a regulação do mercado de cartões de crédito no brasil uma análise
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MENÇÃO HONROSA - REGULAÇÃO ECONÔMICA
AUTOR: BRUNO RIBEIRO ALVARENGA
BRASÍLIA-DF
AA RREEGGUULLAAÇÇÃÃOO DDOO MMEERRCCAADDOO DDEE CCAARRTTÕÕEESS DDEE CCRRÉÉDDIITTOO NNOO BBRRAASSIILL:: UUMMAA AANNÁÁLLIISSEE ÀÀ LLUUZZ DDAA TTEEOORRIIAA DDOOSS JJOOGGOOSS..
Resumo
A regulação do mercado de cartões de crédito no Brasil: uma análise à luz da Teoria dos Jogos.
Tema 2. Regulação Econômica. O mercado brasileiro de cartões de crédito, seguindo tendência mundial,
vem apresentando crescimento contínuo, tanto nos índices de faturamento como na
quantidade e no valor médio das transações envolvendo cartões de crédito.
Segundo a Credicard, entre janeiro de 2001 e maio de 2004 o faturamento do setor
cresceu 70,21%, o número de transações com cartão cresceu 45,71% e a transação
média passou de R$ 68,00 para R$ 78,00, enquanto o número de cheques
compensados teve uma queda de 44% entre 1994 e 2003.
Paralelamente ao crescimento desse mercado, expandiram-se as
preocupações relacionadas à eficiência e à defesa da concorrência na indústria de
cartões de crédito. No Brasil esse mercado entrou em evidência em 2004, com uma
guerra de preços entre postos de gasolina localizados em Brasília, quando uma
firma se instalou em uma área nobre de Brasília e adotou uma promoção de
inauguração, provocando uma guerra de preços que se alastrou por toda a cidade.
Os postos, então, passaram a praticar preços mais baixos do que os até então
prevalecentes, mas aceitando exclusivamente meios à vista de pagamento. Para os
pagamentos realizados via cartão de crédito era cobrada uma taxa adicional.
A questão tornou-se polêmica, e os órgãos de Defesa do Consumidor de
Brasília ficaram abarrotados de reclamações acerca da conduta. Os consumidores,
se por um lado se manifestaram contentes com a guerra de preços, por outro
protestavam contra a discriminação de preços entre cartão de crédito e meios de
pagamento à vista. A Justiça Brasileira deu então início a uma regulação do setor,
posicionando-se, segundo a mesma, “a favor” dos consumidores ao proibir as
discriminações de preços.
O presente trabalho se propõe a estudar, à luz da Teoria dos Jogos e da
Organização Industrial, essa regulação do mercado de cartão de crédito que vem
sendo exercida no Brasil. Após uma análise inicial da Teoria de Mercados de Dois
Lados, em que se insere o mercado de cartões de crédito, um modelo formal de
comportamento estratégico é cuidadosamente construído e analisado. O principal
resultado encontrado sugere que a regra de preço uniforme induz um subsídio
cruzado do consumidor de baixa renda, que, por restrição orçamentária, não tem
acesso ao cartão de crédito, para o de alta renda, que possui e utiliza o cartão. Isso
acontece porque o estabelecimento comercial, ao praticar um preço único
independente do modo de pagamento, repassa parte dos custos do cartão para
todos os consumidores, e não só para aqueles que geram tais custos. Portanto, o
estudo sugere que a regulação atual beneficia os consumidores de alta renda em
detrimento daqueles de baixa renda, além de aumentar o lucro da indústria de
cartões de crédito.
Por fim, são analisadas algumas experiências internacionais, sugerindo que,
se a possibilidade de diferenciação pode ser pouco relevante em países em que
uma grande proporção de consumidores tem acesso aos cartões de crédito, ela
pode se tornar muito importante em países como o Brasil em que existe vasto
contingente de consumidores mais pobres e sem acesso a esse meio de
pagamento.
Palavras-chaves: Cartão de crédito. Mercado de Dois Lados. Taxa de
Intercâmbio. Discriminação de preços.
Lista de Figuras
FIGURA 1 FLUXO OPERACIONAL EM UMA CADEIA FECHADA .................................................................................. 12
FIGURA 2 FLUXO OPERACIONAL EM UMA CADEIA ABERTA..................................................................................... 12
FIGURA 3 FLUXO DE TAXAS EM UMA CADEIA FECHADA ......................................................................................... 13
FIGURA 4 FLUXO DE TAXAS EM UMA CADEIA ABERTA ........................................................................................... 13
FIGURA 5 CURVA DE DEMANDA INVERSA DO CONSUMIDOR DE BAIXA DEMANDA .................................................. 23
FIGURA 6 JOGO NA FORMA EXTENSIVA .................................................................................................................. 25
FIGURA 7 REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DA FUNÇÃO DE LUCRO DA ADQUIRENTE ...................................................... 29
FIGURA 8 IMPACTO DAS VARIAÇÕES MARGINAIS DE T NO LUCRO DO VENDEDOR ................................................... 35
FIGURA 9 RESTRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO DO VENDEDOR SEM DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS..................................... 37
Sumário
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 1
2 ESTRUTURA DO MERCADO................................................................................................................. 5
2.1 PORTADOR ............................................................................................................................................. 5 2.2 ESTABELECIMENTO COMERCIAL............................................................................................................. 6 2.3 CREDENCIADORA (OU ADQUIRENTE) ...................................................................................................... 7 2.4 ADMINISTRADORA (OU EMISSORA)......................................................................................................... 8 2.5 BANDEIRA .............................................................................................................................................. 9 2.6 O PROCESSO TÍPICO DE UM PAGAMENTO .............................................................................................. 10
3 TEORIA DOS MERCADOS DE DOIS LADOS ................................................................................... 14
4 A REGRA DE NÃO DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS ....................................................................... 21
4.1 MODELAGEM........................................................................................................................................ 22 4.1.1 Agentes ......................................................................................................................................... 22 4.1.2 Interação estratégica.................................................................................................................... 24
4.2 SOLUÇÃO ............................................................................................................................................. 26 4.2.1 Solução com diferenciação de preços .......................................................................................... 26
4.2.1.1 Informação completa .........................................................................................................................26 4.2.1.1.1 Caso 1 – Restrição de participação inativa ............................................................................30 4.2.1.1.2 Caso 2 – Restrição de participação ativa................................................................................30
4.2.1.2 Informação incompleta ......................................................................................................................31 4.2.1.2.1 Caso 1 – Restrição de participação inativa ............................................................................32 4.2.1.2.2 Caso 2 – Restrição de participação ativa................................................................................33
4.2.2 Solução com restrição à discriminação de preços ....................................................................... 33 4.2.2.1 Caso 1 – Restrição de participação ativa ...........................................................................................38 4.2.2.2 Caso 2 – Restrição de participação inativa ........................................................................................39
4.3 CONCLUSÃO ......................................................................................................................................... 40
4.4 A DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS E A NEUTRALIDADE DA TAXA DE INTERCÂMBIO.................................... 40
5 EXPRERIÊNCIAS INTERNACIONAIS............................................................................................... 43
6 CONCLUSÃO........................................................................................................................................... 48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................................. 51
1
1 INTRODUÇÃO
Um instrumento antes visto como inviável por agentes financeiros, assume,
hoje, grandeza considerável no mercado mundial. Os cartões de crédito tornaram-se
um meio de pagamento bastante popular graças aos benefícios únicos oferecidos a
consumidores e firmas e às oportunidades de lucro pelos bancos.
O mercado brasileiro de cartões de crédito, assim como o mundial, vem
apresentando um crescimento contínuo, tanto nos índices de faturamento do setor
como na quantidade de transações envolvendo cartões de crédito e no valor médio
das transações realizadas. Segundo a Credicard1, o faturamento do setor cresceu
70,21% entre janeiro de 2001 e maio de 2004. No mesmo período, o número de
transações com cartão de crédito cresceu 45,71% e a transação média passou de
R$ 68,00 para R$ 78,00 (crescimento de 14,70%). Segundo a mesma, as altas taxas
de crescimento desse mercado, superiores ao PIB, são resultado direto de uma
substituição de meios de pagamento mais tradicionais pelo cartão de crédito. Tal
substituição afetou principalmente o número de cheques compensados que, entre
1994 e 2003, teve uma queda de 44% no número de transações, enquanto subia
397% no de cartões de crédito.
Paralelamente ao crescimento desse mercado, expandiram-se as
preocupações relacionadas à eficiência e à defesa da concorrência na indústria de
cartões de crédito. Questionamentos por autoridades antitruste e órgãos de defesa
da concorrência e do consumidor do mundo todo a respeito de algumas práticas
comerciais adotadas, como a venda casada, as regras não-discriminatórias, as taxas
1 Informações disponíveis no site da Credicard: http://www1.credicard.com.br/sobre/mercadobr/pg01.htm. Acessado em: 27/05/2005. Valores nominais.
2
de intercâmbio e a forma de competição entre as operadoras desse mercado
crescem exponencialmente2. Alguns países, como a Austrália, México, Holanda e
Suécia já deram início ao processo de regulação desse mercado.
No Brasil esse mercado entra em evidência, no que diz respeito à defesa da
concorrência e à regulação, em 2004, com uma guerra de preços entre postos de
gasolina localizados em Brasília. Até então, a cidade era caracterizada por um
mercado de postos bastante oligopolizado e, consequentemente, sem muita
concorrência entre as empresas. A entrada de uma firma independente no mercado,
que se instalou em uma área nobre de Brasília, alterou a concorrência do setor. A
nova firma, tentando se estabelecer, adotou uma promoção de inauguração,
provocando uma guerra de preços que se alastrou por toda a cidade. Os postos,
então, passaram a praticar preços mais baixos do que os até então prevalecentes,
mas aceitando exclusivamente meios à vista de pagamento. Para os pagamentos
realizados via cartão de crédito era cobrada uma taxa adicional.
A questão tornou-se polêmica, e os órgãos de Defesa do Consumidor de
Brasília ficaram abarrotados de reclamações acerca da conduta. Os consumidores,
se por um lado se manifestaram contentes com a guerra de preços, por outro
protestavam contra a discriminação de preços entre cartão de crédito e meios de
pagamento à vista. Sem atentar quanto aos custos referentes a diferentes meios de
pagamentos, esses reclamavam por uma uniformização dos preços cobrados. Na
verdade o desejado era pagar o menor preço utilizando o cartão de crédito.
A Justiça Brasileira dá então início a uma regulação do setor, posicionando-
se, segundo a mesma, “a favor” dos consumidores. Foram proibidas as
discriminações de preços e declarada a vitória do consumidor. “O cartão de crédito
2 Para mais informações sobre práticas anticoncorrenciais e o tratamento a ser dado nesses casos
ver Emch e Thompson (2006) e Evans e Schmalensee (2005b).
3
[é considerado] como moeda, equivalente ao pagamento à vista. Eles [os
estabelecimentos] dizem que pagam taxas, recebem apenas após 30 dias, mas o
consumidor não tem nada a ver com essa história”, afirmou a diretora do Procon-
DF3.
A notoriedade do setor não parou por aí. Recentemente, a Secretaria de
Acompanhamento Econômico – SEAE e a Secretaria de Direito Econômico – SDE
celebraram convênio de cooperação técnica com o Banco Central do Brasil para
elaborar análises e estudos sobre a indústria de cartões de pagamento, com o
objetivo de tornar o setor mais eficiente. A iniciativa, como reconhece a própria
SEAE4, segue o exemplo dos principais países desenvolvidos, que já estudam ou já
iniciaram a regulação do setor.
Este trabalho se propõe a contribuir para a discussão atual sobre a melhor
forma de se regular a indústria de cartões de crédito, avaliando a primeira forma de
regulação surgida nesse mercado no Brasil, qual seja a proibição da discriminação
de preços entre meios de pagamento.
Para tanto, é necessário conhecer as particularidades desse setor. O
mercado de cartões de crédito é, em si, bastante complexo, devido ao grande
número de agentes envolvidos e às várias relações entre esses. O capítulo 2 desta
monografia apresenta os principais agentes do mercado e as relações existentes
entre eles.
Além do grande número de agentes envolvidos, as características da
industria de cartões de crédito permitem enquadrá-la na teoria de mercados de dois
lados, recentemente desenvolvida, que é discutida no terceiro capítulo. Essa teoria
3 Jornal do Brasil, 04/05/2004 e Jornal de Brasília, 04/05/2004. 4 Notícia divulgada no site da SEAE em 17/07/2006. Link:
<http://www.seae.fazenda.gov.br/noticias/seae-bc-e-sde-e-assinam-convenio-para-diagnosticar-industria-de-cartoes-eletronicos> Acessado em: 17/09/2006.
4
modifica bastante os marcos teóricos até então estabelecidos para mercados
tradicionais, e isso deve ser levado em consideração, principalmente em análises
antitrustes para averiguação de possíveis prejuízos à concorrência e ao consumidor.
O quarto capítulo analisa a regra de não discriminação de preços utilizando,
para tanto, a teoria dos jogos aliada à moderna teoria da organização industrial. A
análise desenvolvida sugere que a decisão de preço uniforme da Justiça Brasileira
tem o efeito não desejado de favorecer o consumidor de mais alto poder aquisitivo,
que pode portar um cartão de crédito e com ele realizar compras, em detrimento da
maioria da população brasileira, que é de baixa renda e não tem acesso a tal
instrumento. Essa é a principal contribuição do presente trabalho para o debate
sobre a regulação ótima na indústria de cartões de crédito e chama a atenção para o
fato da legislação atual, que exige uniformidade de preços, ser uma vitória não dos
consumidores em geral, conforme defendido na mídia, mas sim dos consumidores
de alto poder aquisitivo, em prejuízo dos consumidores de baixo poder aquisitivo.
O capítulo subseqüente apresenta experiências internacionais sobre o
assunto. Por fim, o capítulo 6 conclui a monografia.
5
2 ESTRUTURA DO MERCADO
Uma operação típica com cartão de crédito envolve cinco agentes: portador,
estabelecimento comercial, credenciadora, administradora e “bandeira”. Este
capítulo explora brevemente cada um desses agentes, indicando, também, as
relações entre eles.
2.1 Portador
O portador, como o próprio nome já diz, é o consumidor que possui e utiliza
o cartão de crédito. Este instrumento habilita-o a efetuar transações comerciais junto
a estabelecimentos afiliados de forma segura e conveniente, descasando o
momento da compra e do pagamento, ou seja, financiando seu consumo. O portador
possui um limite de crédito, estipulado pela administradora do cartão de crédito,
podendo efetuar compras até esse limite. Em data mensal pré-determinada, o valor
total de suas compras é saldado sem juros. Há também a opção de pagamento de
um valor mínimo e financiamento do saldo restante (crédito rotativo) incorrendo em
taxa de juros. O consumidor que adota tal prática é conhecido no mercado de
cartões de crédito como “revólver”, e o outro, que não aproveita tal opção, é
conhecido como “usuário de conveniência”. Segundo Chakravorti (2003), os usuários
de conveniência representam de 30 a 40 por cento de todo mercado norte-
americano.
De acordo com Chakravorti e To (2003), portadores norte-americanos
raramente são tarifados, seja por cobranças anuais de associação ou por transação.
Não obstante, recebem ainda vários tipos de benefícios, como o financiamento livre
6
de juros, mencionado anteriormente, prêmios por uso (milhas em companhias
aéreas e pontuação que pode ser trocada por produtos diversos) e vários outros. No
Brasil, a cobrança de taxas anuais por associação é comum, mas não geral. As
taxas por transações não são freqüentes.
2.2 Estabelecimento comercial
O estabelecimento comercial é a pessoa jurídica que se filia à rede da
credenciadora, tornando-se apto a aceitar cartão de crédito. Entre os vários
benefícios desfrutados por esses, destaca-se a possibilidade de venda para clientes
ilíquidos ou para aqueles com rendas futuras. A aceitação de cartões de crédito por
estes estabelecimentos advém também do receio de perder clientes caso declinem o
meio de pagamento. Isso sugere que a decisão do consumidor de onde comprar
leva em consideração a aceitação ou não do seu cartão de crédito, o que força o
estabelecimento a aceitá-lo e incorrer nos seus altos custos, como será mostrado
adiante (Rochet e Tirole, 2006; Simon, 2005).
Em contrapartida a tais benefícios, os estabelecimentos pagam para suas
credenciadoras uma porcentagem do valor da compra feita por meio do cartão de
crédito. Ao repassar o valor da transação ao estabelecimento, a credenciadora já
desconta as tarifas e taxas cobradas5. Em uma compra de R$ 100,00, por exemplo,
o estabelecimento recebe da sua credenciadora um montante inferior ao valor da
compra. Esse abatimento é chamado taxa de desconto (merchant discount). A
porcentagem cobrada é negociada junto a cada estabelecimento, variando, no
mercado americano, de um a três por cento do valor total da transação. Segundo
Chakravorti (2003), transações com cartões de crédito custam, para o
5 Além da porcentagem sobre a venda, o estabelecimento arca ainda com o aluguel do terminal
eletrônico.
7
estabelecimento, o dobro de transações realizadas com cheques e mais de seis
vezes com dinheiro e cartão de débito (dados referentes à Austrália). Nos Estados
Unidos, o custo da transação com cartão de crédito é o dobro do que com dinheiro,
cheque ou cartão de débito. A maior parte desse custo é proveniente da taxa de
desconto mencionada.
De acordo com Chakravorti (2003), no mercado americano os
estabelecimentos geralmente são pagos dentro de dois dias após a apresentação da
operação junto à credenciadora. Já segundo parecer técnico exarado pela
Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE, 2003)
em um ato de concentração econômica entre empresas do setor, essa transferência,
no Brasil, leva em torno de 30 dias.
2.3 Credenciadora (ou adquirente)
A adquirente é responsável pelo credenciamento e gerenciamento dos
estabelecimentos comerciais filiados, além de estabelecer as condições comerciais e
os preços cobrados dos comerciantes, processar e liquidar as transações realizadas
com os cartões de sua responsabilidade, desenvolver novas tecnologias e locar os
terminais eletrônicos para efetuação de tais transações. As credenciadoras também
são chamadas de bancos dos estabelecimentos comerciais (merchants banks).
Segundo a SEAE (2004), no Brasil esse agente sofreu certas
reestruturações nas últimas décadas. Inicialmente cada banco membro era um
credenciador, ou seja, cada banco filiava seus próprios estabelecimentos comerciais,
os quais se tornavam aptos a processar todos os cartões emitidos pelo mesmo
banco, independentemente da bandeira do cartão. Dessa forma, cada banco
membro, operando como credenciador e emissor, criava sua própria rede de
8
aceitação. Diante da ineficácia de tal modelo, devido à multiplicidade de custos
(cada estabelecimento comercial deveria possuir vários terminais eletrônicos e cada
banco sua central de autorização), esse sistema foi modificado por iniciativa dos
próprios bancos. Assim surgiram a Redecard e a Visanet, ambas constituídas pela
associação de diversos bancos, cujo objetivo era centralizar as operações antes
realizadas individualmente por cada membro, simplificando o relacionamento entre
os estabelecimentos comerciais e o sistema de cartões de crédito. Hoje essas
empresas são responsáveis pelo credenciamento dos estabelecimentos afiliados a
uma determinada bandeira, sendo essas a Mastercard e a Visa respectivamente.
Como mencionado em tópico anterior, as credenciadoras têm suas receitas
a partir da porcentagem cobrada sobre o valor total de cada transação, a taxa de
desconto, além da receita provinda do aluguel dos terminais eletrônicos e de uma
taxa cobrada pela antecipação de recebimentos para os comerciantes, caso esses
desejem. Como contrapartida pagam uma taxa conhecida como taxa de intercâmbio
(interchange fee) às administradoras. Ou seja, do total que o estabelecimento deve
receber, R$ 100,00, por exemplo, a credenciadora recebe R$ 95,00 da
administradora e repassa somente R$ 90,00 ao estabelecimento. A primeira taxa é a
de intercâmbio e a segunda de desconto. A credenciadora fica com um benefício
líquido de R$ 5,00.
2.4 Administradora (ou emissora)
As administradoras (ou emissoras) são as instituições que emitem e
administram os cartões de crédito. Segundo a SEAE (2003), entre as atividades de
administração dos cartões estão: análise das propostas de adesão, determinação do
limite de crédito, crédito rotativo, concessão de autorizações de compra,
9
acompanhamento da utilização correta do cartão (roubos, fraudes, etc), lançamento
das transações nas faturas, envio das faturas etc. A maioria dessas instituições são
financeiras (geralmente o logotipo da instituição está estampado na frente do cartão
de crédito ou mencionado em seu verso. Segundo a Visa do Brasil, há 50
administradoras no Brasil6, entre elas: Banco do Brasil, Banco Real, Banco
Bradesco, Caixa Econômica Federal e Losango7), permitindo-lhes a concessão de
crédito direto a seus clientes, cobrando os juros do financiamento. Banco dos
portadores (consumers bank) é outra denominação comum para as administradoras.
As administradoras têm nos portadores e nas credenciadoras suas fontes de
receitas. Sobre os portadores pode ser cobrada anuidade, taxas por transação
(porcentagem do valor transacionado), juros, tarifas sobre saques e serviços e juros
de mora por atraso no pagamento de tarifas. Como mencionado no tópico anterior, a
administradora recebe ainda uma taxa de intercâmbio das credenciadoras. Essa
taxa é uma forma de incentivar a ampliação da base de portadores e compensar o
custo dessa atração. Essa forma de incentivo será detalhada adiante.
A estratégia competitiva entre as administradoras, segundo Chakravorti
(2003), está baseada em várias dimensões como taxas, prêmios por uso freqüente
(frequent usage awards), cobranças financeiras e outras características.
2.5 Bandeira
Por fim, a “bandeira” é a detentora da marca estampada nos cartões. É
importante distinguir os dois tipos existentes dessas instituições: as fechadas e as
6 http://www.visanet.com.br 7 http://www.visa.com.br/conteudo/bancos/default.asp. Para Emissores da Rede Mastercard ver:
http://www.redecard.com.br/emissores_mastercard.asp.
10
abertas. Nas cadeias fechadas (proprietary networks), como a American Express 8, a
Discover e o Hipercard, há verticalização das atividades, ou seja, a bandeira opera
como administradora e credenciadora. Nesse modelo de mercado todas as taxas
são determinadas pela própria bandeira.
Já as cadeias abertas (open networks), representadas pela Mastercard e
pela Visa, são formadas por diversas instituições financeiras, as quais operam como
administradoras e/ou credenciadoras. Nessas cadeias, a principal função da
“bandeira” é a organização da estrutura estabelecendo normas, fixando a taxa de
intercâmbio, fornecendo infra-estrutura básica, pesquisa e desenvolvimento para o
aperfeiçoamento do sistema (Chakravorti, 2003). A associação à administradora é
feita via contrato de franquia que concede licença para uso da marca e da sua rede.
Por outro lado, o contrato estabelecido com a credenciadora exige desta o
cumprimento das regras estabelecidas e coloca à sua disposição o sistema de
pagamentos.
As “bandeiras” têm como fontes a tarifa trimestral por cartão ativo (variável
conforme o tipo de cartão), a licença pelo uso da marca, ambas cobradas das
instituições emissoras, o percentual sobre o volume financeiro de transações
(conforme tipo do produto), cobrado das credenciadoras, e outras taxas referentes
ao uso de serviços específicos. Essas taxas não terão relevância na análise do
modelo.
2.6 O processo típico de um pagamento
Agora que todos os agentes desse mercado são conhecidos, é possível
explicar todo o processo de um pagamento realizado por meio de um cartão de
8 A American Express é considerada uma cadeia fechada na maioria dos países. No Brasil,
segundo a SEAE (2004), o cartão desta empresa passou a ser emitido por bancos comerciais.
11
crédito e a complexa cadeia de relações entre os agentes envolvidos. O fluxo
apresentado se refere a uma cadeia aberta, cujo processo é mais complexo, e está
baseado em parecer técnico da SEAE9 (2003). Como mencionado, as relações com
a bandeira são irrelevantes (exceto na cadeia fechada), motivo pelo qual não está
evidenciada nos fluxos. De forma a evitar uma poluição de informações, estão
omitidas também as taxas desnecessárias para o entendimento do sistema. O
processo referente a uma cadeia fechada é mostrado pelas figuras 1 e 3.
A primeira etapa do processo é a compra do portador em um
estabelecimento credenciado utilizando cartão de crédito, como observado na figura
1 e 2. Seu cartão é passado em um terminal eletrônico abrindo uma consulta junto à
credenciadora, a qual é redirecionada pelo sistema para a administradora. Essa
responde aprovando ou reprovando a transação. O movimento é, então, fechado e o
estabelecimento envia a informação de compra para a credenciadora que repassa
para a administradora para que esta registre a despesa na conta do cliente.
Após aproximadamente 27 dias da data de transação, independente do
pagamento da fatura pelo cliente, a administradora efetua o pagamento do valor à
credenciadora. Observe que esse pagamento é em valor líquido, ou seja, já
descontado a taxa de intercâmbio, como evidenciado nas figuras 3 e 4. São
necessários mais três dias para que esta repasse o valor da transação ao
estabelecimento, descontando as tarifas e taxas cobradas.
9 Uma representação simples é apresentada em:
http://www.mastercard.com/br/general/about/industry.html
12
Figura 1 Fluxo operacional em uma cadeia fechada
Figura 2 Fluxo operacional em uma cadeia aberta
Realiza compra através de cartão de crédito
Portador Estabelecimento Comercial
Bandeira
Consulta e resposta
Pagamento
Pagamento da fatura Emissão
da fatura
Compra autorizada ou negada
Realiza compra através de cartão de crédito
Portador
Emissora (administradora)
Estabelecimento Comercial
Credenciadora
Consulta e resposta
Consulta e Resposta
Pagamento em 27 dias
Pagamento em 3 dias
Pagamento da fatura
Emissão da fatura
Compra autorizada ou negada
13
Figura 3 Fluxo de taxas em uma cadeia fechada
Figura 4 Fluxo de taxas em uma cadeia aberta
Portador Estabelecimento Comercial
Bandeira
Realiza compra no valor de x através de cartão de crédito x + taxa
anual x – td (td = taxa de desconto)
Portador Estabelecimento Comercial
Emissor Credenciadora
Realiza compra no valor de x através de cartão de crédito x + taxa
anual
x – ti (ti = taxa de intercâmbio)
(x-ti) – td (td = taxa de desconto)
14
3 TEORIA DOS MERCADOS DE DOIS LADOS
Para uma análise minuciosa do mercado em questão faz-se necessário
conhecer suas principais características. Uma das especialidades mais importantes
dessa indústria é a presença de externalidades de rede e a duplicidade de lados
(mercado de dois lados). Este capítulo busca ressaltar a importância de se
considerar essas duas características ao proceder a qualquer análise econômica
desse setor.
Antes de se chegar à definição mais específica de externalidade de rede, é
necessário tomar conhecimento do conceito mais amplo de externalidade. Essa
ocorre quando a produção ou consumo de um bem por um agente influencia o bem
estar de outro que não está envolvido nessa ação. Além disso, é necessário que não
haja mercado para esse bem (Varian, 2000). As externalidades podem ser negativas
ou positivas. Exemplos clássicos de externalidades são: poluição (externalidade
negativa, produção por uma das partes impõem custos sobre outra) e educação
(externalidade positiva, consumo por alguém beneficia o resto da população). Não
há mercado para a poluição nem para o benefício gerado a terceiros pela educação
e isso impede que sejam feitas alocações eficientes, já que as externalidades não
são refletidas via preços. Dessa forma, é necessário proceder à internalização das
externalidades através de uma tentativa de imitação do mecanismo do mercado.
O teorema de Coase diz que é possível a internalização das externalidades
por meio de uma negociação entre as partes envolvidas desde que algumas
condições sejam observadas. É necessário que poucos agentes estejam envolvidos
(quanto mais pessoas mais difícil um consenso), que os direitos de propriedade
15
estejam bem estabelecidos e que os custos de transação sejam desprezíveis
(Coase, 1960).
O conceito mais restrito, a externalidade de rede, é configurado quando o
valor de um bem para uma pessoa depende diretamente da quantidade de pessoas
que adotam o mesmo bem, como é o caso, por exemplo, do aparelho celular. O
aparelho é inútil e não tem valor quando esse consumidor é o único a possuir tal
instrumento, já que sua função, que é permitir a comunicação com outras pessoas,
fica completamente limitada. Por outro lado, quanto maior a quantidade de usuários
desse instrumento mais útil e mais valioso é o aparelho, que agora permite a
comunicação com um amplo número de agentes. Esse é um tipo de externalidade
direta. A indústria de cartões de crédito provê um exemplo do efeito indireto: não há
razão para que um estabelecimento comercial adote esse sistema de pagamento em
um mercado onde ninguém possui cartão de crédito. Por outro lado, não há motivo
para possuir um cartão de crédito se nenhum estabelecimento comercial aceitá-lo.
Assim, a demanda de cartões de crédito depende do número de estabelecimentos
que o aceitam que, por sua vez, dependem do número de portadores desse
instrumento. O número de portadores de cartão de crédito também depende do
número de estabelecimentos comerciais que adotam essa forma de pagamento,
configurando o efeito de rede (Tirole, 1990 e Varian, 2000).
Segundo Rochet e Tirole (2004) e Evans (2003a), a maioria dos mercados
que apresentam externalidades de rede são caracterizados pela presença de dois
lados distintos que gozam de benefícios ao interagirem através de uma plataforma
comum, a qual internaliza as externalidades. Isso é fácil de ser visualizado no setor
aqui discutido. Os lados desse mercado são: os consumidores que utilizam cartão de
crédito para realizarem suas compras de bens e serviços e os estabelecimentos
16
comerciais que aceitam tais cartões. Como já mencionado, não há razão para
existência de um desses lados dada a inexistência do lado oposto. Outros mercados
podem ser apresentados para exemplificação: vídeo-games, como Atari e Play
Station, que precisam atrair jogadores para incentivar a criação de jogos adequados
às suas respectivas tecnologias, e da mesma forma precisam de jogos para que
jogadores escolham seus consoles; sistemas operacionais, que precisam ao mesmo
tempo, dos desenvolvedores de aplicativos e dos usuários; operadoras de TV por
assinatura, que trabalham para usuários e provedores de conteúdo; agências de
empregos, que fornecem para empregados e empregadoras, etc.
A teoria de mercado de dois lados deve ser bem formalizada a fim de se
evitarem generalizações. A apresentação até aqui exposta permite uma boa
caracterização, mas não é suficientemente restritiva. A teoria de mercado de dois
lados está relacionada com a teoria de externalidade de rede e de precificação de
múltiplos-produtos. Daquela toma o princípio de que há externalidades não
internalizadas entre os agentes (esses não internalizam o impacto do seu uso do
bem ou serviço sobre o bem estar de outros consumidores) e desta toma
emprestado a noção da estrutura de precificação.
Um mercado é considerado de um lado quando o volume de transações é
função apenas do nível agregado de preços (price level). Em outras palavras, se tA é
a taxa cobrada do lado A do mercado, e tB é a taxa incorrida pelo lado B, o volume
(V) de transações depende apenas do nível agregado de taxas:
T = tA + tB
ou seja, o volume de transações é insensível à re-alocação do preço total entre os
consumidores. De forma contrária, se o volume é em função do preço relativo entre
os agentes, isto é, da estrutura de preços (price structure), o mercado é de dois
17
lados. De outra forma, V varia quando tA e tB variam enquanto T permanece
constante (Rochet e Tirole, 2004).
Outra condição necessária, mas não suficiente, para que o mercado seja
considerado de dois lados é que o Teorema de Coase não se aplique ao mercado
em análise, ou seja, a negociação direta entre os agentes não tem eficácia na
internalização das externalidades. Segundo Varian (2000), “os problemas práticos
com externalidades geralmente surgem devido à má definição dos direitos de
propriedade”, e é exatamente o que ocorre aqui. Mais precisamente, ambas as
partes, consumidores e vendedores, avaliam de forma diferente os ganhos
provenientes da transação. A presença de informação imperfeita impede, então, o
sucesso da negociação entre as partes.
Com o mercado de cartões de crédito bem caracterizado, é possível analisá-
lo de acordo com a teoria exposta. Segundo Rochet e Tirole (2003a, 2003b), a
estrutura de precificação é a chave para o sucesso de uma plataforma atuante em
um mercado de dois lados e por isso merece especial atenção. A indispensável
atração de ambos os tipos de consumidores torna necessário um sistema de
incentivos. De forma a melhor explicitar a importância de tal sistema, utilizar-se-á as
abordagens de Wright (2004) e Evans e Schmalensee (2005b), que exemplificam
com um tipo de indústria muito simples, a de danceterias, que buscam atrair homens
e mulheres, que por sua vez desejam interagir.
Até um certo limite, homens preferem danceterias freqüentadas por mais
mulheres e vice-versa, ficando, então, configurada a presença de externalidades de
rede. Para atrair clientes, as danceterias precisam atrair ambos os sexos. Para isso,
é comum um sistema de pagamentos no qual são cobradas diferentes taxas para
cada sexo onde, geralmente, são beneficiadas as mulheres que, quando são
18
cobradas, pagam uma taxa bem inferior a dos homens. Dessa forma, a danceteria
consegue atrair um maior número de clientes, talvez devido à maior preocupação
dos homens com o número de mulheres do que o contrário.
Pelo exposto, fica claro que o sistema de taxação de tais mercados não
necessariamente é reflexo de sua estrutura de custos. O custo de servir a um
homem ou mulher adicional é praticamente igual. A taxação, então, não deve levar
em consideração apenas os custos relativos, mas também o excedente gerado para
o homem quando mais uma mulher é atraída para a danceteria e vice-versa. Sendo
o excedente obtido pelo homem quando mais uma mulher é atraída maior do que a
situação inversa, é natural que uma estrutura eficiente de preços subsidie a entrada
da mulher a partir de uma maior cobrança para homens. Rochet e Tirole (2003a) se
referem aos agentes como centro de lucro, que no caso é o homem, e centro de
perda (ou, no máximo, financeiramente neutro), a mulher. Outros determinantes da
estrutura de preços, segundo Rochet e Tirole (2003a, 2003b, 2004), são as
elasticidades-preço da demanda de ambos os lados, o poder de mercado das
empresas intermediárias (no caso do presente estudo, as administradoras e
credenciadoras) e a competição no mercado (a presença de multi-homing, por
exemplo).
Como a decisão de taxação da danceteria, deve também a “bandeira”
determinar o quanto cobrar de portadores e de estabelecimentos comerciais
autorizados. Essa decisão é simples para o caso de cadeias fechadas (como a
American Express), que lida diretamente com os dois lados do mercado. A bandeira
estabelece ambas as taxas conforme toda explanação feita de precificação, de
forma a maximizar a receita com o volume de transações realizadas. Segundo
Evans (2003a e 2003b), a maior parte da receita de tais cadeias é proveniente dos
19
estabelecimentos comerciais, mais especificamente, através da porcentagem
cobrada sobre cada transação, configurando um centro de lucros. Já os
consumidores nem sempre arcam com taxas e freqüentemente recebem bônus,
como uma forma de incentivo ao ingresso no sistema, sendo, pois, o centro de
perdas.
A determinação da estrutura ótima de cobrança das cadeias abertas é mais
complicada, já que essa não lida diretamente com seus consumidores finais, não
determinando as taxações a esses. As instituições responsáveis por isso são as
credenciadoras e as administradoras. Como forma, portanto, de estabelecer um
sistema ótimo, a “bandeira” estabelece a taxa de intercâmbio. Essa é uma
transferência da credenciadora para a administradora que ocorre sempre que o
portador realiza uma compra com o cartão de crédito. A taxa de intercâmbio é um
custo para as credenciadoras e uma receita para as administradoras. Um aumento
dessa taxa, então, aumenta o custo das credenciadoras, as quais repassam esse
aumento para os estabelecimentos, cobrando uma maior porcentagem por
transação. No caso das administradoras ocorre o inverso, o aumento é respondido
com uma diminuição das taxas cobradas aos portadores, incentivando o uso de
cartões de crédito e aumentando o montante recebido por esta.
Pode-se concluir, por fim, que a taxa de intercâmbio é o instrumento da
“bandeira” para estabelecer um sistema ótimo de preços para portadores e
estabelecimentos. Se a “bandeira” deseja que seja praticada uma alta taxa para o
estabelecimento e uma baixa para o portador, deverá manter uma alta taxa de
intercâmbio. Se o desejo é o inverso, alta taxa para o portador e baixa para o
estabelecimento, determinará uma baixa taxa de intercâmbio. A taxa de intercâmbio
20
é o instrumento da bandeira para determinar o volume ótimo de transações e
maximizar sua receita.
Existe uma ampla discussão no mundo todo a respeito da regulação das
taxas de intercâmbio10. Esse debate é promovido pelos lobbies de vendedores, os
quais acreditam que essas estão muito altas e deveriam ser reduzidas, diminuindo
assim a taxa de desconto dos vendedores. Por outro lado, estudos teóricos
argumentam que essa queda causaria um aumento das taxas cobradas dos
consumidores, reduzindo os incentivos para a utilização de cartões de crédito por
estes (Rochet e Tirole, 2004; Simon, 2005). Essa situação evidencia o problema de
informação anteriormente mencionado e a impossibilidade de negociação direta
entre as partes para a internalização das externalidades.
10 Ver mais em Evans e Schmalensee (2005a).
21
4 A REGRA DE NÃO DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS
Um assunto muito debatido no mundo todo, tanto em órgãos de defesa da
concorrência como do consumidor, é a legalidade da cobrança diferenciada para
compras pagas com cartão de crédito. A jurisprudência brasileira, frente a várias
reclamações acerca de cobranças diferenciadas, afirma ser tal conduta ilegal,
argumentando lesão ao consumidor, ou seja, a posição dessa é favorável à
homogeneização dos preços, à não discriminação de preços. Porém, essa
percepção é contrária à tendência dos países desenvolvidos, que agem no sentido
de proibir as cláusulas dos contratos entre credenciadoras e estabelecimentos
comerciais que vedam a diferenciação de preços entre formas de pagamento11. O
objetivo desse capítulo é comparar a situação da adquirente, que impõe tal regra, e
dos consumidores, com e sem a discriminação de preços. Para isso, utilizar-se-á um
modelo de teoria dos jogos, que permitirá inferir sobre o malefício ou benefício de tal
regra, principalmente sobre os consumidores, o lado mais fraco na cadeia, e a quem
a justiça se propõe a defender.
É possível, a princípio, deduzir algumas conseqüências da regra de não
discriminação. Sabe-se que a decisão de precificação dos comerciantes é feita de tal
forma que cubra todos os seus custos e ainda lhe assegure uma margem de retorno.
Um dos custos embutido nos preços dos bens e serviços é o do meio de pagamento
que, como mencionado antes, é muito superior no caso de cartões de crédito se
comparado ao de outros meios, como cheque, dinheiro ou cartão de débito. Esse
11 Tais contratos proíbem que os estabelecimentos cobrem mais de um consumidor que deseja
pagar com cartão de crédito do que cobrariam para qualquer outro meio de pagamento. Porém não são proibidos descontos para pagamentos realizados com dinheiro, o que parece ser o caso da guerra de preços entre os postos de gasolina de Brasília.
22
custo, assim, é repassado para todos consumidores na forma de preços mais altos.
Fica evidente, dessa forma, o problema quando a discriminação de preços é
proibida: todos os consumidores, não só aqueles que utilizam cartão de crédito,
arcam com tais custos, de modo que esse é rateado entre todos eles, caracterizando
um subsídio cruzado do consumidor que não utiliza cartão de crédito para aquele
que o faz (Gans e King, 2003; Simon, 2005; Chang, Evans e Swartz, 2005).
Para um melhor embasamento, faz-se mister a utilização de um modelo
mais formal. A seção seguinte se propõe a modelar o jogo, ou seja, traduzir o jogo
da forma real para a linguagem da lógica formal. Concluída essa etapa, passa-se a
discutir a solução do jogo.
4.1 Modelagem
4.1.1 Agentes
O jogo desenvolvido evidencia a interação estratégica entre três tipos de
agentes: a adquirente (ou credenciadora), o vendedor e o consumidor. A adquirente,
que, por hipótese simplificadora, é considerada monopolista, define a taxa de
desconto cobrada dos vendedores e decide pela possibilidade ou não de
discriminação de preço. Essa decisão pode ser por vontade própria ou por imposição
legal.
O vendedor, também considerado monopolista em seu mercado, decide se
aceita ou não o cartão e estabelece os preços de venda, conforme a possibilidade
de discriminação de preços e sua decisão de aceitar ou não pagamentos com cartão
de crédito. O vendedor incorre em um custo unitário por produto (preço de compra) e
também no custo do meio de pagamento (o custo do dinheiro é considerado nulo ou,
de outra maneira, o custo do cartão de crédito é relativo ao do dinheiro,
23
representado, assim, apenas o adicional). Esse incide apenas sobre compras
realizadas com cartão de crédito.
Os consumidores, por fim, decidem o quanto comprar ao preço estabelecido.
Os consumidores se dividem em dois tipos. O primeiro tipo não possui cartão de
crédito por motivo de restrição orçamentária. Sua função de demanda é:
( )d p a p= −
É representada graficamente pela seguinte reta:
Figura 5 Curva de demanda inversa do consumidor de baixa demanda
Sua utilidade é representada pelo seu excedente, que como facilmente
observado no gráfico, toma a forma:
2( )2
a pEXC −=
O segundo tipo de consumidor é portador de cartão de crédito e pode optar
por sua utilização. Se comprar em dinheiro tem a mesma demanda e utilidade do
consumidor do tipo 1. Já com o cartão de crédito, desfruta da vantagem de
financiamento livre de taxas de juros até a data de pagamento da fatura do cartão.
Essa facilidade implica em que sua demanda aumente para:
( )D p A p= − , em que A a> .
a
a
P
Q
p
x = a-p
24
Sua representação gráfica é similar à curva de demanda inversa mostrada
na figura 5, porém com um deslocamento para a direita. Os interceptos vertical e
horizontal passam a ser A. Sendo assim, sua utilidade é o novo excedente do
consumidor:
2( )
2A pEXC −
=
4.1.2 Interação estratégica
O jogo se inicia no nó de decisão rotulado t1, como observado na figura 6,
onde a adquirente (Ad) opta por uma taxa de desconto (t) a ser cobrada do vendedor
(V). Note que a existência de curvas pontilhadas na seta de decisão da adquirente
representa a existência de uma infinidade de escolhas possíveis para t. Dada essa
escolha, o vendedor, no nó t2, decide se aceita (s) ou não (n) o cartão de crédito. Se
decidir não aceitar o cartão, o vendedor escolhe um preço ( p%) e só trabalha com
consumidores de baixa demanda ( )d p a p= − . Esses, observando o preço cobrado,
decidem o quanto consumir (d).
O outro caminho a ser seguido é fruto da decisão de aceitação do cartão de
crédito por parte do vendedor. Sendo assim, no nó t3, o mesmo escolhe os preços
p para venda em dinheiro e p para pagamentos com de cartão de crédito. Observe
que caso a regra de não discriminação de preços esteja ativa, p deve ser igual a p .
No nó t5 ocorre um evento aleatório. Nessa modelagem costuma-se dizer que a
natureza (N) representa um fenômeno estocástico, portanto, não estratégico. Com
probabilidade π o vendedor se depara com um consumidor de alta demanda, o qual
escolherá utilizar dinheiro ou cartão de crédito. Com probabilidade (1 )π− o
consumidor é do tipo 1, de baixa demanda.
25
Figura 6 Jogo na forma extensiva
As conseqüências do jogo, denominadas pay-off nessa modelagem,
dependem da combinação de decisões de cada agente. O pay-off da adquirente vai
depender da aceitação e utilização do seu cartão de crédito. Se o cartão for aceito
pelo vendedor e usado pelo consumidor, seu lucro será de t multiplicado pela
demanda final com cartão de crédito. Caso contrário, seu cartão não será utilizado e
sua receita será nula. A vontade, portanto, desse agente é maximizar essa função
de lucro. O resultado de interesse para o vendedor será seu lucro, definido pelo
Ad
V
V V
N C
CC
t1
t3 t4
t2
t5 t6
t7 t8
t
ns
p% ( , )p p
A a{ }π {1 }π−
D d d
d
( )( , )
tDp c t D
EXC p D
π⎛ ⎞⎜ ⎟− −⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠
0
( )
( , )
p c d
EXC p d
⎛ ⎞⎜ ⎟
−⎜ ⎟⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠
0
( )
( , )
p c d
EXC p d
⎛ ⎞⎜ ⎟
−⎜ ⎟⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠
0
( )( , )
p c dEXC p d
⎛ ⎞⎜ ⎟−⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠
%%
26
mark-up (preço menos custos) multiplicado pela demanda. Por fim, o pay-off para o
consumidor é representado pelo seu excedente, conforme já visto.
4.2 Solução
O processo de solução adotado é o de indução retroativa e será dividido em
dois casos. O primeiro caso parte da suposição de que a diferenciação de preços é
permitida, ou seja, não há a regra de não-discriminação de preços. Essa regra
estará ativa no segundo caso.
4.2.1 Solução com diferenciação de preços
Esse caso será separado em dois subcasos. O primeiro considera um
ambiente de informação completa, ou seja, o vendedor consegue diferenciar
totalmente seus clientes, distinguindo portadores de cartão de crédito de não
portadores. Sendo assim, o vendedor decide por um preço p para que o consumidor
possuidor de cartão utilize-o, aproveitando, portanto, sua alta demanda. Dessa forma
não existirá a aresta d do nó t7. O segundo subcaso supõe um ambiente de
informação incompleta, onde o vendedor não consegue diferenciar seus clientes.
4.2.1.1 Informação completa
Em t8 o consumidor de baixa demanda escolhe o quanto consumir. Sua
decisão é dependente do preço p estipulado pelo vendedor e dada por:
d a p= − . (1)
Seu pay-off será:
2
1
( )( , )
2a p
EXC p a p−
− = . (2)
27
O vendedor terá lucro (l, representando o lucro com o consumidor de baixa
demanda) de:
(1 )( ) (1 )( )( )l p c d p c a pπ π= − − = − − − . (3)
Em t7 o consumidor de alta demanda escolhe, de forma análoga ao caso
anterior, o seguinte consumo:
,D A p= − (4)
tendo como pay-off :
2
2( )( , )
2A pEXC p A p −
− = . (5)
O vendedor realiza lucro de:
( ) ( )( )L p c t D p c t A pπ π= − − = − − − (6)
Em t3 o vendedor escolhe p e p de forma a maximizar seu lucro. Seu
problema, então, é:
,
max (1 )( )( ) ( )( )p p
p c a p p c t A pπ π− − − + − − − .
Observe que na verdade têm-se dois problemas de maximização distintos, já
que as variáveis p e p são independentes. A aplicação da condição de primeira
ordem gera o seguinte resultado:
2
A c tp + += (7)
2
a cp += (8)
Substituímos os resultados em (3) e (6) para encontrar o lucro esperado do
vendedor:
(1 )2 2 2 2
A c t A c t a c a cL l c t A c aπ π+ + + + + +⎛ ⎞⎛ ⎞ ⎛ ⎞⎛ ⎞+ = − − − + − − −⎜ ⎟⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠⎝ ⎠ ⎝ ⎠⎝ ⎠
2 2
(1 )2 2
A c t a cπ π− − −⎛ ⎞ ⎛ ⎞= + −⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎝ ⎠ ⎝ ⎠
(9)
Em t6 o consumidor do tipo 1 consome:
28
,d a p= − % (10)
seu excedente será de:
2( )( , ) ,
2a pEXC p a p −
− =%% % (11)
gerando lucro para o vendedor de:
( )( ).l p c a p= − −% % % (12)
Em t4 o vendedor maximiza seu lucro dado que todo seu mercado será
composto de consumidores de baixa demanda. Seu problema, então, é:
max ( )( ),
pp c a p− −
%% %
Esse problema é solúvel pela aplicação da condição de primeira ordem:
.2
a cp +=% (13)
Aplicando o resultado na função de lucro (12):
2
2 2 2a c a c a cl c a+ + −⎛ ⎞⎛ ⎞ ⎛ ⎞= − − =⎜ ⎟⎜ ⎟ ⎜ ⎟
⎝ ⎠⎝ ⎠ ⎝ ⎠% (14)
Em t2 o vendedor deve decidir, baseado em seus lucros esperados, se
aceita ou não o cartão de crédito. Se (9), o lucro dado que o vendedor aceita cartão
de crédito, for maior que (14), lucro com rejeição ao cartão, então a decisão será
pela aceitação. Comparando os termos tem-se:
2 2 2
(1 ) .2 2 2
A c t a c a c t A aπ π− − − −⎛ ⎞ ⎛ ⎞ ⎛ ⎞+ − > ↔ < −⎜ ⎟ ⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎝ ⎠ ⎝ ⎠ ⎝ ⎠
Portanto, o vendedor escolherá:
s se t A an se t A a
≤ −⎧⎨ > −⎩
(15)
Por fim, em t1 a adquirente escolhe a taxa de desconto a ser cobrada do
vendedor. Se esse escolher s em t2 o lucro da adquirente será:
( ) ( ).AdL tD p t A pπ π= = − (16)
Substituindo (7) em (16):
29
2 .2 2 2 2 2
Ad A c t A c t A cL t A t t tππ π π+ + − −⎛ ⎞ ⎛ ⎞ ⎛ ⎞= − = − = − +⎜ ⎟ ⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎝ ⎠ ⎝ ⎠ ⎝ ⎠
(17)
Claramente, seu lucro LAd, função da própria taxa cobrada t, se comporta
como uma parábola com concavidade voltada para baixo, como mostrado na figura
7. A condição de primeira ordem define o ponto máximo da função, que se dá
quando:
.2
A ct −= (18)
A função está definida no intervalo [0, A−c], as raízes do problema. Sendo
assim, uma taxa t menor que zero ou maior que A−c geraria lucros negativos.
Entretanto, existe uma restrição de participação por parte do vendedor,
como visto em (15). É necessário então verificar se o t escolhido satisfaz essa
condição:
2 .2
A c A a A a c−≤ − ↔ ≥ − (19)
A análise, então, novamente se subdivide em 2 casos. O caso 1 continua
partindo do pressuposto de que a desigualdade é satisfeita. O caso 2 analisa a
situação inversa.
Figura 7 Representação gráfica da função de lucro da adquirente
A-c 2
A-c
t
LAd
30
4.2.1.1.1 Caso 1 – Restrição de participação inativa
Nesse caso o argumento que maximiza a função de lucro da adquirente é
menor do que a restrição de participação do vendedor, ou seja, a condição (19) é
satisfeita. A interpretação dessa condição é que a demanda do consumidor do tipo 2
é fortemente aumentada pelo uso do cartão. Sendo assim, a restrição de
participação do vendedor é inativa, de forma que a adquirente escolhe a taxa
definida em (18).
Tem-se, assim, por (15), que o vendedor escolhe aceitar o cartão de crédito.
O preço final para o consumidor de alta demanda pode ser definido substituindo (18)
em (7). O resultado é:
3 .4
A cp += (20)
Todos os pay-offs podem agora ser definidos substituindo (20) em (5), e (18)
em (9) e (17). Os resultados são:
2
112 2
a cEXC −⎛ ⎞= ⎜ ⎟⎝ ⎠
(21)
2
218 2
A cEXC −⎛ ⎞= ⎜ ⎟⎝ ⎠
(22)
2 2
(1 )4 2
A c a cL l π π− −⎛ ⎞ ⎛ ⎞+ = + −⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎝ ⎠ ⎝ ⎠
(23)
2
2 2Ad A cL π −⎛ ⎞= ⎜ ⎟
⎝ ⎠ (24)
4.2.1.1.2 Caso 2 – Restrição de participação ativa
Esse é o caso oposto ao anterior, onde a restrição de participação do
vendedor não é satisfeita com a taxa t definida em (18) (A desigualdade (19) não é
satisfeita). Isso significa que a demanda do consumidor de tipo 2 não é tão
31
fortemente aumentada pelo uso do cartão de crédito. Sendo assim, como é sempre
melhor para a adquirente estabelecer uma taxa aceitável para o vendedor (caso
contrário seu lucro é zero)12, a mesma escolherá a maior taxa aceitável possível,
caso em que a restrição de participação do vendedor é ativa. Então t é definido
como:
t A a= − (25)
Observe que, Como se supõe que 2A a c< − , o valor acima está dentro do
intervalo definido para t.
Substituindo (25) em (7), tem-se que o preço para o consumidor de tipo 2 é:
2
a cp A −= − (26)
A partir desse resultado podemos encontrar todas as conseqüências
relevantes para a análise. Basta substituir (26) em (5), e (25) em (9) e (17), como
mostrado a seguir:
2
112 2
a cEXC −⎛ ⎞= ⎜ ⎟⎝ ⎠
(27)
2
212 2
a cEXC −⎛ ⎞= ⎜ ⎟⎝ ⎠
(28)
2
2a cL l −⎛ ⎞+ = ⎜ ⎟
⎝ ⎠ (29)
( )( )2
AdL A a a cπ= − − (30)
4.2.1.2 Informação incompleta
A presença de informação incompleta no modelo implica em uma
incapacidade de o vendedor identificar se seus clientes possuem ou não cartão.
Dessa forma o comprador do tipo 2 pode escolher entre usar cartão ou dinheiro no
12 Nos limites do intervalo definido para o mesmo.
32
momento da compra. O modelo é alterado com a reintrodução da aresta d no nó t7
do jogo. Nessa aresta, no entanto, a solução é idêntica à do nó t8, já que os pay-offs
resultantes são iguais. Basta, então, descobrir qual meio de pagamento esse
consumidor escolherá, ou seja, qual oferecerá uma maior utilidade para esse agente.
Essa análise será feita comparando os excedentes dos consumidores, cuja solução
também permitirá concluir se existe problema de seleção adversa, ou seja, se algum
tipo de consumidor, se possível, terá incentivo a se passar pelo outro. É necessário,
então, considerar os dois casos analisados.
4.2.1.2.1 Caso 1 – Restrição de participação inativa
Nesse caso a comparação é feita entre (21) e (22):
2 21 1 2 ,
8 2 2 2A c a c A a c− −⎛ ⎞ ⎛ ⎞≥ ↔ ≥ −⎜ ⎟ ⎜ ⎟
⎝ ⎠ ⎝ ⎠
o que é sempre verdade nesse caso. Isso significa que o excedente do consumidor
do tipo 2 é maior do que o do consumidor do tipo 1. Isso é simples de ser
interpretado. O cartão de crédito permite um financiamento sem custo. Como
mencionado antes, não são cobrados juros sobre o capital financiado por um
pequeno período (geralmente um mês). Assim, em vez de gastar dinheiro, o
consumidor pode poupar o montante e receber juros sobre ele até o momento da
liquidação da fatura.
Porém não há problema de seleção adversa, já que o consumidor do tipo 1
quer, mas não consegue se passar pelo de tipo 2.
33
4.2.1.2.2 Caso 2 – Restrição de participação ativa
Quando a restrição de participação do vendedor é ativa, claramente não há
nenhum problema de seleção adversa, já que os excedentes dos dois tipos de
consumidores são iguais ((27) = (28)).
4.2.2 Solução com restrição à discriminação de preços
Suponha agora que a regra de não-discriminação de preços esteja ativa, ou
seja, a adquirente impõe uma cláusula contratual impedindo o vendedor de cobrar
preços diferentes para compras saldadas com cartão de crédito, e/ou existem regras
legais que impeçam tal discriminação, como é o caso no Brasil. Nesse caso, o jogo
original fica restrito a escolha de somente um preço no nó t3 ( ˆp p p= = ), que será
denominado p̂ . No modelo adaptado o vendedor tem a opção de não aceitar o
cartão (n) e escolher um preço p%a ser cobrado na venda em dinheiro ou aceitar o
cartão (s) e escolher um preço p̂ para todas suas vendas.
O processo de resolução do jogo deve novamente ser conduzido,
introduzindo agora essa restrição institucional. Mas observe que algumas etapas do
jogo não são modificadas, de forma que o equilíbrio nelas permanece o mesmo.
Esse é o caso nos nós t4, t6 e t8. Além disso, a aresta d do nó t7 pode ser novamente
retirada, já que o consumidor do tipo 2 nunca escolherá o meio de pagamento à
vista devido ao ganho (no excedente do consumidor, preços homogêneos e A > a)
associado ao uso do cartão. Sendo assim, a solução nesse nó também permanece a
mesma.
34
Os nós relevantes para esse caso, então, são t1, t2, t3. Adotando novamente
o processo de resolução por indução retroativa, tem-se que em t3 o vendedor resolve
o novo problema:
ˆ
ˆ ˆ ˆ ˆmax ( )( ) (1 )( )( ),p
p c t A p p c a pπ π− − − + − − −
cuja solução, pela simples aplicação da condição de primeira ordem, é:
( ) (1 )( ) (1 )ˆ2 2
A c t a c A a c tp π π π π π+ + + − + + − + += = (31)
Note na primeira equação que o preço passa a ser uma combinação linear
dos preços antes prevalecentes, o que corresponde à existência de um subsídio
cruzado entre os consumidores, e, além do mais, no pior sentido, do consumidor de
baixa demanda para o de alta.
O lucro esperado do vendedor, nesse caso, será:
[ ]
2 2 22 2
ˆˆ ˆ ˆ ˆ ˆ( )( ) (1 )( )( )ˆ ˆ ˆ( ) (1 ) ( )
(1 ) (1 )(1 )2 2
(1 )2
(1 ) (1 )2 4 2 2
L l p c t A p p c a pp c A a p t A p
A a c t A a c tA a c
A a c tt A
A a c t A a c ttA t
π ππ π π
π π π π π ππ π
π π ππ
π π π ππ π π π
+ = − − − + − − −= − + − − − −
+ − + + + − + +⎛ ⎞⎛ ⎞+ − − −⎜ ⎟⎜ ⎟⎝ ⎠⎝ ⎠=
+ − + +⎛ ⎞− −⎜ ⎟⎝ ⎠
+ − − + − +⎛ ⎞= − − + +⎜ ⎟⎝ ⎠
=22 (2 ) (1 ) (1 )
4 2 2t A a c A a ct π π π ππ π − − − − + − −⎛ ⎞ ⎛ ⎞− +⎜ ⎟ ⎜ ⎟
⎝ ⎠ ⎝ ⎠
[ ] [ ]22 1ˆˆ( )( ) 2 (2 ) (1 ) (1 )4
L l t t A a c t A a cπ π π π ππ
⎧ ⎫+ = − − − − − + + − −⎨ ⎬⎩ ⎭
(32)
Observe que [ ]2(1 )ˆˆ( )(0) 0,4
A a cL l
π π+ − −+ = > ou seja, o vendedor tem lucro
esperado positivo se a taxa de desconto cobrada for nula, o que era esperado. O
impacto de variações marginais de t no lucro esperado do vendedor pode ser
calculado derivando esse em função de t:
35
[ ]{ }
[ ]
ˆˆ( )( ) 2 2 (1 ) (1 )4
( (1 )( ) .2
L l t t A A a ct
t c A A a
π π π
π π
∂ += − + − − − −
∂
= + − + − −
É necessário agora descobrir se esse valor é positivo ou negativo. Espera-se
que seja negativo, ou seja, o lucro do vendedor varia de forma inversa a variação da
taxa de desconto. Assim, se t aumentar o lucro do vendedor diminui. A comparação,
então, a ser realizada é:
( ( (1 )( )) 0 (1 )( ).2
t c A A a t A c A aπ π π+ − + − − < ↔ < − + − −
A figura 8 expressa essa relação.
Figura 8 Impacto das variações marginais de t no lucro do vendedor
O sinal positivo da derivada, como mostrado na figura, parece um resultado
estranho, pois significa que o lucro do vendedor aumenta com aumento da taxa de
desconto. Porém, note que esse ponto de inflexão está fora do intervalo definido
para t. Assim, no intervalo factível para t, onde as funções estão bem comportadas,
a função de lucro do vendedor é decrescente em t.
No nó t2, o vendedor define sua condição de participação. Ele aceita se seu
lucro quando aceita cartão de crédito for maior que lucro quando não o aceita:
((32) > (14)).
t
ˆˆ( )( )L l tt
∂ +∂
ˆˆ( )( )L l t+
(1 )( )A c A aπ− + − − 0
Negativo Positivo
36
2
ˆˆ( )( )2
a cL l t −⎛ ⎞+ > ⎜ ⎟⎝ ⎠
( ) ( )22 212 (2 ) (1 ) (1 ) ( )t A a c t A a c a cπ π π π ππ
⎡ ⎤↔ − − − − − + + − − > −⎢ ⎥⎣ ⎦
[ ] [ ]22 22 (1 )( ) ( ) ( ) ( ) 0t A c A a t A a a c a cπ π π π↔ − − + − − + − + − − − ≥
[ ] [ ]2 2 (1 )( ) ( ) ( ) 2( ) 0t A c A a t A a A a a cπ π↔ − − + − − + − − + − ≥
Resta saber se esse polinômio possui raízes reais. Seu discriminante
reduzido é:
[ ] [ ]2' (1 )( ) ( ) 2( ) ( )A c A a A a a c A aπ π∆ = − + − − − − − + −
Observe que o menor valor que o primeiro termo da subtração pode ter é
quando 1π = :
2( ) .A c−
Por outro lado, o maior valor que o segundo termo pode atingir também é
quando 1π = :
[ ] [ ][ ]( ) 2( ) ( )( ) ( ) ( )A a a c A a A a A c a c A c a c A c a c− − + − = − − + − = − − − − + −
2 2 2 2( ) ( )( ) ( )( ) ( ) ( ) ( )A c A c a c a c A c a c A c a c= − + − − − − − − − = − − −
Portanto, '∆ será sempre maior que zero e haverá duas raízes reais para o
polinômio, que são:
[ ] [ ]21 (1 )( ) (1 )( ) ( ) ( ) 2( ) 0t A c A a A c A a A a A a a cπ π π= − + − − + − + − − − − − + − >
[ ] [ ]22 (1 )( ) (1 )( ) ( ) ( ) 2( ) 0t A c A a A c A a A a A a a cπ π π= − + − − − − + − − − − − + − >
Note que 2 10 (1 )( )t A c A a tπ< < − + − − < . Graficamente:
37
Figura 9 Restrição de participação do vendedor sem discriminação de preços
Seja 2max 2t t= = Γ − Γ −Σ , em que:
(1 )( )A c A aπΓ = − + − −
[ ]( ) ( ) 2( ) ,A a A a a cπΣ = − − + −
Então, a melhor resposta do vendedor dado t é:
max
max
s se t tn se t t
≤⎧⎨ >⎩
(33)
Finalmente, em t1 a adquirente escolhe a taxa a ser cobrada do vendedor.
Se este aceitar, o lucro esperado daquela será:
(1 )ˆ ˆ( ( )) ( ( ))2
A a c ttD p t t A p t t A π π ππ π π + − + +⎛ ⎞= − = −⎜ ⎟⎝ ⎠
(1 )( ) ( )2 2
A a A c tt t tπ π ππ π− − + − −⎛ ⎞= = Γ −⎜ ⎟⎝ ⎠
(34)
A condição de primeira ordem é:
02
t t tπ ππΓ
Γ − − = → = (35)
É preciso verificar agora se a solução encontrada satisfaz a restrição de
participação do vendedor:
ˆˆ( )( )L l t+
t
2
2a c−⎛ ⎞
⎜ ⎟⎝ ⎠
2t 1t
(1 )( )A c A aπ− + − −
38
2 2max
112 2
t tπ πΓ ⎛ ⎞≤ ↔ ≤ Γ − Γ −Σ ↔ Γ − > Γ −Σ⎜ ⎟
⎝ ⎠
Para verificar a desigualdade é preciso analisar 2 casos, no primeiro a
restrição de participação do vendedor é ativa e no segundo inativa.
4.2.2.1 Caso 1 – Restrição de participação ativa
Nesse caso max12 1 2 t tπ π< ↔ < → > , então a condição de participação do
vendedor não é satisfeita. Assim, essa será ativa e a adquirente escolherá:
max .t t= (36)
Substituindo (36) em (34):
2 2max max( ) ( ) ( )
2 2AdL t tπ ππ π⎡ ⎤= Γ − = Γ − Γ −Σ Γ − Γ − Γ −Σ⎣ ⎦
2(1 2 ) ( )2π π π⎡ ⎤= − Γ Γ − Γ −Σ + Σ⎣ ⎦ (37)
Comparando esse lucro com (30), o lucro do caso 2 sem restrição legal, tem-
se:
2( )( ) (1 2 ) ( )2 2
A a a cπ π π π⎡ ⎤− − < − Γ Γ − Γ −Σ + Σ⎣ ⎦
2( )( ) (1 2 ) ( )A a A c π π↔ − − < − Γ Γ − Γ −Σ + Σ
Tome 12π = . Então a condição acima se torna:
21 1 ( )( )( ) ( ) 2( ) ( )( ),2 2 2 4
A a A aA a a c A a a c A a a c− −⎡ ⎤− − < Σ = − + − = + − −⎢ ⎥⎣ ⎦
o que é verdade. Portanto, se π for suficientemente grande (perto de 12 ), a
adquirente prefere a restrição legal.
A situação do consumidor pode ser verificada comparando seu excedente
nesse caso com (5), o excedente quando há diferenciação de preços:
2 2ˆ( ) ( )ˆ( , ) ,
2 2A p A pEXC p D − −
= > pois
39
(1 )ˆ, .2 2
A c t A a c tp p pπ π π+ + + − + += = <
Portanto, o consumidor do tipo 2 também prefere a restrição legal. O
consumidor do tipo 1 é prejudicado, já que:
22 ( )ˆ( )ˆ( , ) ,
2 2a pa pEXC p d−−
= < pois
(1 )2 2
a c A a c tp a A tπ π π+ + − + += < ↔ < +
4.2.2.2 Caso 2 – Restrição de participação inativa
Nesse caso max1
2 t tπ > → < , então a condição de participação do vendedor
é satisfeita. Assim, essa será inativa e a adquirente escolherá:
.2
tπΓ
= (38)
Seu lucro esperado será:
( )2 2 2 2 4 2
t tπ ππ ππ πΓ Γ Γ Γ⎛ ⎞ ⎛ ⎞Γ − = Γ − = Γ −⎜ ⎟ ⎜ ⎟⎝ ⎠ ⎝ ⎠
2
8Γ
= (39)
Comparando as expressões (39) e (24), correspondendo, respectivamente,
aos lucros da adquirente com e sem restrição de preços, verifica-se que:
[ ]2 2 1 (1 )( )
2 2 8A c A c A c A aπ π
π− Γ⎛ ⎞ < ↔ − < − + − −⎜ ⎟
⎝ ⎠ (40)
( ) (1 )( ),A c A c A aπ π↔ − < − + − −
o que é sempre verdade. Portanto, aqui também a adquirente prefere a regra de
preço único. O consumidor de tipo 1 também encontra-se em uma pior situação com
preço único, já que esse preço p̂ é maior que p .
40
4.3 Conclusão
Todos os resultados confirmam a crítica feita nesse trabalho. A proibição da
discriminação de preços garante um maior lucro para a indústria de cartão de crédito
em detrimento de boa parte da população mais pobre do Brasil, que não tem
condições de possuir um cartão de crédito. A situação da população com maior
poder aquisitivo melhora. Portanto, uma melhor regulação na indústria de cartões de
crédito deveria usar, no lugar da regra de não discriminação (no surcharge rule) uma
regra oposta, qual seja, proibir as cláusulas contratuais que vedam a cobrança de
preços maiores para compras pagas com cartão de crédito, como adotado em outros
países.
4.4 A discriminação de preços e a neutralidade da taxa de
intercâmbio
A conclusão do modelo desenvolvido condena a não discriminação de
preços, já que ela possibilita a transferência de renda da classe mais pobre da
população para a classe mais alta e para a indústria de cartão de crédito. Entretanto,
apesar de fornecer interessantes insights, algumas características básicas do
mercado foram desconsideradas, como a externalidade de rede, a presença de
outros agentes, as outras taxas cobradas dos portadores e outras. Um modelo que
considerasse toda a realidade seria extremamente complexo e trabalhoso. No
entanto, um ponto que merece destaque, evidenciado por vários autores (Gans e
King, 2001 e 2003; Rochet e Tirole, 2002; Chakravorti, 2003; Hunt, 2003), é a
conseqüência da discriminação de preços na estrutura de incentivo do mercado,
mais especificamente, na taxa de intercâmbio.
41
Como já visto, a taxa de intercâmbio balanceia a demanda dos dois lados do
mercado. Suponha a passagem de um ambiente sem diferenciação de preços e com
uma taxa de intercâmbio it para um cenário com diferenciação de preços. Suponha
agora que a bandeira, que determina a taxa de intercâmbio, deseja aumentar o
número de portadores no mercado e para isso aumente a taxa de intercâmbio em
it∆ . Isso significa que em cada transação envolvendo cartão de crédito, a receita da
administradora aumenta em it∆ , como explicado no capítulo 3. A administradora
repassa, então, seu benefício para os portadores na forma de menores taxas (ou
maiores benefícios, como milhas aéreas, promoções etc.) cobradas desses. Frente a
um menor custo, mais consumidores passam a ter incentivo a adquirir e utilizar o
cartão de crédito.
Por outro lado, na ponta oposta da cadeia, o aumento na taxa de
intercâmbio aumenta o custo da adquirente no mesmo montante it∆ . Essa repassa
esse custo para os vendedores, os quais ficam insatisfeitos com a maior taxa de
desconto13. Como a discriminação de preços é agora permitida, o vendedor repassa,
também, seu maior custo para os consumidores, aumentando os preços para as
compras realizadas com cartão de crédito.
Por fim, o aumento da taxa de intercâmbio, com o objetivo de atrair um maior
número de portadores para a plataforma, causa efeitos opostos ao portador. Por um
lado, as taxas cobradas a esses pelas administradoras são menores. Por outro, os
preços cobrados pelos vendedores são maiores. Note que os montantes, tanto do
acréscimo como do decréscimo, são exatamente iguais, no valor de it∆ .
13 Na verdade, os vendedores também recebem certo benefício ao aumentar a taxa de intercâmbio.
O número de consumidores de alta demanda aumenta, como explicado no parágrafo imediatamente anterior, alavancando as vendas dos estabelecimentos comerciais. Porém, um aumento de custos, mesmo com aumento de benefícios, traz sempre muito protesto. Como no caso dos consumidores, explicado na introdução, o desejo é ter um maior benefício sem custos.
42
A conclusão é que a taxa de intercâmbio, o principal instrumento da bandeira
para coordenar o mercado, torna-se totalmente neutra. A bandeira perde a
capacidade de controlar os incentivos, e conseqüentemente o balanceamento entre
os dois lados. No mercado apresentado no capítulo 3, isso significaria que a
danceteria não mais teria controle sobre a proporção entre homens e mulheres
freqüentadores da casa, motivo suficiente para a ruína do negócio. Nas palavras de
Rochet e Tirole (2002):
The key insight is that diffusion of payment cards can no longer be influenced by the interchange fee, since the interchange fee is entirely passed through by merchants to cardholders. […] We thus conclude that card surcharges inhibit the diffusion of payment cards.14
14 Tradução livre: O principal insight é que a difusão do cartão de crédito não mais pode ser
influenciada pela taxa de intercâmbio já que essa é inteiramente passada dos vendedores para os consumidores. Concluímos assim que a discriminação de preços inibe a difusão dos cartões de crédito.
43
5 EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS
A última abordagem proposta por este trabalho é sobre a efetividade da
discriminação de preços quando esta é permitida. Para isso, é interessante analisar
a situação de países que já tomaram essa providência, como Austrália, México,
Suécia e Holanda. O caso australiano envolveu um grande debate entre os órgãos
reguladores (o Reserve Bank of Austrália e a Australian Competition and Consumer
Commission) e a associação local de bancos (Australian Bankers Association). As
autoridades mencionadas elaboraram minuciosos pareceres (Reserve Bank of
Austrália e Australian Competition and Consumer Commission, 2000) tomando
medidas enérgicas, como a regulação das taxas de intercâmbio e proibição das
cláusulas de contrato que vedam a discriminação de preços entre meios de
pagamentos. Segundo os dois órgãos, nessa situação o consumidor estaria livre
para escolher o meio de pagamento que lhe oferecesse a melhor combinação entre
conveniência e preço. Outros órgãos como, por exemplo, o U.K. Monopolies and
Mergers (1989)15, têm a mesma posição.
Chang, Evans e Swartz (2005)16 estudaram os impactos da regulação
adotada no mercado. No que diz respeito à sobretaxação, os autores afirmam que
poucos estabelecimentos adotaram essa prática (2,3% de todos os
estabelecimentos comerciais). A regulação da discriminação de preços não gerou,
então, impactos significativos.
15 Monopolies and Mergers Commission, Credit Card Services: A Report on the supply of credit card
services in the United Kingdom. Londres: HMSO, 1989. O Monopolies and Mergers Commission foi substituído pelo Competition Commission em 1999.
16 Ver também os comentários desse trabalho em Farrell (2005.
44
Estudos similares foram feitos também em dois países europeus que tiveram
a regra de não-discriminação abolida, a Suécia (Vis e Toth, 2000) e a Holanda (ITM
Research, 2000). Ambos os estudos chegaram a conclusões parecidas de que a
abolição quase não afetou o sistema, tanto em utilização e aceitação do cartão (por
comerciantes e consumidores) quanto de condutas praticadas. Poucos foram os
estabelecimentos que realmente adotaram a sobretaxação. Segundo esses, a
conduta de sobretaxar transações envolvendo cartões de crédito tem impacto
negativo nos consumidores e conseqüentemente na receita do estabelecimento,
motivo pelo qual essa conduta é evitada.
A experiência mexicana é um pouco diferente das aqui expostas. Segundo
Negrín (2005), a autoridade de defesa da concorrência do México iniciou, em 1993,
uma investigação do seu mercado de cartão de crédito. A motivação partiu da
preocupação com a similaridade das taxas de desconto e das taxas de juros de
todos os cartões. Chamava atenção também da Competition Commission as altas
taxas de lucratividade do setor, maiores do que as apresentadas pelo setor
financeiro do México e do mercado de cartão de crédito de outros países.
Com base nas investigações realizadas, a Competition Commission firmou
um acordo com os principais bancos em 1994. Esse acordo tratou de alguns
aspectos da sobretaxação. Foram proibidas as cláusulas contratuais que vedavam
descontos para compras pagas com dinheiro mas ainda era permitida a cláusula que
proibia a sobretaxação para compras pagas com cartão de crédito. O impacto desse
acordo no mercado é incerto, segundo Negrín (2005).
O que fica claro nas experiências anteriores é a ineficácia da regulação aqui
estudada17. O insucesso deve-se, talvez, a uma pequena adesão à medida. Se não
17 É preciso considerar que tais estudos investigam os impactos apenas no curto-prazo, devido ao
fato de que a regulação desse mercado é muito recente.
45
adotada pela maioria dos estabelecimentos, os consumidores que desejam pagar
com cartão têm incentivos para desviar suas demandas para estabelecimentos
substitutos que não sobretaxam, como parece ser o caso dos países mencionados.
A sobretaxação deveria ser realizada por todos os estabelecimentos, talvez através
de uma força maior, uma lei, por exemplo. Assim, o impacto inicial seria um boicote
aos cartões de crédito como punição pelo preço mais elevado. Tal recusa cercearia
o poder de mercado das bandeiras, que seriam obrigadas a reduzir seus preços
frente à concorrência dos outros meios de pagamento, que são consideravelmente
mais baratos.
Outro problema da sobretaxação são os altos custos de transação (Hunt,
2003; Gans and King, 2002) e, mais especificamente, os “custos de menu”18, como
mencionado pela Australian Bankers Association (2001) em resposta a posição
emitida pelo Reserve Bank of Austrália e pela Australian Competition and Consumer
Commission. Como as taxas cobradas variam para cada cartão de crédito, a
discriminação deveria ocorrer não somente entre meios de pagamento, mas também
entre cartões de crédito. Segundo essa associação, esse tipo de discriminação seria
extremamente impopular, já que os consumidores não saberiam o preço final do
bem ou serviço até a conclusão da compra e escolha do instrumento de pagamento
e sua marca. A solução deste problema, como no caso anterior, seria a efetiva
concorrência dentro dos meios de pagamento, que faria convergirem as taxas das
diferentes bandeiras para um patamar próximo19, permitindo a adoção de um único
preço para transações realizadas com cartão de crédito.
18 De forma caricaturada, o custo de menu seria como se o dono do bar tivesse que mudar seus
preços constantemente, alterando seus cardápios (menu). Isso teria o custo de estar sempre refazendo seus cardápios.
19 Pode-se dizer que em concorrência perfeita o preço convergiria para o custo marginal. As empresas que tivessem um custo acima do nível de mercado seriam excluídas como forma de penalidade pela ineficiência.
46
Outra possível interpretação para o fenômeno observado está baseada nas
características desses países e das suas populações. As análises, exceto a do
México, foram feitas em países desenvolvidos e que possuem uma alta renda per
capita bem distribuída por toda a população. Dessa forma, pode-se inferir que a
grande maioria dos habitantes desses países possui cartão de crédito. Isso significa,
no modelo desenvolvido no capítulo anterior, que π é muito alto. Sendo assim, por
(31) observa-se que o preço sem diferenciação está muito próximo do p , o preço
para compras com cartão de crédito quando a discriminação é possível. Ao liberar o
mercado, então, não haveria grandes alterações, já que o mercado para
consumidores do tipo 1 praticamente não existe nesses países.
Tal política no Brasil poderia ter conseqüências totalmente adversas das
experiências apresentadas, justamente pelo fato de diferir nas suas características.
O Brasil, país em desenvolvimento, possui baixa renda per capita e péssima
distribuição de renda. A grande maioria da população não tem acesso a cartões de
crédito, ou seja, π é baixo. Assim, p̂ está mais próximo de p . Dessa forma, a
discriminação de preços poderia modificar radicalmente a estrutura de preços
estabelecida, encarecendo compras realizadas via cartão e barateando as via
dinheiro, eliminando o subsídio cruzado existente.
Conclui-se que, apesar da abolição da regra de não-sobretaxação ser, a
princípio, desejada, sua implementação deve ser cautelosamente estudada frente ao
risco de não ter nenhum efeito e ao custo de tal política. Como visto, a abolição da
regra e adoção da sobretaxação por parte de apenas alguns estabelecimentos é
ineficaz devido ao processo de substituição por parte dos consumidores. Os estudos
de caso apresentados levam a esse entendimento. Já a adoção por todo o conjunto
dos estabelecimentos impediria o processo de desvio de demanda. Entretanto, o
47
incentivo ao desvio unilateral permaneceria, o que significa que esta solução, para
ser estável, exigiria um instrumento de comprometimento crível ente os agentes,
punindo eventuais desvios20. Uma vez obtido esse comprometimento, o subsídio
cruzado cessaria, beneficiando (em termos de custos) os consumidores que
optassem por concluir a transação com um instrumento alternativo ao cartão de
crédito.
20 Entre os possíveis instrumentos de comprometimento estariam, naturalmente, os dispositivos
legais ou infralegais que tornassem a sobretaxação obrigatória ou, equivalentemente tornassem descontos para pagamentos em dinheiro obrigatórios, o que não significa que este comprometimento não deveria ser precedido de uma negociação entre as partes e o governo.
48
6 CONCLUSÃO
O presente trabalho, motivado pela discriminação de preços entre meios de
pagamento (cartão de crédito e dinheiro) que vem ocorrendo nos postos de gasolina
de Brasília e pela proibição dessa discriminação pela justiça brasileira, tentou
averiguar tal conduta, utilizando, para isso, um modelo de teoria de jogos. Buscou-se
analisar o impacto dessa restrição sobre a população mais pobre e sobre o lucro da
indústria de cartão de crédito. Antes de modelar a situação, foi necessário conhecer
os agentes que participam desse mercado (portador, estabelecimento comercial,
adquirente, administradora e bandeira) e as transações existentes entre eles.
Em um segundo momento foi discutida a emergente teoria de mercados de
dois lados, que rege o mercado de cartão de crédito. Esses mercados, em franca
expansão, são caracterizados pela presença de externalidades de rede entre dois
tipos de consumidores distintos, que não conseguem internalizar as externalidades
por meio de uma simples negociação entre eles. Surge, então, uma plataforma que
permite a interação desses agentes. Essa plataforma deve inicialmente resolver o
problema do “ovo e da galinha”. Isso porque não há demanda de um lado do
mercado sem que o outro lado já exista, devido ao efeito de rede. A solução mais
freqüente é a utilização de altos subsídios em um dos lados. Resolvido esse
problema, a plataforma deve manter ambos os tipos de consumidores no seu
sistema, o que é feito via uma estrutura de incentivos (geralmente refletida na
precificação de ambos os lados). Esse é o papel da taxa de intercâmbio no mercado
de cartão de crédito.
49
Analisado o mercado em que o setor de cartões de crédito se insere, é
possível modelá-lo de forma a buscar os resultados relevantes. Vários aspectos da
teoria de mercados de dois lados foram omitidos para fins de simplificação, mas
ainda assim os resultados permitiram interessantes insights. Foi demonstrado que a
regra de não discriminação de preços, sempre existente entre contratos firmados
entre os estabelecimentos comerciais e as adquirentes, bancos daqueles, e
reforçada pela justiça brasileira, beneficia os consumidores que podem portar um
cartão de crédito em detrimento daqueles que não o podem. Há, efetivamente, um
subsídio cruzado entre esses agentes. Além disso, os lucros das adquirentes são
sempre alavancados com a restrição de preço único, o que explica a posição das
adquirentes favorável à exigência do preço único.
O fato evidenciado é simples de ser justificado. A aceitação do cartão de
crédito por parte do vendedor possui um custo, e este é repassado aos
consumidores na forma de preços mais altos. Esse custo deveria ser pago pelo
consumidor que utiliza o cartão para quitar suas compras. Porém, ao homogeneizar
os preços, não só esses incorrem no custo adicional, mas também todos os outros
consumidores. O preço é, assim, aumentado para todos, mas em menor proporção
do que seria se aumentado apenas para os usuários de cartão. Configura-se, então,
o subsídio cruzado dos consumidores que não utilizam cartão para aqueles que o
usam.
Por fim, o trabalho discute, baseado em casos reais, se realmente ocorreria
a discriminação de preços se esta fosse permitida. Em países avançados em que a
discriminação é sustentada por lei, como a Suécia, Holanda e a Austrália, foi
contastado que esta não ocorre. Os estabelecimentos argumentam que o custo
reputacional da diferenciação é muito grande, e por isso evitam-na. Esse resultado
50
pode ser também fruto das características desses países, todos ricos e com
distribuição de renda satisfatória. Dessa forma, a maioria da população tem acesso
ao cartão de crédito, praticamente excluindo a relevância do outro segmento. Estudo
relativo ao México, país com características de desenvolvimento mais próximas do
Brasil, ainda não obtiveram resultados conclusivos sobre o efeito da sustentação
legal da diferenciação de preços. De acordo com os resultados obtidos no modelo
estudado, espera-se que no Brasil, país em que grande parte da população é pobre,
não tendo acesso ao dinheiro “de plástico”, a discriminação de preços poderia
resultar em benefícios ao menos favorecidos ao romper o subsídio cruzado vigente
sob a legislação atual.
51
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