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A QUESTÃO AGRÁRIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM
DO PASSO REAL
Pedro Vicente Stefanello Medeiros
Doutorando em História – UPF/ Bolsista Capes/Fapergs
Resumo:
Objetivamos nesta comunicação elucidar o desenvolvimento de nossa proposta de Tese
acerca da propriedade da terra e políticas de Reforma Agrária no processo de construção da
barragem do Passo Real. A partir de 1967, para a construção da citada barragem, o
Governo do Estado do Rio Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras,
desalojando milhares de famílias. O Governo Federal e o Governo do Estado realizaram
um acordo onde a União se responsabilizaria pelo reassentamento das famílias. Contudo,
foi possível evidenciar diversas contradições referentes a este processo, podendo sinalizar
que até hoje há famílias que não foram reassentadas. Neste sentido, construiremos um
debate inicial sobre a questão agrária no Passo Real através dos primeiros levantamentos
documentais que fizemos com processos emitidos pelo INCRA e relatórios elaborados pela
CEEE.
Palavras-chave: Reforma Agrária; Propriedade; Desapropriação; Reassentamento; Passo
Real.
A partir de 1967, para a construção da Usina Hidrelétrica do Passo Real, o Governo
do Estado do Rio Grande do Sul desapropriou 23.000 hectares de terras na região de Cruz
Alta, Ibirubá e Espumoso, desalojando milhares de famílias. Em 28 de agosto de 1968 foi
assinado entre o Estado, através da CEEE (Comissão Estadual de Energia Elétrica) e a
União, representada pelo IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), posteriormente
transformado em INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o
chamado “Acordo de Cooperação”, pelo qual o Governo Federal assumia a
responsabilidade do reassentamento dos desalojados.
De acordo com um relatório da CEEE, datado de 8 de setembro de 19691, foram
desapropriadas 3129 propriedades rurais, sendo destas 1498 na margem direita do Rio
Jacuí e 1631 à margem esquerda. Neste sentido, segundo dados do INCRA2,
aproximadamente 1600 famílias de agricultores foram atingidas. Deste total, 1050 optaram
pelo reassentamento em novas terras em um primeiro momento. Assim, o órgão federal
teria desapropriado em uma primeira etapa 16.449,36 hectares. Dentre estes, foram
9.774,37 hectares pertencentes à Fazenda Boa Vista localizada no município de Cruz Alta,
3.064,1878 hectares desapropriados da Fazenda Colorados, situada no mesmo município e
3.140,1003 hectares da Fazenda Itaíba, encontrada nos municípios de Ibirubá e Santa
Bárbara do Sul.
Este processo de reassentamento foi institucionalmente elaborado como um Projeto
Integrado de Colonização (PIC). Estes projetos desapropriavam uma área conforme as
normas do Estatuto da Terra e a repartiam de forma parcimoniosa para serem
disponibilizada aos agricultores que a compravam mediante o pagamento em 20 anos,
deste modo obtendo o título legal das propriedades. Neste processo também havia fomento
de crédito para a aquisição de utensílios e maquinário bem como era realizado um estudo
técnico acerca das condições de exploração agrícola dos terrenos.
Neste sentido, o então Projeto Integrado de Colonização – Passo Real reassentou
528 famílias. Posteriormente, visando à recolocação das famílias restantes, o INCRA
ampliou o Projeto Integrado de Colonização – Sarandi3, desapropriando a Invernada do
Butiá, pertencente à Firma SAGRISA – Comercial e a Agrícola Ltda. Também foram
desapropriadas a Fazenda Sarandi, propriedade de Ernesto José Annoni e, ainda, a antiga
1 CEEE – Relatório publicado em 8 de setembro de 1969 acerca das propriedades que tiveram suas terras
atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real. 2 Projeto Integrado de Colonização Sarandi (Gleba I – Invernada do Butiá) – Ministério da Agricultura –
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA Coordenadoria Regional do Rio Grande do
Sul – Publicado em dezembro de 1972. 3 Este “PIC” teve origem através do primeiro processo de desapropriação da Fazenda Sarandi em 1962, em
ação decorrente das mobilizações e acampamentos realizados naquele ano pelo MASTER – Movimento dos
Agricultores Sem Terra – na região.
Estação Experimental Engenheiro Luiz Englert, mediante um entendimento entre o
Governo do Estado com o Ministério da Agricultura para a passagem ao patrimônio do
INCRA de parte da área não lotada do Núcleo Colonial de Reforma Agrária de Sarandi.
Os atingidos pela barragem do Passo Real ficaram conhecidos como “afogados”,
pois assim foram denominados em alguns documentos da Comissão Especial dos
Agricultores Desalojados do Passo Real, criada em 1983 pela Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul para solucionar os conflitos entre os reassentados e os proprietários da
Fazenda Annoni, que contestavam sua desapropriação na justiça há mais de dez anos.
Assim, a denominação “afogados” se consolidou quando o deputado Algir Lorenzon
publicou o Relatório da Comissão4 com o título “AFOGADOS: Até Quando?”. O termo
ganhou mais amplitude pelo destaque que a imprensa deu a matéria naquele ano, muitas
vezes se referindo aos agricultores como “afogados”5.
No entanto, é possível que tal alcunha tenha aparecido há alguns anos antes. Em seu
livro de memórias, o Prefeito de Ibirubá entre 1963 e 1968, Olavo Stefanello, havia sido
procurado pelos atingidos para que intervisse em seus clamores. Assim, Olavo teria os
denominado de “afogados”: “Os afogados do Passo Real, como eu os denominei, só
aceitariam sair de suas terras pacificamente se a CEEE e os governos lhe dessem outras
terras, assentando-os não distante dali e com a mesma infraestrutura” (STEFANELLO,
2008, p.227).
O então Prefeito de Ibirubá também relata que se entrevistara com os Presidentes
Castello Branco, Costa e Silva e Médici, dizendo que “como a solução ideal e necessária”
tardou em vir, muitas audiências e reuniões foram realizadas sem que o problema fosse
resolvido.
È neste sentido que nos dedicamos a elaborar esta proposta com o objetivo de
compreender o processo de desenvolvimento da barragem do Passo Real mediante a
5 LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão Especial dos Agricultores
Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul;
Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas. S/d.
desapropriação de terras e o desalojamento de milhares de famílias, bem como os
posteriores projetos de reassentamento e das lutas pela terra.
Nosso interesse em estudar este processo surgiu mediante o contato com a crescente
produção acadêmica tangente a processos de desapropriação de terras em face da
construção de grandes barragens. Contudo, nos demos conta que a maioria destes trabalhos
trata sobre empreendimentos posteriores aos anos 1980. Portanto voltamos nosso olhar ao
período anterior, entre as décadas de 1960 e 1980, momento marcado pelas políticas
autoritárias e desenvolvimentistas do regime militar que consolidou o modelo de produção
energética mediante a edificação de grandes barragens e hidrelétricas.
Assim, devido à magnitude da área alagada (23.000 hectares) e da quantidade de
propriedades rurais atingidas (3.129), percebemos a ausência de um estudo do ponto de
vista da propriedade que se dedicasse a compreender os desdobramentos referentes às
desapropriações das terras alagadas pela barragem do Passo Real e dos conseguintes
projetos de reassentamento dos desalojados.
A Usina Hidrelétrica Passo Real é o segundo aproveitamento do Rio Jacuí, a
contar de sua nascente, estando localizada 12 km à montante da barragem de Maia Filho e
190 km à jusante da UHE Ernestina por via fluvial. As unidades 1 e 2 entraram em
operação, respectivamente, em 17 de março e 20 de junho de 1973, sendo sua inauguração
em 25 de setembro de 1973. A casa de força está localizada ao pé de barragem principal,
sob o leito do rio, no município de Salto do Jacuí. O reservatório da UHE Passo Real, cujo
perímetro é de 610,27km, constitui-se no maior reservatório das Usinas Hidrelétricas de
concessão da CEEE-GT. Com 233,39km2 de área, situam-se no seu entorno os atuais
municípios de Fortaleza dos Valos, Quinze de Novembro, Alto Alegre, Campos Borges,
Ibirubá, Salto do Jacuí, Jacuizinho e Selbach. Sua potência efetiva é de 158 MW. A
barragem possui altura de 58 m6.
6Companhia Estadual de Geração e Transmissão de Energia Elétrica – CEEE-GT. Plano de uso e ocupação
do solo no entorno do reservatório da UHE Passo Real. Porto Alegre, 2011.
Localização do reservatório do Passo Real 7
A primeira experiência de aproveitamento das águas do Jacuí se dera em 1957 com
o inicio das operações da Usina de Ernestina. Em 1962 foi inaugurada a Usina Jacuí (hoje
denominada Usina Leonel de Moura Brizola). Em 27 de maio de 1969 o Presidente Costa e
Silva publicou um Decreto de Lei8 que autorizava o Estado do Rio Grande do Sul
juntamente com a Companhia Estadual de Energia Elétrica realizar a operação de
empréstimo externo com a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento
Internacional – USAID, destinada ao financiamento de parte da construção da Usina
7WACHHOLZ, Flávio; FILHO, Waterloo Pereira; FILHO Archimedes Perez. Compartimentação aquática
espectral dos reservatórios em cascata no alto Jacuí – RS. Anais XIV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento
Remoto, Natal, Brasil, 25-30 abril 2009, INPE,p.4929-4935.http://marte.dpi.inpe.br/col/dpi.inpe.br/sbsr@80/
2008/11.17.17.57/doc/4929-4935.pdf>.
8 BRASIL, DECRETO-LEI nº597, de 27 de maio de 1969. Autoriza o Govêrno do Estado do Rio Grande do
Sul a contratar empréstimo externo com a USAID. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28.5.1969.
Hidrelétrica de Passo Real. O valor da operação foi de US$ 27.400.000,00 (vinte sete
milhões e quatrocentos mil dólares), à taxa de juros de 6% ao ano a ser pago no prazo de
25 anos com 4 anos e 6 meses de carência, em prestações semestrais.
Esta autorização decretada por Costa e Silva evidencia que a empresa do Passo
Real fora desenvolvida com capital estrangeiro, e neste caso, principalmente norte-
americano, já que a USAID fora um dos principais órgãos internacionais que financiaram
as políticas do Regime.
Segundo Martins (2009, p.61), o caráter centralizador e autoritário assumido pelo
Estado, contribuiu para que a expansão do sistema elétrico assumisse uma forma particular,
caracterizada pela construção de grandes barragens que pouco considerava questões sociais
ligadas às comunidades rurais e aos impactos ambientais associados. Portanto, na maioria
dos casos, a construção das usinas e as consequentes inundações acabavam atingindo um
significativo número de pessoas que tinham de deixar suas terras sem muita escolha,
recebendo pequenas indenizações em dinheiro ou ficando à mercê da incerteza de serem
reassentados.
É neste ponto que a questão hidrelétrica e o problema da terra se tencionam. O
Estado brasileiro, responsável pelos empreendimentos que desalojariam milhares de
pessoas, também assumiria a responsabilidade de reassentar as famílias.
Deste modo, é possível dizer que a questão da Reforma Agrária no Brasil dos anos
1960 ocuparia pauta central dos debates políticos e acadêmicos.
Conforme assinalou Marluza Harres (2007, p.236), a Reforma Agrária passa a ser
aceita por vários setores da sociedade civil. O país nos anos 60 tomava consciência da
necessidade de dar um passo na direção da democracia. E uma das tensões mais sérias
nesse processo aconteceu no campo. A Massa rural começava a aparecer em forma de
ocupação da terra. Em Forma de grandes marchas. È neste momento que surgem as Ligas
Camponesas no nordeste e o MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra) no Rio
Grande do Sul.
Para Roberto Sander (2013, p.47), João Goulart estava pronto para dar o passo mais
decisivo, objetivando resolver em definitivo o problema agrário. Não por acaso, aquele que
mais revelava o desequilíbrio da sociedade brasileira. De acordo com o autor, o censo
agrícola de 1960 mostrou que dos 3.374.314 proprietários, 70 mil tinham posse de 64% das
áreas cultiváveis. Segundo pesquisa de universitários gaúchos realizada em prostíbulos de
Porto Alegre, 88% das moças que ganhavam a vida fazendo programa tinham origem
camponesa. Eram filhas de lavradores sem terra que trabalhavam em condições miseráveis
em estâncias gaúchas e catarinenses e em cafezais paranaenses. Mesmo assim,
ironicamente, os adversários de Goulart diziam que a reforma agrária “atentava contra os
sentimentos da família cristã”.
È neste prisma, balizado pela geopolítica da guerra fria, pelos sucessos da
Revolução Cubana e conseguinte avanço das esquerdas na América Latina, que as políticas
reformistas de Jango foram acusadas de comunistas. Portanto, com a reação conservadora e
o desfecho do golpe em 1964, o novo governo, imbuído de uma postura “anticomunista”
de caça as bruxas deu outra tônica para a questão agrária no Brasil.
Segundo Simone Dickel (2016, p. 30), existe diferentes visões sobre a questão
agrária a partir do golpe militar. Para alguns autores, o período é lembrado como de grande
retrocesso em termos de conquistas sociais. A repressão teria sido fator responsável pela
relativa paralisação na atuação dos movimentos sociais. Na tentativa de instaurar a ordem e
diminuir os conflitos no campo, o regime militar perseguiu e prendeu diversas lideranças
desses movimentos. Nesta lógica, a autora também assinala que com objetivo de mitigar os
conflitos no campo e acalmar os ânimos dos movimentos sociais o Governo criou em 1964
o Estatuto da Terra:
O Estatuto da Terra, conforme foi visto, surgiu no contexto posterior às
manifestações feitas pelas ligas camponesas, em um contexto em que o
latifúndio passa a ser questionado, e visto inclusive como um entrave ao
desenvolvimento econômico, sinônimo de atraso. Assim, o Estatuto da Terra
surge para racionalizar a propriedade agrícola, adequando-a ao modelo de
desenvolvimento vigente, modernizando a propriedade capitalista, mais do que
se preocupando em reduzir a complexidade social. (2016, p.130).
De acordo com Dickel, o Estatuto da Terra foi um instrumento de Revolução
passiva, onde o Estado assume os encargos para efetivar as transformações necessárias
para adequar a sociedade a novo modelo de desenvolvimento que atenda os interesses dos
grupos dominantes.
Em sua obra mais recente, Márcia Motta9 construiu uma reflexão sobre
campesinato e latifúndio nas interpretações de esquerda entre 1955 e 1996. Primeiramente
realizou uma discussão entre o já citado Alberto Passos Guimarães e Nélson Werneck
Sodré, que defenderam a tese de um Brasil feudal baseado no latifúndio colonial. Estes
prismas interpretativos consolidaram as noções de um país atrasado e sem camponeses
(MOTTA, 2014, p.19). Neste sentido, também analisou as contraposições feitas à vertente
feudal por Caio Prado Júnior como já evidenciamos e demonstrou como após 1964, a
pobreza na base teórica das explicações marxistas somada à censura ideológica do novo
regime enfraqueceram as interpretações de esquerda demorando em que algo novo viesse à
luz.
Neste âmbito, avança cronologicamente mostrando como nos anos de reabertura
política uma nova geração procurou entender o rural. Os dois expoentes dessa nova onda
foram Ciro Flamarion Santana Cardoso e Maria Yedda Leite Linhares que criaram uma
linha de pesquisa conhecida como história agrária, ou história social da agricultura. Deste
modo, é importante salientar que a partir de 1980, inaugura-se todo um processo de
consolidação de programas de pós-graduação em história no país, também se
desenvolvendo uma crescente perspectiva regional nas pesquisas sobre o passado:
Já não é mais possível falar de uma história do Brasil, no sentido em que este
termo tinha nos projetos editoriais dos autores que escreveram no limiar dos anos
1960. Tampouco é possível falar de um rural singular, pois as experiências
históricas num país de dimensões continentais tornaram-se cada vez mais
evidentes e marcadamente diversas. Talvez também não fosse mais possível
defender a ideia de que uma teoria seria a fonte da verdade, único caminho para
se deslindar a história rural no país e o passado marcado por um modo de
produção específico e subordinado (MOTTA, 2014, p.109).
9 MOTTA, Márcia Maria Menendes. O Rural à la gauche: campesinato e latifúndio nas interpretações de
esquerda (1955-1996). Niterói: Editora da UFF, 2014.
Inspirados pelas produções francesas e por novas leituras do marxismo, Ciro e
Maria Yedda passaram a produzir textos e orientar trabalhos que permitiam a divulgação
das reflexões de Chayanov, Lenin e Kautski, que pouco foram abordados até os anos 1970.
Neste interim começaram a circular os trabalhos de Ernest Labrousse, dando ênfase a uma
história econômica quantitativa baseada na sistematização de fontes como documentos
cartoriais, judiciários, eleitorais, demográficos e fiscais (MOTTA, 2014, p.166).
Outro importante escritor que influenciou os estudos sobre o rural no Brasil foi o
marxista francês, Pierre Vilar. O autor contribuiu para a utilização do conceito de “Modo
de Produção” inovando ao trazer para as discussões a relevância dos aspectos geográficos e
demográficos. Vilar também acrescentou ao “Modo de Produção” o aspecto mais renitente
aos marxistas de sua época: a superestrutura, começando pela importância do papel do
Estado (BARROS, 2010).
Assim sendo, outro autor de grande respaldo na historiografia “agrária” brasileira
foi o inglês Edward Palmer Thompson, que em “Costumes em comum”10 consolidou o
conceito de “Economia Moral”, discutindo a partir do contexto inglês do século XVIII que
Economia e Moral, bem como Economia e Cultura não eram separáveis, pois se as
separamos em nossas análises perdemos a oportunidade compreender os processos no
embate de suas complexidades.
Seguindo os passos de Thompson e Vilar, também temos o recente trabalho de
Rosa Congost11, que com a perspectiva das “condições de realização da propriedade” vem
contribuindo com diversas produções brasileiras na última década.
Assim, dialogando com os clássicos que se propuseram a entender o rural no Brasil,
bem como repensando algumas perspectivas a partir dos debates historiográficos mais
recentes é que queremos discutir nosso objeto. Neste contexto, é possível qualificar o
reassentamento dos atingidos pela barragem do Passo Real como Reforma Agrária? Para
tratar essa questão é necessário tecer um debate das complexidades acerca da relação
10 THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
11 CONGOST, Rosa. Tierras, Leyes, Historia: Estudios sobre la Gran Obra de la Propiedad. Barcelona:
Editora Crítica, 2007.
existente entre as políticas públicas sobre a matéria no período e as condições práticas de
desenvolvimento do processo de desapropriação e alagamento, bem como dos posteriores
reassentamentos.
O Estatuto da Terra de 196412 considera Reforma Agrária o conjunto de medidas
que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de
sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de
produtividade. Contudo, é interessante ressaltar que a área alagada pela barragem era
composta por terras altamente férteis que propiciavam uma agricultura familiar dinâmica e
produtiva balizada na distribuição entre pequenas e médias propriedades.
É possível entender essa agricultura familiar de pequenas propriedades mediante
um modelo de produção rural, cujo objetivo não é apenas a subsistência, estando inserido
no sistema capitalista, uma vez que não se preocupa somente em suprir as necessidades
básicas do núcleo familiar e sim, assegurar a reprodução de sua família e da unidade de
produção ao longo do tempo (DICKEL, 2016, p.22).
Conforme Mantelli (2006, p.98), em áreas de pequenas propriedades, como as do
noroeste gaúcho, apesar da agricultura classificar-se como uma policultura encarregada de
cultivar vários produtos destinados ao consumo, na verdade sempre esteve encabeçada por
um ou mais produtos de maior valor comercial. Esses produtos variam conforme as
condições de produção, sua valorização e a maneira como se integram no mercado.
No final dos anos 1960 e começos da década de 1970, o trigo liderava o panorama
produtivo da região do Alto Jacuí, estando a soja em um patamar secundário. Em poucos
anos a situação se inverteria, a partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980 a
soja se consolidou como o principal produto agrícola da região seguido pelo milho,
encontrando-se o trigo em um terceiro plano. Esse processo ficou conhecido como a
“Revolução Verde”, que, marcada por um pacote tecnológico importado dos Estados
Unidos, contribuiu para a introdução de novas formas tecnológicas e técnicas de produção
12 BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras
providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 30 nov. 1964.
no campo, modificando as formas tradicionais de produção e, com o tempo, acentuando
ainda mais a desigualdade no acesso a terra.
De todo modo, apesar da contradição aparente, as desapropriações em função da
barragem poderiam se justificar no mesmo instrumento jurídico, já que o Estatuto prevê a
efetuação de obras de renovação, melhoria e valorização de recursos naturais, da mesma
forma que incrementar a eletrificação e a industrialização no meio rural. O problema destas
medidas é que elas não se aplicam na relação entre os objetivos de construção da represa e
justificativa de desapropriação das terras.
Neste sentido é importante problematizar as razões de sua construção naquela área,
e, portanto, se a incipiente eletrificação rural na região naqueles anos, por exemplo, guarda
relação direta com edificação daquela hidrelétrica. Em nossas primeiras investigações
podemos evidenciar que a eletrificação rural no Alto Jacuí havia começado em 1968,
quando algumas lideranças regionais fundaram uma cooperativa.
A “Coprel” fundada em janeiro de 1968 em Ibirubá começou a distribuir energia no
campo através da compra junto à CEEE. Segundo um texto institucional da entidade13, e
as memórias de um de seus fundadores e principais líderes14, as necessidades das famílias
de agricultores da região não eram atendidas pelas grandes concessionárias e tampouco
eram vistas como prioridade para o poder público.
Outro prisma fundamental diz respeito à propriedade da terra. Os tamanhos dos
terrenos da região alagada variavam de 100 hectares a outros com menos de 1 hectare.
Muitos dos títulos de propriedade foram legalizados tardiamente, apenas em 1967,
existindo, portanto um grande número de posseiros, agregados e meeiros. Deste modo,
apreciamos um panorama complexo, pois muitas pessoas que possuíam entre 50 e 100
hectares foram reassentadas em lotes de 20 a 30 hectares, sendo muitas vezes em terras
com piores condições produtivas que suas anteriores. Contudo, houve também processos
distintos, famílias que possuíam de 1 a 10 hectares, aumentaram seu patrimônio recebendo
de 20 a 30, ainda sim, as fontes também mostram casos de trabalhadores que não eram
13 https://www.coprel.com.br/paginas/ver/apresentacao-2
14 STEFANELLO, Olavo. Esmeraldas cá na terra, estrelas lá no céu. São Paulo: Editora Gente, 2008.
proprietários, do ponto de vista legal, e, mediante o reassentamento, conquistaram o acesso
legal à propriedade.
Neste ínterim outra questão problemática também diz respeito às indenizações.
Encontramos a ocorrência de pessoas que optaram por indenização em dinheiro face o
reassentamento. Todavia, em função dos baixos valores, que não correspondiam com a
totalidade do dano causado pela perda da terra, acabaram posteriormente também
reivindicando o acesso a novas terras. Somado a isto temos famílias que foram
reassentadas na primeira etapa e que também receberam indenização. Além disso, ainda
constatamos agricultores que não receberam indenização, bem como até 1988 não tinham
sido reassentados.
De acordo com o relato de Olavo Stefanello em suas memórias, considerava injusto
o método de desapropriação e pagamento indenizatório em dinheiro:
O método configurava-se legal, mas injusto, porque os agricultores resistiam,
alegando diversas razões, entre elas que o valor das indenizações era baixo,
muito aquém do mercado. Outros não se conformavam com o fato de perderem
tudo, casas, terras, benfeitorias, até entes queridos sepultados nos cemitérios.
(STEFANELLO, 2008, p. 227).
Como já citamos anteriormente, no início de nosso texto, Olavo também relatou
que os atingidos só aceitariam sair de suas terras pacificamente se a CEEE e os governos
lhes dessem outras terras, não distantes dali e com a mesma infraestrutura.
Nos documentos do INCRA, em consonância com o Estatuto da Terra, o
reassentamento dos desalojados foi concebido como um projeto de Reforma Agrária.
Contudo, em função deste cenário complexo, considerando o amálgama de distintas
situações, talvez devêssemos repensar o ponto de vista de nossa pergunta, se foi ou não
Reforma Agrária, mediante a dimensão das condições de realização da propriedade.
De acordo com o trabalho de Rosa Congost (2007), muitos historiadores
caracterizaram o Estado liberal como instituição protetora e garante dos direitos modernos
de propriedade. Entretanto, essas interpretações estão pautadas por um olhar que enxerga o
processo de transição de uma sociedade de Antigo Regime para o Estado liberal moderno
de modo linear. Antes, os direitos de propriedade eram difusos e não existia um sistema de
segurança jurídica que os garantisse. A partir da aplicação da doutrina jurídica liberal
surgiria a propriedade perfeita e um Estado que a protegesse. Uma visão bastante “oficial”
e simplista, concebida fundamentalmente através do conteúdo jurídico.
Congost realizou um denso trabalho, com diversos estudos empíricos,
demonstrando que esse prisma é demasiado abstrato, não dialogando na maioria das vezes
com a realidade social. Conforme a autora, o processo de transição de uma sociedade de
Antigo Regime para a construção de um Estado liberal moderno deve ser encarado com
mais complexidade, estudado para além dos ordenamentos jurídicos, mediante fontes que
possam dar uma dimensão do panorama social.
Neste sentido, é importante levar em conta a interpretação que faz Rosa Congost
(2007, p.15), da propriedade não como ideia e sim como obra, prestando atenção nas
condições de realização da propriedade, que podem ser muito diversas, sendo resultado de
múltiplas facetas da atividade humana, não só as condições legais de propriedade, bem
como o conjunto de elementos relacionados com as formas de acessar os recursos, com as
práticas de uso, ou seja, por diferentes formas de ser proprietário.
Assim, sob pena de construir uma análise generalista e linear, é importante
considerar as reflexões de Congost como ferramentas para construir uma história da
propriedade através de um mosaico amplo e complexo. É preciso levar em conta que estas
terras não são apenas números e hectares, e sim, o alicerce da vida da maioria daquelas
pessoas, que embora compartilhassem formas similares de vivência, muitas vezes trilharam
diferentes trajetórias em relação às condições de realização da propriedade.
FONTES:
BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá
outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 30 nov. 1964.
BRASIL, DECRETO-LEI nº597, de 27 de maio de 1969. Autoriza o Govêrno do Estado
do Rio Grande do Sul a contratar empréstimo externo com a USAID. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 28.5.1969.
Companhia Estadual de Geração e Transmissão de Energia Elétrica – CEEE-GT. Plano de
uso e ocupação do solo no entorno do reservatório da UHE Passo Real. Porto Alegre, 2011.
CEEE – Relatório publicado em 8 de setembro de 1969 acerca das propriedades que
tiveram suas terras atingidas pelas águas da bacia de alagamento do Passo Real.
(ARQUIVO DO SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE FORTALEZA
DOS VALOS – RS).
PUBLICAÇÃO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE
DO SUL: LORENZON, Algir (Org.). AFOGADOS: Até Quando? Relatório da Comissão
Especial dos Agricultores Desalojados do Passo Real. Porto Alegre: Assembleia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas.
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