais da agri-cultura para alm da uDr a partir da conjuntura de aprovao do estatuto da terra do primeiro governo militar no ps-1964, de modo a analisar possibilidades de continuidade ou ruptura no tocante s prticas que seriam adotadas pela uDr quer no plano discursivo, quer no das estratgias de ao perpetradas com relao s demais agremiaes de classe, em momentos diversos.

    J vimos que no decorrer dos mais de 20 anos que separam o estatuto da terra do Pnra, novos atores sociais do capital, no caso entraram em cena, semeando a fazenda, a grilagem, a injus-tia, a brutalidade. e semeou, tambm, a resistncia, semeou novas significaes para velhos atos, novos atos para velhas significaes, novos atos e novas significaes (...) (Martins, 1986). entretanto, no creio ser possvel partilhar da ideia de que o novo represen-tado pela uDr tenha brotado to somente ali e em decorrncia de uma questo focalizada, como a emergncia da proposta do Plano nacional de reforma agrria, por mais que este tenha vindo a ameaar o prprio cerne do dogma liberal: a proprie dade privada.

    9 Consistindo a defesa da chamada vocao eminentemente agrcola do pas na palavra de ordem do ruralismo republicano, historiografia e histria parecem confundir-se, tendo por ponte a naturalidade com que certos autores contemporneos apropriam--se daqueles situados nas trs primeiras dcadas do sculo (...). Creio que inegvel hoje a necessidade do conhecimento mais amplo acerca da histria dos segmentos agrrios da classe dominante brasileira, j que o termo ruralista, na atualidade, chegou a instituir-se como designativo de uma associao de classe com pretenses partidrias e atuao fascistizante (Mendona, 1997, p. 11).

  • 25

    logo, outro objetivo primordial deste trabalho, para alm de analisar a constituio, funcionamento, estratgias de atuao po-ltica levadas a cabo pela uDr junto ao estado e sociedade civil, foi o de resgatar as razes histricas dessa entidade de proprietrios e seus pontos de contato com aqueles a quem se poderia chamar de ruralistas autnticos, da srb ou da sna.10 neste cotejo, foi possvel perceber que, ao menos no tocante s ideias-fora e estruturas argumentativas, a uDr pouco teve de efetivamente inovadora. tal novidade se manifestaria, to somente, no plano das estratgias de ao, sobretudo em funo de dois aspectos, que a distinguiriam das demais entidades pesquisadas: a) a legitimao da violncia fsica como instrumento da obteno de seus fins o que lhe valeria uma grande rejeio entre as classes dominantes, at a assembleia nacional Constituinte; e b) a agilidade de sua mobi-lizao de quadros, mantida por abundantes recursos, oriundos de inmeras fontes dentre elas os leiles de gado , o que lhe valeria a dianteira poltica junto Constituinte e s demais agremiaes.

    De uma forma ou de outra, a nfase da pesquisa recaiu sobre o estudo da atuao de entidades patronais rurais srb, sna e uDr no perodo compreendido entre 1964 e 1988, na conjuntura de trmino da assembleia nacional Constituinte, espao poltico privilegiado para a anlise das articulaes da unio Democrtica ruralista como aparelho privado de hegemonia (gramsci, 1978), engajado na organizao e direo de setores de grandes propriet-rios de terra, em torno a um projeto de manuteno da estrutura agrria no brasil.

    10 em trabalho anterior que visava o estudo da insero de representantes dessas entidades de classe junto ao Ministrio da agricultura at 1945, foi possvel perceber, atravs da anlise das revistas publicadas por ambas as agremiaes, no que consistia seu projeto de reforma agrria, deixando de longe a questo da distribuio da terra e enfatizando a questo da difuso de tecnologia e educao junto ao meio rural (Mendona, 1995).

  • 26

    a perspectiva comparada tornou-se essencial ao estudo, mormente em se tratando, no caso especfico da uDr, de uma agremiao poltica que veio transgredir todas as regras do con-vvio democrtico, mediante a criao de milcias privadas e de grupos de resistncia e solidariedade na defesa da classe (Senhor, 15/7/85) no que, alis, diferiu em muito das demais entidades classistas. o processo de enfrentamento das iniciativas governa-mentais de reforma agrria na conjuntura da transio democrtica pressups, ademais, um embate entre as agremiaes focalizadas, envolvendo duas questes especficas: a) a disputa pelo monoplio da representao legtima do conjunto da classe proprietria rural e b) a disputa pelo envolvimento de atores diversos, mesmo que no ligados grande propriedade, como bases de sustentao e respaldo poltico de sua atuao.11

    Claro est que todo esse processo, para alm dos embates intra-classe ou interinstitucionais, implicou em conjunturas especficas de coalizo entre as distintas entidades com exceo, quase crnica, da sociedade nacional de agricultura , quando seus agremiados percebiam-se como ameaados pelo inimigo comum, fosse ele o estado ou os invasores da propriedade alheia. Para tanto, dedicou-se especial ateno ao mapeamento dos pontos de acordo e desacordo entre as propostas das associaes estudadas antes e depois do Pnra; seus graus de efetiva representatividade e movimentos de construo do consenso intra e interinstitucional, bem como ao de suas respectivas lideranas e projetos antirre-formistas. Para tanto, estudou-se igualmente outras vozes que se ergueram contra o Pnra do governo sarney, para alm da uDr e da srb, tais como a Confederao nacional da agricultura (Cna),

    11 no segundo momento de sua atuao a uDr passou a prestar assessoria jurdica rpida e eficaz para pequenos e mdios proprietrios, inatendidos em seus sindicatos ou cooperativas, buscando, dessa maneira, atra-los como base de apoio.

  • 27

    a Frente agrcola para a agropecuria brasileira (Faab), ou ainda a mais recente dessas agremiaes, a organizao das Cooperativas do brasil (oCb).12

    somente assim foi possvel perceber o largo espectro dos projetos ruralistas originados da reao dos grandes proprietrios a qualquer tipo de reforma que tocasse a estrutura fundiria, verificando suas agncias agremiadoras, principais bases de sustentao, para, a sim, poder realizar um estudo comparado com as propostas, estratgias e espetacularizao da poltica com seus famosos leiles, rodeios e passeatas13 promovidos pela uDr junto classe proprietria em geral, e Constituinte em particular, junto qual contou com os servios de lobistas especializados e assessoria jurdica e econmica de grandes especialistas para pr em prtica seu jogo da direita (Dreifuss, 1989). o acompanhamento da atuao da chamada bancada ruralista junto assembleia nacional Constituinte foi tambm uma das etapas desse estudo.

    resta esclarecer que, tendo em vista a escassez de materiais produzidos pela prpria uDr e acessveis consulta, o grosso da pesquisa foi realizado junto documentao hemerogrfrica, tanto jornais da grande imprensa do rio de Janeiro, so Paulo e rio grande do sul (como Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Zero Hora), quanto revistas do perodo, como Veja, Senhor e Reforma Agrria (revista da abra), cujas matrias tornaram-se preciosas fontes de informao, formao de opinio pblica

    12 segundo noticiado pelo Jornal do Brasil em 6/10/86, a oCb posicionou-se contra a uDr, propondo a criao de uma frente ampla da agricultura que congregasse as entidades de classe com a incluso da Contag e a excluso da uDr.

    13 os rodeios, que tambm se transformavam em leiles, consistiram na principal estra-tgia de arrecadao de fundos da uDr, para alm das taxas de inscrio e anuidades. os leiles eram verdadeiros espetculos, onde se misturavam msica, negcios e prestgio. segundo a Folha de S. Paulo de 13/11/87, a entidade comercializou mais de 6 mil animais em leilo.

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    e posicionamento poltico em face da ento emergente uDr. um destaque parte merece ser feito com relao s revistas de duas das entidades patronais estudadas cuja periodicidade regular e riqueza informativa respaldou fortemente este estudo. refiro-me s publicaes A Lavoura, da sociedade nacional de agricultura, e A Rural, da sociedade rural brasileira, percorri-das, por amostragem, para todo o perodo compreendido entre 1964 e 1988.

    o trabalho acha-se estruturado em quatro captulos. no primei-ro entidades patronais e reforma agrria: do estatuto da terra ao limiar dos anos 80 procurou-se dar conta de dois objetivos: a) mapear as principais discusses de carter terico que dividem os especialistas quanto ao debate e estatuto poltico da reforma agrria no brasil, tanto hoje quanto na conjuntura do imediato ps-1964; b) resgatar as grandes linhas de fora vigentes no processo histrico compreendido entre o lanamento do estatuto da terra do governo Castelo branco e a divulgao da proposta do Plano nacional de reforma agrria, em 1985, focalizando, sobretudo, a atuao da sociedade rural brasileira e da sociedade nacional de agricultura e seus respectivos projetos de reforma.

    no segundo representao agroindustrial e reforma agrria: o Plano nacional de reforma agrria (Pnra) procurou-se dialogar com a historiografia especializada na questo da mo-dernizao da agricultura brasileira, assim como reconstituir as j existentes disputas entre as classes dominantes em torno das polticas agrcolas e agrria do estado em sentido restrito verificadas no perodo em foco.

    no terceiro a emergncia da uDr procurei focalizar os aspectos envolvidos na emergncia da unio Democrtica ruralista que poderiam vir a dar suporte verificao da hiptese acerca da inovao ou no por ela representada no mbito das entidades de classe dos segmentos agroindustriais brasileiros, com nfase para

  • 29

    suas estratgias de ampliao de quadros, ncleos regionais, fontes de arrecadao e construes discursivas.

    no quarto e ltimo uDr e Constituinte: impasses na tran-sio democrtica foi privilegiado o estudo da atuao da uDr no processo constituinte propriamente dito, verificando-se suas estratgias vitoriosas, alis de construo da liderana legtima e nica ainda que por um breve perodo, at a fundao da abag (associao brasileira de Agribusiness) das entidades patronais rurais no pas, bem como as presses intra e extramuros por ela desenvolvidas com vistas a obter uma fragorosa derrota das propostas de uma reforma agrria efetivamente redistributivista no seio da assembleia nacional Constituinte.

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    o principal objetivo deste captulo consiste no resgate histrico da concepo de reforma agrria veiculada por duas significativas entidades agremiadoras da classe dominante agrria brasileira, a sociedade nacional de agricultura (rJ) e a sociedade rural brasileira (sP). uma vez que a pesquisa se dirigiu para verificar as possveis filiaes/continuidades da unio Democrtica ruralista quanto a associaes de classe a ela precedentes, e levando-se em conta que ambas as agremiaes selecionadas constituram-se naquelas politicamente mais ativas e representativas dos grandes proprietrios rurais brasileiros no perodo focalizado, trataremos de aprofundar a anlise do(s) projeto(s) da sna e da srb a fim de inferir potenciais pontos de contato formais e, sobretudo, discursivos entre a uDr e as sociedades nacional de agricultura e rural brasileira. Para tanto, lanou-se mo da pesquisa exaustiva junto coleo das revistas de ambas as entidades, respectivamente, A Lavoura e A Rural. Foi a partir delas, sobretudo, que o resgate histrico pretendido se fez possvel.

    CApTuLo 1

    ENTiDADES pATroNAiS E rEFormA AGrriA: Do ESTATuTo DA TErrA Ao LimiAr DoS ANoS DE 1980

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    guisa de situar o leitor, vale lembrar que a sociedade na-cional de agricultura, sediada no rio de Janeiro, foi fundada em 1897, tendo-se revelado um ator poltico estratgico em vrios momentos da histria das lutas sobretudo em sua di-menso entre as classes dominantes em torno da agricultura e de polticas agrcolas brasileiras no decorrer do sculo 20, tendo funcionado, ao longo desse perodo, como espcie de espao institucional privilegiado no dilogo com a sociedade poltica brasileira.14 J a sociedade rural brasileira, fundada em 1919, em so Paulo, para fazer frente s demais entidades de classe de mbito regional, bem como sna, teve uma par-ticipao extremamente ativa junto aos inmeros contextos de debate nacional sobre a reforma agrria, traduzindo a posio e as ideias do segmento tido como o mais moderno da classe dominante agrria brasileira, haja vista a agremiao congregar os poderosos interesses do setor mais industrializado dos pro-prietrios rurais,15 mormente frigorficos, industriais do setor de beneficiamento alimentcio e correlatos, sem falar nas grandes

    14 a sna foi a entidade que, desde a repblica Velha, respondeu pela campanha de recriao do Ministrio da agricultura, indstria e Comrcio, passando a ser, aps 1913, uma espcie de antessala dos quadros de alto escalo da pasta. Mesmo nas dcadas de 1930 e 1940, continuou a entidade a ingerir diretamente sobre os rumos da poltica agrcola ministerial, malgrado agora dividisse espao poltico dentro do Ministrio com porta-vozes da sociedade rural brasileira.

    15 o uso das aspas no termo proprietrios rurais prende-se ao fato de que, em funo das transformaes verificadas na agricultura brasileira do ps-1964 conhecidas como modernizao e que implicaram, sobretudo, a nfase industrializao das ativi-dades agrcolas e seu profundo imbricamento s cadeias industriais setoriais, torna-se difcil, a partir de ento, discriminar aqueles grandes empresrios que se dedicavam exclusivamente agropecuria, daqueles que se envolviam, simultaneamente, em ambas as dimenses da produo rural. empresrios rurais tornavam-se, ao mesmo tempo, latifundirios e industriais, frente de, muitas vezes, uma mesma empresa que centralizava mltiplas atividades urbanas e agrrias correlatas.

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    empresas nacionais e estrangeiras que, mais contempora-neamente, passaram a investir igualmente em terras, tanto em so Paulo quanto no restante do pas.

    igualmente se faz mister destacar a disputa que marcou as relaes entre a sociedade nacional de agricultura e a congnere paulista, a srb, desde os primrdios do perodo republicano no pas,16 estendendo-se por perodos mais recentes (anos de 1950). a situao no seria diversa na conjuntura inaugurada pelo golpe de 1964, ainda que ambas as associaes, ao defenderem sua(s) proposta(s) de reforma agrria, guardassem pontos de acordo muito mais evidentes do que os de desacordo, sobretudo levando-se em conta a intransigente defesa, por parte de ambas as entidades, do sagrado direito propriedade. no entanto, a tenso poltica entre elas em particular no que tange disputa pela efetiva representao nacional da classe dominante agrria brasileira no deixaria de cessar no decorrer de todo o perodo.

    essa disputa pode ser depreendida, por exemplo, das descries de inmeras solenidades de posse em particular verificadas na sede da srb de novas diretorias onde a revista A Rural faz questo de registrar tanto a presena marcante de autoridades da administrao pblica estadual e, sobretudo, federal, quanto a total ausncia de representantes da agremiao do rio de Janeiro.17

    De igual forma, a tenso poltica entre ambas patenteia-se at mesmo na nfase dada s matrias das publicaes das entidades, onde, por exemplo, em pleno governo Joo goulart, s vsperas do golpe de 1964, a srb iria louvar, em vrios meses de sua revista,

    16 Cf. Mendona, 1997 e 1999.17 em nmero do ms de abril de 1963, A Rural publica matria sobre a solenidade de

    posse do novo presidente da entidade, o grande cafeicultor svio Pacheco de almeida Prado. em apenso, publica lista de todas as agremiaes e rgos pblicos cujos re-presentantes estiveram presentes solenidade. Dentre os quase 50 nomes, no consta a sociedade nacional de agricultura.

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    a criao da supra (superintendncia de Poltica agrria) criada como anteparo mobilizao social no campo, daquela conjun-tura e criticar o inda (instituto nacional de Desenvolvimento agrcola) como incuo, ao passo que A Lavoura, da sociedade nacional de agricultura, adotaria postura inversa em seus editoriais, louvando o inda.18

    Por certo, esse contexto de tenses e disputas polticas no seria suficiente para obstar o consenso entre as duas agremiaes no tocante ao combate veemente proposta de reforma agrria aprovada por Joo goulart naquele contexto poltico-social, como ser verificado adiante. a despeito do consenso, contudo, a disputa poltica entre elas no pode ser subestimada no resgate histrico das propostas de reforma por elas veiculadas, j que muitos de seus aspectos menores estavam por ela condicionados.19

    a rigor, a documentao deixa entrever, com clareza, que ambas as agremiaes pareciam disputar, palmo a palmo, a efe-tiva condio de representante legtima e porta-voz autorizada dos interesses das fraes agrrias da classe dominante brasileira a partir do critrio da maior ou menor proximidade de seus quadros

    18 A Lavoura contaria, durante alguns anos, com uma coluna intitulada inda promove, onde eram noticiadas as iniciativas e realizaes do organismo em prol do desenvol-vimento agrcola brasileiro. um exemplo dessa postura pode ser ilustrado atravs da matria Curso de lderes rurais em Valena, publicada em janeiro-fevereiro de 1968, onde a revista divulga o grande xito da realizao do Curso de tcnicas de liderana rural realizado sob o patrocnio do inda, p. 30.

    19 Por exemplo, quando um dos presidentes da srb, souza lima, foi indicado para ministro da agricultura em 1963, a entidade o louvava em sucessivas matrias acompanhando suas realizaes e agenda poltica, como um demonstrativo de sua representatividade nacional e da efetividade e sucesso de sua capacidade de presso poltica. em contrapartida, a srb pouco noticiou exceto em tom de ntida crtica que a Confederao nacional da agricultura (Cna), rgo mximo da representao patronal recm-criada poca (originada da extinta Confederao rural brasileira, existente desde 1926), era presidida por representante da sna.

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    dirigentes junto sociedade poltica nacional ou junto adminis-trao pblica federal.

    no entanto, um ponto em comum, inquestionvel, unificava as prticas e discursos veiculados por ambas as entidades: a defesa aguerrida da estrutura fundiria vigente no pas, sempre que esta fosse ou seus representantes a vissem como ameaada, em par-ticular no imediato pr-1964 ou mesmo logo aps o golpe, quando do lanamento do estatuto da terra em pleno perodo militar. De modo a subsidiar a anlise, estabelecemos um breve resumo da conjuntura histrica em foco, a seguir.

    ESTATuTo DA TErrA E rEFormA AGrriA: CoNTExTuALizANDo

    no imediato pr-1964, em meio profunda crise econmica vivida pelo pas, trs questes gerais se colocavam como exigncias do desenvolvimento capitalista no brasil: o combate infla o, a alterao da poltica externa e a chamada modernizao da agri-cultura.20 primeira delas, o governo militar respondeu com uma poltica de recesso calculada que, em sua pauta de combate inflao, inclua a superexplorao seletiva da fora de trabalho e o arrocho salarial seletivo, sem mencionar a proibio de greves e a prpria represso.21 quanto poltica externa, reforou-se defi-nitivamente tendncia at ento j esboada de alinhamento aos estados unidos. J quanto modernizao, colocava-se, poca, como inevitvel, a reforma agrria.

    Vale lembrar que a palavra de ordem surgida nos bastidores do golpe era o combate ao comunismo, a qual contou com grande respaldo da sociedade civil brasileira, sobretudo segmentos mais

    20 a este respeito, ver graziano da silva, 1981; gonalves neto, 1997; Delgado, 1985; Martins, 1994; Martins, 1989; Medeiros, 2001, dentre outros.

    21 Cf. abreu, 1989; belluzzo & Coutinho, 1982; Krischke, 1982; Mantega & Moraes, 1979; oliveira, 1977 e 1987; singer, 1977; Mendona, 1987, dentre outros.

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    conservadores das classes dominantes e de setores de profissionais liberais, movimentos femininos e congneres (Dreifuss, 1981). nesse amplo espectro de foras, pode-se resgatar a participao ativa da prpria srb e da sna, como se infere do editorial publicado em A Rural em maio de 1964:

    ao comentarmos a realizao da Marcha da famlia com Deus, pela liberdade, afirmvamos que, aps uma manifestao to eloquente da vontade popular, no teramos dvida da vitria da boa causa.De fato, doze dias depois da grande manifestao do povo paulista, as Foras armadas, que so parte integrante desse povo, punham as suas tropas nas ruas contra o governo opressor. (...) Continuemos a luta e complementemos a revoluo! (A Rural, maio, 1964: p. 3).Por certo, o golpe no consistiu numa reao exclusiva aos

    projetos de reforma agrria existentes no papel e nos pronun-ciamentos oficiais ou oficiosos do governo, uma vez que, a despeito de seu radicalismo verbal, esses eram tmidos e mo-derados em suas propostas de encaminhamento.22 ademais, o programa fundirio do governo Joo goulart no se props, em momento algum, a acabar com o latifndio, nem mesmo investiu radicalmente nas conhecidas reformas de base, pautando-se pelo reformismo populista apontado por alguns autores (bruno, 1997: p. 97). De fato, a reao foi, sobretudo, s alternativas contidas no movimento dos trabalhadores rurais e no movimento social pelas reformas em geral, que poderiam, eventualmente, sinalizar para uma reforma agrria na marra, j que tais mobili-zaes sinalizavam para a possvel ruptura de alianas tradicionais que davam sustentao s formas de dominao prevalecentes no campo, desde h muito.

    22 no mximo, limitavam-se desapropriao, medidas de ordem fiscal e mudanas da Constituio.

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    a rigor, um dos primeiros atos do primeiro governo militar seria o estatuto da terra, promulgado por Castelo branco, em meio a uma crise de redefinio e consolidao das alianas que viriam a dar sustentao ao novo regime, tendo, justamente por isso, uma repercusso, poca, to contraditria quanto a prpria historio grafia especializada na anlise do tema. Cri-ticado pela maioria dos autores por seu carter antipopular e, sobretudo, por no incorporar os trabalhadores rurais no processo de reforma agrria,23 o estatuto da terra, no entanto, como o ressalta bruno (1997, p. 98), teve seus componentes liberais e at mesmo distributivistas postos de lado. segundo alguns, os institutos legais, que, durante o governo Castelo branco, tentaram estruturar uma dada organizao moderna das relaes econmicas no campo, pouco foram focalizados pelos analistas.

    Para alm de seus aspectos antipopulares e autoritrios, no entanto, o estatuto guardava um evidente cunho reformista, que pode ser exemplificado pela prpria reforma agrria. esta, ademais, se inseria num conjunto de medidas vinculadas a uma estratgia geral cuja racionalidade prendia-se ao Plano de ao econmica do governo (Paeg), mormente no que dizia respeito tanto anlise do papel da agricultura no desenvolvimento do capitalismo, quanto da prpria reorganizao fundiria. tratava-se de fazer frente crise econmica brasileira buscan-do, atravs da reforma fundiria, ampliar o mercado interno e configurar uma classe mdia rural consumidora de produtos industriais, mas tambm neutralizadora dos conflitos e tenses

    23 a maioria dos especialistas defende tal postura, destacando, por exemplo, que os itens do estatuto que previam a participao dos trabalhadores no foram regulamentados. Ver graziano da silva, 1981; bruno, 1985; bruno, 1997; Camargo, 1985; silva, 1985, dentre outros.

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    no campo, tal como j se propugnara em outra quadra histrica do pas.24

    logicamente as reformas sociais, no governo Castelo branco, adquiririam uma nova configurao, a comear pelo fato de virem a se concretizar no mais por intermdio de uma frente com os setores populares, e sim atravs da represso ao conjunto do mo-vimento social e da lenta destruio dos canais institucionais de mediao entre estado e sociedade civil organizada. Com isso, as reformas desenraizaram-se de suas origens sociais, tornando-se uma concesso do regime militar, o que significava afirmar o fim de qualquer possibilidade de uma reforma agrria voltada transformao radical da estrutura de propriedade vigente. isso no significou, entretanto, que a reforma da estrutura fundiria proposta estivesse esvaziada de qualquer cunho mudancista. a rigor, a reforma agrria castelista, tida como democrtica e crist, voltava-se para o aumento da produo e da produtividade, bem como para a consolidao da propriedade privada no campo, ainda que sob a gide dos princpios da tcnica e da ideologia do plane-jamento e da raciona lidade (ianni, 1981). logo, o que se percebe que o primeiro governo militar, ao se apropriar da bandeira da reforma agrria e das demais reformas de base do perodo pr-golpe, deslocou-as para o mbito do tcnico e da eficcia, deixando de lado o movimento social mais amplo que lhes dera sustentao em passado recente.

    24 em estudo anterior, foi possvel perceber a articulao de uma proposta com contedo equivalente ainda que em outra conjuntura histrica por parte dos segmentos de grandes proprietrios rurais agremiados na sociedade nacional de agricultura, nas dcadas de 1900 a 1930. seu objetivo consistia em multiplicar as pequenas propriedades em reas agrcolas menos dinmicas, com vistas a configurar um colcho amortecedor de pequenos proprietrios que pudessem atuar no sentido de impedir mobilizaes rurais por parte dos sem terra (Mendona, 1997).

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    segundo Delgado (1985: p. 4), os demais diplomas liberais da gesto Castelo branco a saber, a lei de reforma bancria, de 1964, e a lei de mercado de capitais, de 1965 constituram-se em pr-requisitos reacelerao da expanso industrial verificada a partir de 1967. Diversamente dessas, no entanto, a reforma agrria teria um significado peculiar, tanto por sua feio eminentemente poltica, quanto pela tendncia, por ela instaurada, de mistificao dos termos que permeariam o debate, contribuindo bastante para nublar os interesses de classe que abririam espao para a defesa ferrenha de posies que, a rigor, negavam a proposta reformista.

    Para bruno, tal mistificao derivaria da conjuntura econmica e poltica dos anos de 1950 e 1960, das experincias verificadas em outros pases da amrica latina (Cuba, em especial) e, sobretudo, da percepo de que uma reforma agrria mesmo realizada nos marcos do capitalismo poderia levar mobilizao de foras sociais capazes de alterar drasticamente a ordem econmica em vigor. Da a tendncia ao sobredimensionamento das possibilida-des de mudana oriundas da reforma, assim como a reificao do potencial de mobilizao e transformao presente na luta pela reforma agrria. Mesmo a partir da dcada de 1970, quando, no mbito do estado, a poltica fundiria confundia-se com medidas alternativas reforma agrria, no plano do debate repetir-se-iam os mesmos argumentos, e a reforma agrria se tornaria a pedra de toque da questo agrria brasileira e a nica alternativa vivel para os males da agricultura.

    Voltando ao perodo Castelo branco, pode-se afirmar que o estatuto da terra teve como especificidade o fato de conter em seu bojo duas estratgias distintas: uma, claramente distributivista, voltada democratizao da propriedade da terra; e outra, pro-dutivista, concentradora, j sinalizando a opo que prevaleceria nos anos de 1970, a assim chamada modernizao conservadora (graziano da silva, 1982).

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    a rigor, essa tenso de princpios um claro demonstrativo da disputa de interesses vigente entre as classes dominantes agrria no perodo: enquanto se iniciava, na prtica, a implementao de uma poltica produtivista, no plano da sociedade poltica remanescia um espao de disputa pela reforma agrria. afinal, vale lembrar que o primeiro governo militar elegera a reforma agrria como alternativa para a agricultura brasileira, por partilhar do ponto de vista de que a estrutura fundiria consistia em obstculo ao desenvolvimento do capitalismo no pas. ao mesmo tempo, constitua-se numa resposta questo social e poltica no campo.

    no entanto, equivocou-se o governo militar ao supor que seria suficiente deciso poltica para implementar uma reforma agrria, da mesma forma que se equivocou ao esperar uma base poltica de apoio para seu projeto reformista atravs da identificao de que ele atenderia a certos interesses de classe que viam na formao de uma classe mdia rural a alternativa para o consumo de certos produtos industriais. Como o aponta graziano (op. cit.), monoplio no sig-nifica antagonismo, j que o monoplio da terra, mesmo sendo um obstculo por deixar ocioso um meio de produo, no inviabiliza o desenvolvimento do capitalismo, logo, no lhe antagnico. ao mesmo tempo, prossegue o autor, a agricultura no poderia mais ser vislumbrada em seu papel passivo de fornecedora de alimentos e matrias-primas, pois ela iria se tornar, cada vez mais, em mercado no de bens de consumo, mas sim de meios de produo (Idem, ibidem: p. 62). e os anos de 1970 seriam o principal demonstrativo desse processo, quando a estrutura agrria, a despeito de concen-trada, sofreria uma enorme transformao, em que coexistiriam: a) aumento da oferta de matrias-primas e alimentos para o mercado interno, sem comprometer o setor exportador em seu papel de ge-rador de divisas para o processo de industrializao e b) a crescente integrao da agricultura com o conjunto da economia, no s como compradora de bens de consumo industriais, mas, sobretudo,

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    atravs da industrializao da agricultura, atravs da aquisio de insumos e mquinas gerados pelo setor industrial.

    assim, pode-se perceber que a poltica fundiria reformista do governo Castelo branco j era, em seu prprio nascedouro, bastante defasada, dado existirem novos interesses das classes dominantes, mormente os dos segmentos mais internacionalizados, partes inte-grantes do sistema capitalista internacional. logo, se no pr-1964 setores da burguesia ligados produo de bens de consumo bsicos e sensveis aos apelos de reforma agrria acabaram por recus-la por motivos polticos, no ps-1964, quando o perigo comunista j fora neutralizado, essa mesma burguesia uma vez mais se omitiria, redun-dando no prprio recuo do governo em seus objetivos reformistas.

    na verdade, o estatuto da terra deve ser apreendido, para os fins dessa reflexo, como um campo de foras, tal como o sugere bruno (1997), o qual, desde a elaborao do projeto at sua apro-vao final, registrou a medio de foras entre o governo e seus tcnicos (em particular oriundos do ipes, que articulara o golpe de 196425) e as distintas fraes da classe dominante agrria, em luta pela sua no implantao. afinal, regulamentado com um consi-dervel numero de vetos e alteraes, principalmente no que tange distribuio de terra e ao apoio ao trabalhador rural, o estatuto emergiu como instrumento de atuao do estado em dois planos: a reforma agrria e o desenvolvimento agrcola.

    Para alm de todo o exposto at o momento, vale registrar que no se tratava, como frequentemente se possa depreender e tal como o dariam a perceber os grandes proprietrios rurais do perodo , de uma legislao ameaadora do latifndio. Muito ao contrrio, ela fora concebida como um instrumento para forar a sua moderniza-

    25 Faziam parte do gret tanto representantes da vertente reformista do ipes, quanto rema-nescentes da experincia de reforma agrria realizada no estado de so Paulo por Carvalho Pinto, alm de tcnicos dos ministrios envolvidos (bruno, 1997: pp. 137-138).

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    o, particularmente por prever sua interpenetrao ao conceito de empresa, a qual, no estatuto, era isenta de desapropriao. ademais, a lei de reforma agrria era, simultaneamente, uma lei de desenvol-vimento agrcola, o que, alm de abrandar sua intencionalidade poltica, tornava-a um texto passvel de ambiguidades flagrantes, fruto, por seu turno, da enorme resistncia e presso poltica movida pelas entidades de classe patronais da agricultura brasileira.

    seria essa presso e reao a motivao central para sucessi-vos recuos por parte da equipe governamental encarregada da elaborao do estatuto da terra e do estatuto do trabalhador rural. o primeiro deles, tal como apontado acima, consistiu na introduo de um captulo de Poltica agrcola dentro de uma legislao eminentemente agrria, estratgia que serviu para torn-la mais palatvel, politicamente, no Congresso.26

    o segundo dos recuos tticos referiu-se aos instrumentos de re-forma agrria originalmente propostos, quais sejam, a desapropriao por interesse social e a tributao progressiva e regressiva sobre a terra. a rigor, o resultado desses dispositivos seria a contenda entre ambos, acabando com a vitria da vertente tributria. o terceiro recuo dizia respeito aos rgos que seriam diretamente responsveis pela imple-mentao das polticas agrria e agrcola: o instituto brasileiro de reforma agrria (ibra) e o instituto nacional de Desenvolvimento agrrio (inda). a prpria criao de dois organismos representaria uma vitria para os que acreditavam possvel uma reforma agr-ria. no entanto, a indicao de seus titulares viria a demonstrar a impossibilidade de qualquer ao conjunta e integrada entre eles.27

    26 Carlos lorena citado em bruno, 1997, op. cit: p. 113.27 na avaliao de um dos integrantes do gret, os nomes escolhidos demonstravam

    claramente tal impossibilidade: o presidente do inda, eudes de souza leo, alm de usineiro era um elemento virtualmente oposto a Paulo de assis ribeiro, nomeado para o ibra. este, continua o depoente, era sincero, lutador, um sujeito inteligentssimo, mas um homem estratosfrico, no era um executor (apud bruno, 1997: p. 114).

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    prESSo E rEAo rEFormA

    se o golpe de 1964 trazia em seu bojo a suposio de que o lati-fndio, o maior adversrio do projeto reformista, sara vitorioso, o estatuto da terra do governo Castelo branco logo deixaria entrever uma tentativa de golpear a grande propriedade improdutiva. afinal, o estatuto era uma espcie de balo de ensaio no sentido de criar limites ao latifndio improdutivo e atingir, por tal via, o setor da classe dominante agrria mais retrgrado e conservador.

    a reao, entretanto, logo se faria sentir. os grandes propriet-rios sentiram-se trados com a emenda constitucional e o estatuto da terra, voltando-se imediatamente para a mobilizao de suas entidades de classe com vistas organizar sua reao s medidas do governo. Vale registrar que j no se faria cabvel o velho cli-ch do combate ao comunismo, assim como no mais se tratava de um projeto orquestrado por um governo populista, uma vez recm-derrotadas as foras populares. ainda assim, o sentimento de traio por parte do governo seria o mote articulador dos discursos veiculados por ambas as entidades patronais aqui sele-cionadas para estudo: a sociedade rural brasileira e a sociedade nacional de agricultura.

    o posicionamento da srb contra a reforma agrria foi uma constante, tendo a entidade lanado mo de sua imensa capacidade de mobilizao e organizao dos setores de grandes proprie trios, atuando em inmeras frentes de divulgao. Mesmo antes do golpe militar e da proposio do estatuto da terra pelo governo Castelo branco, a srb encabearia a reao s reformas de base de Joo goulart, quando este convocou o Congresso brasileiro para definio das reformas de base, em maro de 1963,28 bem como participaria ativamente de reunies acadmicas divulgando sua posio, tal como as da sbPC (sociedade brasileira para o

    28 A Rural, mar., 1963: pp. 6-8.

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    Progresso da Cincia) ou mesmo da escola superior de guerra. Para a srb, definindo um conjunto de argumentos que lastreariam o arsenal discursivo da entidade, utilizado mesmo no combate reforma agrria contida no Plano nacional de reforma agrria (Pnra) de 1985,

    Prometer reformas sem dizer como vo ser feitas, sem uma crtica prvia e objetiva, sem audincia conscienciosa da opinio pblica (...) constitui realmente uma perigosa ameaa (...) (A Rural, mar., 1963: p. 3).nessa mesma linha discursiva, a entidade publicaria em sua

    revista, em tom altamente comemorativo, a seguinte matria: rejeitada a reforma constitucionalautntica vitria da srbo presidente da srb, sr. svio de almeida Prado, prestou informa-es, em reunio da entidade, sobre sua atuao em braslia, para derrubar a emenda constitucional que possibilitaria a reforma agrria atravs da desapropriao de terras, em ttulo da dvida pblica (...).segundo ele, a luta no terminou, pois urge que levemos avante, com toda a energia, uma autntica reforma agrria, dando-se uma organizao racional nossa agricultura, dentro da qual lhe sejam proporcionadas condies de produo econmica e a custo baixo (A Rural, jun., 1963: p. 5).Como se v, a postura de recusa a qualquer tipo de reforma

    agrria excetuando-se aquela que a entidade considera como autntica, ou seja, de vis eminentemente produtivista in-tegrou a plataforma poltica da srb desde incios dos anos de 1960. todos os editoriais da revista, no decorrer desse perodo, teriam por tema a ameaa representada pela reforma agrria, bem como a construo de uma imagem do setor agrcola como desprotegido e abandonado pelo estado. sob esse aspecto, alis, a srb coincidiria com a estrutura argumentativa veiculada pela sociedade nacional de agricultura em sua revista A Lavoura,

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    sobretudo em se tratando de um governo acusado de subver-sivo e indesejvel:

    o que compete evitarressalta a gravidade do assunto e a dificuldade em que se encontra a classe agrcola do pas, pois sobre seus ombros pesa a responsabilidade das suas produes, divisas para manter as importaes e alimentos para o suprimento das populaes; (...) v-se embaraada pela nega-tivista ao oficial que pretende lev-la ao abandono para, com o caos e anarquia, obter clima propcio para a implantao de um regime que uma nfima minoria deseja (A Rural, out., 1963: p. 3).bastante semelhante seria o posicionamento da sociedade na-

    cional de agricultura com respeito ao projeto de reforma agrria do governo goulart, conquanto a entidade lanasse mo de um tom bem mais moderado em sua argumentao. assim, mesmo admitindo a necessidade da reforma, a sna acabaria por recus-la, na prtica, ponderando que

    o simples acesso propriedade da terra aos que nela trabalham no a soluo (...) no devemos substituir uma estrutura agrria que, apesar de seus defeitos, vem funcionando, por uma nova estrutura de perspectivas imprevisveis (...). o problema , portanto, um problema social que no se limita a uma simples diviso de terras (A Lavoura, jan.-fev., 1963: pp. 53-54)a sociedade nacional de agricultura, ademais, enviaria ao

    governo projeto prprio de reforma agrria, integrado pelas se-guintes medidas: a) reformulao agrcola incluindo a concesso de crdito em longo prazo, juros mdicos agricultura; tcnicas modernas de agricultura e pecuria; mecanizao da lavoura; adu-bos financiados em prazos convenientes e fomento formao de cooperativas agrcolas e b) reforma agrria propriamente dita, por ela definida como a sequncia de medidas que seguem ao que se chamou reformulao agrcola, e dentre as quais destacavam-se: o parcela mento das terras devolutas da unio; a recuperao das

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    terras devolutas das zonas mais afastadas dos grandes centros; a identificao das terras que, por sua extenso, dificultassem o desenvolvimento da produo ou o abastecimento dos mercados consumidores; a intensificao de auxlio s firmas de coloniza-o para taxar os loteamentos marginais dos grandes centros; e, finalmente, a congregao dos pequenos produtores hortigranjei-ros das grandes capitais em cooperativas (A Lavoura, maio-jun., 1963: pp. 8-9).

    na verdade, a proposta da sna aproximava-se mais ao esprito reformista que nortearia o projeto de legislao agrria da gesto Castelo branco, do que a da sociedade rural brasileira.29 alm disso, vale registrar que o projeto da sna achava-se explicitamente filiado Confederao rural brasileira (Crb), entidade sindical patronal atrelada ao estado, nos moldes do corporativismo, e existente desde fins da dcada de 1920, da qual a sociedade era a principal base de apoio. J a sociedade rural brasileira contava com um espectro de alianas polticas mais regionalizado, envolvendo os segmentos mais modernos da agropecuria nacional por certo concentrados no prprio estado de so Paulo e no sul , ficando patente, desde a dcada de 1960, sua aproximao com a Faresp (Federao das as-sociaes rurais do estado de so Paulo, que logo se trans formaria na Faesp) (A Rural, abr., 1964: p. 11) e com entidades agr colas

    29 a proposta de reforma agrria da srb previa, dentre outros aspectos, que o parcela-mento da propriedade redundaria em desequilbrio demogrfico no pas; que bastava prestar assistncia tcnica e financeira ilimitadas aos proprietrios; que seu suporte deveria consistir na multiplicao dos balces de carteira agrcola; que a segurana do proprietrio era seu pressuposto e, finalmente, que se deve partir da premissa insofismvel de que a terra, como propriedade, representou sempre parcela de menor importncia no complexo econmico da agricultura (A Rural, fev., 1964: p. 6). alm disso, a sociedade rural brasileira propunha, como outro item bsico de seu projeto de reforma agrria/agrcola, a garantia dos preos mnimos para todos os produtos agropecurios, aspecto nem de longe abordado pela sociedade nacional de agricultura.

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    paranaenses, em suas campanhas em prol da grande propriedade e da agricultura em geral.30 seria em nome desses setores mais din-micos da classe dominante agrria que a sociedade rural brasileira se lanaria no combate ao estatuto da terra do primeiro governo militar, cobrando a entidade, nesse momento, o retorno ao apoio por ela prestado chamada revoluo redentora de 1964, fosse apoiando iniciativas como a Marcha da famlia com Deus pela li-berdade, fosse organizando eventos em desagravo ao comunismo, ou mesmo de solidariedade ao grupo que realizara o golpe.31 Dentre esses eventos, pode-se citar a realizao da concentrao nacional de ruralistas, na sede da sociedade, em 13 e 14 de abril de 1964, congregando dirigentes da maioria das federaes e de agremiaes de mbito nacional e estadual, representativas da agricultura do pas (A Rural, maio, 1964: p. 4).32 na ocasio seria aprovada uma Carta

    30 esse seria o caso, reafirmado em vrios nmeros da revista, do apoio prestado pela srb a entidades como a associao Paranaense de Cafeicultores (A Rural, jul., 1964: p. 41).

    31 atravs de A Rural, a sociedade rural brasileira prestava contas de sua atuao poltica na preparao do golpe contra o governo goulart. em julho de 1963, por exemplo, publica-se a ntegra de telegrama enviado pela agremiao aos governadores dos esta-dos da guanabara, Par, Paraba, rio grande do norte, Mato grosso, Cear, bahia, Minas gerais, Paran, santa Catarina e rio grande do sul, onde coloca que a classe agrcola brasileira, representada por esta entidade, profundamente alarmada com os rumos que vem tomando a poltica nacional (...), apela para V. exa., concitando a tomada de posio em defesa das instituies democrticas (...) o que esperamos do patriotismo de V. exa. em defesa do brasil (A Rural, jul., 1963: p. 17).

    32 so discriminadas as seguintes associaes: associao Paranaense de Cafeicultores; Federao das associaes rurais de Minas gerais; Federao das associaes rurais do rio grande do sul; Federao das associaes rurais do estado de so Paulo; Federao das associaes rurais do estado da bahia; associao rural de Manaus; Federao das associaes rurais de Mato grosso; associao Paulista de avicultura; unio das Cooperativas de so Paulo; associao dos Criadores de nelore do brasil; associao dos Criadores de gir do brasil; associao Paulista de Cafeicultores; socie dade auxiliadora da agricultura de Pernambuco. Curiosa e sintomaticamente, no h meno ou mesmo convite sociedade nacional de agricultura.

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    de princpios a ser encaminhada ao novo presidente da repblica, alertando-o para o fato de que:

    antes de se pretender uma reforma agrria, matria sem objetivida-de e sem origem, deve ser promovida a reforma agrcola, atravs da reformulao da poltica econmica da agricultura (A Rural, maio, 1964: p. 9)a reao da srb ao estatuto da terra seria, portanto, bastante

    aguerrida, como o demonstra editorial com finalidade intimidadora, publicado em novembro de 1964:

    Consumou-se o derradeiro ato do drama agrcola nacional com a imposio da votao da emenda constitucional alterando o artigo 114 da Carta Magna e com a do estatuto da terra, como foi denominada a reforma agrria. (...) a agricultura foi a primeira vtima da orientao do governo, aps a revoluo que ela ajudou a fazer. todos se aliaram para o sacrifcio da agricultura brasileira, qual se teria de impor uma poltica de inspirao aliengena, sob a filosofia de punitiva retaliao das propriedades. abriu-se a fenda nos direitos do homem (...) Com o pesar daqueles que se viram frustrados pelo resultado do movimento ao qual se entregaram, no ensarilharemos nossas armas, muito ao contrrio, com elas nas mos continuaremos a luta que para ns se apresenta sagrada (A Rural, nov., 1964: p. 3).na medida em que organizava a reao e presso contrria ao

    estatuto da terra, a srb difundia tanto internamente, junto s suas bases, quanto externamente seu prprio projeto de reforma agrria, que lograria sair, ao final de todo esse processo, vitorioso, assim como, em parte, o projeto da sna. Para ela, qualquer desapropriao de terras seria abominvel, fosse a ttulo de reforma ou no, posto estar sendo atingido o nervo de toda a classe por ela agremiada: o princpio sagrado da propriedade privada. Mesmo em casos como o do decreto da superinten-dncia de reforma agrria (supra) que previu desapropriaes

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    apenas nas reas federais localizadas s margens de rodovias e ferrovias o que veio a se constituir num dos primeiros sinais de recuo do projeto reformista de Castelo branco a entidade manifestaria sua crtica, uma vez estar contido no ato legal a noo de interesse social, por ela negada in totum.

    as entidades representativas de todas as atividades agrrias de so Paulo julgam-se no dever indeclinvel de manifestar seu repdio ao decreto baixado pelo governo federal que declara de interesse social vastas zonas do territrio nacional. (A Rural, maio, 1964: p. 6)Do ponto de vista da srb, portanto, qualquer ameaa ao direito

    da propriedade era percebido sob o signo da ilegalidade, postura que se manteve mesmo aps a aprovao da verso final e j bas-tante desvirtuada com relao proposta original do estatuto da terra, em novembro de 1964. Da por diante, a despeito de exitosa, a agremiao guardaria um discurso sempre agressivo a cada vez que o tema voltasse baila. no tocante ao primeiro dos governos militares, a srb procurou a ele se referir sempre em termos de suas prticas de conluio ou intenes conspiratrias. assim, afirmaria ela, em tom claramente terrorista:

    eis que, depois de ser mantido em precioso segredo, surge o plano da reforma agrria, que, como j acontecera com o governo deposto, vinha precedido de uma proposta de emenda constitucional em ter-mos idnticos aos que haviam sido apresentados por aquele governo.. em vez de procurar firmar a filosofia da reestruturao agrria na produtividade, o anteprojeto preconiza a diviso das propriedades, o que por em risco o pas (...).ou ainda:o estatuto visa, de fato, e atravs da destruio do fazendeiro, do sitiante, do criador ou usineiro, o retalhamento imediato da propriedade rural e, pela fora dessa loucura, sua coletivizao estatal, posterior. Vale dizer, abolio do direito da propriedade privada e da liberdade (A Rural, nov., 1964: pp. 8-9).

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    Como possvel perceber, a reao dos proprietrios ligados sna e, sobretudo, srb foi proporcional quilo que considera-vam como um ataque propriedade e ao direito de ser proprietrio, j que a terra, para eles, longe de representar to somente meio de produo, constitua-se em fonte direta de seu poder. Como o divulgaria um peridico carioca:

    o manifesto dos ruralistas de so Paulo, Minas gerais e Paran anuncia que a reforma agrria pretendida revela uma filosofia estranha que pode conduzir a consequncias subversivas, levando fome, anarquia e solapando as bases institucionais. o manifesto anuncia o lanamento de uma campanha antirreforma a ser coordenada pela so-ciedade rural brasileira e pela Federao das associaes Paranaens es de Cafeicultores (ltima Hora, 10/10/1964: p. 3).Com o encaminhamento do projeto para votao no Congresso

    nacional, em novembro de 1964, as negociaes voltariam estaca zero. afinal, o vulto das reaes contrrias ao estatuto configurou uma frente ampla antirreformista, integrada por segmentos consi-derveis da classe dominante, tanto em termos econmicos, quanto polticos. Dela fizeram parte no apenas a todo-poderosa sociedade rural brasileira ou a mais discreta sociedade nacional de agricul-tura, mas tambm usineiros do nordeste, cafeicultores paranaenses ou mesmo empresrios ligados ao instituto de Pesquisas e estudos sociais de so Paulo (ipes). (bruno, 1995: p. 50).

    as emendas e substitutivos propostos acabaram por consagrar alguns pontos de consenso integrantes da agenda das foras antir-reformadoras: reforma agrria sem mudana na estrutura fundiria; atrelamento da noo de democracia intocabilidade da propriedade fundiria; a retirada da noo de latifndio por dimenso e o fim do estatuto da desapropriao por interesse social, por exemplo. quanto ao imposto territorial rural (itr), previsto originalmente como instrumento de coibio ao latifndio improdutivo, este deveria ser convencionado de modo amigvel entre as partes.

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    o resultado dessa ampla medio de foras consistiu na garantia de que a reforma agrria seria meramente transitria, cabendo papel permanente apenas poltica agrcola, por parte do governo federal. Complementarmente, o grande vitorioso de todo esse processo foi o conceito de empresa agrcola, que se tornaria o equivalente opo democrtica para o campo e alvo prioritrio do processo de modernizao da agricultura brasileira. atravs dessa luta poltica, movida pelas entidades pa-tronais rurais, consagrou-se a separao entre reforma agrria e a modernizao da agricultura, binmio to caro aos articuladores do estatuto da terra e que, uma vez derrotado, viria legitimar a capi talizao da agricultura brasileira, sem maiores alteraes na estrutura fundiria do pas. a dcada de 1980 veria, entretanto, reemergir esse mesmo debate, por certo numa conjuntura histrica bastante distinta.

    uma vez ultrapassado o episdio e sepultado o esprito refor-mista do estatuto da terra, no por acaso, a srb louvaria a posse do presidente Costa e silva, cuja principal tarefa deveria ser, a seu juzo, recuperar o pas e os proprietrios de terra dos efeitos nefastos da gesto anterior, trabalhando para

    Procurar rearmonizar as classes sociais do pas e reequilibrar a produo nacional, da qual se destaca a agricultura. esta necessita de uma reestruturao integral, a comear pela reviso imediata do estatuto do trabalhador rural, pea legislativa votada no tempo da vigncia plena da demagogia eleitoral (A Rural, abr., 1967: p. 2).

    DA rEFormA moDErNizAo

    o processo da modernizao agrcola verificado no pas no decorrer dos anos de 1960 e 1970 teve como uma de suas precondi-es a derrota de qualquer proposta de uma efetiva reforma agrria, j que sua premissa consistiu na afirmao do desenvolvimento do capitalismo no campo com a manuteno da estrutura fundiria.

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    Deixando estabelecido como o retomaria mais tarde a prpria uDr que reforma agrria seria o mesmo, em termos gerais, que reforma agrcola, a sna defenderia que:

    uma agricultura capaz de absorver em grande escala a produo industrial, com propriedade rentvel no a grande propriedade tipo fazenda de caf de 40 anos atrs, nem da extenso de engorda nos imensos pastoreios (...), nem ainda o minifndio do antigo colono (...) a reforma no deve e no pode ser violenta, como a que sucedeu na rssia (...), mas precisa ser real: glebas de tamanho razo-vel, assistncia centralizada e efetiva com maquinaria, tcnicos que orientem os cultivos (...). as desapropriaes devem ser efetuadas a preo justo e com moeda ou ttulos de liquidez fcil (...) a reforma agrria pertence, por isso, a um conjunto de medidas que se devem entrosar (...) (A Lavoura, maio-jun., 1969: p. 8).ademais, na tica da entidade, a reforma agrria deveria primar

    pelo gradualismo, estabelecendo-se por etapas, atravs de um cdigo rural que contenha alguns princ-pios e normas de carter geral (...) no devendo entrar em detalhes ou minudncias normativas (A Lavoura, set.-out., 1970: pp. 35-36). sob a tica poltica e social, a instaurao da empresa agrco-

    la nas brechas da derrota do estatuto da terra deveria ocupar um espao privilegiado no seio das novas categorias jurdicas em construo. a empresa rural no poderia conter, por exemplo, o mesmo estatuto que o latifndio ou o minifndio, tampouco uma defi nio similar ao da pequena propriedade de explorao familiar . a empresa no seria, ademais, um mero espao de produo, mas, sim, a expresso de novos corpos sociais e polticos.

    Para tanto, seria necessrio consolidar-se, igualmente, uma categorizao social de novo tipo: o empresrio rural. Mais que ultrapassar o latifndio, a empresa rural geraria necessariamente a transformao do latifundirio em empresrio, dotado de atributos tais como a racionalidade, a criatividade e o esprito de iniciativa,

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    capaz, por tudo isso, de fazer frente aos negcios e s necessidades da modernizao da agricultura e ao desenvolvimento da nao. nessa nova identidade, no deveriam limitar-se ao papel de meros proprietrios de terra, porm contar com uma mentalidade evo-luda e aberta s inovaes tecnolgicas de que estaria carente a agricultura brasileira.

    assim, o processo de modernizao da agricultura isto , a construo da empresa agropecuria , para alm de seu carter conservador, produtivista e concentracionista, contaria, em sua prpria tessitura, com esse novo protagonista, igualmente em construo no decorrer das dcadas de 1960 e 1970: o moderno empresrio rural. obviamente, tambm a questo da redefinio dos rumos da reforma agrria foi parte importante dessa nova construo identitria e a sociedade rural brasileira e a sociedade nacional de agricultura desempenhariam papel relevante junto a esse processo, quer em sua dimenso econmico-social, quer em seu mbito poltico. Vejamos, agora, essa correlao de foras ao longo do perodo focalizado.

    antes de qualquer coisa, vale resgatar que os segmentos ligados grande propriedade rural se fizeram presentes na cena poltica por intermdio da retrica da penalizao da agricultura face ao alegado favorecimento estatal aos empresrios industriais. seria essa estrutura argumentativa, alis, o mote organizador de suas deman-das perante as inmeras agncias do poder pblico imbricadas poltica agrcola, ao menos at incios da dcada de 1980.

    na dcada de 1970, durante o governo geisel, a sociedade rural brasileira retomaria sua campanha em prol da defesa da agricultura criticando, tal como a prpria sna, o relevante papel desempenhado, at ento, pela indstria na economia nacional. a seu ver, a soluo para esta distoro consistiria num di-logo permanente que deve existir entre a produo e as reas do governo uma vez que

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    a agropecuria vem sendo penalizada por um processo que se acentua a cada ano e pelo qual tem pago muito caro, inclusive com sacrifcio da nao. a transferncia de recursos do campo para as atividades urbanas gerou distores de toda ordem sobre a economia rural, ressaltando o endividamento do produtor, sua dependncia do governo e a perda de sua mo de obra (A Rural, mar., 1978: p. 3). Da confluncia desses fatores resultaria um novo discurso,

    capaz de expressar a demanda pela modernizao e, simultanea-mente, legitim-la. essa nova retrica estaria centrada na constru-o de uma identidade bsica de conjunto que amalgamasse os interesses entre proprietrios de terra e empresrios rurais, sendo ela construda em torno de alguns pontos tidos como essenciais para a manuteno de seu poder e dominao, dentre eles: a) a elaborao de um novo discurso que os afinasse modernidade; b) a definio de novas estratgias de poltica agrcola favorveis a seus interesses e, finalmente, c) a defesa de maior capacidade de organizao e ampliao da representao que lhes propiciasse maior poder de barganha junto sociedade poltica.

    no tocante ao primeiro ponto, a sociedade nacional de agri-cultura deixaria claro, desde meados da dcada de 1960, que a principal demanda dos grandes proprietrios consistia na prpria modernizao da agricultura ou a modernizao dolorosa, como o colocam alguns autores ,33 tida como nico instrumento para que a agricultura seja o principal elemento da segurana dos povos contra a fome (A Lavoura, jan.-fev., 1967: p. 26). Para tanto, de-fenderiam explicitamente a prpria industrializao da atividade:

    Mas a simples industrializao dos produtos ser o suficiente? o que se deveria tentar a industrializao da prpria agricultura, isto , fazer-se com que a atividade agrcola se projete na economia nacional como empresa (...) (A Lavoura, mar.-abr., 1967: p. 2).

    33 graziano da silva, 1981.

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    sob a tica da agremiao, esse projeto estaria assegurado mediante dois fatores: a abertura da economia brasileira ao capital estrangeiro e a farta concesso de crditos e subsdios, por parte do estado, agricultura. Visando conseguir xito na difuso de sua proposta, a sna, encaminharia uma enxur-rada de demandas ao governo, pleiteando incentivos fiscais e emprstimos com vistas mecanizao do setor, bem como postularia antecipando uma postura que, na dcada de 1980, seria apropriada pela unio Democrtica ruralista (uDr) que a economia dos pases, desenvolvidos ou no, no pode ficar amarrada ao nacionalismo exacerbado dos tempos modernos (A Lavoura, jan.-fev., 1968: p. 14).

    a defesa da moderna agricultura no dispensaria o concurso dos capitais estatais, a serem concedidos em condies de excep-cionalidade aos empresrios rurais. assim, em editorial datado de maio de 1969, a entidade se dirigia ao ento presidente Mdici, colocando que

    no ser apenas dando terra que alcanaremos o progresso do homem rural, o desenvolvimento enfim da agricultura. Cumpre-nos executar um imenso programa (...) e pedir a ateno aos poderes pblicos para a verdadeira tirania burocrtico-fiscal que flagela a produo agrcola (...), pois por que no dar incentivos fiscais agricultura? (A Lavoura, maio-jun, 1969: p. 3). a revista A Lavoura, 7 anos depois, continuaria explicitando

    a defesa inconteste da modernizao da agricultura pela sna, ao enaltecer o ento presidente geisel pela deciso de que a expanso do crdito para a compra de tratores ser mantida (...), dissipando apreenses que h meses pairavam sobre o setor (A Lavoura, maio.--jun., 1976: p. 2).34 em 1978, em debate mantido com o diretor

    34 no mesmo editorial, a revista, alis, declara sua inteno de dar os primeiros passos no sentido de prestar ao presidente geisel homenagem especial em face da ao

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    do crdito agrcola do banco do brasil aps alguns escndalos envolvendo desvio de dinheiro subsidiado por parte de grandes proprietrios , a sna adotaria uma estratgia altamente agressiva com relao ao governo e mesmo imprensa, chegando a lanar mo de ameaas de desabastecimento urbano para fazer valer suas demandas. assim se colocaria a agremiao em sugestiva matria intitulada apostila para os tericos da agricultura:

    preciso reduzir o crdito rural, dificult-lo, porque muitos fazen-deiros usam o mesmo para aplicao fora de suas atividades. Menti-ra. (...) se h um ou outro aventureiro, no justo que milhes de homens sofridos paguem por meia dzia que teria a sorte de fazer emprstimo (...). a agricultura salvou o brasil depois da crise do petrleo. ela quem vai pagar os 30 milhes de dlares, se deixa-rem, se pararem com ameaas (A Lavoura, jan.-fev., 1978: p. 24.).Criticando seus prprios crticos, que denunciavam os perigos

    da concesso de crditos fartos, baratos e indiscriminados a empre-srios rurais, a sna sairia em defesa dos setores por ela agremiados, declarando que:

    seria bom que os bancrios, agrnomos e economistas que resolveram agora bombardear o fazendeiro com burrices, passassem a frequentar mais o campo, conviver com fazendeiros para aprenderem um pouco da realidade rural brasileira (idem, ibidem).em editorial de crtica aberta ao ento diretor da poltica de

    crdito agrcola do banco do brasil, antnio lvares da silva, que ameaara de congelamento as linhas de crdito agrcola j que o

    por ele desenvolvida em favor da agricultura brasileira, destacando na oportunidade: os programas nacionais do calcrio agrcola, de fertilizantes, de armazenagem; a regulamen tao do Proagro; a implantao da Previdncia social rural, a criao do senar, dentre outras (id. ibid.). igualmente concederia, quando das comemoraes de 80o aniversrio da entidade, o ttulo de scio benemrito e grande benemrito da sna ao presidente (A Lavoura, jan.-fev. 1977: p. 2).

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    setor rural no correspondeu adequadamente s macias injees de recursos que tm dado ensejo s mais diversas crticas e suspeitas (A Lavoura, jan.-fev. 1978: p. 2). a entidade assim se manifestaria, vitimizando os produtores rurais:

    Pois . no final da