a redescoberta da vítima para o direito penal

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DOUTRINA A Redescoberta da Vítima para o Direito Penal CARLO VELHO MASl Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS; Advogado criminal em Porto Alegre/RS. RESUMO: O presente estudo aborda sinteticamente o movimento político- criminal de revalorização da vítima para as ciências criminais, oriundo da orga- nização de grupos inconformados com a histórica neutralização de seu papel no processo. Exploram-se abordagens criminológicas e dogmáticas que conferem ao ofendido novas funções e novos direitos, ampliando sua participação ativa na persecução penal e integrando seus interesses subjetivos na aplicação de sanções de índole criminal. Em paralelo a esta progressiva atenção aos sujeitos vitimiza- dos, coloca-se a relativização e o abandono dos princípios clássicos do Direito Penal, evidenciando que deve se evitar que a compatibilização dos interesses privados com os fins primordiais da pena acabem convertendo o processo penal num instrumento oficial de vingança à disposição das vítimas. PALAVRAS-CHAVE: Vítima. Vitimologia. Vitimodogmática. Gestores da Moral Coletiva. Política Criminal. A história do Direito Penal revela que a vítimajá protagonizou pessoal- .mente a punição do delinquente na chamada "fase da vingança privada", na qual . a retribuição do delito partia do próprio ofendido ou de pessoas a ele vinculadas. No sistema privatista da Antiguidade, a vítima possuía uma postura ativa frente à ofensa sofrida, visando, sobretudo, à retomada da harmonia comunitária'. Uma das conquistas do Iluminismo foi justamente a "neutralização" da figura da vítima, com o Estado assumindo o monopólio do jus puniendi e adq uirindo a prerrogativa legítima de instrumentalizar a pacificação social, por intermédio de seu aparato técnico-burocrático, de modo a censurar aqueles que transgredissem os precedidos normativos. O ofendido passou a partici- par como elemento informador de eventuais lesões a bens jurídicos sofridos OLIVEIRA? Crlscina Rego de. Reforma do Código de Processo Penal c tutela rcssarcitória da vítima: apontamentos ao projeto de Lei n? 8.045/2010. Revista Siutese de Direito Pwal e Processo Penal, Porto Alegre, Síntese, v. 14, 11. 83, dez.! jan. 2014, p. 78-97, p. 79.

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O presente estudo aborda sinteticamente o movimento político-criminal de revalorização da vítima para as ciências criminais, oriundo da organização de grupos inconformados com a histórica neutralização de seu papel no processo. Exploram-se abordagens criminológicas e dogmáticas que conferem ao ofendido novas funções e novos direitos, ampliando sua participação ativa na persecução penal e integrando seus interesses subjetivos na aplicação de sanções de índole criminal. Em paralelo a esta progressiva atenção aos sujeitos vitimizados, coloca-se a relativização e o abandono dos princípios clássicos do Direito Penal, evidenciando que deve-se evitar que a compatibilização dos interesses privados com os fins primordiais da pena acabem convertendo o processo penal num instrumento oficial de vingança à disposição das vítimas.

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DOUTRINA

A Redescoberta da Vítima para o DireitoPenal

CARLO VELHO MASl

Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista emDireito Penal e Política Criminal pela UFRGS; Advogadocriminal em Porto Alegre/RS.

RESUMO: O presente estudo aborda sinteticamente o movimento político-criminal de revalorização da vítima para as ciências criminais, oriundo da orga-nização de grupos inconformados com a histórica neutralização de seu papel noprocesso. Exploram-se abordagens criminológicas e dogmáticas que conferemao ofendido novas funções e novos direitos, ampliando sua participação ativa napersecução penal e integrando seus interesses subjetivos na aplicação de sançõesde índole criminal. Em paralelo a esta progressiva atenção aos sujeitos vitimiza-dos, coloca-se a relativização e o abandono dos princípios clássicos do DireitoPenal, evidenciando que deve se evitar que a compatibilização dos interessesprivados com os fins primordiais da pena acabem convertendo o processo penalnum instrumento oficial de vingança à disposição das vítimas.

PALAVRAS-CHAVE: Vítima. Vitimologia. Vitimodogmática. Gestores da MoralColetiva. Política Criminal.

A história do Direito Penal revela que a vítimajá protagonizou pessoal-.mente a punição do delinquente na chamada "fase da vingança privada", na qual. a retribuição do delito partia do próprio ofendido ou de pessoas a ele vinculadas.No sistema privatista da Antiguidade, a vítima possuía uma postura ativa frenteà ofensa sofrida, visando, sobretudo, à retomada da harmonia comunitária'.

Uma das conquistas do Iluminismo foi justamente a "neutralização"da figura da vítima, com o Estado assumindo o monopólio do jus puniendi eadq uirindo a prerrogativa legítima de instrumentalizar a pacificação social, porintermédio de seu aparato técnico-burocrático, de modo a censurar aquelesque transgredissem os precedidos normativos. O ofendido passou a partici-par como elemento informador de eventuais lesões a bens jurídicos sofridos

OLIVEIRA? Crlscina Rego de. Reforma do Código de Processo Penal c tutela rcssarcitória da vítima: apontamentosao projeto de Lei n? 8.045/2010. Revista Siutese de Direito Pwal e Processo Penal, Porto Alegre, Síntese, v. 14, 11. 83, dez.!jan. 2014, p. 78-97, p. 79.

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(objeto material do. delito)? e a ação estatal passou a ter um reflexo. meramentesimbólico. no. apaziguamento das angústias.deste sujeito.

Mas há quem questione o.caráter evolutivo desta mudança de. paradig-ma, uma vez que a delegação da real titularidade do direito de pumr a~abo.uafastando. a construção de soluções de acordo com os interesses pessoais dasvítimas. O ofendido acabou se tornando um mero. "objeto." (coisificação), o agentepassivo, ou simples meio. de pro.va para se alcançar o.autor do delito", Co..m isso,esvaiu-se qualquer pretensão. subjetiva. O interesse estatal no. cum~nmentoda norma, com a condenação. do. delinquente, acabou sobrepondo o. I~teresseindividual por trás da punição. Assim, desconsideraram-se as necessidades eos anseies de justiça das vítimas".

Este "esquecimento." perdurou por aproximadamente três séculos, atéque a humanidade se deparou com o.Holocausto, a partir do. q~al. o.perou.-seuma reavaliação da importância dos direitos humanos. O genocídio ocorridona 2a Guerra Mundial deu origem a uma nova abordagem crirninológica,denominada "vitirnologia", que passou a estudar o. papel desempenhadopelas vítimas na ocorrência do. fato. típico, bem co~.o a.questão. da assistênciajudicial, moral, psicológica e terapêutica para os vitirnizados,

A restauração da vigência da norma jurídica violada pela aplicação. deuma sanção penal deixou de ser suficiente para satisfazer o.desejo de repar~~ão..Surgiu a necessidade da construção. de mecanismos de proteção materiais eprocessuais.

. Em po.uco tempo. a sociedade passou a congregar múltiplas formas ,devitimização, tais corno catástrofes, crises e erupções de violência, m~~o e'pân~cocoletivo em face do. crime. Os movimentos sociais trouxeram reivindicaçõesimportantes neste sentido. A criminologia rompeu com? modelo positivistade orientação unidimensional, voltada ao crime e ao. delinquente, e passo.u aadotar uma perspectiva interacionista (labelling approach), cuja principal caracte-rística era demonstrar que as instâncias de controle social podiam exercer umpapel fulcral na seleção, estigmatização e vitimização". A lei penal converteu-sena Magna Carta da vítima, superando. a clássica noção de ser, antes de tudo., aMagna Carta do. delinquente".

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HASSEMER, Winfried. Fundamentos de direito penal. Barcelona: Bosch, 1982. p. 92-93.

CERVINI, Raúl, Os processos de descrimlnaliração, 2. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 249-250.

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O crescimento. dos movimentos de vítimas (gestores da moral coletiva),dentre eles as associações de ecologistas, feministas, consumidores, vizinhos,pacifistas, defensores da não. discriminação contra as minorias, organizaçõesnão governarnentais (ONGs) que defendem direitos humanos, etc., nadamais é do. que uma resposta ao. crescimento. de uma sociedade altamenteindustrializada e automatizada (sociedade do risco).

As vítimas haviam sido. excluídas do controle formal executado pelasagências estatais. Porém, determinados grupos não. aceitaram essa situação. ese organizaram para enfrentar a situação. e reivindicar mais poder, adquirindoeno.rme força nos últimos anos, particularmente porque seus discursos passa-ram a ser encampados por políticos que fazem da "lei e ordem" sua principalplataforma eleitoral. É a construção. de uma política criminal de (re)valorizaçãoda vítima, que encontra ampla aceitação. em nível mundial.

O legislador confere à vítima um papel novo", de acordo com o qualuma determinada ilicitude pode constituir um delito ou um mero. conflito,conforme o.grau de intervenção do. ofendido. na disputa. Ademais, atribuem-se aspectos jusprivatistas a este novo Direito Penal, agregando. uma terceiravia de sanção, qual seja a da reparação. da vítima, que passa a se somar à penae à medida de segurança.

A po lítica de inclusão. da vítima ganha cada vez mais espaço, pro-pugnando sua efetiva intervenção. no pr ocessov, na busca po.r um ressar-cimento". Para tanto, é necessário. que o.processo. penal seja orientado para

7 N o Brasil, reformas pontuais da legislação penal iniciaram-se com a composição civil dos danos (art. 74 da Lei n"9.099/95), a reparação do dano como condição para suspensão condicional do processo (art. 89, § 1°, I, da Lei n"9.099/95), a multa reparatória nos crimes de trânsito (art. 297 da Lei na 9.503/97) c as medidas assistenciais da LeiMaria da Penha. Em 2008, a Lei na 11.690 reformulou O capítulo V (Do Ofendido) do título VlI (Da Prova) noCódigo de Processo Penal, conferindo alguns direitos às vítimas, Como a comunicação dos atos processuais relativosao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos quea mantenham ou modifiquem; a reserva de um espaço separado antes do início c durante a realização de audiências;o encaminhamento. a critério do juiz, para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, deassistênciajurídica e de saúde, a expcnsas do ofensor ou do Estado; a preservação da intimidade, vida privada, honra cimagem do ofendido, podendo o juiz, inclusive, deter-minar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentose outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. HojeO projeto de novo Código Penal brasileiro (PL n? 8.045/2010, originado do PLS n" 156/09) prevê a criação de umtítulo específico para tratar dos direitos da vítima (arts. 90 a 92).

8 Veja-se o caso Ximcncz Lopez vs. Brasil em que o país foi condenado pela Cone Inrcrarncricana de Direito Humanospor violação da garantia da duração razoável do processo, reconhecida no Pacto de San José da Costa Rica, do qual oBrasil é signatário, em detrimento do direito da vítima de ver condenado em prazo adequado o autor da agressão contrasi (CORTE INTERAMERICANADE DIREITOS HUMANOS. CasoXilt/wes Lopes vs. Brasil: exceções preliminares.mérito, reparações e Custas. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs!casos/articulos/seriec_149 _por.pdf>.Acesso em: 15 out, 2012). A propósito, o Código de Processo Penal brasileiro menciona o "ofendido" em 53 opor-tunidades, e a "vítima" em outras 6. Há um título específico que trata da ação civil de reparação do dano (ex delicfO) ,sendo que um dos elementos que a sentença penal condcnarória deverá fixar é o "valor mínimo para reparação dosdanos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido" (art, 387, rv. do CPP).

9 HASSEMER, Winfried. Perspectivas dei derecho penal futuro. Revista Penal, Huclva-Salamanca-Castilla-La Mancha,Práxis, v. 1, p. 37-41,jan. 1998, p. 41. Diga-se de passagem que a idcia de ressarcimento econômico do ofendido remeteà Antiguidade. ANDRADE, Manuel da Costa; DIAS, Jorge de Figueiredo. Criminologia: o homem dclinqucnrc e a

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a composição civil, aplicação de pena não privativa de liberdade, mediação e

reconciliação entre as pessoas envolvidas, logrando assim maiores possibili-

dades de sucesso frente à ideia exclusivamente retribucionista ao delito.

Sabe-se que na relação criminosa a vítima interage com o agente e

com o ambiente, e pode, desta forma, às vezes, ter colaborado para o even-

to criminoso". Por "vítima" passou-se a denominar o sujeito que sofre as

consequências (diretas e indiretas, mediatas e imediatas) do crime. Não se

confunde, pois, como "sujeito passivo" ou o "titular do bem jurídico", até

porque todo e qualquer delito, mesmo os uniofensivos, repercute não só ao

titular do bem lesionado, mas também ao Estado, enquanto sociedade política

e, por conseguinte, à própria sociedade!'.

O Direito Penal não se serve da proteção da vítima, ou seja, de todos

aqueles que sofrem os efeitos do delito. O Direito Penal se presta à tutela dos

bensjurídicos que, com seus titulares, guardem uma relação de dependência.

A licença para a utilização do Direito Penal como forma de gestão dos danos

auferidos pela vítima implica num ímpeto de otimização dessa gestão, já que

se terão diversas vítimas para uma mesma ofensa ao bem jurídico. É o caso

particular, por exemplo, dos abusos sexuais reais e simulados de crianças e

adolescentes. Mesmo sendo a dignidade sexual infantojuvenil o bem violado,

os consectários desta lesão são sofridos pela cultura familiar, como os pais da

criança vitimizada. Este conceito abrangente de vítima permite a visualização

de uma sociedade majoritariamente amedrontada (sociedade do medo)12.

A partir da necessidade de se abandonar a visão simplista do crime,

em que, de um lado, teríamos uma pessoa totalmente inocente (vítima) e, de

outro, uma pessoa totalmente culpada (criminoso), surge o campo da "viti-

modogmática", que investiga a contribuição da vítima para a ocorrência do

sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1997. p. 51 e 53 afirmam que, desde o Código de Hamurabi,quando a vítima tinha prejuízos, a cidade tinha o dever de ressarci-Ios e, em casos de homicídio, os descendentestinham direito a uma indenização.

10 GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004. p. 39.

11 É interessante verificar a amplitude do conceito de "vítima" que o art ..90 do projeto de no~o Código de ~r~cessoPenal brasileiro (PL n? 8.045/2010) adota: "Considera-se vítima a pessoa que suporta os efeitos da ação crrmmosa,consumada ou tentada, dolosa ou culposa, vindo a sofrer, conforme a natureza e as circu,nstâncias do crime, ameaçasou danos fisiçps, psicológicos, morais ou patrimoniais, 0":1 quaisquer outras violações de seus direjt~s fundamentais",

12 GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004. p. 15-38.

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delito'? e a repercussão desta na fixação da pena do autor, variando de umatotal isenção a uma simples atenuação".

Refere-se hoje, cada vez com maior insistência, como uma nova eautônoma finalidade da pena o propósito de com ela se operar a possível con-certação entre o agente e a vítima através da reparação dos danos - não apenasnecessariamente patrimoniais, mas também morais - causados pelo crime 15.

Trata-se da posição da vítima nos âmbitos da tipicidade, ilicitude e cul-pabilidade, com a imputação objetiva, a auto e a heterocolocação em perigoe o consentimento do ofendido.

N a concepção de Bernd Schünemann, a "vitimodogmática" é uma regrapara eliminar a penalização quando a vítima, com sua conduta, não merecee não necessita de proteção. Desenvolve-se, assim, o princípio da autorres-ponsabilidade da vítima, mediante o qual o ofendido deve responder por seupróprio comportamento, a fim de evitar que este seja a causa ou o antecedentedo ato que o afete. Significa dizer que a vítima deve tomar as precauçõesnecessárias para evitar a afetação de seus bens jurídicos, caso contrário, estesficarão excluídos da tutela estatal, acarretando a atipicidade!".

Segundo Manuel Cancio Meliá, a questão central das aproximaçõesvitimodogmáticas é a de determinar se a corresponsabilidade da vítima nofato delituoso pode ter influência sobre a valoração jurídica penal do com-portamento do autor!". Assim, a "vitimodogmática" visa à exclusão do crimedado o comportamento da vítima, através da redução teleológica dos tipospenais fundamentada na recondução a uma intervenção mínima do DireitoPenal como corolário da ultima ratio.

Ao passo que aprimora-se este movimento de atenção às vítimas, tantono Direito quanto no Processo Penal, observa-se a redução das garantias dosacusados e o recrudescimento do sistema penal. Porém, em que pese a sobre-

13 ~ digno de.nota que, no projeto de novo Código Penal brasileiro (PLS 236/2012), o art. 73, que trata das circu ns-ta_nclas~ud~clals para fixação da pena-base, faz expressa. menção à "eventual contribuição da vítima para o fato" ,enao mais sl~plesmente ao "comportamento da vítima", como hoje· consta do art. 59 do CP. Além disso, no § 1°deste mesmo artigo há previsão de que "na análise das consequênciasdo crime, o juiz observará especialmente osdano~ supor~ados pela vítima e seus familiares, se previsíveis". Já no art. 74 do Projeto, fala-se na obrigatoriedade defixaçao de alirnentos aos dependentes da vítima de homicídio doloso ou culposo, na forma da lei civil, na prolaçãode sentença penal condenat6ria.

14 OLIVEIRA, Ana Sofia Schrnidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitirnológico e de seuimpacto no direito penal. São Paulo: RT, 1999. p. 131.

15 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral. t. 1. São Paulo: RT, 2007. p. 58.

16 SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes dei derecho penal después dei milênio. Madrid: Tecnos, 2002. p.116. O exemplo recorrente para explicitar esta linha de pensamento é o daquele sujeito que estaciona seu automóvelem via pública em local onde é notório o furto de veículo e deixa a chave na ignição.

17 MELIÁ, Manuel Cancio. Reflexiones sobre Ia "victimo~ogrná.tica" en Iateorfa dei delicto. Revista Brasileira de CiênciasCriminais, São Paulo, v. 25,1999, p. 25.

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posição que se evidencia, nos últimos tempos, da figura da vítima aos bensjurídicos alvos de tutela, não pode essa inversão implicar a relativização ou ocompleto abandono dos princípios constitucionais-penais limitadores clássicos(tais como a intervenção mínima, a subsidiariedade e a fragmentariedade).Isso porque, como bem aponta o criminólogo norueguês Nils Christie aotratar do poder adquirido pela vítima na esfera penal,

"percebemos um fortalecimento do poder da vítima no interior do sistemado direito penal em suas mais variadas fases.Avítima é, por vezes, convidadapelo acusador formal, é informada sobre planos e estratégias da acusação,pode contribuir com suas observações para o promotor, comparece às au-diências do acusado e, em alguns sistemas, pode se manifestar aojuiz sobrea aplicação da pena. Muitas vezes, as vítimas também ganham o direito deserem representadas por seus próprios advogados. E se tudo terminar comum sentença condenatória, especialmente a pena privativa de liberdade,é dado à vítima o direito de ser informada sobre as condições do cárcere,sobre eventual progressão de regime e sobre a concessão de Iivramentocondicional do acusado condenado. O poder está nas mãos e na boca davítima. É um desenvolvimento que fatalmente conduzirá a mais encar-ceramentos e recrudescimento das condições nas instituições penais.v"

Entendemos que é viável uma convivência harmônica entre os finsprimordiais do Direito Penal e do Processo Penal e o papel de relevo que vemsendo conferido à vítima, mormente no que se refere às respostas punitivas esua compatibilidade com o sentimento dejustiça desta' e da própria sociedade 19.

Sem dúvida, as vítimas merecem o devido respeito e reparação e devemser escutadas; contudo, é preciso ter em conta que suas vozes não podemsimplesmente suplantar a voz que (ainda) é a mais fraca do processo: a voz doréu. Se o processo penal serve, em última análise, para impedir o arbítrio doEstado na aplicação da pena, por meio de mecanismos formais que deverão serobservados pelas partes, é preciso que se evite transformá-lo num instrumentooficial de vingança à disposição das vitimae", Do contrário, estar-se-ia regredindo a·um Estado natural (pré-social), em que, na concepção de Hobbes, imperaria aguerra de todos contra todos e cada um seria governado por sua própria razão".

18 CHRISTIE, Nils. Dilema do movimento de vítima. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro,"Revan, a. 17,n. 19/20,p. 367-377, 2012, p. 369-370.

19 FERREIRA,Pedra Paulo da Cunha. Um estudo acercadas relações entre a política criminal da sociedade de riscoc a mídia.Revista Liberdades, São Paulo, IBCCRIM, n. 10,p. 87-115, maio/age. 2012, p. 99-100.

20 Veja-se, por exemplo, o caso de conflitos' familiares que potencialmente caracterizam violência doméstica.

21 HOBBES, Tbomas. Levkuã: ou a matéria, forma c poder de um Estado eclesiástico c civil. Trad. Rosina D' Angina.São Paulo:Íco'nc,2000.

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TITLE: The rediscovery of the victim to the criminal law.

ABSTRACT: This study briefly discusses the criminal politic movernenr ofrevaluation ofthe . t'h .. I' I . . VIC trn tot e crrrnma sciences, w 11Chanses from the organization of groups unsatisfied with the neutralizarionof the ir role m the procedure. It explores the criminological and dogmatic approaches that assign theoffended new functions and new nghts, mcreasmg their acnve participation in criminal prosecution andmtegranng their subjective interesrs m the application of criminal sanctions. In parallel with this increasedattenuon to victirnized mdlvlduals, there is the relativism and the abandonment ofthe classical principIesof cnmmallaw, demonstratmg thar the cornpatibiliry of prrvate interests with the primary purpose of thecriminal sancnons should not end up converting the criminal proceedings inro an official instrument ofrevenge to the vicnrns.

KEYWORDS: Victim. Victimology. Dogmatic ofthe Victim. Managers ofPublic Moral. Criminal Policy.

Referências

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ISSN 1807-3395

Revista Magister deDireito Penal e Processual Penal

Ano XI - N° 63

Dez-Jan 2015

Repositório Autorizado de JurisprudênciaSupremo Tribunal Federal - nO38/2007

Superior Tribunal de Justiça - nO58/2006

EditoresFábio PaixãoVeni~cka DiabWalter Diab

CoordenadoresDamásio E. de Jesus - Fernando da Costa Tourinho Filho - Luiz Flávio Borges D'Urso

Elias Mattar Assad - Marco Antonio Marques ela'Silva

Conselho EditorialAda Pellegrini Grinover - Adeildo Nunes - Amadeu de Almeida WeinmannAury Lopes J únior - Carlos Ernani Constantino - Celso de Magalhães PintoCésar Barros Leal- Cezar Roberto Bitencourt - Élcio Pinheiro de Castro

Fernando Capez - Fernando de Almeida Pedroso - Geraldo Batista de SiqueiraHaroldo Caetano da Silva - José Carlos Teixeira Giorgis - Luiz Flávio Gomes

Marcelo Roberto Ribeiro - Maurício Kuehne - Renato MarcãoRené Ariel Dotti - Roberto Victor Pereira Ribeiro - Rôrnulo de Andrade MoreiraRonaldo Batista Pinto - Sergio Demoro Hamilton -.Umberto Luiz Borges D'Urso

. Colaboradores deste VolumeAdei EI Tasse - Alberto Ribeiro Mariano J únior - Aline Alves Bezerra da Silva

Carlo Velho l'vÍasi - Paulo José Freire Teotônio - Renato MarcãoRocco Antonio Rangel Rosso Nelson

Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal

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A responsabilidade quanto aos conceitos emitidos nos artigos publicados é de seus autores.

Artigos podem ser enviados para o e-mail [email protected]. Não devolvemos osoriginais recebidos, publicados ou não.

As íntegras dos acórdãos aqui publicadas correspondem aos seus originais, obtidos junto aoórgão competente do respectivo Tribunal.

Esta publicação conta com distribuição em todo o território nacional.

A editoração eletrônica foi realizada pela Editora Magister, para uma tiragem de 3.100 exemplares.

Revista Magister de Direito Penal e Processual Penalv. 1 (ago./set. 2004)-.- Porto Alegre: Magister, 2004-Bimestral. Coordenação: Darnásio E. deJesus, Fernando da Costa Tourinho Filho, Luiz Flávio BorgesD'Urso, Elias Mattar Assad e Marco Antonio Marques da Silva.v. 63 (dez./jan. 2015)ISSN 1807-3395

l. Direito Penal - Periódico 2. Direito Processual Penal- Periódico

CDU 342.2(05)CDU 343.01(05)

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Capa: Apollo 13

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