a raiva de pasolini - uma tradução comentada

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    Neste texto, publicado originalmente pelo escritor Pier Paolo Pasolini na

    sua coluna semanal na revista Vie Nuove, em 20 de setembro de 1962, o escritorpublica na ntegra o argumento do filme que estava produzindo naqueles meses,o documentrio A raiva.

    Esquecido durante dcadas do grande pblico, devido escassa distribuiona poca, o filme La rabbia(1963), documentrio dividido em duas partes e diri-gido por Pasolini e Giovannino Guareschi, foi recentemente restaurado pela Cine-teca de Bolonha e uma nova verso, dirigida pelo cineasta Giuseppe Bertolucci,uma hiptese de reconstruo do filme original, incluindo partes cortadas em1963, foi apresentada na edio 2008 do Festival de Cinema de Veneza, com otitulo La Rabbia di Pasolini(Itlia, 2008).

    O projeto do filme La rabbiacomeou em 1962 quando um pequeno produtorcinematogrfico confiou a Pasolini o material de arquivo pertencente a um cine-jornal, Mondo Libero. Alm das imagens deste cinejornal, Pasolini tambm uti-lizou imagens dos Arquivos Itlia-URSS e reprodues de livros de arte e revistassemanais. Como trilha sonora, inseriu um texto em versos, narrado pelo escritorGiorgio Bassani, e um comentrio em prosa, narrado por Renato Guttuso.

    Com o filme La rabbia(1963), Pasolini idealizou um novo gnero cinemato-grfico, um poema flmico baseado em um comentrio em prosa e em versos ondea denncia se alterna com o lamento e a anlise poltica e social, tecendo uma

    complexa dialtica com imagens tiradas de cinejornais, filmagens de arquivo, re-produes de quadros e fotografias, afirma Roberto Chiesi na contracapa do livroLa rabbia (PASOLINI, P. P. Org. Roberto Chiesi. Bologna: Cineteca di Bologna,2008), edio lanada recentemente pela Cineteca de Bolonha com o texto origi-nal de Pasolini ao lado de algumas das imagens mais significativas utilizadas namontagem original.

    Na apresentao do livro La Rabbia, Chiesi tambm afirma que este texto dePasolini mostra o momento de uma passagem crucial, porque a Itlia est quei-mando rapidamente as etapas de transformao de pas agrcola para um pas in-dustrializado, com uma violenta e irreversvel transformao social e cultural da

    qual Pasolini ser a testemunha mais perspicaz e sofrida (Pasolini, op. cit., p. 7).Quando escreve La rabbia, Pasolini acredita ainda na utopia da revoluo doshumildes, acredita ainda na Unio Sovitica de Krusciov. As palavras de Pasolini

    A RAIVADEPASOLINIUMATRADUOCOMENTADA

    ALINEBUAES

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    O nosso mundo, em paz, fervilha com um dio ameaador, o anticomunismo.E, sobre o fundo cinzento e deprimente da Guerra Fria e da Alemanha dividida,aparecem as novas figuras dos protagonistas da nova histria.

    Krusciov, Kennedy, Nehru, Tito, Nasser, De Gaulle, Fidel Castro, Ben Bella.At que se chega a Genebra, ao encontro dos quatro Grandes.5E a paz, ainda

    abalada, ruma para uma ordenao definitiva. E a raiva do poeta contra esta nor-malizao, que consagrao da potncia e do conformismo, no pode se nocrescer ainda mais.

    O que que deixa o poeta insatisfeito?Uma infinidade de problemas que existem e ningum capaz de resolver. E,

    sem a sua resoluo, a paz, a verdadeira paz, a paz do poeta, irrealizvel.Por exemplo, o colonialismo. Esta violncia retrgrada de uma nao sobre

    outra, com seu rastro de mrtires e mortos.

    Ou a fome, para milhes e milhes de subproletrios.Ou o racismo. O racismo como cncer moral do homem moderno e que, assim

    como o cncer, tem infinitas formas. o dio que nasce do conformismo, do cul-to da instituio, da prepotncia da maioria. o dio por tudo o que diferente,por tudo o que no se encaixa na norma e que, portanto, abala a ordem burguesa.Infeliz de quem diferente! Este o grito, a frmula, o slogan do mundo moder-no. Portanto, dio contra os negros, os pardos, os homens de cor. dio contra osjudeus, dio contra os filhos rebeldes, dio contra os poetas.

    Linchamentos em Little Rock, linchamentos em Londres, linchamentos noNorte da frica, insultos fascistas aos judeus.

    assim que explode novamente a crise, a eterna crise latente.Os fatos da Hungria,6de Suez.7

    A Arglia que comea aos poucos a se encher de mortos.8

    5 O encontro dos quatro grandes (Estados Unidos, Gr-Bretanha, Frana e Unio Sovitica)ocorreu em Genebra em julho de 1955, quando foram discutidos os temas do desarmamento e dasrelaes Ocidente-Oriente. (Ibidem, p. 212)

    6 Em outubro de 1956 os estudantes hngaros organizaram uma manifestao de solidariedadecom a Polnia que se transformou em uma insurreio contra o governo e o exrcito sovitico esta-

    belecido na Hungria. Imre Nagy, comunista reformador, eleito chefe do governo hngaro aps amorte de Stlin (1953), anunciou a formao de um novo governo no final de outubro e conseguiua retirada das tropas soviticas do pas. Mas, quando Nagy anunciou, no incio de novembro, a sadada Hungria do Pacto de Varsvia, o secretrio do Partido Comunista hngaro, Janos Kadar, pediu ainterveno da Unio Sovitica, que, alguns dias depois, ocupou militarmente Budapeste, reprimin-do violentamente os apoiadores de Nagy, que foi processado e condenado morte em 1958. Kadarfoi ento nomeado primeiro-ministro. (Pasolini, op. cit., 2008, p. 213)

    7 Em julho de 1956, Nasser, presidente do Egito, decretou a nacionalizao do Canal de Suez.Em outubro, Israel iniciou uma ao militar contra o Egito, com o apoio sucessivo de Frana e Ingla-terra. O exrcito de Nasser foi derrotado, mas os Estados Unidos e a Unio Sovitica pressionaram ospases europeus para que se retirassem do conflito. Em novembro, a ONU conseguiu suspender asaes militares e instituiu uma fora internacional para garantir a paz na regio. (Idem, p. 213)

    8 A guerra da independncia da Arglia comeou em 1954, quando foi constitudo o ComitRevolucionrio Clandestino (posteriormente denominado FLN Frente de Libertao Nacional). Aguerra provocou vrias crises de governo na Frana at que, em dezembro de 1958, Charles De

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    O mundo parece, por algumas semanas, aquele de alguns anos atrs. Canhesque disparam, escombros, cadveres pelas ruas, filas de refugiados esfarrapados,as paisagens cobertas de neve.

    Mortos estripados sob o sol forte do deserto.A crise, mais uma vez, se resolve no mundo. Os novos mortos so lamentados

    e homenageados. E recomea, cada vez mais integral e profunda, a iluso da paz eda normalidade.

    Mas, junto velha Europa, que se reorganiza nos seus princpios solenes, nas-ce a Europa moderna:

    o Neocapitalismo;o MCE, os Estados unidos da Europa,9os industriais esclarecidos e frater-

    nos, os problemas das relaes humanas, do tempo livre, da alienao.

    A cultura ocupa novos espaos, um novo flego de energia criativa nas letras,no cinema, na pintura. Um enorme servio aos grandes detentores do capital.O poeta servil se anula, anulando os problemas e reduzindo tudo a forma.O mundo potente do capital tem, como audaciosa bandeira, um quadro abstrato.Assim, enquanto por um lado a cultura de alto nvel fica cada vez mais refi-

    nada e para poucos, estes poucos se tornam, ficticiamente, muitos: se tornam amassa. a vitria do digest e das revistas ilustradas, mas principalmente dateleviso. O mundo distorcido por estes meios de difuso, de cultura, de propa-ganda, se torna cada vez mais irreal: a produo em srie, incluindo das ideias, otorna monstruoso.

    O mundo das revistas, do lanamento mundial de produtos humanos, ummundo que mata.

    Pobre e doce, Marilyn, irmzinha obediente, carrega a tua beleza como umafatalidade que alegra e mata.10

    Talvez voc tenha tomado o caminho certo, nos ensinou. O teu branco, o teuouro, o teu sorriso sensual por gentileza, passivo por timidez, por respeito aosgrandes que te queriam assim, voc, que permaneceu menina, so coisas que noslevam a aplacar a raiva no choro, a virar de costas para esta realidade condenada, fatalidade do mal.

    Porque, enquanto o homem explorar o homem, enquanto a humanidade fordividida em patres e servos, no existir nem normalidade nem paz. A razo detodo o mal do nosso tempo est aqui.

    E ainda hoje, nos anos 60, as coisas no mudaram, a situao dos homens e dasua sociedade a mesma que produziu as tragdias de ontem.

    Gaulle foi eleito presidente e encarregou o comandante Jacques Massu como chefe das foras derepresso. E 1958, o FLN formou um governo provisrio da repblica argelina. A Arglia conquis-tou a independncia apenas em julho de 1962. Em oito anos, cerca de um milho de pessoas mor-reram. (Ibidem, p. 214)

    9 O acordo para o Mercado Comum Europeu (MCE) entrou em vigor em janeiro de 1958 e foio precursor da atual Unio Europeia.

    10 Marilyn Monroe morreu em Hollywood no dia 4 de agosto de 1962.

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    Veem estes? Homens severos, de terno, elegantes, que sobem e descem dosavies, que correm em automveis potentes, que se sentam em escrivaninhasgrandiosas como tronos, que se renem em anfiteatros solenes, em sedes espln-

    didas e severas. Estes homens, com cara de ces ou de santos, de hienas ou deguias, estes so os patres.

    E veem estes? Homens humildes, vestidos em trapos ou em roupas feitas emsrie, mseras, que vo e vm por ruas abarrotadas e imundas, que passam horas emais horas em um trabalho sem esperana, que se renem humildemente em es-tdios ou tabernas, em casebres miserveis ou em trgicos arranha-cus. Esteshomens, com caras iguais s dos mortos, sem feies e sem luz se no aquela davida, estes so os servos.

    desta diviso que nasce a tragdia e a morte.

    A bomba atmica com a sua tampa fnebre que se estende por cus apocalp-ticos o fruto desta diviso.Parece no existir soluo para este impasse, no qual o mundo da paz e do

    bem-estar se agita. Talvez apenas uma reviravolta imprevista, inimaginvel... umasoluo que nenhum profeta pode intuir... uma daquelas surpresas que a vida temquando quer continuar... talvez...

    Talvez o sorriso dos astronautas.11Aquele, talvez, seja o sorriso da esperanae da paz verdadeira. Com os caminhos da terra interrompidos, fechados ou ensan-guentados, eis que se abre, timidamente, o caminho do cosmo.

    (Vie Nuove, 20 de setembro de 1962)

    Poesia em forma de polmica Pier Paolo Pasolini

    Poesia publicada originalmente pelo escritor italiano Pier Paolo Pasolini emsua coluna na revista semanal Vie Nuove, em 14 de janeiro de 1965.

    Este poema contm referncias explcitas a experincias vividas por Pasolinipouco antes de publicar o texto. Em dezembro de 1964, Pasolini passou algunsdias em Paris participando de eventos para promover o lanamento na Frana do

    seu filme O Evangelho segundo So Mateus. O mais polmico destes eventos foi umdebate ocorrido na catedral de Notre Dame, que pela primeira vez na sua histriarecebia um evento do gnero, promovido por uma organizao catlica e do qualparticiparam, alm de cerca de cinco mil estudantes universitrios, tambm altosexpoentes da Igreja local. O evento se encerrou com uma missa cantada. Algunsdias mais tarde, Pasolini se encontrou com o filsofo e escritor francs Jean-PaulSartre em um caf de Paris, o caf de Pont-Royal. De Paris, Pasolini seguiu emviagem por outras capitais europeias para apresentar seu filme, incluindo Buda-peste, onde o filme teve uma tima recepo.

    11 O primeiro homem a atingir o espao foi o russo Iuri Gagarin, lanado em 12 de abril de1961, a bordo da espaonave Vostok I.

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    Poesia em forma de polmica12

    Voc, Sartre, no considera ruim

    que Notre Dame tenha sido iluminada pelos seus padrespara este ambguo interlocutor?No!O Peperizzo de Pressis Passe vai embora.No Caf de Port Royal, cai a escurido das duas.No!

    necessrio que os escndalos aconteam, mas eu no me escandalizoE coitado do homem para quem os escndalos acontecem. Mas eu no me escandalizo

    por nada! E ento? Cristo some no Caf de Port Royal (Existealgum neste mundo que, no se escandalizando,apaga alguns pargrafos do Evangelho).

    Mas l (no Leste) eles se escandalizam.

    E, alm do mais (acrescenta o doce homem que no se escandalizasentado na poltrona como uma esplndida cigarra mensageira do amor)no existe a crtica ao marxismo.

    Tudo, portanto, se explica.

    Mas enquanto isso uma outra cigarrasozinha em dois quartinhos em Budapeste, sobre o Danbio,onde se chegapor uma estrada de metal preto como um corredorentre baixos nevoeiros,atravs de uma entrada sem porteiro,com seis grandes monumentos que contm a morte da pequena-burguesiaque l viveu e agora deixa a dor de uma morte no lastimada seis monumentos, deteriorantes sobre seis degraus, cheiosda forma da dor agora tomada pela grandeza do povo,lixos glidos pela presso de nevoeiros externos implacveis seis monumentos destapados, com parte do seu contedoardentes cascas de um fruto mediterrneo pateticamente expatriado...

    Basta.No quinto andar vem a cigarra para abrir a porta,

    12 Publicado com o ttulo Poesia in forma di polemica no nmero 2, do ano de 1964, da revistaVie Nuove. In:Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 287.

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    no se escandaliza, mas no se apaixona,as mquinas para pensar no funcionam.No h nsia por aquilo que contesto.

    A cigarra tem ainda muito por cantar, no temtempo para responder. Le vieux! (O abraarei indo embora, tereicoragem de lhe dizer Por toda a dcada de Cinquenta voc foi nossaEsfinge, deixa eu abraar voc?)

    Eraesta cigarra prisioneira de um Quinto andar e da Filosofia.A sua luz era carismtica.Podem existir duas partes de um pensamento, mas no duas partes de luz.

    Rejuvenescido pela idade das cigarras, pareouma formiga aprendiz, e a minha alma realmente,assim como a de um garotoprecisa voltar para a ptria com algum presente.

    Apalpo no bolso do palet italianoas duas batidas parisienses, confiante da vitria.No posso abraar a pobre cigarra hngaraque os seus compatriotas desprezam (amusez-vous, avec le vieux):

    homens escuros, funcionrios, jovens literatosque de Budapeste so a nova alma, como um novo Natal,no sabem nem mesmo dizer onde moram,eu sou talvez um dos poucos que tm notcia,como um jovem jornalista,

    e quando s sete da noitefaz noite alta (aquela silenciosa que antecede as alvoradas)sobre a capital das esfinges e da dor exposta como uma bandeira,

    vou embora sem presentescom os cumprimentos para Cesare Cases e Elsa Morante.

    Vou embora, cumprido o meu dever de jornalista desconhecidocom sua face ameaadora e as suas cruis pretenses de jovem,vou emboracomo quando se deixa para sempre uma cidade que no se viu.

    Adeus, Lukcs, pombinha entre as esfinges,quanto ainda a pomba deve cantar com seu crebro de homem,entre as esfinges depositrias do silncio!

    (Vie Nuove, 14 de janeiro de 1965)

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    Aqui?! Em Nova York?

    uma cidade mgica, fascinante, belssima. Uma daquelas cidades fortuna-das que receberam a ddiva. Como alguns poetas, que toda vez que escrevem umverso, fazem uma poesia linda. Lamento no ter vindo aqui muito antes, vinte outrinta anos atrs, para ficar. Nunca tinha me acontecido conhecendo um pas.Com exceo da frica, talvez. Mas na frica gostaria de ir e ficar para no mematar. A frica como uma droga que voc toma para no se matar, uma fuga.Nova York no uma fuga, um empenho, uma guerra. Nos provoca uma vonta-de de fazer, enfrentar, mudar. Gostamos dela exatamente como gostamos das coi-sas aos vinte anos. Compreendi isso logo que cheguei. Cheguei de trem vindo deMontreal. Desci em uma enorme estao imersa no escuro, no metr. No haviacarregadores e minha mala pesava. Mesmo assim, eu andava como se fosse leve.

    Andava na direo de uma luz ofuscante, ao final de um tnel, e quando sa, acidade me agrediu como uma apario. Jerusalm que aparece aos olhos do Cru-cificado. No me sentia estrangeiro, aprendi imediatamente a andar pelas ruascomo se tivesse nascido aqui, mesmo assim no a reconhecia. Porque ningumjamais representou Nova York. A literatura no a representou, com exceo dashistrias em quadrinhos de Pafncio e Marocas,14sobre Nova York existem ape-nas as poesias de Allen Ginsberg. A pintura no a representou. No existem qua-dros de Nova York. O cinema no a representou, porque... No sei. Talvez porqueno seja filmvel. De longe como os Montes Dolomiti, muito fotognica, muito

    maravilhosa, e incmoda. De perto, de dentro, no se enxerga. A lente no conse-gue captar o incio e o fim de um arranha-cu. Mas no apenas a beleza fsica queimporta. a sua juventude. uma cidade de jovens, a cidade menos crepuscularque j conheci. E como so elegantes os jovens aqui.

    Elegantes?!

    Possuem um gosto fantstico. Olha como se vestem. No modo mais sincero,mais anticonformista possvel. Eles no se importam em nada com as regras pe-queno burguesas ou populares. Aqueles bluses chamativos, aquelas jaquetas ba-ratas, aquelas cores incrveis. Eles no se vestem, eles se fantasiam. Como quando

    somos criana e vestimos o roupo dos avs. E assim, fantasiados, eles se vo,orgulhosos, conscientes da sua elegncia que no uma elegncia mtica ou ing-nua. D vontade de imit-los e talvez os imitemos porque, afinal, onde poderemosnos vestir assim? Em Roma? Em Milo? Em Paris? L sempre tenho medo que aspessoas se virem e me olhem. Aqui no tenho nenhum complexo, posso andarvestido como quero, sem que ningum me incomode com a sua curiosidade. On-tem, na 45th Street, vi um homem que estava morrendo. Tinha nas mos um pe-queno pacote, o qual olhou fixamente e depois atirou com tanta fora que o pacote

    14 Considerada a primeira histria em quadrinhos de repercusso mundial, de George McManus,narra a histria de um casal de imigrantes irlandeses que fica rico em Nova York.

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    se quebrou. Quem sabe o que tinha ali dentro. Depois se apoiou na parede, colo-cou a cabea entre os braos, escorregou pouco a pouco pelo cho e ficou alichorando. Ou melhor, morrendo. Sem que ningum parasse para olh-lo, muito

    menos para lhe oferecer um copo de gua, uma ajuda. Na noite anterior, perto doMetropolitan, vi um idoso deitado na calada, coberto por um cobertor. Ao seulado estava um garoto, bonito e elegante como voc diz, com sapatos de couroimpecvel, meias finas, calas bem cortadas, um pulver maravilhoso. O idosoapertava a mo do garoto sobre seu peito e o seu rosto estava branco, j retocadopela morte. As pessoas passavam e no paravam, algumas riam. Mas isto ruim?Ou no seria pior o nosso parar e observar com curiosidade? No se sabe se o si-lncio deles falta de piedade, talvez seja uma forma superior de piedade. A pie-dade de no se aproximar, de no olhar com curiosidade....

    A Amrica realmente uma mulher fatal, seduz a todos. At agora no conhe-ci um comunista que tenha desembarcado aqui e no tenha perdido a cabea.Chegam cheios de hostilidades, preconceitos, at desprezo, e imediatamente sotocados pela Revelao, pela Ddiva. Tudo est bom, gostam de tudo, voltam apai-xonados, com os olhos cheios de lgrimas. Sim ou no, Pasolini? Ele sacode osombros, indiferente.

    Eu sou um marxista independente, nunca me inscrevi no partido e sou apai-xonado pelos Estados Unidos desde pequeno. Porqu, no sei muito bem. A lite-ratura americana, por exemplo, nunca me agradou. No gosto de Hemingway,

    nem de Steinbeck, muito pouco de Faulkner. De Melville pulo para Allen Gins-berg. O establishment americano nunca pde, obviamente, se conciliar com aminha crena marxista. E ento? O cinema, talvez. Durante toda a minha juven-tude fui fascinado pelos filmes americanos, ou seja, por uma Amrica violenta ecruel. Mas no foi essa a Amrica que encontrei. Esta uma Amrica jovem, de-sesperada, idealista. Existe nela um grande pragmatismo e ao mesmo tempo umidealismo enorme. Nunca so cnicos ou cticos, como somos ns. Nunca soindiferentes ou realistas: vivem sempre dentro de um sonho e precisam idealizartudo. Mesmo os ricos ou aqueles que possuem o poder em suas mos. O verda-

    deiro momento revolucionrio de todo o mundo no est na China e nem naRssia, est na Amrica. Me explico. Se voc vai a Moscou, a Praga ou a Budapes-te percebe que a revoluo fracassou. O socialismo colocou no poder uma classede dirigentes e o operrio no dono do prprio destino. Se voc vai Frana ou Itlia, percebe que o comunista europeu um homem vazio. Mas se voc vemat a Amrica, descobre a esquerda mais linda que um marxista possa descobrirnos dias de hoje. Conheci os jovens do SNCC,15aqueles estudantes que organi-zam os negros no sul. Me lembram os primeiros cristos, existe neles a mesmaplenitude com a qual Cristo dizia ao jovem rico: Para vir comigo, deves abandonar

    15 Student Non-violent Coordinating Committee.

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    tudo, quem ama o pai e a me, me odeia. No so comunistas nem anticomunistas,so msticos da democracia. A revoluo deles consiste em levar a democracia smais extremas e arriscadas consequncias. Aps conhec-los, tive uma ideia.

    Ambientar na Amrica o meu filme sobre So Paulo. Quero transferir toda a aode Roma para Nova York, situando-a nos tempos atuais mas sem mudar nada,sendo muito fiel s suas cartas. Nova York possui muitas analogias com a antigaRoma, da qual fala So Paulo. A corrupo, as clientelas, o problema dos negros,dos drogados. E a tudo isto So Paulo dava uma resposta santa, ou seja, escanda-losa, exatamente como os jovens do SNCC...

    s 19h Pasolini tem um encontro com Herbert Blau, diretor teatral do LincolnCenter, que o convidou para jantar. No se encontram txis a esta hora e assimvamos a p. Cai uma chuva fina e irritante. Mas ele caminha sem senti-la, talvezadmirando-a, e repete que enxerga as casas de Pafncio e Marocas, no fundo, como se voltssemos a ser criana. Aquela tristeza inchada com muitas afliesquase desapareceu dos seus olhos.

    O aspecto mais importante desta cidade a misria.

    Misria?! Em Nova York?!

    Sim, o mesmo tipo de misria, ou pobreza, que se encontra nas ex-colniasque se tornaram independentes recentemente. O mesmo tipo de pobreza que seencontra em Calcut, Bombaim, Casablanca. No uma misria econmica, aque-

    la misria de quem no tem o que comer. Falo sobre uma misria psicolgica.Aquela imundcie difusa, aquela precariedade. As ruas mal asfaltadas que se en-chem de poas quando chove. As paredes pretas ou marrons, construdas compressa para serem destrudas com pressa. A Park Avenue, os esplndidos arranha--cus de vidro, so como as pirmides. Estar aqui hoje como estar no Egito napoca que os escravos construam as pirmides. Nunca se disse que os escravos noEgito viviam mal. Talvez at fossem alegres, no desespero, e noite saam para sedivertir e beber... Mas no me refiro a isto. O aspecto mais importante continuasendo esta misria de ex-colnia, de subproletariado.

    Subproletariado? Em Nova York?Certamente. Os estigmas da mesma origem subproletria esto em todos.

    primeira vista, no se percebe nem mesmo a diferena de classe. Como em Mos-cou, quando voc caminha pensando que todos so iguais. Naturalmente a dife-rena existe, mas eles no se do conta e ns tambm no. E sabe por qu? Porqueno existe neles a conscincia de classe. A confuso para algum que vem da Itlia muito pior do que na frica ou na ndia. Quero dizer que quando voc entra emCalcut e Cartum, voc entra no corao de uma raa, de um contexto social: aclasse operria, burguesa, pequeno burguesa, cada uma com a sua conscincia de

    existir. E quando voc entra em Nova York, encontra o qu? Um fogo de artifciode raas assemelhadas e que se tornaram parecidas devido ao mesmo sistema, amesma base: o subproletariado. Olhe para o operrio norte-americano, para esta

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    mistura monstruosa e fascinante de subproletrio e pequena burguesia. No exis-te o operrio enquanto tal porque no existe nele a conscincia da classe operria.Um buraco sem fundo. Mas para qualquer lugar dos Estados Unidos que voc

    olhar, para uma alma, uma rua ou um ambiente, estar diante de um buraco negro.Como se voc espiasse de cima de um arranha-cu. Isto bom ou ruim? No sei,estou confuso. Na Europa, me pareceria negativo, aqui no. Admiro o momentorevolucionrio americano, mas certamente o meu corao est com o pobre negroou o pobre calabrs, e, ao mesmo tempo, respeito o establishment, o sistema ame-ricano... Devo voltar aqui e aprofundar.

    O restaurante onde encontramos Herbet Blau famoso pelas lagostas grelha-das. Jantar? Lagostas? Pasolini acorda como um sonmbulo do labirinto das suasconfuses e pede um copo de leite e uma salada de frutas sem laranja. Sofre devi-

    do a uma lcera, deve passar por uma operao em breve, se alimenta como umbeb. Ao falar de teatro, projetos, Blau olha para ele um pouco assombrado: esterevolucionrio que se alimenta como um beb. Despedir-se-o em breve, recipro-camente entediados. Aps o jantar, Blau o levou ao Lincoln Center para assistir osensaios de uma comdia de poca. Mas Pasolini no se importa com as comdiasde poca, com o mecanismo eletrnico que troca o cenrio em poucos segundos,gira o palco, ergue a plateia. No seu mundo no tem lugar para este tipo de mara-vilhas. Assim como no tem lugar para os arranha-cus de vidro, Park Avenue, olanamento de um foguete, o transplante cirrgico de um corao vivo. A Amri-

    ca bela, limpa e confortvel que agrada a quem espera no Paraso. Como Rimbaud(ou alguns mrtires), ele quer sempre voltar ao inferno, aos bairros onde corre orisco de levar um tiro no peito, encontros trgicos e talvez perversos, a punio,o Greenwich Village como descreveu Elsa Morante, o Harlem como viu na noitepassada, que foi uma noite maravilhosa. Apresentaram-lhe um sindicalista negro,de extrema esquerda, daqueles que no aceitam o sistema da no violncia defen-dido por Martin Luther King, e esto prontos para matar. O sindicalista o levouat a casa de um operrio que caiu do 46 ao 42 andar, onde permaneceu mila-grosamente pendurado por um fio. O operrio era um negro idoso, deitado em

    uma cama e que ria feliz, feliz, e isto foi to comovente. Rapidamente se despedede mim, impaciente, um rpido aperto de mo, e se vai, sozinho no escuro.

    Hoje ele vai embora e tem muitas coisas para fazer. Em primeiro lugar, po-sar para um tipo que insistiu muito e parece que se chama Avalon. Dick Ave-don?. Sim, alguma coisa assim. No sabe quem Dick Avedon?. No,quem ?. Talvez o maior fotgrafo dos Estados Unidos, sem dvida um dosmaiores do mundo. Ah sim? Avedon insistiu para que Pasolini fosse at seuestdio perto das 11h, mas atrasou-se porque um mendigo bbado dormia nasescadas, e um mendigo bbado dormindo vale cem fotografias de Avedon.

    Escutava ele com pacincia materna e doura. Antes de deix-lo, lhe deu al-guns dlares e certamente agora olha com menos interesse para a enorme fotogra-fia que cobre uma parede inteira do estdio Avedon: Charlie Chaplin retratado

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    como um demnio, os dedos indicadores e mindinhos retos sobre a testa em for-ma de chifre ou garfo. Fiz esta foto no ltimo dia que passou nos Estados Uni-dos, explica Avedon, poucas horas antes da partida do navio para a Europa. Veio

    aqui e... Mas Pasolini se importa mais com a histria de outras fotografias, comoaquela do garoto negro que morreu devido aos ferimentos aps ter sido agredidopela Ku Klux Klan. Ou deste mulato que foi eleito duas vezes para o Parlamento,mas nunca conseguiu entrar porque contra a guerra no Vietn. Ou este AllenGinsberg que posa nu, coberto apenas pela sua barba e seus pelos, e o induz a maisuma declarao de amor: Os intelectuais americanos, sabe, talvez sejam cheiosde contradies. Encontra-se um aluno de Morris que escreveu sua tese sobre apoesia de Petrarca e discute sobre semitica e depois se encontra duas estudantesque ignoram at mesmo Apollinaire ou Rimbaud. Elas perguntam quais so os

    seus poetas preferidos. Voc responde Rimbaud, Appolinaire, Machado, Kavafis.Olham transtornadas. Que no conheam Kavafis, tudo bem. Machado, j grave,Apollinaire um absurdo e Rimbaud chega a ser escandaloso. Mas, no entanto,possuem tanto respeito pela cultura! Um respeito cheio de receio, humildade, umgrande dom. Agora veja os italianos: sempre donos do saber, mesmo quando igno-rantes. Nos italianos nunca ocorre um momento de timidez em relao ao saber.Um tipo como Umberto Eco, por exemplo, conhece todo o saber e o vomita nacara dos outros com um ar indiferente. como se voc escutasse um rob. Umamericano erudito como Umberto Eco um homem humilde, nunca se considera

    dono da sua sabedoria, quase assustado pela sua cultura. Gosto disso, acho istojusto.... No entanto, suponho que estas fotos feitas por Avedon so destinadas sfteis leitoras da Vogue. Que cena esta do Village.

    Logo depois, Pasolini segue para o Village para comprar as calas e as jaquetasque acha to elegantes e que em Roma no usar jamais, obcecado como pelocomplexo de ser reconhecido, criticado, observado. atrado especialmente poruma camisa que a cpia exata daquelas utilizadas nas prises. Sobre o bolso es-querdo est escrito: Presdio de Estado, detento Nmero 3678. Est experimen-tando, sentado, quando avista na esquina da 10th Avenue uma manifestao a

    favor da guerra no Vietn. Homens e mulheres passam melanclicos com grandescartazes onde est rabiscado: Bombardeiem Hani. Alguns possuem um distin-tivo que diz: Matem todos aqueles vermelhos. At que chega um automvel,descem dois jovens e uma garota loira usando pantalonas. A garota carrega umaguitarra. Apoia-se no cap do carro, enquanto os dois jovens se colocam ao ladodela, e comea a tocar alguma coisa triste. Depois, juntos, os trs atacam com umamsica de protesto. Continuaro tocando enquanto os outros continuaro a des-filar com os seus cartazes, sem que ocorra uma briga, um insulto, um gesto dehostilidade. Pasolini permanece parado olhando-os, com a sua camisa de presidi-

    rio, seus olhos cheios dgua, afetuosos, quando sussurra:Esta foi a coisa mais linda que j vi na minha vida. algo que no vou esque-

    cer enquanto estiver vivo. Devo voltar, devo estar aqui mesmo se no tenho mais

  • 7/25/2019 A Raiva de Pasolini - Uma Traduo Comentada

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    ALINEBUAES A raiva de Pasolini uma traduo comentada 135

    dezoito anos. Como me desagrada ter que partir, me sinto roubado. Me sintocomo uma criana diante de um bolo, um bolo de vrias camadas, e a criana nosabe qual camada vai gostar mais, sabe apenas que quer e deve comer todas.

    Uma por uma. E, no mesmo instante em que vai morder o bolo, o tiram dela. a fotografia de um marxista em Nova York.