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A relação entre o terceiro setor e o poder público: análise da política de combate à extrema pobreza no município de Osasco Marcela Bauer, Maria Cristina C.P. Galvão, Aaron Pierce In: XVIII CLAD, 2013, Montevideo. Anais do XVIII CLAD, 2013. I - Apresentação O tema escolhido para o desenvolvimento deste artigo é o da “relação entre as organizações não estatais e o poder público”. Para tanto, foi definido como objeto a política pública de combate à miséria executada pelo município de Osasco, atualmente denominada Osasco Sem Miséria (OSM). Analisamos a relação estabelecida entre a Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Inclusão (SDTI), responsável por essa política pública, e as organizações não governamentais (ONGs) atuantes nos seus respectivos programas. Como objetivo complementar, procurou identificar o perfil e as características das organizações que fazem parte dessa relação. Para dar conta desse objetivo, visitamos a bibliografia sobre os temas de gestão de organizações não estatais, pobreza no Brasil e políticas públicas. Realizamos entrevistas em profundidade com alguns atores da Secretária da SDTI: o Assessor da Secretária para os programas de combate à miséria da SDTI, o Coordenador do Programa Osasco Digital e técnicos do Instituto de Tecnologia Social (ITS). O artigo mostra a importância que a política pública assume na relação entre poder público e organizações do terceiro setor, na medida em que, por meio dela, essa relação é concretizada e adquire uma dinâmica. Posteriormente, é realizada uma análise mais aprofundada a respeito das organizações do terceiro setor que fazem parte do Osasco Sem Miséria. Essa análise irá privilegiar a sua diversidade e os “julgamentos”, transformados em consensos, sobre essas organizações. A última parte do artigo é dedicada às considerações. Procurou-se destacar as questões que são importantes para a qualificação de uma relação de parceria que trata do tema da miséria, tema esse que tem assumido uma importância cada vez mais estratégica no cenário brasileiro. II. Contexto e justificativa Osasco é um dos importantes municípios do estado de São Paulo que compõem a região metropolitana. Podemos dizer que é uma cidade nova já que foi fundada em 1962 e teve seu desenvolvimento baseado na atividade industrial dos anos de 1960 e 1970. Sua população atual ultrapassa o número de 700 mil habitantes e seu PIB é um dos maiores dos municípios brasileiros. Ter um bom índice de PIB não significa que todos os seus habitantes possuam um bom nível econômico. Assim como diversos municípios brasileiros, Osasco se depara com uma intensa desigualdade social e econômica. A história do município conta que a crise econômica pela qual as indústrias passaram na década de 90 foi decisiva para diminuir a qualidade de vida de sua população. Entre 1985 e 2004 mais de 20 mil empregos industriais foram eliminados no município.

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Page 1: A relação entre o terceiro setor e o poder público ... · ... relação entre poder público e organizações do terceiro setor, ... recortado no conjunto das ideias da economia

A relação entre o terceiro setor e o poder público: análise da política de combate à extrema pobreza no município de Osasco

Marcela Bauer, Maria Cristina C.P. Galvão, Aaron Pierce

In: XVIII CLAD, 2013, Montevideo. Anais do XVIII CLAD, 2013.

I - Apresentação

O tema escolhido para o desenvolvimento deste artigo é o da “relação entre as organizações

não estatais e o poder público”. Para tanto, foi definido como objeto a política pública de combate à

miséria executada pelo município de Osasco, atualmente denominada Osasco Sem Miséria (OSM).

Analisamos a relação estabelecida entre a Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Inclusão

(SDTI), responsável por essa política pública, e as organizações não governamentais (ONGs)

atuantes nos seus respectivos programas. Como objetivo complementar, procurou identificar o

perfil e as características das organizações que fazem parte dessa relação.

Para dar conta desse objetivo, visitamos a bibliografia sobre os temas de gestão de

organizações não estatais, pobreza no Brasil e políticas públicas. Realizamos entrevistas em

profundidade com alguns atores da Secretária da SDTI: o Assessor da Secretária para os programas

de combate à miséria da SDTI, o Coordenador do Programa Osasco Digital e técnicos do Instituto

de Tecnologia Social (ITS).

O artigo mostra a importância que a política pública assume na relação entre poder público e

organizações do terceiro setor, na medida em que, por meio dela, essa relação é concretizada e

adquire uma dinâmica.

Posteriormente, é realizada uma análise mais aprofundada a respeito das organizações do

terceiro setor que fazem parte do Osasco Sem Miséria. Essa análise irá privilegiar a sua diversidade

e os “julgamentos”, transformados em consensos, sobre essas organizações.

A última parte do artigo é dedicada às considerações. Procurou-se destacar as questões que

são importantes para a qualificação de uma relação de parceria que trata do tema da miséria, tema

esse que tem assumido uma importância cada vez mais estratégica no cenário brasileiro.

II. Contexto e justificativa

Osasco é um dos importantes municípios do estado de São Paulo que compõem a região

metropolitana. Podemos dizer que é uma cidade nova já que foi fundada em 1962 e teve seu

desenvolvimento baseado na atividade industrial dos anos de 1960 e 1970. Sua população atual

ultrapassa o número de 700 mil habitantes e seu PIB é um dos maiores dos municípios brasileiros.

Ter um bom índice de PIB não significa que todos os seus habitantes possuam um bom nível

econômico. Assim como diversos municípios brasileiros, Osasco se depara com uma intensa

desigualdade social e econômica. A história do município conta que a crise econômica pela qual as

indústrias passaram na década de 90 foi decisiva para diminuir a qualidade de vida de sua

população. Entre 1985 e 2004 mais de 20 mil empregos industriais foram eliminados no município.

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Em igual período, a taxa de desemprego aberto na cidade passou de 7,5% para 12,7% e a taxa de

assalariamento formal caiu de 58,9% para 44,7% dos ocupados (GUERRA, 2012:40).

As condições de vida em Osasco nos anos 2000 eram bastante alarmantes. Cerca de 10% da

população encontrava-se em situação de pobreza. Esse índice significava que 20 mil famílias

estavam em situação de miséria. (IBGE, 2002 apud GUERRA, 2012). Atualmente o município

possui 6,5 mil famílias vivendo nessa situação.

A política pública de combate à miséria desenvolvida em Osasco, segundo entrevistados do

governo local e consulta a documentos e publicações, foi alicerçada em três eixos: políticas

redistributivas (baseadas na transferência de renda), políticas emancipatórias (sustentadas por ações

de promoção de cidadania e promoção social, que são ações relacionadas à educação e qualificação

e também de geração de ocupação e renda) e políticas desenvolvimentistas (relacionadas às ações

que se preocupam com a autonomia da população excluída tais como inclusão digital).

A partir de 2011, com o lançamento do Programa Federal Brasil Sem Miséria1, a política

local ganha força e apoio do governo federal. Força no sentido em que as diretrizes de suas ações

passam a ser concomitantes com as da política federal e apoio porque no que compete aos

municípios, dentro do contexto do pacto federativo, o governo federal passa a apoiar por meio de

recursos financeiros. É preciso apontar que os arranjos institucionais, ou seja, as maneiras como

esferas distintas de governo se relacionam, são fundamentais para o sucesso das políticas públicas e

o fato de o município de Osasco ser governando pelo mesmo partido que o governo federal facilita

muito as articulações políticas e o acesso a recursos. A experiência do combate à extrema pobreza

em Osasco também influenciou parte do desenho do programa nacional Brasil Sem Miséria,

principalmente no que se refere ao eixo de inclusão produtiva já que esta temática constitui-se como

centralidade em diversas ações do poder local.

Este artigo debruça-se sobre a relação entre o poder público e o terceiro setor na gestão da

política de combate à miséria no município. A estratégia adotada pelo governo de Osasco, desde

2005, é a de criar um conjunto de programas sociais e econômicos que buscam o desenvolvimento

local e o enfrentamento da pobreza por meio da geração de ocupação e renda (CAZZUNI et al.,

2008:13).

Para encerrar este adendo sobre arranjos institucionais e pacto federativo, os agentes

públicos entrevistados não apontam articulações significativas com o governo do estado de São

Paulo, que por sua vez é governado pelo partido político de oposição. Isto aponta que o desenho e a

execução de políticas públicas são bastante influenciados pela questão das alianças políticas no

âmbito da divisão do poder.

Para desenvolver os programas, a SDTI - responsável pelas ações de combate à pobreza -

realiza diversas articulações. A primeira é o que podemos chamar de articulação interna, pois

procura estabelecer ações conjuntas com os diversos órgãos municipais, promovendo articulação e

integração para evitar desencontros de intervenções públicas sobre os mesmos problemas

(GUERRA, 2012:43). A outra, que pretendemos dar foco neste estudo, é com articulação com a

sociedade civil e com o terceiro setor.

Para que nosso objeto de estudo, ou seja, a relação entre o terceiro setor e o poder público,

fique bem claro, o estabelecimento de algumas definições e conceituações fez-se necessário.

1É uma política social, de caráter redistributivo que tem o objetivo de erradicar a miséria no Brasil por meio da inclusão

social e produtiva a população alvo. Iniciado em junho de 2011, o programa pode ser considerado como a continuidade,

ou a segunda etapa, de uma iniciativa de combater a pobreza que tinha como alicerce a transferência direta de renda às

pessoas em situação de miséria (BAUER, GALVÃO e LOTTA, 2012:02).

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Na literatura, na mídia e no senso comum os termos terceiro setor, organizações não

governamentais (ONGs) e movimentos sociais se misturam. Na realidade é difícil realizar estas

definições sem esbarrar nos limites de um e de outro. Segundo Aquino Alves, o terceiro setor

compreende um universo vasto de formas organizacionais: organizações voluntárias, ONGs,

congregações, cooperativas, organizações de ajuda-mútua etc. (ALVES, 2002:01)

Neste estudo consideraremos o terceiro setor como sendo o campo de entidades sem fins

lucrativos que tem expressão e atuação nas mais variadas áreas sociais (FERRAREZI, 2001). Mas

para entender este conceito é válido compreender a origem do termo terceiro setor:

“Terceiro Setor” é termo que foi recortado no conjunto das ideias da economia

clássica, para a qual a sociedade é dividida em setores, de acordo com as

finalidades econômicas dos agentes sociais, entendidos como agentes de natureza

jurídica pública e agentes de natureza jurídica privada (WEISBROD, 1988).

Assim, agentes de natureza privada que praticam ações com fins privados (bens

privados) podiam ser descritos como o “Primeiro Setor”, setor ao qual

corresponderia o Mercado; agentes de natureza pública que praticam ações que

visam a fins públicos (bens públicos) podiam ser descritos como o “Segundo

Setor”, setor ao qual corresponderia o Estado. E, por via de consequência, agentes

de natureza privada que praticam ações visando a fins públicos podiam ser

descritos como o “Terceiro Setor”. (ALVES, 2002:07)

Ainda de acordo com Aquino Alves, o conceito de ONG se confunde muito com o de

terceiro setor. ONG é termo muito frequente, nos países em desenvolvimento, quase sempre para

designar organizações que se dedicam a promover o desenvolvimento econômico e social,

tipicamente no nível comunitário e de base (GARDNER e LEWIS, 1996 apud ALVES, 2002, 04).

O termo movimentos sociais diz respeito aos processos não institucionalizados e aos grupos

que os desencadeiam, às lutas políticas, às organizações e discursos dos líderes e seguidores que se

formaram com a finalidade de mudar, de modo freqüentemente radical (...) as formas de interação

individual e os grandes ideais culturais (ALEXANDER, 1998:01).

Alves considera que na América Latina, o termo ONG foi adotado para designar

organizações que surgiram dos movimentos sociais e das lutas contra as ditaduras que se instalaram

no continente durante os anos 60 e 70 (LANDIM, 1988; FERNANDES, 1993). Isso faz com que o

termo ONG tenha nessa região uma conotação muito mais politizada do que em outras partes do

mundo. (ALVES, 2002:05). Durante as pesquisas feitas para realizar este estudo, assim como as

entrevistas com agentes de uma ONG, pudemos perceber que os fundadores de algumas entidades

que atuam em parceria com o poder público de Osasco foram militantes em movimentos sociais.

Este fato valida a concepção inicial do debate sobre o terceiro setor no qual a distinção rígida entre

os formatos de organização dos atores deste campo não se faz necessária.

Percebe-se que o governo atual de Osasco destaca a participação dos movimentos e das lutas

sociais na história do município:

A história de Osasco faz parte das lutas sociais no Brasil. Desde o inicio do século

XX, com a luta em torno da Cooperativa de Vidreiros de Osasco, passando pela

mobilização em prol da emancipação do município, nos anos 50, até a deflagração

das pioneiras greves operárias de contestação ao regime militar, em 1968, o

município sempre apresentou uma dinâmica social combativa e participativa.

(CANUZZI et al., 2008:19)

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O trecho acima faz parte da introdução e contextualização das ações relacionadas à

economia solidária que o município desenvolve em parceria com entidades que não fazem parte do

poder público. Em seguida, o poder público local explicita que apóia a formação de cooperativas,

associações, grupos comunitários e redes solidárias.

Com estes programas, Osasco ousa um novo modelo de economia a partir de

programas de desenvolvimento local, um modelo que supere políticas que apenas

amenizam a pobreza ou geram estratégias marginais de sobrevivência na periferia.

Osasco aposta nas organizações econômicas coletivas permanentes, na capacidade

de trabalhadores urbanos e rurais se transformarem em membros de

empreendimentos e proprietários de patrimônio. A Prefeitura apóia administração

coletiva e soberana, a cooperação entre os grupos e empreendimentos da mesma

natureza, a inserção comunitária, a adoção de práticas democráticas e de

cidadania. (CANUZZI et al., 2008:2)

Os agentes entrevistados afirmaram que as políticas no tema que é o foco deste estudo

envolvem sempre diversos atores fora do âmbito do estado. Pode-se dizer que nessa política o

reconhecimento da necessidade de convidar membros da sociedade civil organizadas, entidades de

classe e organizações do setor privado para atuar junto ao Estado para promover políticas sociais é

percebido como fundamental. Foi possível perceber que o papel do estado e o papel das entidades

não estatais estão muito bem definidos para a gestora do programa Osasco Sem Miséria.

Segundo os entrevistados, é função do Estado promover o desenvolvimento social e este não

deve ficar a cargo da sociedade civil. Encontramos 4 (quatro) funções ou atividades que as

entidades não estatais exercem nesse contexto. O primeiro é participação na mesa de discussão na

etapa da formulação das políticas. O segundo é atuar na execução de atividades e atendimento de

demandas quando o poder público não tem expertise (pela novidade do tema, como é o caso da

inclusão digital) ou não faz sentido aumentar a sua estrutura para realizar uma tarefa (como é o caso

de realização de capacitação e qualificação de profissionais). Ele ainda é parceiro importante

quando tem mais penetração nas comunidades carentes que o poder público, desempenhando um

papel valioso na intermediação da relação estado-sociedade. Por fim, cabe indicar que o terceiro

setor é ator importante no controle social das ações públicas.

Tendo em vista o cenário descrito, este trabalho analisa como se dá o relacionamento entre

estado e entidades não estatais na gestão da política pública de combate a miséria. Aprofunda o

entendimento do papel das entidades não governamentais em cada um das fases do ciclo da política

pública e realizar uma análise mais aprofundada a respeito das organizações do terceiro setor que

fazem parte do Osasco Sem Miséria. Nesta análise delineia-se o perfil e as características de

algumas das organizações que atuam junto ao poder local neste contexto.

III. A política pública na relação entre o poder público e a organizações do terceiro setor

Conforme já apontado, o município de Osasco em sua história política sempre contou com

um intenso trabalho envolvendo as organizações do terceiro setor. Na década de 90, para tratar a

questão da miséria, o governo municipal passou a interagir com a população mais pobre oferecendo

cursos profissionalizantes. A partir de 2005, muda-se a abordagem em relação ao enfrentamento da

miséria. Com uma visão mais abrangente, além da questão da profissionalização, a sua superação

passa a envolver questões relativas aos demais direitos de cidadania.

Com um novo conceito sobre a miséria, altera-se também a relação estabelecida com as

organizações do terceiro setor. Segundo depoimento da Secretária da SDTI, o governo atual de

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Osasco buscou o saber acumulado dos setores organizados da população para construir políticas

conjuntas. Articulou-se com as lideranças locais – igrejas, associações, população mais pobre – e

criou conselhos gestores, órgãos de controle, sempre dentro de uma perspectiva coletiva. Nessas

articulações, além do saber e experiências acumulados, o governo buscou também apoio para sua

proposta de trabalho. Foram criados espaços de negociação com a participação das lideranças

locais, sindicatos, empresários, organizações do terceiro setor e poder público para definir o que

fazer com os recursos.

A estratégia definida foi a de empreender a inclusão social enquanto a miséria não for

erradicada. Num primeiro momento, garantindo-se a renda imediata para, posteriormente,

aproximar essa população das políticas emancipatórias, ou seja, políticas que ofereçam condições

para gerar renda própria. Para a sua execução, adotou-se a matricialidade com os demais órgãos do

poder municipal, as Secretarias, bem como o estabelecimento de parcerias com entes federados,

universidades e entidades do terceiro setor, enfim, com aqueles que têm conhecimento acumulado

para enfrentar determinados problemas. Essas instituições possuem saberes não identificados no

setor público.

Além do apoio político e da contribuição para a definição e formulação da política pública,

as instituições do terceiro setor têm também desempenhado papel fundamental nas instâncias de

controle social dos programas de combate à pobreza. Cada programa possui um comitê gestor,

responsável pelo monitoramento e avaliação de seus resultados, com participação de instituições da

sociedade civil. Outro papel de suma importância assumido pelas organizações do terceiro setor é o

de articular setores da sociedade para pressionar o governo a desenvolver determinadas ações.

A análise da política pública de combate à miséria como referência para avaliar a relação

entre poder público e entidades do terceiro setor mostra claramente o quanto as políticas públicas

qualificam a relação entre Estado e sociedade e, mais especificamente, a relação entre o poder

público e as entidades do terceiro setor. A análise da política pública indica o quanto esse estado é

autoritário ou democrático; como se dá a participação; quais são as prioridades estabelecidas pelo

Estado; a quem essa essas políticas privilegiam; quem são os atores participantes.

Enfim, é possível avaliar o grau de democratização de uma sociedade por meio da

confluência de atores que participam do desenvolvimento das políticas públicas. São atores que têm

a capacidade de mobilizar recursos políticos, técnicos, materiais e financeiros para promover

alterações na realidade. Eles podem ser públicos ou privados.

Os atores públicos estão situados no âmbito do Estado e são representados pelos gestores

públicos, juízes, parlamentares e outros atuantes nas esferas governamentais. Já os atores não

estatais podem ser identificados na sociedade como empresários e trabalhadores e suas respectivas

instâncias de representação, a mídia, além das entidades do terceiro setor. Exercem papéis distintos.

Enquanto os atores públicos têm o poder final de decisão, os atores não estatais podem influenciar

os governos na tomada dessas decisões, bem como compartilhar ações relativas ao desenvolvimento

dessas políticas públicas.

Para melhor analisar o papel desempenhado pelas entidades do terceiro setor participantes

da política pública de combate à miséria em Osasco, adotamos como referência o ciclo de políticas

públicas. O ciclo representa o caminho percorrido pelas políticas públicas, desde o instante no qual

se decide que uma questão pública será enfrentada - agenda2-, passando para a formulação

3 de seu

2 A agenda é o conjunto de problemas a serem enfrentados, por meio de políticas públicas. Em um contexto

democrático, a formação da agenda não se encontra sob o controle de um único ator, mas, sim sob o controle de

diversos atores. Muitos atores sociais participam desse processo, buscando priorizar o enfrentamento de certos

problemas, em detrimento de outros. 3A etapa da formulação corresponde ao momento seguinte à transformação do problema em política pública. Aqui é

necessário que o problema seja analisado e compreendido, principalmente por aqueles que serão responsáveis pelo

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desenho, o momento de sua execução4, o seu monitoramento, os ajustes a serem promovidos,

finalizando com a avaliação de seus resultados5. Pode-se afirmar que o ciclo é um método de

análise que permite a avaliação dos recursos, processos e atores, em cada uma de suas fases,

contribuindo para a superação dos problemas encontrados. É importante destacar que as fases do

ciclo não ocorrem necessariamente em sequência.

A situação mais comum verificada em uma política pública é a diversidade de uma fase para

outra. Os recursos, processos e atores costumam ser muito distintos em cada uma delas. De modo

geral, ao se estabelecer uma comparação entre as fases do ciclo de políticas públicas e a

participação do terceiro setor nas políticas de combate à pobreza de Osasco, verifica-se essa

diversidade. Observam-se organizações e papéis diferenciados para o terceiro setor em cada uma

dessas fases. Quando analisamos a formação da agenda, verifica-se a participação de organizações

que vivenciam o dia a dia das populações mais pobres, como as associações de bairro, a igreja,

aquelas vinculadas aos movimentos sociais. A SDTI envolve os atores sociais para discussão das

ações a serem priorizadas.

Para a fase da formulação, a interação entre poder público e as entidades do terceiro setor de

Osasco que atuam diretamente nas áreas de extrema pobreza foram fundamentais para compreensão

da abrangência do problema. Além disso, algumas entidades com saberes específicos relacionados a

diagnósticos desempenham um papel importante para a compreensão e priorização de determinadas

ações. Como exemplo, podemos citar o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Socioeconômicos (DIEESE) que tem uma parceria com a SDTI para a gestão do observatório do

emprego.

Na fase da execução, a SDTI envolve muitas vezes o trabalho de organizações do terceiro

setor que possuem expertise na produção das atividades a serem desenvolvidas, como capacitação,

incubadoras e outras. Nessa fase é importante contar com metodologias e tecnologias específicas da

área social já experimentadas e avaliadas em outros contextos. Pode-se destacar aqui o Instituto de

Tecnologia Social (ITS) que provê capacitação profissional e desenvolve incubadoras de

empreendimentos.

Conforme já citado, com relação ao monitoramento e avaliação, todos os programas de

combate à miséria de Osasco são acompanhados por Conselhos Gestores com participação do

governo, da sociedade e das ONGs. Esses conselhos têm 10 membros, sendo 6 da comunidade e 4

da prefeitura para dar a maioria à comunidade. Além da avaliação dos trabalhos em

desenvolvimento, são criadas novas pautas de políticas públicas.

O aperfeiçoamento da democracia com participação amplia de modo expressivo o número

de atores, para além do Estado, em todas as fases do ciclo das políticas públicas. Cada vez mais

essas fases dependem, para seu pleno desenvolvimento, de recursos políticos, técnicos e

administrativos, muitas vezes não concentrados em uma única instituição ou em um único ator. As

organizações do terceiro setor, muitas vezes, possuem habilidades específicas.

Podemos citar como exemplo ilustrativo dessa análise o Programa Incubadora de

Empreendimentos Populares e Solidários. A proposta de inclusão produtiva por meio de incubadora

foi incluída na agenda a partir de uma discussão com setores da sociedade civil: o DIEESE

planejamento do programa. Nessa fase são consideradas todas as informações a respeito do problema e as possíveis

alternativas de solução. 4 A etapa da execução corresponde ao momento de fazer o que foi planejado.

5 A última fase do ciclo, monitoramento e avaliação, consiste no acompanhamento da execução da política pública. Os

dados relativos à execução possibilitam uma avaliação dos resultados que vem sendo obtidos, permitindo assim uma

análise da eficácia e efetividade da política pública. Essa atividade deve ser permanente, tornando possível a realização

de ajustes visando sua adequação às mudanças de contexto e às exigências da sociedade.

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contribuiu com dados da economia de Osasco; o ITS ficou responsável pelo desenvolvimento da

incubadora; e o comitê gestor acompanha e avalia os resultados.

De modo mais detalhado, coube ao ITS fazer o delineamento metodológico do programa;

promover discussões a respeito dos conceitos de economia solidária e empreendedorismo, bem

como identificar e contratar os instrutores.À SDTI coube a coordenação geral do programa; a

seleção dos beneficiários pelo Osasco Inclui; o financiamento e o fornecimento de espaço físico,

além da promoção da Feira de Economia Solidária com a produção dos projetos incubados.

Em termos gerais, verifica-se que uma das principais funções da SDTI é a da articulação de

atores, tecnologias e recursos. O poder público, como ator principal do desenvolvimento de uma

política pública em todas as suas fases, tem necessariamente que assumir o papel de coordenador

dessas relações na medida em que é o principal ator responsável pela instituição e resgate da

cidadania.

Em termos administrativos, a parceria entre as entidades do terceiro setor e o poder público

é estabelecida por meio de instrumento jurídico que varia de acordo com a entidade. Pode ser

contrato, termo de parceria, contrato de gestão ou convênio. Essa definição dependerá do perfil da

figura jurídica da entidade do terceiro setor e do tipo de parceria.Os recursos humanos, materiais e

tecnológicos necessários ao desenvolvimento dos projetos em geral estão incluídos no orçamento da

entidade contratada, que, por sua vez, é fiscalizado pelo Tribunal de Contas do Estado e da União,

além dos controles internos do Poder Executivo.

No entanto, a situação administrativa dessas entidades tende a ser muito complicada. Uma

primeira questão diz respeito à sua autonomia financeira. As entidades do terceiro setor, na sua

maioria, dependem exclusivamente de projetos públicos. Quando os contratos terminam, perdem

seus profissionais, em geral, para os governos.

Quando se encontram em fase de execução de um projeto, a fiscalização tende a ser

extremamente burocrática voltada essencialmente para os procedimentos, desconsiderando qualquer

outro critério que não seja o cumprimento rígido de regras. O resultado dessa rigidez é dificuldade

que essas organizações têm de prestar contas dos recursos públicos dos projetos contratados pelo

governo federal. A prestação, além de extremamente detalhada e procedimental, tem de ser feita

duas vezes (apresentação de documentos e colocação de dados no SICONV, que é uma ferramenta

auxiliar da gestão físico-financeira dos convênios). Segundo os entrevistados, para se ter uma ideia,

90% das notas têm valores inferiores à R$100,00.

Por essas questões, encontra-se em discussão no Governo Federal um novo marco

regulatório que venha a solucionar tais obstáculos e contribua para o desenvolvimento profissional

dessas instituições, dotando-as de condições mais apropriadas para participar dessa relação com o

setor público.

Enfim, ao se analisar a relação entre setor público e entidades do terceiro setor por meio da

política de combate à miséria percebe-se uma grande interação entre todos os atores que fazem

parte dessa relação. Destaca-se também que as entidades do terceiro setor cumprem um papel

importante em cada uma das fases do ciclo da política sob a coordenação da SDTI. Essa análise, no

entanto, não exime o terceiro setor de uma série de críticas com relação à sua forma de atuação. São

críticas generalizadas e relacionadas ao seu grau de profissionalização e idoneidade, que, numa

avaliação mais acurada e circunscrita a uma dada realidade, tendem a se mostrar infundadas para

boa parte dessa amostra.

IV. Diversidade das ONGs em parceria

Através da literatura e as entrevistas no campo, identificamos um conjunto de variáveis

importantes para uma parceria entre organizações não-governamentais (ONGs) e o poder público.

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Como foi citado acima, existe uma grande diversidade de tipos de ONGs. Essa diversidade também

se apresenta na implementação do Programa Osasco Sem Miséria (OSM). As variáveis que

compõem a diversidade das ONGs influenciam o sucesso de uma parceria ONG-poder público.

Concentraremos a análise dessas variáveis nas três organizações parceiras que surgiram em nossas

entrevistas com a SDTI.

Variáveis de ONGs na Literatura

Segundo Sylvia Roesch (2002), há cinco variáveis principais que distinguem as ONGs –

foco setorial, orientação, nível de operações, prestação de contas, e ciclo de vida da organização. O

foco setorial contempla as áreas de atuação da ONG como educação, saúde, meio ambiente e

mais.A orientação de uma ONG considera seu tipo de atividade ou papel desempenhado para

cumprir sua missão.Exemplos comuns dessas atividades incluem serviços de bem-estar,

desenvolvimento de capacidades, campanhas políticas, educação cidadania, pesquisa e ação em

rede. O nível de operações refere-se à abrangência geográfica da organização que pode ser

comunitária, regional, nacional ou internacional. A fonte da prestação de contas pode ser

internamente feita por conselhos ou dirigentes, externamente realizada por parceiros ou o público,

ou múltipla incluindo uma mistura de pressões internas e externas. Por final, os ciclos de vida de

ONGs seguem uma seqüência de desenvolvimento da seguinte forma: surgimento, expansão,

consolidação e liquidação.

Mário Aquino Alves (2002) acrescenta à análise das ONGs a variável de racionalidade.

Uma ONG, assim como indivíduos e outros tipos de organizações, atua com motivos diferentes em

variados momentos e ações. As racionalidades indicadas por Alves são instrumental, substantiva,

afetiva, e tradicional. A instrumentalidade é marcada por decisões tomadas à base do cálculo de

custos e benefícios entre fins, meios e conseqüências de diversas ações sociais. Decisões que

surgem da racionalidade substantiva são motivadas pelos valores da organização. A racionalidade

afetiva permite que as emoções dominem a ação da organização. Em contraste, costumes históricos

dirigem a racionalidade tradicional. Vale ressaltar que uma ONG pode exercer racionalidades

diferentes em determinados momentos, mas vai tender a ser guiada por uma racionalidade de modo

geral.

Variáveis Adicionais de ONGs Segundo a Experiência do BSM

Além dessas variáveis destacadas por Roesch e Alves, nós identificamos mais quatro

variáveis mencionadas pelos entrevistados6 como significativas às parcerias envolvidas no BSM

com o Instituto de Tecnologia Social, o Coletivo Digital, e o ‘Sistema S’ (e.g. SENAI e SENAC).

Segundo os entrevistados, a identidade jurídica, a capacidade profissional, a seriedade, e o

engajamento da ONG tem muita influência no seu desempenho.

A diversidade de identidades jurídicas foi citada como um fator importante na estrutura e

sustentação de uma ONG trabalhando em parceria com o governo. Por exemplo, uma associação de

bairro tende a ser pouca estruturada e não tem recursos financeiros. Uma OSCIP, por obrigação

legal, tem uma estrutura mais definida como um estatuto e controles internos. Assim, ela teria

condições básicas para concorrer a recursos públicos. A identidade jurídica de uma ONG pode

determinar como o poder público estabelece, ou não, uma parceria. Por exemplo, uma parceria entre

uma agência federal no Programa Brasil Sem Miséria e o OSM não exige recursos financeiros da

Prefeitura, fato que pode facilitar o envolvimento dessa entidade na execução do programa.

A diversidade de capacidade profissional engloba tanto a gestão da ONG quanto a

execução das suas políticas e é vista como um fator crítico para o sucesso de uma parceria em que a

6Entrevistas incluiram dirigentes da SDTI-Osasco e do Instituto de Tecnologia Social. O Coletivo Social e o Sistema S

foram discutidos apenas nas últimas entrevistas antes de completar esse trabalho. Entrevistas com essas organizações

seriam úteis para se ter uma perspectiva de todos os partidos envolvidos.

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ONG tem que prestar serviços à comunidade. Atividades de gestão numa ONG geralmente incluem

planejamento; controle de processos e recursos; coordenação de membros, funcionários e

voluntários; captação de recursos; interação com outras ONGs; formação de parcerias com outros

setores; cumprimento do estatuto; e flexibilização do corpo dirigente (SOARES e MELO, 2010).

Exemplos da execução das políticas de uma ONG incluem atividades como a prestação de serviços

à comunidade; a entrega de recursos e relatórios; a manutenção do patrimônio; e a comunicação

exterior. Classificaremos a capacidade profissional de uma ONG como alta, média ou baixa

dependendo do desempenho dessas atividades típicas na parceria com a SDTI.

A diversidade de seriedade indica que algumas ONGs exercem seu trabalho com

integridade, transparência, consistência e responsabilidade enquanto em outras faltam essas

qualidades. Ressalvamos que gestores entrevistados que representam os dois setores, governo e

terceiro setor, usaram o mesmo termo – ‘ONGs sérias’. Especificamente, ONGs sérias são aquelas

que não desviam verbas, prestam contas, são auditadas, pagam corretamente seus funcionários e

trabalham em conjunto com a população que faz parte de seu trabalho, considerando-a como ator e

não objeto. As ONGs consideradas não idôneas foram descritas como aquelas que desviam recursos

para campanhas políticas, não respondem às demandas ou necessidades dos seus parceiros, e são a

principal causa da desconfiança do terceiro setor pelos agentes públicos e cidadãos. No contexto de

uma parceria, seriedade pesa muito na formação e continuação de um relacionamento entre o poder

público e uma ONG.

A diversidade de engajamento refere-se ao comprometimento que a ONG tem com sua

própria causa social ou com a causa definida pela parceria. Segundo os entrevistados, esse

compromisso com a causa deve impulsionar a ONG a ir além das cláusulas contratuais na busca do

melhor para o público-alvo da política. O engajamento se manifesta nesse esforço a mais; na

motivação para buscar outros recursos ou parceiros; no envolvimento da comunidade na

formulação, implementação e avaliação da política; e na paixão dos próprios funcionários a respeito

do seu trabalho. Embora essa variável seja muito subjetiva, ela é citada como algo essencial para

parcerias que servem comunidades vulneráveis.

Com essas dez variáveis principais identificadas pela literatura e as entrevistas de campo,

podemos caracterizar os parceiros da SDTI-Osasco de acordo com sua atuação no BSM segundo a

tabela abaixo.

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Variáveis Significativas à Identificação de ONGs em Parceria com a SDTI-Osasco

Variável Instituto de

Tecnologia Social

Coletivo Digital Sistema S

(SENAI, SENAC)

Racionalidade Substantiva Substantiva(?) Instrumental

Foco Setorial Capacitação profissional

e articulação econômica

Capacitação digital Capacitaçãoprofissional

Orientação Desenvolvimento, Ação

em Rede, e Pesquisa

Desenvolvimento e

Campanhas

Desenvolvimento,

Campanhas e Cidadania

Identidade Jurídica OSCIP OSCIP Serviços Sociais

Autônomos7

Nível de Atuação Comunitário Comunitário Nacional

Capacidade

Profissional

Alta Baixa Alta

Seriedade Alta Baixa Alta

Prestação de Contas Múltipa Múltipla Múltipla

Engajamento Alto Médio Médio

Ciclo de Vida Expansão Expansão Consolidado

Desempenho das ONGs Parceiras do OSM8

Não deve surpreender que o ITS foi considerado uma ‘ONG séria’ no contexto do OSM.

Apesar de ter poucos funcionários permanentes, ele conseguiu contratar instrutores muito capazes e

engajados para seus programas de capacitação profissional e incubação de empreendimentos. Ele

cumpre fielmente os requisitos dos seus Termos de Parceria como os relatórios fiscais e

programáticos. Neste ponto, o ITS citou as complexidades da burocracia a respeito de controle

fiscal e dos relatórios. Visto isso, é mais impressionante que o ITS tem recebido os elogios da

SDTI. Mais que isso, o ITS cobra a SDTI a respeito dos Termos de Parceria e as regulações

federais, algo que demonstra à Prefeitura sua alta capacidade e seriedade. Uma amostra do seu

engajamento é que o ITS muitas vezes se antecipa ao governo demonstrando necessidades e

oportunidades e procurando a participação de outras entidades na comunidade.

7 Mais modernamente, sobre o Sistema S também se manifesta o preclaro Prof. Diogo deFigueiredo Moreira Neto[2]:

Os serviços sociais autônomos são entes paraestatais,organizados para fins de amparo, de educação ou de

assistência social, comunitária ou restrita a determinadascategorias profissionais, como patrimônio e renda próprios,

que, no caso da União, pode ser auferida por contribuiçõesparafiscais, tudo obedecendo a parâmetros

constitutivosinstituídos por lei, que lhes confere delegação legal, nocampo do ordenamento social e do fomento público. 8Informações sobre o desempenho foram obtidas principalmente através das entrevistas com a SDTI.

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Em comparação, o desempenho do Coletivo Digital (CD) não foi considerado tão louvável.

Enquanto a ‘alta escalão’ da organização tenha uma boa capacidade comunicativa e relacional, a

execução dos funcionários ‘deixa a desejar. O CD tem tido dificuldade em produzir os relatórios

requisitados e em realizar as atividades delineadas nos Termos de Parceria. A SDTI esperava uma

atuação mais dinâmica e engajada, que estimulasse a participação, e que trouxesse novas

tecnologias sociais e experiências bem sucedidas. Ao contrário, a percepção é que o CD tem atuado

mais como uma empresa privada na provisão de cursos de computação e na busca por recursos

financeiros.Essa falta de engajamento é o que merece a interrogação na racionalidade substantiva da

\tabela das variáveis.

Os parceiros do Sistema S foram mencionados como bem organizados e bem-sucedidos nas

suas programações. Essas ONGs têm alta capacidade profissional de modo que são consideradas

quase-empresas. De fato, o SENAC e o SENAI arrecadam cerca de 50% e 38% dos seus próprios

recursos e têm estruturas robustas de liderança nos níveis nacional, regional e local (SENAC, 2012;

SENAI, 2012). Ao mesmo tempo, o Sistema S é quase-público dependendo em boa parte de

recursos compulsórios da receita da União. Assim, a Prefeitura não tem que se preocupar com o

monitoramento fiscal quando atua em parceria com o Sistema S.Também, como ONGs

consolidadas, o SENAC e o SENAI não estão tentando expandir suas áreas de atuação, algo que

torna elas em parceiras estáveis e confiáveis para o setor público.

Uma coisa conseqüente é que a SDTI deixou bem claro que sem as parcerias, mesmo com

suas dificuldades, ela não teria ajudado e capacitado tantos cidadãos para superar a pobreza.

V. Considerações finais

Uma primeira consideração a ser feita é da importância do terceiro setor para a população

alvo. Para os mais pobres, o terceiro setor representa um papel muito importante quando há falta do

Estado. Nesse tema, o terceiro setor tem um conhecimento acumulado que facilita a relação do

Estado quando passa a trabalhar com políticas sociais de combate à miséria. O setor público tem

dificuldade de acesso aos redutos mais carentes, além de desconhecer muitas vezes as tecnologias

sócias que podem ser mais efetivos dependendo do tipo de vulnerabilidade identificada.

Outra consideração, diretamente relacionada à primeira, diz respeito à participação. É um

valor presente consubstanciado na atuação das ONGs em comunidades carentes. No passado, as

ONGs desempenhavam um trabalho assistencialista. Hoje trabalham dentro de uma visão mais

consentânea com os princípios de uma sociedade democrática. Valorizam a participação dos atores,

o empoderamento, a apropriação de poder e a autonomia. Os governos mais democráticos procuram

assimilar essa prática e percebem sua a importância no momento de implementar políticas públicas

de combate à miséria. Dá-se um salto qualitativo nas relações e, conseqüentemente nos resultados

do trabalho, ao transformar a população em protagonista da sua própria história.

Assim para que a parceria entre o poder público e as entidades do terceiro setor seja

potencializada e bem sucedida em determinada política pública, é desejável que haja o apoio do

governo (‘vontade política’) e de atores sociais, articulados em organizações que disponham ao

mesmo tempo de engajamento com a causa e capacidade profissional. Ou seja, para se trabalhar em

conjunto, como parceiros, é preciso que haja convergência de missão, valores associados a

condições de trabalho.

A parceria do ITS com a SDTI é muito bem avaliada por atender a esses requisitos.

Enquanto a SDTI tem um programa de governo voltado essencialmente para a superação da miséria

num sentido amplo, o ITS tem histórico, expertise, relação estreita com os movimentos sociais, com

fácil acesso às comunidades carentes.

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Para que essa relação de parceria seja otimizada, precisa ser construída dentro de bases

muito negociadas. É preciso muita clareza a respeito do trabalho e das responsabilidades de cada

parte.

As entidades do terceiro setor, conforme já apontado, apresentam grandes dificuldades

administrativas, possuindo grande dependência do poder público para a sua sobrevivência, o que

acarreta muita instabilidade já que estabelece arranjos institucionais fracos ou muito ligados aos

partidos políticos. Essa situação leva a uma limitação de sua capacidade de reunir, ao mesmo

tempo, competência profissional e engajamento na causa objeto da relação.

Nesse sentido, uma relação contratual com uma ONG não pode prescindir de uma definição

mais precisa das expectativas do poder público em relação ao trabalho: o que a relação vai precisar?

O que o poder público espera da ONG e vice versa? Espera-se mais engajamento ou mais

profissionalização? Como é que o poder público pode contribuir para as eventuais vulnerabilidades

na medida em que dispõe de mais recursos?

Para que essas questões sejam minimizadas ou mesmo superadas, os representantes e

profissionais desse setor apostam na renovação do marco legal que ampara a relação com o poder

público. Como já foi mencionado, o governo federal vem investindo na reformulação de novos

marcos e parâmetros que ajudam a tipificar o que cabe ou não a essas organizações. Essa é uma

discussão que, com certeza, contribuirá para as divergências identificadas nessa parceria, na medida

em que o poder público muitas vezes parece exigir uma lógica privada nessa relação.

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Resenha biográfica

Aaron Pierce é cientista político e engenheiro aeroespacial formado pela University of Southern California, mestre de administração pública pela Columbia University School of International and Public Affairs, e mestrando em gestão e políticas públicas na Fundação Getulio Vargas. Ele tem experiência profissional como diretor de ONG e gestor de desenvolvimento comunitário em governos municipais. Email:[email protected]

Marcela Bauer é socióloga, formada pela PUC-SP e é mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Atualmente exerce o cargo de gestora de projetos educacionais na Egap-Fundap, a Escola de Governo do Estado de São Paulo da Fundação para o Desenvolvimento Administrativo. [email protected]; 55-11-8331-7749

Maria Cristina Pinto Galvão é administradora pública pela FGV, créditos de mestrado concluídos em Administração e Planejamento Urbano, pela FGV, e mestranda em Gestão e Políticas Públicas, também pela FGV. É técnica da Fundap em planejamento e gestão (afastada temporariamente). Atua como consultora independente na área de gestão pública governamental e organizacional, especialmente para escolas de governo. Endereço: Rua Guilherme Moura, 152 Alto de Pinheiros, São Paulo – SP – CEP 05449 010, telefones – 11 30216724 (res) e 11 91318415 (cel). E-mail –[email protected]

Resumo

Parcerias com organizações não governamentais (ONGs) são cruciais para a implementação de políticas de combate à pobreza como o Brasil Sem Miséria (BSM) porque muitas vezes ONGs possuem conhecimento, capacidades e acesso aos cidadãos que governos não têm. Relacionamentos ONG-setor público bem-sucedidos desfrutam de fortes linhas de comunicação, uma missão em comum, claras expectativas, e altos níveis de competência que geram confiança.

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O presente estudo ressalta a experiência da Prefeitura de Osasco (SP), a partir de 2005,

quando a abordagem em relação ao enfrentamento da miséria passa por uma transformação

conceitual. Com uma visão mais abrangente, que vai além da transferência de renda, a sua

superação da miséria passa a envolver questões relativas aos demais direitos de cidadania.

Com esse novo conceito, altera-se também a relação estabelecida com as organizações do

terceiro setor. O governo de Osasco buscou o saber acumulado dos setores organizados da

população para construir políticas conjuntas. Além do apoio político e da contribuição para a

definição e formulação da política pública, as instituições do terceiro setor têm também

desempenhado papel fundamental nas instâncias de controle social dos programas de combate à

pobreza.

O artigo aprofunda a análise a respeito das organizações do terceiro setor em Osasco por

meio da literatura e das entrevistas no campo, identificando um conjunto de variáveis importantes

para o estabelecimento de uma parceria entre organizações não-governamentais (ONGs) e o poder

público.

São dez variáveis que no seu conjunto contribuem para caracterizar os parceiros da

SDTI-Osasco de acordo com sua atuação no BSM, quais sejam: racionalidade; foco setorial;

orientação; identidade jurídica; nível de atuação; capacidade profissional; seriedade; prestação de

contas; engajamento e ciclo de vida.

Essas variáveis, que compõem a diversidade que caracterizam as ONGs, influenciam o

sucesso de uma parceria ONG-poder público e, neste artigo, foram adotadas como referência para

análise de três organizações parceiras que surgiram em nossas entrevistas com a SDTI, Secretaria

de Desenvolvimento, Trabalho e Inclusão, responsável pela política pública de combate à miséria

em Osasco.

Como conclusão, esse estudo permitiu verificar a importância do terceiro setor nas políticas

de combate à pobreza e também a diversidade de tipos de organização que o compõe. Além de

desempenhar um papel fundamental junto às comunidades muito carentes quando há falta do

Estado, pelo conhecimento e experiência acumulados, atua também no desenvolvimento de

tecnologias e em programas de capacitação não disponíveis no setor público.

No entanto, para que essas parcerias sejam mais efetivas é necessário que haja, além da

convergência de missão e valores consentâneos, condições adequadas de trabalho. Para tanto, as

dificuldades de gestão precisam ser enfrentadas pelas autoridades competentes de modo a diminuir

a dependência financeira do setor público para a sua sobrevivência.