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A RELAÇÃO ENTRE IMAGENS E TEXTOS EM O DESTINO DAS IMAGENS,
DE JACQUES RANCIÈRE
MARCUS VINNICIUS CAVALCANTE LEITE*
Como os textos (palavras) se relacionam com as imagens, esta é uma das questões
postas pelo filósofo franco-argelino Jacques Rancière (1940), em O destino das imagens
(2003). Como comentamos, falamos ou escrevemos sobre as pinturas? Olhar para elas, não
nos basta! Temos de nos expressar sobre elas, e, ao fazemos, produzimos palavras, textos e
livros. Poderíamos, também, produzir outras imagens sobre elas. Mas isso não é a questão que
ressaltaremos aqui, deixemos isso para um outro trabalho. Basicamente, o que pretendemos
apresentar neste trabalho é como as palavras se relacionam com as pinturas.
O filósofo franco-argelino compreende a leitura das imagens a partir do entendimento
da articulação entre o visível e o dizível. Especialmente na importância da “relação entre o
que a pintura realiza e o que as palavras fazem ver em sua superfície” (RANCIÈRE, 2012a:
85). Exporemos dois casos concretos sobre isso, apresentados pelo filósofo, no livro de 2003.
O primeiro é o comentário de Dennis Diderot (1713-1784), no Salão de Paris, em
1769, sobre o caso do pintor Jean-Baptiste Greuze (1725-1806) e sua pintura Sétimo Severo
censura Caracala (Figura 1). Greuze era conhecido por suas “belas” pinturas de gênero e
buscava consagração junto à Academia Francesa de Belas-Artes por meio de uma
representação histórica — estilo mais prestigiado e de maior reputação, pois exigia adequação
à norma específica. O parecer da Academia foi demolidor: “‘Senhor, a Academia recebeu
você, mas é como um pintor de gênero, ela tinha em conta suas antigas produções, que são
excelentes, e ela fez vista grossa para essa, que não é digna dela ou de você’” (citado em
DIDEROT, 1876, v.XI: 440). Diderot (1876, v.XI: 441) complementava a severa avaliação
assim: “O Sétimo Severo é desprezível em caráter, ele tem a pele nua e morena de um
condenado; sua ação é equivocada. [...] O Caracala é ainda mais desprezível que o pai dele;
ele é um vilão e um patife; o artista não tinha a arte de combinar maldade com nobreza”. Aqui
está a centralidade, as palavras não alcançaram a manifestação pictural do quadro de Greuze,
ficando presas à convenção da normatividade acadêmica na maneira de fazer vê-lo.
* Marcus Vinnicius Cavalcante Leite é doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná e bolsista da
CAPES.
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“Escurecer o rosto de um e acusar o outro de baixeza significa transformar o gênero nobre do
quadro histórico no gênero comum [pintura de gênero]” (RANCIÈRE, 2012a: 84).
Figura 1 Greuze, Sétimo Severo censura Caracala (1769)
(KINDERSLEY, 2012a: 12-13)
O segundo caso é o ensino do filósofo Georg W. F. Hegel (1770-1831), entre 1820 a
1829, nas lições de seu curso de estética na Universidade de Berlin, o qual só teria sua
publicação, entre 1835 a 1838 (KULTERMANN, 1996: 91). Neste curso, ele disserta sobre as
qualidades da pintura de gênero holandesa em relação à italiana. O filósofo alemão se
pergunta: “O que, pois, conduziu os holandeses a este gênero? Que conteúdo é expresso
nestas pequenas imagens que, no entanto, demonstram a mais alta força de atração?”
(HEGEL, 2001: 180). Dito de outra maneira, quais são os elementos que justificam a
manifestação de certos objetos picturais nos quadros holandeses? Encontramos no próprio
Hegel a resposta: será a liberdade conquistada pelo povo holandês que
construiu em grande parte ele próprio o terreno onde mora e vive, e é forçado a
defendê-lo e mantê-lo continuadamente contra o ataque do mar; os cidadãos das
cidades, assim como os camponeses [...] acabaram com o reinado espanhol de
Felipe II, [sobre o seu país] [...] e lutaram pela liberdade política [do mesmo modo]
como também na religião [protestante] pela liberdade religiosa [contra a igreja
católica] (HEGEL, 2001: 180).
Entendemos que é esse povo, e nenhum outro, que a partir de uma tríplice luta contra a
opressão da natureza do mar sobre suas terras, do déspota espanhol e do papado sobre suas
ideias reformistas que possibilitou chegar aos “sentimentos de uma liberdade conquistada por
eles mesmos” (HEGEL, 2000: 333). Portanto, a coragem, a dignidade e a alegria alcançadas
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se mostram na apresentação dos mestres pintores holandeses de suas tabernas, dos seus
instrumentos do cotidiano, de sua gente em cenas de extração de dentes ou na vida doméstica
variada. Hegel cita três destes mestres: Rembrandt Van Rijn (1606-1669), David Teniers
(1610-1690) e Jan Steen (1625-1679) — veja as Figura 2 e 3. E dirá, ainda, que o que é
próprio da pintura holandesa é “a intuição do que se encontra em geral no ser humano, no
espírito e no caráter humano, o que é o homem e o que é este ser humano” (HEGEL, 2002:
276; grifos no original). Além da capacidade de expressar o “espírito nacional”, Hegel
identificava, na arte pictórica holandesa, a qualidade da técnica do uso da cor, em especial o
claro-escuro. É “apenas a pintura, mediante a utilização da cor, que leva a plenitude da alma à
sua aparição propriamente viva” (HEGEL, 2002: 232). O verdadeiro pintor de quadro de
gênero expõe os seus objetos pictóricos no registro do insignificante, na efetividade do
detalhe ou na fugaz expressão de um rosto.
Figura 2 Jan Steen, Na luxúria, tenha cuidado (1663)
(KINDERSLEY, 2012b: 76)
Figura 3 David Teniers, O dentista (1652)
(KINDERSLEY, 2012b: 59)
Para entendermos melhor esses casos, urge analisar a proposta de Rancière sobre
os vários regimes de pensamento ou de identificação da arte. O que faremos daqui a
pouco. Antes, façamos uma rápida exposição sobre a noção rancièriana, que participa da
definição daqueles regimes: “partilha do sensível” (partage du sensible). “Vamos
entender aqui partilha [partage] no duplo sentido da palavra: comunidade e separação”
— diz Rancière (2018: 40). Ela é, por um lado, “separação” porque divide o mundo e as
pessoas de acordo com as funções e as suas capacidades; além, de ser determinada pelo
espaço e pelo tempo. Por outro, ela é “comunidade”, na medida em que aquilo que é
separado é compartilhado ou tornado comum, formando modos de percepção comum,
social. Estes modos são centrais para a noção, na medida em que uma “partilha do
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sensível é um sistema de relações entre modos de ser, modos de fazer, modos de dizer,
de pensar, de ver” (RANCIÈRE, 2015: 199).
Para melhor compreender esse termo de Rancière, devemos rastrear o seu
surgimento até a sua tese de doutorado, publicada em 1981, A noite dos proletários,
ainda que não apareça explicitamente. Dizemos isso, porque Rancière (2014: 120)
afirma:
eu não tinha a menor ideia desse conceito [partilha do sensível] quando
escrevi esse livro [...], e foi só quinze ou vinte anos mais tarde quando,
através desse termo, formalizei o terreno sobre o qual me aperfeiçoei em
conduzir a narrativa histórica, a argumentação filosófica ou a operação
literária.
Contudo, a concepção desse conceito está lá! O tema da tese é o processo de
emancipação dos trabalhadores franceses no século XIX. Nela, ele estuda a produção
literária do trabalhador de empreitada o marceneiro Louis-Gabriel Gauny (1806-89), o
qual narra, na imprensa operária ou em cartas, sua percepção em relação ao tempo, seja
ao romper com a partilha clássica entre o dia (trabalhar) e a noite (dormir), seja
construindo uma autonomia perante o controle diuturno do patrão. Esta autonomia é
expressa assim por Gauny (apud RANCIÈRE, 1988: 87):
Esse homem [marceneiro] se tranquiliza com a posse de seus braços, que
sabe melhor apreciar do que o diarista, porque nenhum olhar do patrão
precipita seus movimentos. [...] Sabe também que o empreiteiro se preocupa
muito pouco com o tempo que ele passa no trabalho, contanto que sua
execução seja perfeita.
Em relação às noites de sono, Gauny (apud RANCIÈRE, 1988: 74) as via
voltadas “para as alegrias do estudo, [nas quais] quer se desligar das preocupações
industriais [obreiras] e dedicar a noite ao prazer de aprender, ao encanto de produzir”. E
ele aprende, lendo os clássicos; e ele produz, para os seus iguais, escrevendo artigos
para jornais operários, como “O trabalho diário” para Le Tocsin des travailleurs, em
25/05/1848 (RANCIÈRE, 1988: 424). Ele busca, nessa ação de publicizar, uma nova
configuração da partilha do mundo dos trabalhadores. Como constata Rancière (2011:
7), os proletários procuravam se afirmar enquanto uma nova partilha no mundo comum
e, para tanto, eles “tiveram que reconfigurar sua vida ‘individual’, reconfigurar a
partilha do dia e da noite que, para todos os indivíduos, antecipava a partilha entre
aqueles que estavam ou não destinados a cuidar do comum”. Se a noção partilha de
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sensível não está nesta expressão, porém sua ideia estava. Ela se encontra na prática de
Gauny de propor uma divisão do tempo e buscar estabelecer os contornos de uma nova
comunidade.
Em suma, o que podemos entender do exemplo da prática desse marceneiro é
que a partilha do sensível é uma matriz organizadora, “entre uma forma de experiência
sensível e uma interpretação que faz sentido” (RANCIÈRE, 2009d: 275), na construção
de um modo de percepção do mundo comum. Este modo, na prática artística, se
constituirá, segundo Rancière (2009a), pelos regimes das artes. Estes regimes são, ao
mesmo tempo, determinados por uma partilha do sensível e promove uma coesão que
normalizam seus preceitos para toda a comunidade que eles regem. Agora, analisemos
cada um desses regimes.
Rancière (2012a: 83) afirma que a Arte, enquanto conceito como nós a
conhecemos, só tem uns dois séculos. “Ela nasceu num longo processo de ruptura com
o sistema das belas-artes”. Aqui, o filósofo franco-argelino está pensando no conceito
de Arte enquanto um processo de mudanças “nas decisões de reinterpretação daquilo
que a arte faz ou daquilo que a faz ser arte” (RANCIÈRE, 2009a: 36). Tentemos
entender o panorama apresentado. De certo modo, Rancière (2009a) ao olhar a história
da arte se contrapõe a algumas nomenclaturas consagradas pela mesma. Ele busca uma
outra perspectiva para entendê-la sobre outros parâmetros. Ele busca identificar quais as
condições de possibilidade de inteligibilidade que ordenam a compreensão da produção
e da recepção artística na história. Para tanto, ele desenvolve as noções de regimes como
parâmetro que balizam a avaliação dos produtos artísticos. Vejamos as características
deles, começando pelo regime poético das artes.
Há um entendimento de que o sistema de belas-artes está inserido em um
ordenamento, no qual pensa as artes dentro da lógica mimética. O sentido dado ao
conceito de mímesis, não é exclusivamente de produção de cópias em relação a um
modelo ideal ou real. Rancière (2009a: 31 e 2012a: 83 et seq.) dirá que não entende esse
conceito só como produtor de semelhanças, mas dirigindo a maneira de fazer ver a
relação entre o dizível e o visível na produção artística. Detalhemos esse conceito
ordenador da percepção histórica das artes. Rancière (2009a: 32) enuncia que as
características do ordenamento das sensibilidades conduzido pela mímesis são: “o
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primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a
hierarquia dos gêneros segundo a adequação dos seus temas, e o próprio primado da arte
da palavra, da palavra em ato”. Estes preceitos foram expostos por Aristóteles (384-322
a.C.), na Poética (323 a.C.). Porém, é na Ars Poetica (19 a.C.) de Horácio (65-8 a.C.)
que eles alcançam sua consagração e o início de sua influência no pensamento artístico.
Como nos ensina Seligmann-Silva (1998), a reflexão sobre uma teoria da arte surge de
uma dupla dependência: da poética (dos autores citados) e dos tratados de retórica
antiga, especialmente Do Orador (46 a.C.) de Cícero (106-43 a.C.), que nos conduz a
pensar a forma da arte marcadamente pela linguagem verbal. A expressão “ut pictura
poesis” (poesia é como pintura), de Horário (2005: 65), é considerada por Rancière
(2009b: 43) como um dos princípios que unifica o sistema das belas-artes, por meio do
conceito mímesis. Um dos maiores trabalhos, que expressa a articulação entre a retórica
e a poética, em referência as artes plásticas, é o livro de Leon Battista Alberti (1404-
1472), Da pintura (1435). Alberti (2014) se apodera das categorias da retórica como:
inventio (invenção), dispositio (disposição), elocutio (elocução), actio (ação) e memoria
(memória) para estruturar a compreensão da pintura (SELIGMAN-SILVA, 1998: 58,
n.7). Estes cinco preceitos da Retórica antiga são adaptados para a reflexão da artes
plástica por Alberti: circunscrição, composição e recepção de luzes se assemelham as
três primeiras partes da retórica. Segundo Rancière (2009b: 28), “a inventio faz a
eleição do tema, a dispositio organiza suas partes e a elocutio ornamenta
convenientemente o discurso”. Uma outra questão importante no trato de Alberti (2014:
128) é a pretensão de elevar as pinturas ao patamar das artes liberais (ligadas,
inicialmente, a atividade de homens livre, na antiguidade, tornou-se, no humanismo,
qualidade dos homens educados) em oposição as artes mecânicas (manuais). Esse
conjunto de características formaria o que Rancière (2009a: 30) chama de “regime
poético — ou representativo — das artes”. Este ordenamento representativo das artes se
contrapôs ao anterior “regime ético das imagens” (RANCIÈRE, 2012b: 109) e,
posteriormente, foi contestada pelo “regime estético das artes” (RANCIÈRE, 2012a:
86). Apresentemos estes outros ordenamentos de configuração da perceptibilidade das
artes.
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No regime ético, as produções artísticas não possuem autonomia, por isso
Rancière (2012b) adjetiva este ordenamento de “ético das imagens”. Neste regime não
temos a função da arte, mas a produção imagética que se pautava pelos critérios
religiosos, sociais e políticos da comunidade, centrada na noção de éthos. Os produtos
gerados por esse ordenamento são avaliados por seu vínculo imediato entre os
indivíduos e sua comunidade. Como as estátuas sagradas de certos deuses olímpicos
(pensemos em Palas Atena do artesão grego Fídias [480-430 a.C.]). Rancière (2012b:
109) cita, como exemplo, desse regime, a crítica do naturalista romano Plínio, o Velho
(24-79 a.C.), que no Livro XXXV, da sua famosa obra História Natural (79 a.C.),
expõe com irritação a prática dos romanos de acumular imagens estrangeiras em suas
casas que não dizem respeito ao seus antepassados. Isso decorre de que, no seu
entendimento, os objetos imagéticos, além de possuírem o caráter de verdade
(semelhança), necessitavam ter a função da fruição pública. Portanto, eles deviam
evocar o passado comum dos romanos e não dos “gentilícios” (PLINIO, 1995/96: 318).
Em outras palavras, os objetos imagéticos deve ter seu sentido definido organicamente a
partir da comunidade que os criou.
Como foi dito, o regime representativo tem sua expressão no sistema de belas-
artes, porém no final do século XVIII, este regime sofreu uma “ruptura”. Esta não deve
ser explicitada em uma mudança abrupta e absoluta entre os ordenamentos artísticos,
mas em uma alteração no estatuto da maneira de fazer, de ver e de dizer o objeto
sensível da arte. Isto é, na instauração de uma nova partilha do sensível. Esse novo
regime promoveu o rompimento com a normatividade da lógica mimética e desloca o
entendimento normativo da produção artística para a compreensão a partir da
materialidade sensível em cada arte particular. Com isso, “desobriga essa arte de toda e
qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gênero e artes” (RANCIÈRE,
2009a: 33-34). Neste regime, a arte se instaura a partir de uma “esfera de experiência
própria”, na medida em que “qualquer coisa pode entrar igualmente no reino da arte”
(RANCIÈRE, 2009c: 158). Entretanto, ao chamar esse regime da arte de “estético”, o
filosofo franco-argelino estava sujeito a gerar confusão de nomenclatura. Pois a palavra
estética foi nomeada por Alexander G. Baugartem (1714-162), em 1735, enquanto uma
disciplina filosófica, na qual “as coisas sensíveis são objetos da ciência estética
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(epistemé aisthetiké), ou então, da ESTÉTICA” (BAUGARTEM, 1993: 53; destaque no
texto). Rancière (2009e: 121) apressou-se para distinguir o uso da noção estética: “Por
um lado, nomeia um regime específico de identificação da arte, determinado
historicamente. Por outro lado, nomeia uma dimensão da experiência humana em
geral”. Para a segundo distinção, chamou de “‘estética primeira’ no sentido de que
mesmo as práticas, que não são ‘artísticas’, como a política, pressupõem a configuração
sensível de um determinado mundo” (RANCIÈRE, 2009c: 157). Enquanto, para a
primeira distinção, quis usar a palavra estética para nomear um novo ordenamento
artístico, que surge como uma contraposição à expressão “modernidade artística”, a qual
é entendida pela história da arte como instauradora de uma ruptura entre o figurativo e o
abstrato, a partir da qual começaríamos um novo período artístico — o termo
“modernidade” é considerado por Rancière (2009a: 37) como “uma noção equívoca”, a
qual transmitiria uma falsa ideia de sentido progressista no campo das artes. Não
obstante a questão terminológica, Rancière (2010: 210) caracteriza a prática artística no
regime estético “por sua multitemporalidade, a ilimitação do representável e o caráter
metamórfico de seus elementos”. Dito de outro modo, este regime rompera com
qualquer normatividade, seja na relação entre forma e conteúdo, seja na regência de
uma partilha hierárquica do sensível.
As definições ou caracterizações dos regimes não são imposições taxativas em
Rancière (2009a), elas não são “camisa de forças” na apreensão das realidades artísticas
históricas, mas instrumento heurístico para a interpretação das práticas do fazer, do ver
e do dizer nas artes. Após tantas voltas conceituais, retornemos aos casos concretos
expostos acima.
Para analisarmos a relação entre as palavras e as imagens, nos casos em tela,
foquemos em um princípio enunciado por Rancière (2012a: 19): a “equivalência
reversível ente o mutismo das imagens e sua fala”. Este princípio disparatado vela uma
conversibilidade entre duas potências da imagem: “a imagem como presença sensível
bruta e a imagem como discurso cifrando uma história” (RANCIÈRE, 2012a: 20).
Pensemos estas potências na investigação da imagem da arte (o nosso foco aqui).
Portanto, ao nos propor analisar o quadro de Greuze e os quadros holandeses, citados
por Hegel, devemos problematizar “a relação entre superfície de exposição das formas e
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[a] superfície de inscrição das palavras” (RANCIÈRE, 2012a: 89). O olhar deve “cavar”
a imagem figurativa e, por meio de palavras, fazer aparecer outro assunto. Como
operacionalizar isso? Pelo “trabalho da desfiguração” diz Rancière (2012a: 87 et seq.).
O que seja isso? Em uma resposta rápida, esse trabalho promove, na superfície da tela,
um efeito de deslocação, no qual se “desloca as figuras no texto e o texto nas figuras. A
superfície não existe sem as palavras, sem as ‘interpretações’ que a tornam pictórica”
(RANCIÈRE, 2012a: 99). Destrinchemos essa proposta.
Rancière sinaliza que um dos criadores do conteúdo desse processo de
desfiguração é Proust. Este a chamava de “denominação” (RANCIÈRE, 2012a: 87).
Investiguemos. A referência ao trabalho de Proust é encontrada no narrado de Em busca
do tempo pedido (1913-27), que nos apresenta a personagem do pintor Elstir. No ateliê
dele, o narrador passeia entre suas pinturas e enuncia para nós, leitores, a seguinte
percepção:
Mas podia distinguir que o encanto de cada uma [pintura] consistia numa
espécie de metamorfose das coisas representadas, análoga à que em poesia
se chama de metamorfose e que, se Deus Pai havia criado as coisas
nomeando-as, era tirando-lhes o nome ou dando-lhe um outro que Elstir as
recriava (PROUST, 1995: 362).
Podemos interpretar a fala do narrador como a constatação de que a renomeação
figurativa promovida pelo pintor, a partir da natureza (Deus Pai), é dada ainda na lógica
representativa. Para que possamos produzir uma nova visibilidade pictural,
precisaríamos deslocar não só os elementos sensíveis (pigmentação) da tela como,
também, as ideias inscritas nas palavras. “É a potência [das palavras] que escava a
superfície representativa para fazer aparecer a manifestação da expressividade pictural”
(RANCIÈRE, 2012a: 86).
É nesse sentido que o comentário de Diderot sobre a pintura de Greuze, no Salão
de 1769, não efetivou um deslocamento para “desfigurar” a matéria sensível da
superfície pictórica de Sétimo Severo censura Caracala. Suas palavras apenas
corroboram o que a norma da hierarquia dos gêneros, segundo a dignidade dos seus
temas já dizia. Além do que a Academia ainda avaliava o quadro ao que ele deveria ser,
adequado à norma sancionada!
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Diferentemente do caso de Greuze, a análise de Hegel é exemplar, do ponto de
vista do “trabalho da desfiguração”. Ele promove um deslocamento ao fazer aparecer
outro assunto sob a expressividade figurativa dos quadros holandeses. Isto é, não são as
cenas cotidianas ou de expressão moral, mas o sentimento de uma liberdade que chama
a atenção do filósofo alemão. Este sentimento pode ser apreendido, seja pelos tropos de
linguagem, seja pelos traços pictóricos. Ao fazer isso, Hegel está contribuindo para a
construção do regime de estético das artes, ao focar na apreensão do tema, não
antecipadamente, mas a partir do fato pictórico. Evita, com isso, a subsunção da forma à
adequação do tema representado, característica da lógica mimética do regime
representativo identificado na análise de Diderot do quadro de Greuze.
Por fim, encerremos, retomando as perguntas inicias: como as palavras se
relacionam com as imagens? Como comentamos, falamos ou escrevemos sobre as
pinturas? Não temos respostas acabadas, mas podemos dizer, a partir dessa leitura de
Rancière que devemos olhar a tela de qualquer quadro como um espaço de conversão,
no qual ocorre a relação entre as palavras (textos) e as imagens por meio do diálogo e da
enunciação dos deslocamentos ainda por vir. É na materialidade sensível da superfície
pictórica que devemos procurar as condições de possibilidade da visibilidade realizada
pelo processo da desfiguração.
Referências
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