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A QUESTÃO DOS MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO FORNECIDOS PELO SUS: UMA DIFÍCIL DECISÃO THE ISSUE OF HIGH COST MEDICINE SUPPLIED BY THE BRAZILIAN PUBLIC HEALTH SYSTEM: A TOUGH DECISION Clarice Castello Costa RESUMO O presente artigo busca expor a abrangência da discussão sobre a dispensação de medicamentos de alto custo no âmbito do SUS. Avaliam-se posicionamentos antagônicos, contrapondo o princípio da reserva do possível dentro do orçamento público destinado à saúde ao mínimo existencial. Busca-se uma melhor compreensão sobre o que é a saúde como preconizada pela Constituição, ponderando sobre o papel do judiciário na persecução desse direito em meio a um cenário de excessiva judicialização. Critica-se a justiça distributiva (dispensação de fármacos) sendo aplicada através da jurisdição. PALAVRAS-CHAVE: medicamentos de alto custo; judicialização da saúde; justiça distributiva. ABSTRACT The current article aims to present the comprehensiveness of the discussion that involves the high cost medicine distribution within the public health system of Brazil. Antagonistic statements are evaluated, in one side we have the principal of preservation of contingences based on the public budget that is destined for public health care and in the other we have the minimum existential theory. A better comprehension about what is health as written in the Constitution is sought, by considering the role of judicial power among a scenario of excessive litigation. We criticize the distributive justice being operated within the juridical logic. KEYWORDS: high cost medicine; judicialization of health; distributive justice.

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A QUESTÃO DOS MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO FORNECIDOS PELO SUS:

UMA DIFÍCIL DECISÃO

THE ISSUE OF HIGH COST MEDICINE SUPPLIED BY THE BRAZILIAN PUBLIC

HEALTH SYSTEM: A TOUGH DECISION

Clarice Castello Costa

RESUMO

O presente artigo busca expor a abrangência da discussão sobre a dispensação de medicamentos

de alto custo no âmbito do SUS. Avaliam-se posicionamentos antagônicos, contrapondo o

princípio da reserva do possível dentro do orçamento público destinado à saúde ao mínimo

existencial. Busca-se uma melhor compreensão sobre o que é a saúde como preconizada pela

Constituição, ponderando sobre o papel do judiciário na persecução desse direito em meio a um

cenário de excessiva judicialização. Critica-se a justiça distributiva (dispensação de fármacos)

sendo aplicada através da jurisdição.

PALAVRAS-CHAVE: medicamentos de alto custo; judicialização da saúde; justiça

distributiva.

ABSTRACT

The current article aims to present the comprehensiveness of the discussion that involves the

high cost medicine distribution within the public health system of Brazil. Antagonistic

statements are evaluated, in one side we have the principal of preservation of contingences

based on the public budget that is destined for public health care and in the other we have the

minimum existential theory. A better comprehension about what is health as written in the

Constitution is sought, by considering the role of judicial power among a scenario of excessive

litigation. We criticize the distributive justice being operated within the juridical logic.

KEYWORDS: high cost medicine; judicialization of health; distributive justice.

1

INTRODUÇÃO

Ser bom é fácil. O difícil é ser justo.

Victor Hugo

O presente artigo aborda a questão da dispensação de medicamentos de alto custo

gratuitamente pela Administração Pública. A ênfase concentra-se na disponibilização dos

medicamentos alcançada através de decisões judiciais, tendo em vista a enorme discussão que

isso suscita, envolvendo diversos mecanismos democráticos, como a separação dos Poderes, a

reserva parlamentar em matéria orçamentária, a necessidade de preservação do núcleo de

direitos essenciais à vida humana digna e a teoria da reserva do possível, que não deixa de ser

uma questão de viabilidade orçamentária frente à concretização de políticas públicas.

Ao apresentar o tema, faz-se uma consideração sobre o direito à saúde, a sobre a

maneira como ele é apresentado na Constituição de 1988, como ele é resguardado

internacionalmente, em diplomas que garantem os direitos humanos e como isso se consolidou

de maneira recente no século XX.

Em seguida aborda-se a persecução do direito à saúde através do ordenamento

brasileiro, tendo em vista que o mesmo tem um caráter público subjetivo e que a Constituição

da República é expressa em apregoar que preferencialmente ele será realizado por políticas

públicas e se pauta em um acesso igualitário.

Faz-se também a consideração acerca da tendência crescente que se observa em

relação às demandas judiciais por medicamentos perante o Poder Judiciário, como isso pode

desequilibrar o sistema público de saúde, atingindo, em última análise a isonomia que é tida

como preceito básico do direito à saúde no Brasil. Isso esbarra na realidade de finidade de

recursos destinados ao SUS e no perigo da repercussão coletiva que tem cada escolha

individual.

Discute-se também brevemente a suposta substituição dos demais poderes pelo Poder

Judiciário quando ele vincula a Administração Pública em determinadas decisões, impelindo-a

a realizar determinada prestação. Rebatendo esse argumento, apresenta-se a teoria de que em

determinadas situações o Poder Executivo omite-se conscientemente na elaboração de políticas

públicas (em uma escolha política), restando ao Judiciário o papel de fornecer efetividade às

2

normas constitucionais de caráter prestativo, em grande parte em decorrência da necessidade

de solucionar o caso concreto (princípio da inafastabilidade jurisdicional).

Conferindo ao artigo um tom mais explicativo e pragmático, buscou-se, no tópico

sobre a proveniência das verbas destinadas à saúde, demonstrar, ainda que de maneira

incipiente, que existe um planejamento antecipado dos gastos que o Estado terá com a

efetivação de políticas públicas (orçamento público), de competência do Poder Legislativo.

Relaciona-se ao orçamento público, limitado por sua natureza, à teoria de origem alemã da

reserva do possível, fazendo um contraste da mesma com a necessidade da efetivação do

mínimo existencial, que constitui uma camada de proteção imprescindível do ser humano

quando se busca assegurar-lhe uma vida digna.

Em um viés crítico indaga-se acerca da legitimidade da administração pública para

negar medicamentos pautando-se na justificativa de insuficiência de recursos quando gastos

exorbitantes são feitos com desperdícios e campanhas publicitárias desnecessárias.

Pareceu-nos importante discorrer brevemente acerca da introdução de medicamentos

às listas oficiais do sistema público de saúde, tendo em vista que antes de ingressar com uma

demanda judicial o interessado apresenta, via de regra, uma solicitação administrativa (sob pena

de o processo ser encerrado precocemente em decorrência da falta de interesse processual e de

necessidade do pedido). Chega-se à conclusão de que o processo de inserção de uma droga nova

nas listas de dispensação do governo é complexo, pois envolve tecnologia, proteção da saúde

pública e ponderação sobre custo/benefício do fármaco. E assim deve ser para utilizar a verba

pública com parcimônia, bem como para preservar a saúde pública.

Em seguida, discute-se o projeto ligado ao direito à saúde, previsto no Programa

“Agenda Brasil”, de autoria do Senado, que pretende proibir liminares judiciais que determinam

o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS. Para

isso, discute-se a diferença entre justiça retributiva e distributiva, tendo em vista que o

Judiciário não é o melhor campo para tratar de questões de justiça distributiva. Mas registra-se,

em contrapartida, a imprescindibilidade desse Poder, tendo em vista a deficiência do Executivo

em atender prontamente às necessidades de prestação de saúde com políticas públicas

eficientes.

3

1. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES: DO DIREITO À SAÚDE

A manutenção da vida é uma preocupação de toda civilização humana, desde os

primórdios.

No Brasil, o direito à saúde é constitucionalmente assegurado pela Carta Magna

brasileira de 1988, e podemos dizer que a concretização dele é um enorme desafio para a

sociedade contemporânea. Sua prestação exige um grande dispêndio para a Administração

Pública, uma vez que o Estado democrático brasileiro escolheu uma assistência integral,

universal e gratuita para toda a população do país. Podemos dizer que esse modelo está em

oposição ao tratamento do acesso à saúde como preconizado na Constituição anterior, de 1946,

que trazia como condição sine qua non para que uma pessoa fosse atendida pela rede pública

de saúde que a mesma contribuísse para a previdência1. Nesse novo panorama, o Estado trouxe

para si o dever, realizado através de políticas sociais e econômicas, de serviços de promoção,

proteção e recuperação da saúde dos brasileiros.

A consagração do Direito à saúde se deu no século XX, mas surgiu antes disso,

gradualmente, com a passagem do Estado puramente liberal para um Estado social, com direitos

que se norteiam no princípio da igualdade e exigem, para a sua consecução, uma postura ativa

do Estado. Na Constituição de 1988, tais direitos estão descritos como “sociais, econômicos e

culturais”, e são precipuamente coletivos, não obstante seu núcleo relativo à dignidade da

pessoa humana. Partindo para um panorama global, vejamos como esse direito foi estabelecido

em tratados internacionais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, proclamou em seu art. 25:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à

sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,

cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança

em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de

perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

1 TRAVASSOS GAMA, Den., Por uma Releitura Principiológica do Direito à Saúde: da Relação entre Direito

individual a Medicamentos nas Decisões Judiciais e as Políticas Públicas de Saúde. 2007. 148 f. Dissertação

(Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília , Brasília. 2007.

4

No mesmo sentido seguiu o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, firmado em 1966 na Assembleia Geral das Nações Unidas:

ARTIGO 12

1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de

desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental.

2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o

fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se

façam necessárias para assegurar:

(...)

c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas,

profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças.

d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e serviços

médicos em caso de enfermidade.

Para além de ambos os diplomas internacionais, citaremos também, a título de

curiosidade, a Carta Europeia de Direitos Sociais e o Pacto de San Salvador, que igualmente

contribuíram para dar visibilidade a esse direito humano, e influenciaram diversos países a

resguardá-lo formalmente em seus ordenamentos jurídicos.

Consequentemente, o direito à saúde passou a integrar as normas constitucionais

relacionadas a direitos sociais em diversos países, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial,

com o surgimento do Estado de Bem-Estar Social.

Concomitantemente à atenção especial e proteção que foi dada a esse direito, esse

século foi marcado por um enorme avanço no conhecimento médico científico. Isso, entretanto,

não gerou necessariamente uma redução no custo de tratamentos médicos, que se tornaram mais

sofisticados, portanto, em alguns casos, ainda mais custosos. O dispêndio com saúde aumentou

em todo o mundo. A tecnologia que se incorporou na pesquisa, na prevenção de doenças, nas

técnicas diagnósticas laboratoriais e de imagens, enfim, em toda a medicina ocasionou um

aumento galopante de custo. No caso específico dos medicamentos, as leis de propriedade

imaterial (patente) contribuem para a elevação de seus custos2. Saliente-se também um fator

2 Disponível em

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Medicamentos_de_Alto_Custo__Que

m_paga_a_conta_.pdf Acesso em 10 de março de 2016.

5

biológico que acaba por aumentar os gastos públicos com remédios: a mudança na formatação

da pirâmide etária, com uma população cada vez mais longeva.

O Direito à saúde não pode ser entendido como direito a ser saudável, mas sim um

direito de proteção à saúde, que envolve diversos fatores, tais como, direito de defesa, que

consiste em não sofrer violações por parte de terceiros e o direito social de obter ações e serviços

voltados à prevenção de doenças e à promoção, proteção e recuperação da saúde (prestação em

sentido estrito). Esse segundo direito está ligado à prestação de saúde através de serviços

públicos3.

Saliente-se que o direito à saúde, no ordenamento pátrio, está regulado tanto de

maneira Constitucional quanto na legislação infraconstitucional, o que o torna um direito

fundamental originário e um direito fundamental derivado. Por ser direito fundamental

originário, ou seja, com previsão expressa na Constituição vigente, ele está apto a gerar efeitos

imediatamente, independente de complementação legislativa.

2. DA PERSECUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Importa ressaltar, no ordenamento pátrio, onde se encontram positivados esses

direitos. Primeiramente, recorramos à Constituição. Lá observaremos o direito à saúde sendo

tratado extensivamente pelos artigos 196 a 200.

Uma análise inescapável deve ser feita ao artigo 196 da Constituição Federal de 1988,

por isso a necessidade de colacioná-lo.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante

políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

doença e de outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua

promoção, proteção e recuperação.

Em nosso ordenamento, como se observa, a atenção à saúde deve ser buscada mediante

políticas públicas sociais e econômicas, e a realização dessas deve apresentar um acesso

3 MÂNICA, Fernando Borges. "Saúde: um direito fundamental social individual." Revista Brasileira de Direito

da Saúde 1 (2011): 21-34.

6

igualitário. O assunto está tratado na Carta Magna de uma maneira indubitavelmente social e

coletiva, embora na prática forense isso não ocorra dessa forma. Na mesma esteira, Ricardo

Perlingeiro4 explica que no Brasil a saúde é considerada um direito público subjetivo com

fundamento expresso nesse artigo.

Nos primeiros anos de vigência da atual Constituição, as demandas por medicamentos

eram em regra provenientes de doentes portadores do vírus da AIDS, e eram, em sua maioria,

denegadas sob o argumento de o direito a saúde ser um direito respaldado em normas

programáticas, desprovidas, portanto, de eficácia plena. Todavia, tal quadro modificou-se sem

a atuação do Poder Judiciário porque associações de doentes se organizaram para pressionar o

Poder Público, impelindo-o a adotar uma postura favorável ao seu pleito, o que gerou inclusive

a Lei 9.313/1996 sobre tratamento e fornecimento de medicamentos aos portadores do vírus.

É notório que o entendimento jurisprudencial transmigrou e recentemente os órgãos

julgadores vêm concedendo tutelas individuais para fornecer praticamente qualquer tipo de

medicamento (embora isso tenha sofrido alterações sutis após a Audiência Pública n. 4), muitas

vezes sem a precedente análise de sua eficácia ou comprovação científica, de maneira irrestrita,

em nome do direito a vida.

No plano infraconstitucional, observaremos a disciplina da Lei 8.080/90, Lei Orgânica

da Saúde, que de acordo com seu preâmbulo, “dispõe sobre as condições para a promoção,

proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

correspondentes e dá outras providências”.

Fernando Mânica5, em didática análise, afirma que o Poder Judiciário pode ser ativado

em três diversas hipóteses para efetivar o direito à saúde em sua perspectiva prestacional, quais

sejam, in verbis:

i. na inércia do Poder Legislativo em regulamentar questão

específica ligada ao direito em referência (omissão legislativa);

ii. no descumprimento pela Administração Pública, da legislação que

regulamenta o referido direito (omissão administrativa) e;

iii. no caso em que a regulamentação do direito à saúde (de)limite de

modo não constitucionalmente fundamentado o direito originário

à saúde (obscuridade, contradição ou excesso, tanto em sede

legislativa quanto em sede administrativa).

4 PERLINGEIRO, Ricardo. A Tutela Judicial do Direito Público à Saúde no Brasil. 2013. 4-6

5 MÂNICA, op. cit., p. 7.

7

Evidente é a necessidade do Poder Judiciário na busca da implementação de tal

direito. As ações que buscam concessão de medicamentos e internações para determinado

paciente são abundantes, e tendem a crescer ainda mais, como aponta Danielle da Costa Leite

Borges, em dissertação6. Entretanto, é notório que nenhum direito é absoluto, e não se pode

desconsiderar, nos casos concretos da aplicação do direito pelos órgãos desse Poder, toda a

organização do sistema público de saúde. Isso levaria, em última análise, à agressão ao princípio

da isonomia.

Não obstante o direito à saúde comporte uma dimensão coletiva, ele também deve ser

compreendido sob o prisma de um direito subjetivo em que cada pessoa receberá uma

assistência individualizada e específica.

Mantendo em mente o Sistema Único de Saúde e a finidade de seus recursos, devemos

pensar também que cada escolha individual tem uma repercussão coletiva. Segundo Barroso7,

não se pondera o direito à saúde com o princípio da legalidade e da separação de poderes, mas

se pondera o direito à vida e à saúde de determinadas pessoas em face do direito à vida e à saúde

de outras pessoas.

Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um

primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de

interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a

separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A

realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo na complexa

ponderação analisada, é o direito a vida e a saúde de uns versus o direito à

vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente

simples nessa situação.

Tendo em mente que a saúde, como direito subjetivo que é, individualmente exigível,

confere a todos os cidadãos a prerrogativa de exigi-lo judicialmente, fundamentando-se nos

artigos 6º, 196 e seguintes da Constituição, perseguindo assim o bem jurídico tutelado por tais

dispositivos constitucionais: o direito à saúde.

6 BORGES, Danielle da Costa Leite. Uma análise das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos no

âmbito do SUS: o caso do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2005. Rio de Janeiro, 2007. Diss. Dissertação

(Mestrado)—Programa de Mestrado em Saúde Pública da Escola Nacional de Sáude Pública Sergio Arouca

(ENSP)/FIOCRUZ. Disponível em:< http://bvssp. cict. fiocruz. br/lildbi/docsonline/3/3/1233-borgesdclm. pdf>.

Acesso em: 26 maio, 2008.

7 BARROSO, 2007 apud PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização

da saúde. 2010. 30 f." Artigo (Especialização). Especialização em orçamento público do Instituto Serzedello

Corrêa–ISC/TCU. Brasília–DF. Disponível em:. Acesso em 3 (2015).

8

Entretanto, tais dispositivos constitucionais são sobremaneira amplos, assim como é o

próprio conceito de saúde, dificultando saber o que efetivamente pode ser cobrado através do

Poder Judiciário do Estado.

Há certo estranhamento em considerar a saúde como um bem, apesar de não haver

outra forma de caracterizá-la. Nesse sentido, explica Ronaldo Lobão que ”na cosmologia do

capitalismo contemporâneo, a noção de ‘bem’ está associada à ideia de interesse, ou seja, um

bem deve corresponder àquilo que homens ou instituições desejem e ajam no sentido de obtê-

los”8. Em determinadas situações a saúde aparece como um bem público, ou comum. Com isso

queremos dizer que numa perspectiva econômica, ela pode ser um bem de consumo não rival,

não exclusivo e não disputável. Ou seja, sendo consumido por determinada pessoa, ele não pode

praticamente ser excluído do consumo de outra pessoa. Nessa perspectiva ele é um bem de

fornecimento solidário, fornecido a muitos a um custo muito baixo. São bens fornecidos uti

universi, em oposição aos fornecidos uti singuli.

Podemos perceber tal característica em fornecimentos como o de iluminação pública

ou vigilância sanitária, que uma vez organizados podem ser utilizados por todo e qualquer

indivíduo de certo grupo, como um município, e os custos desse fornecimento não são

multiplicados pelo número de beneficiários simplesmente.

Em contrapartida, a saúde também se apresenta, em grande parte das situações, como

um bem individual, de uso exclusivo e consumo rival. Infelizmente, nesses casos, o consumo

do bem por um indivíduo significará a exclusão de outros.

No caso específico que está sendo trabalhado, esse será o aspecto abordado, pois é

desta forma que as prestações de saúde se apresentam quando os indivíduos necessitam do

fornecimento de medicamentos junto ao SUS. Estamos tratando do direito do indivíduo receber

determinado bem do Estado, e nesse caso o custo de seu fornecimento se multiplica pelo número

de cidadãos que se utilizarão do mesmo. Para Ronaldo Lobão, no caso dos medicamentos,

teoriza que o bem público em questão não será particular, tampouco público, mas será um bem

coletivo, que são por ele conceituados como sendo bens produzidos em decorrência da ação ou

da demanda de determinados grupos no espaço público, mas o acesso pelo grupo, ou outro

grupo equivalente, pode impedir ou reduzir as oportunidades de outro grupo acessar o mesmo

8 LOBÃO, Ronaldo. "DESAFIOS À CAPACIDADE REDISTRIBUTIVA DO DIREITO EM CONTEXTOS

PÓS-COLONIAIS." Confluências| Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito 16.2 (2014): 61-79.

9

bem. Conclui ainda que a distribuição de medicamentos ou procedimentos cirúrgicos não são

equiparáveis ao acesso à saúde, porque não entende a relação causal de medicamento com saúde

e também porque em decorrência da organização do sistema de saúde no Brasil (de estrutura

municipalizada e descentralizada), o direito a medicamento de alto custo poder impedir outros

indivíduos de exercerem seu direito a saúde. Saliente-se que o autor diferencia, portanto, o

direito a saúde, que considera como bem público, e o direito a medicamentos, que considera

como bem coletivo.

Em dissertação9, Denise Travassos Gama aduz que a mudança de sistema de saúde

pública a partir da Constituição de 1988 fez emergir problemas de toda ordem em relação à

implementação do direito de acesso a saúde. Dependente de políticas públicas consistentes, o

direito a saúde sempre dependerá da definição democrática da destinação de recursos escassos

para a sua realização. Assumindo uma postura típica dos Estados de Bem Estar Social, alguns

magistrados preocupam-se em realizar o direito a saúde, substituindo, muitas vezes, os outros

poderes ao realizar essa tarefa. Decisões mais “ativistas” compreendem axiologicamente as

normas jurídicas desrespeitando a separação de poderes, tornando-se incompatível ao

paradigma do Estado Democrático de Direito.

A referida autora não nega a boa intenção dos magistrados que pretendem a qualquer

custo a materialização de direitos, mas aponta para um preço demasiado elevado que se tem a

pagar devido a essas decisões: a ofensa ao princípio democrático. Em certas decisões os

tribunais passam a operar na mesma lógica do legislativo, sem, no entanto, ter legitimação para

tanto.

Em outro sentido, sentimos a importância do papel do Poder Judiciário na perseguição

do direito a saúde na medida em que as decisões por medicamento proferidas por juízes e

tribunais pressionam os órgãos democraticamente legitimados a instituírem políticas públicas

consistentes, mesmo que agindo em situação individual e exercendo essa pressão por vias

indiretas.

É defensável a postura de reconhecer a saúde como um direito ao qual é legítima a

exigência perante o Poder Judiciário, e não como um mero valor. Isso gera a preocupação com

a fundamentação da jurisdição, que, nas palavras de Denise Gama, preserva

9 TRAVASSOS GAMA, Den., Por uma Releitura Principiológica do Direito à Saúde: da Relação entre Direito

individual a Medicamentos nas Decisões Judiciais e as Políticas Públicas de Saúde. 2007. op cit., p. 16 – 17.

10

(...) a separação de poderes e, consequentemente o princípio democrático que,

de forma nenhuma pode mais ser compreendido como simples “vontade da

maioria”. Ao contrário, hoje democracia só existe se levar em consideração a

diferença de todos e cada um. Por isso a proteção de minorias e o respeito a

direitos fundamentais se afiguram primordiais.

No entanto, quando o Poder Executivo se omite conscientemente na implementação

de políticas públicas voltadas à saúde, o ônus de concretizar ou não esse direito é transferido ao

Poder Judiciário na decisão do caso concreto, situação que não deveria ocorrer.

O direito a saúde no Poder Judiciário não pode ser concebido sob a luz de uma política

social consciente dos custos e benefícios que serão socialmente gerados, ou seja, não se pode

atribuir a esse Poder o dever de implementar uma política pública que não foi efetivada pelo

Poder Executivo. Diante da necessidade de solucionar o caso concreto o magistrado não pode

ser responsável por considerar o sistema social como um todo, avaliando a repercussão

orçamentária que sua decisão terá.

A tarefa do Poder Judiciário é aplicar a norma jurídica de maneira coerente e adequada

em relação ao caso que se lhe apresenta. Na dicotomia entre proteger o direito à saúde e à vida,

que se traduz como direito inalienável assegurado pela constituição, e defender um direito

financeiro do Estado, impõe-se ao intérprete a solução que privilegia o direito a vida, afinal,

não deve-se esperar que o magistrado se incumba em um papel de juiz Hércules, consciente de

todas as circunstancias possíveis em um panorama global. Sua decisão não seria capaz de prever

o efeito borboleta que poderia dela irradiar. A decisão se baseia em saberes incompletos e

limitados, portanto, no processo decisório a limitação orçamentária como um argumento

restritivo de direitos não passa de uma elucubração.

A mera possibilidade de que uma decisão judicial venha a inviabilizar o sistema

público de saúde não pode dissipar a tutela jurisdicional do direito a saúde, pois a ameaça é

concreta e real, a situação que se lhe apresenta, diferentemente de ponderações orçamentárias,

são urgentes e tangíveis.

11

3. A PROVENIÊNCIA DAS VERBAS DESTINADAS À SAÚDE

A escassez dos recursos exige ponderação sobre sua melhor distribuição. Os recursos

existentes dentro de um sistema econômico devem ser distribuídos de modo a produzir o maior

bem estar possível ao maior número de pessoas. Admitindo-se a inviabilidade da satisfação

geral, deve haver um rateio do sacrifício, cuja solução está ancorada no binômio

eficiência/equidade10.

Os gastos do Estado são pagos com verbas auferidas preponderantemente através de

tributos cobrados da população, tendo em vista que a receita originária – ou seja, os rendimentos

que os governos auferem utilizando os seus próprios recursos patrimoniais industriais (rendas,

foros, laudêmios, alugueis, dividendos, participações, royalties do petróleo, entre outros) – do

Estado é feita em caráter de exceção e, comparativamente à receita derivada (auferida através

de tributos) tem um valor irrisório.

As receitas não são utilizadas de qualquer maneira, pois isso permitiria

arbitrariedade por parte do gestor público, que teria a liberdade de utilizá-la irresponsavelmente,

gerando imprevisibilidade e inviabilizando o serviço público e um adequado funcionamento do

Estado. Para disciplinar os gastos públicos, eles serão previstos em orçamento público, cujas

origens se confundem com as do Estado de Direito.

O orçamento público tornou-se um instrumento absolutamente necessário para a

otimização da organização de receitas e despesas do Estado e para o equilíbrio dos interesses

antagônicos que permeiam disputas pelo poder. Seu processo alocativo está sob a proteção da

lei, e todas as despesas públicas imprescindem de autorização legislativa, regulados pelas

espécies que são o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais, sobre

os quais não vamos nos debruçar, pois não são relevantes para esse estudo. Insta salientar que

é preciso assegurar destinações sociais dos tributos arrecadados, dentre as quais encontra-se a

destinação para a saúde, dando ao orçamento público a dimensão cidadã que resguarda o

cumprimento de direitos ligados a dignidade da pessoa humana, protegidos

constitucionalmente11.

10 SCHOUERI, Luís Eduardo. "Direito tributário." (2014). passim

11 SANTO DAL BEM PIRES, José, and Walmir Francelino Motta. "A evolução histórica do orçamento público

e sua importância para a sociedade." Enfoque25.2 (2006): 16.

12

As verbas destinadas ao financiamento do SUS são de responsabilidade das três

esferas de governo, sendo que a Constituição estipula que o sistema único de saúde será

financiado do orçamento da seguridade social da União, Estados, Distrito Federal e Municípios,

além de outras fontes. A nova visão de proteção social integra padrões de financiamentos

distintos, como impostos e contribuições sociais e recursos do Orçamento Geral da União

(OGU) e do Orçamento da Seguridade Social (OSS). Os recursos da seguridade social incluem,

além das contribuições sobre folha salarial, o faturamento empresarial (Contribuição Social

para o Financiamento da Seguridade Social), o lucro líquido das empresas (Contribuição sobre

o Lucro Líquido) e o PIS-PASEP (Programa de Integração Social/Programa de Formação do

Patrimônio do Servidor Público)12.

Uma importante decisão legislativa na área de saúde foi a introdução da Emenda

Constitucional 29, aprovada no ano 2000 após intensa negociação e discussão sobre a garantia

de fontes estáveis ao financiamento do SUS. Vinculou-se, a partir de então, no orçamento da

União, Estados, Distrito Federal e Municípios um percentual mínimo destinado a ser aplicado

na área da saúde, apontando para um maior comprometimento na universalização da saúde.

A partir desse aparato, após expor que a organização dos gastos públicos com saúde

é vinculada aos planos traçados pelo Poder Legislativo, adentraremos a contraposição da

necessidade de garantia do mínimo existencial que tenta ser afastado pelas procuradorias

evocando-se a tese da reserva do possível.

4. MÍNIMO EXISTENCIAL EM CONTRAPONTO À RESERVA DO POSSÍVEL

Em linhas gerais, o princípio da reserva do possível regula a possibilidade e a extensão

da atuação do Estado no que tange à concretização de alguns direitos sociais e fundamentais

(no caso estudado, o direito à saúde materializado através da prestação de fármacos pelo SUS).

Costuma-se condicionar a prestação do Estado à existência de recursos públicos disponíveis.

Em suas raízes observamos uma construção iniciada na Corte Constitucional Alemã e

12 DA SILVA, Juliana Gomes. Orçamento público em saúde: Uma análise do cumprimento da Emenda

Constitucional 29/2000 nos estados brasileiros. São Paulo. Universidade de São Paulo, 2011. p. 15.

13

importada ao Brasil, apesar de aquele ser um país com estruturas sociais, econômicas e cultuais

muito diversas das nossas.

Esse entendimento iniciou-se em decisão paradigmática que versou sobre o acesso ao

ensino público superior, atinente a ideias resguardadas naquele ordenamento de que é garantida

a liberdade de escolha da profissão. Firmou-se jurisprudência no sentido de que a prestação

reclamada deve equivaler ao que pode o indivíduo exigir da sociedade através de uma

ponderação do que seria razoável. Dessa maneira, mesmo se o Estado dispusesse dos recursos,

não se poderia falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do

razoável13. Ou seja, resumidamente, a efetivação de direitos subjetivos de prestação material de

serviços públicos pelo Estado está relacionada à disponibilidade de recursos. Por sua vez, a

decisão sobre a alocação de recursos localiza-se no campo discricionário das decisões

governamentais por intermédio da composição dos orçamentos públicos (princípio democrático

da reserva parlamentar em matéria orçamentária).

Entende Ingo Sarlet14 que os direitos que exigem uma atuação negativa do Estado,

relacionados convencionalmente a ideia de liberdade, desencadeiam plenitude eficacial, com

situações prontamente desfrutáveis, que dependem simplesmente de uma abstenção. Já com

relação aos direitos sociais prestacionais (de cunho positivo), ressalta-se que, por mais

programáticas que as normas sejam, também são dotadas de eficácia diretamente retirada da

Constituição da República independentemente de intermediação legislativa. Impõe-se uma

relativização da noção de direito subjetivo em relação aos mesmos. Assevera o autor que

(...) cremos ser possível afirmar que os direitos fundamentais sociais, mais do

que nunca, não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas sim,

premente necessidade, já que a sua supressão ou desconsideração fere de

morte os mais elementares valores da vida, liberdade e igualdade. A eficácia

(jurídica e social) dos direitos fundamentais sociais deverá ser objeto de

permanente otimização, na medida em que levar a sério os direitos (e

princípios) fundamentais corresponde, em última análise, a ter como objetivo

permanente a otimização do princípio da dignidade da pessoa humana, por sua

vez, a mais sublime expressão da própria ideia de Justiça.

13 SARLET, Ingo Wolfgang. "Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988." Revista Diálogo

Jurídico, Salvador, CAJ-Centro de Atualização Jurídica 1.1 (2001): 65-119. passim.

14 SARLET. op. cit., passim.

14

Existem exigências inafastáveis que correspondem a um padrão mínimo essencial para

a manutenção de uma vida digna que devem ser asseguradas inclusive para resguardar aquele

núcleo mais intangível dos direitos inerentes à condição humana.

Em relação à disponibilização de medicamentos de alto custo, podemos ponderar sobre

dois argumentos antagônicos

a) As prestações de saúde que se dispõem a fornecer medicamentos de custo

inviável para o Poder Público (assevera-se a dimensão da inviabilidade em um panorama de

igualdade prestacional para outros em condições análogas) bancar não se relacionam com esse

mínimo existencial, por entender que o mínimo existencial em matéria de saúde está mais ligado

aos cuidados básicos e também às medidas profiláticas;

b) No caso particular de determinada doença cujo enfermo pleiteia por

medicamento de alto custo, seria inviável a manutenção de sua vida, ou de sua vida digna sem

o medicamento em questão; não disponibilizá-lo seria tolher-lhe o direito a vida (de que

emanam todos os demais direitos).

Às ponderações apresentadas soma-se ainda uma terceira, de suma importância, mas

sobre a qual não se poderá debruçar sob pena de ampliar-se sobremaneira o objeto de estudo.

Indaga-se: que legitimidade tem um Estado democrático para negar a disponibilização de

medicamentos fundamentando-se na reserva do possível quando é capaz de gastar milhões com

campanhas publicitárias que promovem empresas de monopólio estatal, que delega ao

particular a responsabilidade pela conservação de medicamentos e, por não fiscalizá-lo

(entende-se que a culpa não é exclusiva da Administração Pública que não exercia por conta

própria o serviço), permite que ocorram escândalos de milhares de medicamentos vencidos sem

jamais chegarem ao destinatário final que necessitava dos mesmos para promover tratamentos?

Certo é que não se pode justificar uma decisão tão importante legitimando qualquer

atitude do Estado em ingerências e arbitrariedades no gasto do dinheiro público, mas isso gera

para aquele que é alvo das prestações estatais uma indignação e corrobora na mitigação da

legitimidade do discurso estatal de insuficiência de verbas. Afinal, como pode se considerar

legítimo que o Estado evoque o princípio da reserva do possível para limitar o campo do mínimo

existencial quando há um desequilíbrio permanente equitativo na alocação social de verbas

orçamentárias?

15

5. A INCORPORAÇÃO DE MEDICAMENTOS A LISTA DO SUS

A questão da incorporação de medicamentos novos as listas do SUS é controversa,

portanto a necessidade de nos atermos a ela. Ela foi alvo de acalorados e constantes debates em

diversos segmentos da sociedade, e, devido a sua importância para a mesma, foi objeto da

Audiência Pública n. 4 de 2009, no Supremo Tribunal Federal, convocada pelo Ministro Gilmar

Mendes, onde ouviram-se cinquenta especialistas, entre defensores públicos, promotores e

procuradores de saúde, advogados, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários da saúde

pública.

Na referida audiência, foram rechaçadas posições radicais em relação à judicialização

da saúde, discutiu-se a atuação do Poder Judiciário na efetivação do direito a saúde e

concluíram, pela maioria dos que abordaram a questão pela legitimidade de sua atuação no

âmbito das demandas individuais. Ademais, laudos de médicos estranhos aos quadros do SUS

foram tidos, por unanimidade, como ilegítimos. Discutiu-se também: a responsabilidade dos

entes federados; o dever de o poder público custear prestações de saúde não abrangidas nas

políticas públicas existentes; a questão do bloqueio de verbas públicas decorrente de decisão

judicial; a pertinência, em matéria de saúde, do princípio da reserva do possível; e o

condicionamento do acesso ao Poder Judiciário à submissão prévia do interessado à instância

administrativa, não sendo possível, nesses pontos, identificar posições majoritárias.

Dentre outros temas, discutiu-se, através de abordagens isoladas, questões do

fornecimento de medicamentos sem registro no Brasil; serviços médicos experimentais e

aprimoramento das políticas públicas do setor; destacou-se que a responsabilização solidária

dos entes gera um grande transtorno, ocasionando muitas vezes a duplicidade no cumprimento

da determinação judicial; desaconselharam os magistrados a deferirem todo e qualquer pedido

para fornecimento de medicamentos ou tratamentos. Salientou-se, ademais, a importância das

ações civis públicas.

16

Após a realização da referida audiência pública, atuando como relator das Suspensões

de Tutela n. 175, 211, e 278, das Suspensões de Segurança ns. 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355;

e da Suspensão de Liminar n. 47, o Ministro Gilmar Mendes assinalou que:

Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos

setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a

questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na maioria

dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta

em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas

tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de

políticas já estabelecidas.

Ao proferir sua decisão, Sua Excelência utilizou como principal critério o da

necessidade, tendo em vista a possibilidade de grave lesão à ordem administrativa, causando

um prejuízo no atendimento médico da população mais necessitada. Claramente as

considerações veiculadas na Audiência Pública n.4 foram consideradas.

A problemática não se restringe a questões econômicas e orçamentárias calcadas na

insuficiência dos recursos, vai além: visa a discutir a implementação de critérios claros para a

incorporação de novas tecnologias, baseados em evidências científicas de validade.

A primeira etapa para a incorporação de medicamentos ao Sistema Único de Saúde

é o registro da droga junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Antes do

citado registro, sequer o medicamento será considerado legalmente existente no Brasil,

consoante depreendemos do art. 12 da Lei. 6.360/76.

A ANVISA avalia critérios de eficácia e segurança dos medicamentos, e em

seguida, para a incorporação dos mesmos nas listas oficiais de dispensação, como o RENAME

(Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) a nível federal e outras específicas a nível

estadual e municipal, há que se proceder também à análise de custo benefício do produto. Tais

análises são, por último, decisões discricionárias do administrador, ou seja, decisões políticas.

Sobre o processo de incorporação, O Coordenador da Comissão de Incorporação de

Tecnologias do Ministério da Saúde – CITEC, Cláudio Maierovich15, acrescenta:

A novidade proposta é comparada a outros produtos ou técnicas disponíveis

para a mesma finalidade quanto ao desempenho, à possibilidade de adoção

segura pelos serviços públicos e aos custos estimados. Esta também pode ser

a oportunidade para excluir ou substituir produtos e métodos obsoletos ou que

15 Apud PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização da saúde. 2010.

Op. cit., p. 22.

17

não têm o necessário lastro científico. Novas tecnologias exigem reformas,

equipamentos, treinamento dos profissionais e incorporação de exames

laboratoriais. Por isso é difícil avaliar propostas baseadas apenas em estudos

com populações e condições de atenção muito diferentes das brasileiras.

Ademais, Delvechio de Souza Pereira16, aponta ainda para um lobbie da indústria

farmacêutica exercido sobre pacientes, médicos e gestores de saúde visando a fomentar a

prescrição de medicamentos inovadores e, via de regra, de alto custo.

Diante da complexidade do processo de incorporação de medicamentos e da

necessidade de promoção de uma saúde universal e equânime – que não comporta a assistência

somente de determinado indivíduo com o medicamento pleiteado, devendo o pleito de um ser

passível de extensão aos demais em situações análogas – existe lógica em pensar na proibição

das liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais

onerosos ou não homologados pelo SUS.

Por óbvio, esse assunto ainda deve ser alvo de muita discussão, mas, ao nos

indagarmos sobre a necessidade dos procedimentos de incorporação dos medicamentos em

listagens oficiais (já que diante da integralidade do serviço de saúde pública, em uma primeira

análise poderíamos inferir que todo procedimento e fornecimento para reestabelecimento da

saúde deveriam ser fornecidos), concluiremos que o controle pelo qual devem passar os

fármacos que serão disponibilizados necessita ser rígido tanto para utilizar a verba pública com

parcimônia quanto para preservar a saúde pública. Dessa maneira vislumbramos o quanto as

liminares colocam nas mãos dos magistrados questões que transcendem sobremaneira seu

discernimento. A adoção desses medicamentos deve ser feita por equipes capacitadas e

interdisciplinares, deve envolver pesquisa e ter em mente o melhor para a coletividade.

6. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A AGENDA BRASIL

Diante de um cenário em que as questões de prestação de saúde são discutidas

precipuamente no judiciário, e em que observamos que os indivíduos passaram a utilizarem-se

cada vez mais do judiciário para terem seus pleitos atendidos, surge uma proposta da Agenda

16 PEREIRA, Delvechio de Souza. "O orçamento público e o processo de judicialização da saúde. 2010. Op. cit.,

p. 22. op cit.

18

Brasil17 do Senado que pretende proibir liminares judiciais que determinam o tratamento com

procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.

Tal proposta não está sendo bem recebida por muitos juristas, inclusive pela citada

Associação dos Magistrados Brasileiros. Isso não poderia ser diferente, uma vez que a proposta

é revolucionária e mitiga a atuação do Poder Judiciário, tendo em vista a necessidade de

urgência em grande parte das ações judiciais envolvendo o direito a saúde. Nasce a ideia de

desamparo da população e pode-se cogitar um desrespeito a um direito assegurado

constitucionalmente.

A medida liminar é uma ordem que assegura o cumprimento do direito alegado pela

parte antes da discussão de mérito da causa. Nas questões de saúde está claro que a demora na

decisão acarretará danos ao direito pretendido. Raro é uma petição por medicamentos em que

não se caracterizaria o fumus boni iuris e o periculum in mora. Por um lado, coibir tal instituto

processual é o mesmo que não atender o pleito.

Devemos analisar, porém, o cerne da questão. Se a proposta do atual presidente do

Senado, Renan Calheiros, fosse aprovada e alguém propusesse junto ao Poder Judiciário uma

demanda de saúde com pedido de liminar de um medicamento que estivesse nas listagens do

SUS, mas estivesse tendo atraso em seu recebimento, não haveria problema algum, a liminar

seria possível e provavelmente atendida. Nesse novo cenário hipotético somente as liminares

que demandassem por procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS

seriam proibidas. Seria leviano pensar que um juiz poderia vislumbrar as consequências de

decidir liminarmente sobre um assunto tão complexo, que exige, muitas vezes, pesquisa da

Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS.

Ao pensarmos no aspecto da coletividade, percebemos que liminares nesse sentido

são perigosas porque drogas sem eficácia comprovada poderiam ser dispensadas a todos. O

atendimento da prestação de um indivíduo seria injusto se não pudesse se estender a todos que

estão na mesma situação. Podemos pensar também que em muitos casos o sistema público de

saúde tem fármacos que exercem a mesma função a custos mais acessíveis. Há quem afirme

também que grande parte dessas ações são estratégias para inserção de medicamentos que não

tem comprovação científica, segurança ou eficácia comprovada.

17 Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/08/10/a-agenda-brasil-sugerida-por-renan-

calheiros Acesso em 20 de março de 2016

19

A proposta contida na Agenda Brasil foi pensada no legislativo diante de uma

situação caótica e que necessita de soluções imediatas. A judicialização da saúde está

comprometendo o orçamento público, e com isso até mesmo os magistrados, que diariamente

têm que lidar com escolhas de Sofia em questões de vida ou morte, passaram a se preocupar.

Especialistas preocupados com a judicialização da saúde apontam que esse processo é crescente

e que ele desorganiza o sistema de planejamento e finanças dos entes federados, pois as ações

e os custos decorrentes de suas decisões são imprevisíveis.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2014 foram gastos cerca de 839 milhões de

reais em ações judiciais para atender a saúde, sendo que desse total, 259 milhões foram

destinados para remédios que não estão em listas oficiais de dispensação. Desde 2010 houve

um aumento de 500% nos gastos com ações judiciais de saúde.

No Rio de Janeiro, 60% das demandas de saúde são para medicamentos, e dentre

os 20 mais pedidos, 13 não estão em listas disponibilizadas pelo governo e 10 tiveram

incorporação negada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS por não

apresentarem benefícios superiores aos medicamentos já disponibilizados pelo sistema

público18.

Os números revelam falhas nas políticas públicas de saúde e gritam por uma

solução. Sérgio Junkes19, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, toma a

proposta apresentada pelo Senado como inconstitucional, afirmando ainda que a proposta tenta

tratar os sintomas, mas não a causa do problema.

7. A SAÚDE COMO QUESTÃO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

A saúde dentro da sociedade deve ser pensada principalmente como um interesse

coletivo, sem que se perca de vista, por óbvio, que cada indivíduo possui um organismo único,

devendo, portanto, receber um tratamento individualizado. O mais desejável é que haja um

18 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. Sala Debate. Rio de Janeiro: Canal Futura, 28 de agosto de 2015. Programa

de TV.

19 Entrevistado. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE. Sala Debate. Rio de Janeiro: Canal Futura, 28 de agosto de

2015. Programa de TV. op cit.

20

maior número de pessoas saudáveis, recebendo eventuais tratamentos que venham a ser

necessários.

Para decidir sobre o fornecimento de medicamentos e tratamentos são necessárias

decisões sobre alocação de recursos, que apresentam um teor discricionário e político. Os atores

de tais decisões são por excelência o Executivo e o Legislativo, mas na prática é o Judiciário

que está sendo responsável pelas mesmas.

Isso não poderia ser diferente diante da demanda social, uma vez que não há

possibilidade de serem os magistrados silentes quando uma demanda, qualquer que seja seu

conteúdo, se lhes apresenta. Isso seria mesmo inconstitucional, tendo em vista o inciso XXXV

do importantíssimo artigo quinto constitucional.

Para Beauchamp e Childress (1994, p. 327) o termo justiça distributiva:

Refere-se à distribuição justa, equitativa e apropriada na sociedade

determinada para justificar normas que estruturam os termos da cooperação

social. Seu âmbito inclui as políticas que distribuem benefícios e

responsabilidades diversas tais como a propriedade, os recursos, os impostos,

os privilégios, e as oportunidades. As várias instituições públicas e privadas

são envolvidas, incluindo o governo e o sistema de saúde. O termo justiça

distributiva é usado às vezes amplamente para se referir à distribuição de todos

os direitos e responsabilidades na sociedade.

Não é difícil perceber o quanto o fornecimento de medicamentos pelo SUS para a

sociedade brasileira encaixa-se nesse tipo de justiça. Todavia, o Poder Judiciário que

hodiernamente se depara com incontáveis casos que demandam o fornecimento de fármacos,

sempre esteve acostumado a decidir sobre conflitos retributivos ou bipolares, nos quais uma

parte irá ganhar e a outra perder (em regra), devendo o julgador dizer o que é legal ou ilegal a

respeito de um delito, uma relação jurídica, um contrato ou uma indenização. Entretanto,

conflitos de natureza distributiva, que envolvem bens como os relacionados ao direito à saúde,

estão sendo levados ao Judiciário no mesmo formato daqueles sobre justiça retributiva.

O que se percebe é que quando é dado o mesmo tratamento a questões de justiça

distributiva àquelas de justiça retributiva (reparação individual de danos), corre-se o risco de

21

dar-se tratamento desigual, excluindo alguns indivíduos da distribuição dos bens fornecidos

pelo Estado20.

Evidentemente a população tem a experiência de necessitar recorrer ao Judiciário

litigando contra o Estado devido à deficiência do Executivo em atender prontamente as

necessidades de prestação de saúde com políticas públicas eficientes. Sabemos que o tempo

político legislativo é diferente do tempo das demandas sociais. Quando se emitem decisões

políticas há necessidade de uma análise de custos e benefícios da elaboração de políticas

públicas. Se valer do Judiciário é mais ágil a quem busca uma prestação de saúde,

principalmente quando há possibilidade de utilização de institutos como o da tutela antecipada

que mitiga a morosidade desse Poder.

O que muitas vezes não percebem os litigantes e porventura nem mesmo os

magistrados é o risco de resolver individualmente, apenas no caso concreto, uma situação que

deveria ser tratada coletivamente e pelos órgãos competentes. A alocação de recursos e

fornecimento de medicamentos quando decidida por juízes monocráticos e tribunais realizam

eficientemente a justiça para o caso de certo indivíduo (microjustiça) desprezando os aspectos

coletivos de distribuição de recursos para a sociedade como um todo (macrojustiça).

Concluímos que muitas vezes, quando decidido individualmente, o direito à saúde

pode ser um empecilho à justiça social, pois pessoas em idêntica situação de saúde (equidade

horizontal) terão tratamento desigual em seu atendimento de saúde se uma delas recorrer ao

judiciário e outra não, uma vez que esse Poder tem a inércia como atributo, ou seja, só agirá

mediante provocação. Dessa maneira, seria impossível promover uma isonomia de tratamento

através dessa via, pois o judiciário não poderá por si só intervir para providenciar tratamento

para aquele que não o buscou através dele, mas apenas na via administrativa. Nessa esteira

conclui-se que a iniciativa de uns pode significar a lesão de outros.

Para que a saúde seja pensada para todos devem ser considerados critérios técnicos,

permitindo assim uma eficiência dos gastos. Os princípios do SUS precisam ser observados,

por isso as escolhas devem maximizar o resultado nos termos de acesso aos serviços de saúde

e melhora nas condições de saúde da sociedade. Muitas vezes o Poder Judiciário vai na

20 BORGES, Danielle da Costa Leite. Uma análise das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos no

âmbito do SUS: o caso do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2005. Rio de Janeiro, 2007.. op. cit. passim.

22

contramão dessas premissas. Fabíola Supino Vieira21 sustenta que “a integralidade para os

tribunais está mais associada à noção de consumo, haja vista o deferimento de demandas sem

ressalvas sobre a existência de política pública para tratar as doenças”. A crítica que a citada

autora faz é que o direito a saúde não se resume a oferta de medicamentos, e conceder fármacos

a todo custo, atropelando mesmo os controles estatais que são necessários para a importação de

novas drogas. Essa prática, inclusive, pode ser mais um risco do que um benefício ao doente.

O sentido de integralidade para o SUS é mais abrangente. Significa empregar os meios

necessários para a efetivação do cuidado, como: atendimento médico, exames, internação,

tratamento, entre outros. Implica dispor tipos diferentes desses meios segundo o grau de

complexidade da atenção à saúde, ou seja, exames para a atenção básica, para a média e alta

complexidade; da mesma forma os medicamentos: uso ambulatorial e na atenção hospitalar.

No prisma do neoconstitucionalismo, aponta Savio de Aguiar Soares22 que com a

virada hermenêutica do Direito, inspirada em Hans Georg Gadamer, o prisma simplesmente

normativo não pode aprisionar o intérprete do direito. Faz-se imperioso operar em um processo

de autoconstrução visando à efetivação do discurso jurídico prático no que concernem as

consequências das regras jurídicas no plano físico. Articula o autor que “na democracia

juridicamente institucionalizada cabe uma interpretação hermenêutica dos intérpretes,

sobretudo do juiz, que não se imiscui com discricionariedade judicial”.

Houve também um processo de humanização do direito, a partir da instituição da

dignidade da pessoa como um dos pilares da República, na ordem constitucional brasileira. A

partir de então, interesses não patrimoniais da pessoa se sobrepuseram aos patrimoniais. Em

outras palavras, a pessoa humana tornou-se o centro do ordenamento e as situações patrimoniais

devem se subordinar as situações existenciais.

Entretanto, a escassez da disponibilidade de recursos obriga a Administração

Pública a adotar mecanismos de gestão democrática e responsável, com um suposto controle

social através de participação popular e cidadã e adotando critérios objetivos para priorizar as

destinações orçamentárias.

21 VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do

SUS. Rev Saude Publica, v. 42, n. 2, p. 365-9, 2008.

22 DE AGUIAR SOARES, Savio. Judicialização das políticas de saúde: apontamentos a luz da Audiência

Pública n. 4 do Supremo Tribunal Federal. XXIV CONPEDI – UFMG/FUMEC/DOM p 194 - 222

23

Há quem afirme que no Brasil a judicialização é uma extensão da democracia e um

alargamento da cidadania, pois o Poder Judiciário possibilita a garantia aos grupos minoritários

aos meios de acesso aos poderes políticos na consecução do mínimo existencial.

Toda discussão até aqui travada pode ser mais bem ilustrada a partir da análise de

um caso concreto23. Trata-se de uma ação ordinária ajuizada no Rio de Janeiro em 2010, em

que a parte autora aduz ser portadora de uma rara doença denominada hemoglobinúria

paroxística noturna, que consiste na presença de hemácias na urina. Segundo a autora, o

tratamento mais adequado a sua enfermidade dependeria do medicamento Soliris (Eculizumab),

avaliado como o mais caro do mundo, de acordo com a revista Forbes, de modo que o valor

estimado para todo o tratamento alcançaria o montante de 1.000.000,00 (um milhão) de reais24.

Através da apresentação de prova documental sobre sua doença, respaldando suas

alegações, bem como afirmando não possuir condição para arcar com o tratamento milionário,

a autora acionou a justiça estadual para que o Município ou o Estado do Rio de Janeiro

fornecessem, solidariamente, o medicamento, tendo em vista a garantia do acesso à saúde

prevista como direito fundamental na Constituição Federal.

Em síntese, o Município e o Estado do Rio de Janeiro sustentaram, no mérito, a tese

de que não poderiam ser condenados, apresentando como argumento de defesa as seguintes

alegações: i) que o medicamento Solirirs não seria registrado na ANVISA e tampouco integraria

as listas municiais e estaduais de medicamentos essenciais; ii) a responsabilidade da União

Federal pela aquisição e distribuição; iii) não existência dados que comprovavam ser o único

tratamento adequado a paciente; iv) a existência de outros tratamentos terapêuticos fornecidos

gratuitamente pelo SUS para o caso.

A autora, em contrapartida, a despeito da indicação do tratamento alternativo

indicado, alegou que o transplante de medula óssea ou o tratamento com uso de corticoides,

sugeridos pelo ente estatal, piorariam seu estado clínico com risco de vida.

Em decisão, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, deu provimento ao pleito,

afirmando que o quadro de saúde da requerente era grave e precário, sendo o fármaco necessário

23 Processo No: 0103912-59.2010.8.19.0001, atualmente pendente de recurso no STF, sobrestado aguardando

julgamento de incidente de demanda repetitiva.

24 TEIXEIRA, Pedro Freitas; SINAY, Rafael; BORBA, Rodrigo Rabelo Tavares. A análise econômica do direito

na axiologia constitucional. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, n. 42, 2014.passim

24

e eficaz para o controle da doença. Outrossim, asseverou que “as normas administrativas e

orçamentárias não se sobrepõem aos ditames máximos da sociedade inscritos na Carta Maior,

que visam garantir os direitos fundamentais à pessoa humana”.

Ademais, recorreu a precedente do Supremo Tribunal Federal, em que foi

estabelecido entendimento no sentido de que é possível "o Poder Judiciário vir a garantir o

direito à saúde, por meio do fornecimento de medicamento ou de tratamento imprescindível

para o aumento da sobrevida e a melhoria na qualidade de vida da paciente" (STA 175 AgR/CE,

Tribunal Pleno, Rel. Min Gilmar Mendes, DJe 30.4.2010). Dessa forma, o fato da ausência de

registro na ANVISA não afasta o direito do portador de doença grave ao recebimento do

remédio (SS 4316, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO (Presidente), julgado em 07/06/2011,

publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG 10/06/2011 PUBLIC

13/06/2011).

Procedendo então a análise do caso suprarreferido, insta tecer as seguintes

considerações. Partindo-se de uma perspectiva consequencialista e econômica do direito, a

decisão pode ser questionada quanto a sua eficácia, considerando o impacto do alto custo do

medicamento no orçamento da administração pública em benefício de uma só pessoa.

CONCLUSÃO

Há que se ponderar a escassez de recursos orçamentários no Brasil que afeta milhares

de pessoas hipossuficientes que sofrem todos os dias nas filas dos hospitais e postos de saúde

públicos, em razão de falta de estrutura e profissionais para atender a todas as demandas. Em

um viés utilitarista careceria de legitimidade as decisões proferidas no Poder Judiciário

ignorando e negligenciando a realidade de pessoas ainda à margem do real acesso à justiça.

Dessa forma, caberia ao intérprete buscar uma solução mais eficiente e mais justa do ponto de

vista da macrojustiça e não simplesmente proferir uma decisão encapsulada, desconsiderando

os desdobramentos e a repercussão social de seu ato.

Por outra via, o discurso puramente consequencialista que ampara o argumento na

negativa de concessão do fármaco de alto custo, subverte a supremacia dos princípios e valores

incrustrados na Constituição Federal, que estabelece a proeminência da dignidade da pessoa

25

humana frente aos gastos econômicos do Estado. Enquanto a ameaça do direito a vida é

iminente e real, a previsão das consequências econômicas opera num nível especulativo.

Devemos manter em mente que nenhum direito fundamental é absoluto e que o direito

não deve, sob um paradigma hermenêutico, ser um sistema fechado em si mesmo, onde as

decisões encontram seu fundamento de validade apenas a partir da própria juridicidade que a

sustenta.

Da análise pormenorizada do caso concreto aqui levantado nascem as possibilidades

de uma melhor decisão: o direito a vida é inexoravelmente o valor supremo de nosso

ordenamento jurídico, uma vez comprovado que o medicamento de alto custo é o meio mais

eficaz a garantia desse direito, como ponderar que a vida de um paciente deve estar aquém de

uma contingencia econômica do Estado que pode ser solucionada através de realocação e

manejo adequado dos recursos orçamentários? Por outro lado, até que ponto o alto dispêndio

de recursos públicos em prol de uma só pessoa não afeta a concretização do próprio direito a

saúde sob um prisma de um direito social a ser implementado através de políticas públicas

universalizadas. É pesado o papel do intérprete ao ter que se debruçar num campo tão nebuloso

em que não fica claro até onde o tratamento gratuito fornecido pelo SUS é realmente menos

eficaz do que o tratamento de alto custo pleiteado pela via judicial. Até que ponto o laudo de

um médico deve ser vinculante ao magistrado? Como dimensionar as consequências do ato

decisório?

É impossível mensurar um equilíbrio ideal na concretização da justiça quando um

desses direitos está em rota de colisão com o outro: o direito a saúde como microjustiça –

prestação judicial – e o direito como macrojustiça na implementação de políticas públicas. A

resposta a essa controvérsia só poderá ser dada através da interpretação acerca das

especificidades do caso concreto sob a luz dos princípios constitucionais. Não há uma resposta

prima facie para essa dicotomia.

26

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