a relatividade einsteiniana - uma abordagem conceitual e epistemológica.pdf

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  E E v vo ol luç ç ã ã o o  d do o s s  C C o o n n c c e e i i t t o o s s  d d a a F F í ís i i c c a a  A A r r e e l l a a t ti v v i i d d a a d d e e  e ei n ns t t e ei n n i i a a n n a a : :  u u m ma  a a b b o o r r d d a a g g e em con c c e e i i t tu a a l l  e  e e p p i i s s t t e emo o l l ó ó g g i ica  Luiz O.Q. Peduzzi Departamento de Física  Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis - SC  2009 

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  • EEvvoolluuoo ddooss CCoonncceeiittooss ddaa FFssiiccaa

    AA rreellaattiivviiddaaddee eeiinnsstteeiinniiaannaa:: uummaa aabboorrddaaggeemm ccoonncceeiittuuaall ee eeppiisstteemmoollggiiccaa

    Luiz O.Q. Peduzzi Departamento de Fsica Universidade Federal de Santa Catarina

    Florianpolis - SC 2009

  • A meu filho Eduardo, por sua alegria e inteligncia.

  • ii

    Agradecimento Danieli Galvani, pela reviso ortogrfica do texto.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    iii

    Sumrio Introduo

    Introduo, 1 Referncias Bibliogrficas, 8

    1. Sobre o referencial absoluto newtoniano

    1.1 Newton e a filosofia mecanicista, 12 1.2 Preldio ao espao absoluto newtoniano: crticas de Henry More ao conceito de extenso material de Descartes, 12 1.3 A questo do referencial absoluto newtoniano, 16 1.4 A experincia do balde, 20 1.5 A experincia de pensamento dos globos em rotao, 22 1.6 O sensorium de Deus, 23 1.7 A rejeio de Mach ao espao absoluto newtoniano, 27 1.8 Referencial inercial, 30 1.9 Referncias Bibliogrficas, 32

    2. O princpio da relatividade de Galileu 2.1 A transformao de Galileu, 36 2.2 A adio galileana de velocidades, 39 2.3 A invarincia da acelerao para observadores inerciais, 40 2.4 A invarincia da mecnica newtoniana frente transformao de Galileu, 42 2.5 Referncias Bibliogrficas, 43

    3. Sobre a luz 3.1 Um estgio de pr-cincia na ptica: dos gregos a Grosseteste, 46 3.2 Galileu: a velocidade da luz finita, 52 3.3 A lei da refrao da luz, 54 3.4 O princpio de Fermat, 57 3.5 Difrao e interferncia, 61 3.6 A determinao da velocidade da luz, por Roemer, 64 3.7 Sobre a ptica de Huygens, 66 3.8 Revisitando Fermat luz de Huygens, 76 3.9 ter, luz, cores e... Newton!, 79 3.10 Uma querela (ainda) no resolvida, 89

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    iv

    3.11 A aberrao estelar, 90 3.12 A retomada da teoria ondulatria da luz e o papel do ter nessa teoria, 93 3.13 Referncias Bibliogrficas, 100

    4. Da sntese de Maxwell experincia de Michelson-Morley 4.1 O declnio do conceito mecnico, 104 4.2 O surgimento do eletromagnetismo, 105 4.3 A contribuio de Faraday para o eletromagnetismo, 108 4.4 A sntese de Maxwell, 112 4.5 A questo do meio de propagao das ondas eletromagnticas, 115 4.6 Michelson e o experimento de Potsdam, 116 4.7 A experincia de Michelson-Morley, 125 4.8 A contrao de Lorentz-FitzGerald, 129 4.9 Referncias Bibliogrficas, 131

    5. Preldio relatividade: Poincar e Lorentz 5.1 Poincar: sobre o ter e o princpio da relatividade, 134 5.2 Sobre a teoria de Lorentz, 137 5.3 Sobre as origens da transformao de Lorentz, 142 5.4 Referncias Bibliogrficas, 148

    6. A teoria da relatividade especial 6.1 Os postulados da relatividade especial, 150 6.2 O carter absoluto da simultaneidade na mecnica newtoniana e o questionamento de Einstein, 153 6.3 A sincronizao de relgios em um referencial inercial, 156 6.4 A relatividade da simultaneidade, 157 6.5 A transformao de Lorentz, 158 6.6 A contrao de Lorentz-FitzGerald, 164 6.7 Dilatao temporal, 167 6.8 Adio relativstica de velocidades, 170 6.9 Referncias Bibliogrficas, 173

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    v

    7. Sobre a relatividade geral 7.1 Problemas de uma nova e de uma (no to) velha fsica, 176 7.2 O pensamento mais feliz de minha vida, 179 7.3 Relgios e rguas em um referencial acelerado, 184 7.4 A explicao einsteiniana da gravidade, 187 7.5 A corroborao da relatividade geral: o perilio anmalo de Mercrio e o desvio da luz

    por um campo gravitacional, 188 7.6 O deslocamento das linhas espectrais para o vermelho, 193 7.7 Referncias Bibliogrficas, 195

    8. Consideraes epistemolgicas sobre a relatividade einsteiniana 8.1 De Einstein e sobre Einstein: o contexto da relatividade especial, 198 8.2 A teoria da relatividade uma teoria revolucionria?, 207 8.3 A teoria da relatividade especial foi uma resposta ao resultado negativo da experincia de Michelson-Morley?, 216 8.4 Referncias Bibliogrficas, 225

  • Introduo

    Os conhecimentos produzidos desde os gregos antigos cincia moderna, com Ren Descartes (1596-1650), Johannes Kepler (1571-1630), Galileu Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1642-1727), Gottfried W. Leibniz (1646-1716), Christiaan Huygens (1629-1695), ressaltam a dinamicidade da cincia, a ausncia de verdades inquestionveis e absolutas. Paradoxalmente, no entanto, com o contnuo desenvolvimento da mecnica no sculo XVIII e na primeira metade do sculo XIX, por Pierre S. Laplace (1749-1827), Joseph Louis Lagrange (1736-1813), William R. Hamilton (1805-1865), Carl G. J. Jacobi (1804-1851), esse referencial acabou se transformando em um paradigma do qual se esperava respostas a todos os questionamentos e problemas da fsica. Para Lagrange, por exemplo, Newton tinha sido o maior de todos os cientistas porque a cincia do nosso mundo s podia ser criada uma vez e havia sido Newton o seu criador1

    O ideal da explicao mecnica de qualquer fenmeno, compartilhado por cartesianos e newtonianos, sofre duro golpe com o estabelecimento das equaes de Maxwell, na segunda metade do sculo XIX. Com elas, estrutura-se uma nova teoria cientfica, com amplo poder descritivo e preditivo, que torna possvel a abordagem de fenmenos eletromagnticos com grande eficcia.

    .

    Como era de se esperar, a idia de uma segunda fsica, de um modo alternativo de pensar e de fazer cincia, que nascia com o conceito de campo (eltrico, magntico, eletromagntico), encontrou forte resistncia entre aqueles que defendiam a continuidade da hegemonia do conceito mecnico.

    A questo da existncia ou no de um meio material para a propagao das ondas eletro-magnticas; a incompatibilidade da regra clssica da adio de velocidades com a constncia da velocidade da luz, que independe do movimento relativo entre a fonte e o observador; o conflito entre o princpio da relatividade de Galileu e a idia de um referencial absoluto, alm da ltimas descobertas ao nvel do tomo, com a entrada em cena do eltron, dos raios X e da radioatividade, estavam a exigir uma reformulao de conceitos e princpios da fsica clssica, mostrando serem muito mais sutis e complexos os caminhos que conduzem compreenso do mundo fsico do que os imaginados por Lagrange. nesse contexto que se encontram as razes da teoria da relatividade especial, de Albert Einstein (1879-1955), publicada no volume XVII da revista Annalen der Physik, em junho de 1905.

    Contudo, as origens histricas dessa teoria tm sido objeto de diferentes interpretaes por parte de cientistas, filsofos e historiadores da cincia, tanto entre aqueles que procuram

    1 INFELD, 1950, p. 25-26.

  • Introduo

    2

    encontrar na prpria cincia as razes de seu desenvolvimento, quanto nos que consideram a instituio cincia dentro de um conjunto mais amplo, sujeito e influenciado por presses ideolgicas, polticas e econmicas. Do ponto de vista didtico, essa discusso se encontra, em geral, ausente; quando existe pouco explorada nos livros-textos universitrios e em sala de aula. A nfase restrita aos aspectos matemticos da teoria, combinada com a sua descontextualizao histrica, inviabiliza o conhecimento dos problemas discutidos pelos fsicos da poca e uma melhor compreenso do que representou a soluo dada a eles pela teoria da relatividade especial.

    Em 1910, o matemtico ingls Edmund T. Whittaker (1873-1956), um estudioso da histria da fsica, com contribuies relevantes em fsica matemtica, publica A history of the theories of aether and electricity, abrangendo um perodo que vai de Descartes at o final do sculo XIX. A obra reeditada em 1951 e, dois anos depois, acrescida de um segundo volume, incluindo o perodo de 1900 a 19262

    A tese de Whittaker gerou um intenso debate entre fsicos, filsofos e historiadores da cincia, muitos deles com uma slida formao em fsica, como Thomas S. Kuhn (1922-1996) e Gerald Holton. A apreciao crtica da improcedncia dessa tese (defendida no presente texto) passa por um quadro terico que demanda uma anlise do desenvolvimento da ptica e do eletromagnetismo no sculo XIX e da influncia da filosofia mecanicista na fsica desse perodo. A concepo do ter como um referencial absoluto, por exemplo, retoma aspectos de um conceito muito criticado da fsica de Newton o espao absoluto enriquecendo e complexificando ainda mais as discusses. Afinal, como bem ressalta Holton, referindo-se s rguas e aos relgios ideais nas experincias de pensamento de Einstein, a teoria da relatividade apenas desloca o lugar do espao-tempo do sensorium do Deus de Newton para o sensorium do experimentador abstrato de Einstein

    . nesse livro que Whittaker argumenta que a teoria da relatividade especial foi formulada essencialmente por Hendrik A. Lorentz (1853-1928) e Jules Henry Poincar (1854-1912), admitindo a originalidade de Einstein apenas em relao a correes relativsticas para a aberrao e o efeito Doppler.

    3

    De fato, a forma como Einstein v e aborda os problemas que estuda, no apenas no mbito da relatividade, mas tambm da fsica quntica, importante e esclarecedora quando confrontado o seu trabalho com o de outros cientistas.

    .

    Os artigos de Einstein sobre a estrutura quntica da radiao, o movimento browniano e a eletrodinmica dos corpos em movimento4 comeam destacando alguma assimetria inerente aos fenmenos ou outras incongruncias de natureza predominantemente esttica (ao invs de, por exemplo, um enigma colocado por fatos experimentais no explicados).5

    2 WHITTAKER, 1953.

    3 HOLTON, 1995, p. 196. 4 STACHEL, 2001. 5 HOLTON, 1995, p. 193.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

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    Sendo o objetivo essencial de toda a teoria fsica reduzir as conexes descobertas ao me-nor nmero possvel de elementos conceituais mutuamente independentes, pois nessa busca da unificao racional do mltiplo que a cincia logra seus maiores xitos6

    Contudo, a concepo emprico-indutivista da cincia, que ainda hoje se encontra forte-mente disseminada no meio acadmico, concebe, fundamentalmente, a teoria da relatividade especial como uma resposta objetiva e correta ao experimento realizado em 1887 por Albert A. Michelson (1852-1931) e Edward W. Morley (1838-1923), sobre o movimento da Terra em relao ao ter estacionrio. Por certo, a teoria da relatividade emerge em uma cincia dominada pelo positivismo, e a influncia de Ernst Mach (1838-1916) sobre Einstein inegvel. Mas o vnculo gentico da teoria de Einstein com o experimento de Michelson-Morley fruto de uma histria mal contada.

    , Einstein enuncia princpios, axiomas e hipteses gerais para remover as assimetrias e os demais problemas existentes. Em seguida, por deduo lgica, extrai as conseqncias e previses da teoria. A sua adequao aos fatos conhecidos e aos novos resultados que sugere ensejam a avaliao da teoria.

    Invevitavelmente, o posicionamento de Whittaker sobre a originalidade da contribuio de Einstein cincia, com a teoria da relatividade especial, exclui qualquer interpretao desse episdio como um constructo revolucionrio, nos termos kuhnianos7. J a rejeio a Whittaker no implica, necessariamente, a aceitao dessa tese. Quanto ao prprio Einstein, reiteradas vezes, em livros, artigos, cartas e entrevistas, ele afirmou que considerava a teoria da relatividade especial como uma evoluo, no uma revoluo da cincia da dinmica8; como um desenvolvimento sistemtico da eletrodinmica de Maxwell e Lorentz, mas que, mesmo assim, apontou para alm dela mesma9

    A teoria da relatividade uma construo de duas etapas. A relatividade geral exige o abandono dos fundamentos seguros da geometria euclidiana e a incurso por novas e desconhecidas reas da relao entre fsica e matemtica para o estabelecimento de uma teoria na qual as leis sejam vlidas em qualquer sistema de referncia.

    .

    Conforme Holton10

    Enfim, so muitas as questes discutidas pelo texto A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica, entre elas :

    , referindo-se relatividade einsteiniana, para encontrar um outro trabalho que to ricamente ilumina as relaes entre fsica, matemtica e epistemologia, ou entre experimento e teoria, com a mesma extenso cientfica, filosfica e implicaes intelectuais gerais, seria preciso voltar aos Principia de Newton. Talvez no seja possvel expressar de forma to eloqente, e em to poucas palavras, a importncia do estudo dessa teoria.

    6 EINSTEIN, 1994, p. 33. 7 KUHN, 1987. 8 JAMMER, 2000, p. 31. 9 EINSTEIN, 1994, p. 60. 10 HOLTON, 1995, p. 191.

  • Introduo

    4

    a) Qual era o estado da cincia no perodo que antecedeu a primeira publicao de Einstein sobre a teoria da relatividade? Em particular, que assuntos potencialmente relevantes ao surgimento da teoria eram discutidos pelos cientistas?

    b) Que imagem (hegemnica) de cincia permeava o trabalho dos fsicos poca? c) Por que, ao contrrio de Lorentz e Poincar, a questo do ter no foi essencial para

    Einstein, em 1905? d) O princpio da relatividade tem, rigorosamente, o mesmo significado para Poincar e

    Einstein? e) Como Lorentz e Einstein interpretam as equaes de transformao de um sistema de

    referncia inercial a outro? f) Qual a importncia da experincia de Michelson-Morley na gnese da teoria da

    relatividade especial de Einstein? Se corrente admitir que esse foi um experimento crucial na histria da fsica, ento por que muitos cientistas ainda continuaram a desenvolver pesquisas sobre o ter e suas propriedades, mesmo depois de 1905?

    g) Que concepo de cincia, ou estilo de fazer cincia, como diz Holton11

    h) A teoria da relatividade especial ou no um constructo revolucionrio? E a relatividade geral?

    , pode-se extrair da semelhana estrutural da Eletrodinmica dos corpos em movimento com outros trabalhos seminais publicados por Einstein, em 1905?

    i) Que contribuies pode trazer ao estudante a viso que Einstein tem sobre a natureza da cincia e do trabalho cientfico, quando redige seus escritos da maturidade12

    Para tratar esses e outros temas, o texto est organizado em oito captulos. ?

    No captulo 1 discute-se um conceito central da fsica de Newton o espao absoluto. A partir das crticas de Henry More (1614-1687) ao conceito de extenso material de Ren Descartes, chega-se a sua concepo de espao. Os vinte conceitos comuns a Deus e ao espao, enumerados por More, todos eles solenes atributos ontolgicos do absoluto13

    11 HOLTON, 1995, p. 193.

    , explicitam vrias semelhanas do conceito newtoniano de espao absoluto (o sensorium de Deus, para Newton) com o conceito de More. Os experimentos que Newton descreve na defesa do espao absoluto demonstram uma ao do espao sobre a matria, que produz as foras inerciais envolvidas, mas no da matria sobre o espao, como, em princpio, seria de se esperar de acordo com a terceira lei. A rejeio de Ernst Mach ao espao absoluto contundente e, sem dvida, a mais significativa antes de Einstein. Ela sustentada por uma viso de cincia que, quando muito, concede apenas um valor instrumental a grandezas no observveis em uma teoria cientfica. Contudo, e independentemente da existncia ou no de um referencial privilegiado na fsica, o

    12 EINSTEIN, 1982; EINSTEIN, 1994 13 MORE apud BURTT, 1991, p. 146-150.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    5

    conceito de referencial inercial que se estabelece e enseja perspectivas equivalentes para o estudo de um sistema mecnico por diferentes observadores (inerciais).

    O captulo 2 descreve as equaes de transformao de um referencial inercial a outro, mostrando que as leis da mecnica so as mesmas em todos os sistemas de referncia inerciais.

    Enquanto todos estavam convencidos de que os fenmenos da natureza podiam ser representados com

    auxlio da mecnica clssica, a validade deste princpio da relatividade nunca foi posta em dvida. Mas,

    os novos desenvolvimentos da eletrodinmica e da ptica foram tornando cada vez mais claro que a

    mecnica clssica era uma base insuficiente para a descrio de todos os fenmenos fsicos. Com isto,

    tambm passou a ser discutida a questo da validade do princpio da relatividade, e a possibililidade de a

    resposta ser negativa no parecia excluda.14

    Nessa perspectiva, apresentam-se no captulo 3 contedos da histria da ptica relevantes aos objetivos do texto. Os primeiros esforos do intelecto humano em comprender o que a luz e o mecanismo da viso geram explicaes sobre a reflexo e a refrao da luz e o surgimento do primeiro princpio de mnimo na fsica o princpio de mnimo esforo, de Heron de Alexandria (10-70 d.C). A contundente afirmao de Francesco M. Grimaldi (1618-1663) em meados do sculo XVII, ao descobrir a difrao, de que no sabemos nada sobre a natureza da luz, ressalta a insuficincia de conhecimentos no mbito da ptica fsica, reiterada pela descoberta dos fenmenos da interferncia e da polarizao da luz. No obstante, a obteno da lei da refrao da luz, por Willebrord Snell (1580-1626) e Ren Descartes, o surgimento de um novo princpio de mnimo com Pierre de Fermat (1601-1665) (o de que a luz se movimenta pelos caminhos mais fceis e no por linhas mais curtas), a determinao da velocidade da luz por Olaus Roemer (1644-1710) e a teoria ondultoria da luz de Christiaan Huygens, so conquistas importantes da ptica do sculo XVII. Para Huygens, no se pode duvidar de que a luz consista no movimento de certa matria, e de que na mecnica que se deve buscar as causas de todos os fenmenos naturais15

    Atravs da publicao da ptica de Newton, em 1703, termina o longo perodo do que Kuhn chama de pr-cincia no estudo dos fenmenos luminosos. , essencialmente, a concepo de que a luz constituda por fluxos de partculas que domina os estudos realizados nessa rea da fsica durante o sculo XVIII. A mudana do paradigma corpuscular para o ondultorio, a partir dos trabalhos de Thomas Young (1773-1829), Dominique F. J. Arago (1786-1853), Armand Hyppolyte Louis Fizeau (1819-1896) e Augustin J. Fresnel (1788-1827), na primeira metade do sculo XIX, evidencia, mais uma vez, o quanto o conhecimento cientfico se modifica com o tempo. Um conceito explorado por Descartes e essencial na fsica de Huygens, sempre de muitas facetas e interpretaes na histria da fsica, tambm utilizado por Newton na

    .

    14 EINSTEIN, 1999, p. 19. 15 HUYGENS, 1986, p. 12.

  • Introduo

    6

    explicao de vrios fenmenos, mantm ainda viva a confiana dos que acreditam que as foras entre partculas e os seus movimentos esto na base do entendimento de qualquer fenmeno. Esse conceito o ter. A luz uma onda que tem no ter luminfero o substrato material para a sua propagao.

    Com a teoria de Maxwell, entretanto, vem o declnio do conceito mecnico. A identificao da luz como uma onda eletromagntica mostra que a lei da adio galileana de velocidades incompatvel com a crena de que a luz uma onda em um meio mecnico. A contextualizao histrica do eletromagnetismo maxwelliano matria do captulo 4. Relembrando a situao da fsica quando estudante, Einstein diz que a teoria de Maxwell era o assunto mais fascinante poca. Embora tivesse que desenvolver estudos particulares para aprend-la, pois sendo uma teoria recm constituda no integrava o currculo escolar, o que lhe dava um aspecto revolucionrio, segundo Einstein, era a transio da ao distncia para os campos, como variveis fundamentais16

    Uma das previses da teoria de Maxwell era a de que o movimento da Terra atravs do ter estacionrio poderia ser constatado em experimentos pticos ou eltricos, que propiciassem medidas de segunda ordem na razo entre a velocidade orbital da Terra e a velocidade da luz. Contudo, o experimento pioneiro realizado por Michelson, em 1881, d os primeiros indcios de que no h qualquer vento do ter. Mas para muitos ele no conclusivo, e no sem razo, pois efetivamente algumas insuficincias de ordem experimental poderiam estar escondendo o reduzidssimo efeito esperado. Em 1887, Michelson desenvolve um novo experimento, juntamente com Morley, com um interfermetro muito mais preciso do que o utilizado anteriormente, e o veredito tem um efeito fulminante sobre as bases tericas da cincia da poca: se existe algum movimento relativo entre a Terra e o ter luminfero, ele muito pequeno; to pequeno que se pode refutar por completo a explicao que Fresnel d aberrao da luz, como afirmam Michelson e Morley

    .

    17

    O captulo 5 explicita as resistncias de Poincar e Lorentz excluso do ter na fsica. Considerando, alm disso, as crticas de Whitaker originalidade da relatividade einsteiniana, discute-se, brevemente, o princpio da relatividade de Poincar e alguns aspectos da fsica de Lorentz.

    . Ser que as dimenses dos corpos fsicos se modificam em decorrncia do seu movimento atravs do ter, como sugerem George F. FitzGerald (1851-1901) e Hendrik A. Lorentz? Ou o ter deve ser abandonado?

    No captulo 6 aborda-se didaticamente a teoria da relatividade especial. Sem mencionar a experincia de Michelson-Morley, Einstein elimina o ter da fsica. Questionando o carter absoluto da simultaneidade na mecnica newtoniana e o conceito de espao absoluto, ele reformula as noes clssicas de espao e tempo e, a partir da equivalncia de todos os

    16 EINSTEIN, 1982, p. 39. 17 MICHELSON; MORLEY, 1887.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    7

    observadores inerciais, da constncia da velocidade da luz e da hiptese de homogeneidade do espao e do tempo, introduz uma nova fsica.

    Com a teoria da relatividade especial, e a demonstrao de como se efetua a transformao de coordenadas de um referencial inercial a outro, Einstein reafirma a equivalncia fsica de todos os observadores inerciais, que estava sendo questionada pelo fato de as equaes de Maxwell no serem invariantes frente transformao de Galileu. Entretanto a relatividade especial e a gravitao newtoniana so teorias incompatveis, pois enquanto para Newton a ao gravitacional entre dois corpos instantnea, para Einstein h uma velocidade limite mxima para a propagao de qualquer evento fsico. atravs da relatividade geral que Einstein resolve esse conflito.

    No captulo 7 analisam-se as implicaes fsicas da igualdade das massas inercial e gravitacional de um corpo, ou seja, que a acelerao de um sistema em queda livre em um campo gravitacional (de pequena extenso espacial) independente da natureza do sistema em queda (especialmente de seu contedo de energia).18

    O referencial epistemolgico que orienta o desenvolvimento dos contedos do texto a filosofia da cincia contempornea. Explorando a objeo comum que autores como Karl R. Popper (1902-1994)

    Discutem-se tambm, em nvel qualitativo, o conceito de gravitao de Einstein e a corroborao da teoria da relatividade geral.

    19, Thomas S. Kuhn20 e Imre Lakatos (1922-1974)21

    Do ponto de vista educacional, a teoria de David P. Ausubel

    tm concepo emprico-indutivista do conhecimento cientfico (mais precisamente, ao empirismo lgico), o texto apresenta um posicionamento terico contundente contra essa viso de cincia. J em relao a outras questes, como, por exemplo, a da relatividade ser ou no uma teoria revolucionria, ou sobre as concepes epistemolgicas de Einstein, procura oferecer ao estudante, no captulo oito, os subsdios necessrios para uma reflexo crtica fundamentada, e deciso pessoal.

    22, particularmente o seu conceito de aprendizagem significativa, d suporte terico ao texto. A aprendizagem significativa requer materiais potencialmente significativos, com significado lgico ao estudante. Estando o texto voltado para uma disciplina de evoluo dos conceitos da fsica23

    18 EINSTEIN, 1982, p. 65.

    , espera-se que a sua articulao com outros segmentos dessa disciplina e os conceitos de fsica disponveis na estrutura cognitiva do estudante que a cursa propiciem os subsunores necessrios para uma aprendizagem significativa.

    19 POPPER, 1982. 20 KUHN, 1987. 21 LAKATOS, 1989. 22 AUSUBEL; NOVAK; HANESIAN, 1980. 23 No Departamento de Fsica da Universidade Federal de Santa Catarina, a disciplina Evoluo dos Conceitos da Fsica (FSC 5602) cursada compulsoriamente por alunos do bacharelado e da licenciatura, no ltimo ano. Tem Estrutura da Matria I como pr-requisito.

  • Introduo

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    O texto, seguramente, no prescinde das aes do professor construtivista em sintonia com os seus objetivos, que se empenha no sentido de auxiliar o estudante no esclarecimento de suas dificuldades. Afinal, na raiz da relao tridica entre professor, aluno e material instrucional que o ensino se consuma quando o significado do material que o aluno capta o significado que o professor pretende que esse material tenha para o aluno24

    . De qualquer modo, importante ressaltar que a aquisio de significados uma experincia idiossincrtica, que demanda esforo e dedicao.

    Referncias Bibliogrficas AUSUBEL, D. P.; NOVAK, J. D.; HANESIAN, H. Psicologia Educacional. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980. BURTT, E. A. As bases metafsicas da cincia moderna. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1991. EINSTEIN, A. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. EINSTEIN. A. Escritos da maturidade (Original de 1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. EINSTEIN, A. Notas autobiogrficas (Original de 1946). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. GOWING, D. B. Educating. Ithaca: Cornell University Press, 1981. HUYGENS, C. Tratado sobre a luz. Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia. Suplemento 4/1986. HOLTON, G. J. Thematic origins of scientific thought: Kepler to Einstein. Cambridge: Harvard University Press, 1995. INFELD, L. Albert Einstein: a sua obra e a sua influncia no mundo contemporneo. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1950. JAMMER, M. Einstein e a religio. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. KUHN, T. S. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2000. LAKATOS, I. La metodologa de los programas de investigacin cientfica. Madrid: Alianza, 1989. MICHELSON, A. A.; MORLEY, E. W. On the relative motion of the earth and the luminiferous ether. American Journal of Science, v. 34, n. 203, p. 333-341, 1887.

    24 GOWING, 1981; PEDUZZI, 1997.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    9

    PEDUZZI, L. O. Q. As bases tericas de um texto de mecnica em nvel universitrio bsico. In: MOREIRA, M. A.; CABALLERO, C. S.; RODRIGUEZ M. P. (Org.) Encuentro Internacional sobre el Aprendizaje Significativo, Burgos (Espanha). Atas: p. 217-228, 1997. POPPER, K. R. Conjecturas e refutaes. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1982. STACHEL, J. (org.) O ano miraculoso de Einstein: cinco artigos que mudaram a face da fsica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. WHITTAKER, E. A history of the theories of aether and electricity. The modern theories 1900-1926. New York: Dover, 1953.

  • Captulo 1 Sobre o referencial absoluto newtoniano

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

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    1.1 Newton e a filosofia mecanicista

    Em 1661, poca em que Newton cursava Cambridge, o currculo oficial desta instituio, desatualizado em relao aos estudos contemporneos, ainda tinha o seu foco em Aristteles. Isso levou Newton a desenvolver leituras e estudos informais sobre diversos temas.

    O historiador Richard S. Westfall (1924-1996)1

    exatamente a perspectiva de um mundo envolto em um fluxo constante de partculas, suscitada pela filosofia mecnica, que leva o jovem Newton a se interessar pelo moto perptuo e a desenhar dispositivos parecidos com moinhos de vento e rodas hidralicas para estudar o movimento de supostas correntes de matria imperceptveis viso. Assim, adotou a concepo de que a gravidade (o peso) era causada pela queda de uma tnue matria invisvel, que atingia todos os corpos e os empurrava para baixo. Segundo Newton, o moto perptuo seria possvel se os raios da gravidade pudessem ser, de alguma maneira, detidos por reflexo ou refrao.

    levanta duas hipteses sobre como Isaac Newton (1642-1727) teria sido introduzido filosofia mecanicista: atravs de Ren Descartes (1596-1650) ou de Pierre Gassendi (1592-1655). Defensores de mecanicismos incompatveis em relao a pressupostos de continuidade ou descontinuidade da matria, ambos defendem que a base da explicao de qualquer fenmeno est no movimento e no choque de corpsculos.

    2

    Embora seja bastante evidente a influncia de Descartes sobre essas consideraes de Newton, o certo que ele tambm teve acesso a Gassendi e se inclinou pela filosofia atomista, entre outras coisas, por discordar da teoria da luz, de Descartes.

    No entanto, as crticas do filsofo e telogo Henry More (1614-1687) a Descartes sensibilizaram Newton para o problema das conseqncias atestas do mecanicismo, tanto de cunho cartesiano como atomista. O funcionamento do universo no pode se dar revelia de Deus. Ao contrrio, ele dependente da ao contnua do Todo-Poderoso sobre todas as coisas. Nesse importante pressuposto, Newton concorda com More. 1.2 Preldio ao espao absoluto newtoniano: crticas de Henry More ao conceito de extenso material de Descartes

    No universo cartesiano, extenso e matria esto intrinsecamente ligados. Nessa

    perspectiva, os corpos no se encontram no espao e nem se movem no espao. Eles se localizam e se deslocam em relao a outros corpos. No h extenso sem matria em um universo pleno, cheio. O vazio no nada, no existe. Portanto, no pode conter nem separar objetos. Ele lgica e fisicamente insustentvel.

    Para Henry More, os corpos se encontram no espao e se movimentam no espao. Sem dvida, a extenso um atributo essencial da matria, e atributos implicam substncias. No

    1 WESTFALL, 1995. 2 Id, p. 27.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

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    podem existir sem substrato, como o sorriso do gato de Cheshire3. Mas enquanto que, para Descartes, a substncia que suporta a matria a prpria matria, ou seja, o espao uma substncia corprea; para Henry More o espao que contm a matria possui, ele prprio, uma realidade independente da matria. No podemos deixar de conceber que uma certa extenso imvel, que tudo penetra at ao infinito, sempre existiu e existir eternamente e que ela realmente distinta da matria mvel.4

    Esse espao real, mas imaterial.

    Fig. 1.1 - Henry More Como enfatiza Alexandre Koyr (1882/92-1964), Henry More um mau fsico, mas as

    suas crticas a Descartes so muito interessantes. O seu conceito de espao, em particular, apresenta muitas semelhanas com o conceito newtoniano de espao absoluto.

    Acreditando que os fenmenos naturais no podem ser explicados por princpios ou causas meramente mecnicas, Henry More contesta a concepo de mundo materialista de Descartes, e o seu conceito de extenso, que, no se aplicando ao esprito (que imaterial), exclui a presena de Deus na natureza.

    impenetrabilidade e separabilidade da matria ope-se a penetrabilidade e a inseparabilidade do esprito. Como toda a substncia, seja ela material ou no, extensa, h outras formas de caracterizar a matria ordinria. Por exemplo, poder-se-ia defini-la pela sua impenetrabilidade, pois dois corpos no podem ocupar o mesmo lugar no espao. J o esprito, embora extenso, livremente penetrvel, portanto, matria e esprito podem coexistir no mesmo lugar.

    Em correspondncia a Henry More, Descartes explica que definir a matria pelas suas relaes com os sentidos um erro porque, ao faz-lo, arriscamo-nos a deixar

    escapar a sua essncia verdadeira, que no depende da existncia dos homens e que seria a mesma se no

    houvesse homens no mundo; que, alm disso, uma vez dividida em partes suficientemente pequenas, toda

    3 KOYR, s/ano, p. 145. O gato de Cheshire, ou gato risonho, personagem do livro Alice no pas das maravilhas, de Lewis Carroll, sorria permanentemente, no alto de uma rvore. Por vezes o gato desaparecia, mas permanecia o seu sorriso (nota do tradutor). 4 MORE apud KOYR, s/ano, p. 145.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

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    a matria se torna totalmente imperceptvel aos sentidos... e que para definir a matria de modo algum

    necessrio postular essa qualidade especial que a impenetrabilidade, uma vez que ela no mais do que

    uma conseqncia da sua extenso.5

    Quanto ao conceito de uma extenso imaterial ou espiritual formulado por More, Descartes diz que:

    No meu costume discutir sobre as palavras; por isso que, se quisermos que Deus seja em certo

    sentido extenso, porque est em toda a parte, o consentirei: mas nego que em Deus, nos anjos, na nossa

    alma, enfim em qualquer outra substncia que no corpo, haja uma verdadeira extenso, tal como todos

    a concebem.6

    Contestando mais uma vez Descartes, que afirma que as paredes de um recipiente fechado colapsariam se toda matria existente em seu interior fosse retirada, More diz que isso no ocorreria porque, ainda assim, aquele espao estaria preenchido pela extenso divina. Nesse sentido, o vazio material de More e o espao vazio dos atomistas so constructos incomensurveis.

    Um universo mecnico, igual ou semelhante ao de Descartes, no pode ensejar explicaes convincentes sobre uma ampla variedade de fenmenos que envolvem causas no mecnicas, como a coeso da matria, a gravidade, a luz, o magnetismo. necessria a assistncia de uma substncia diferente da matria, ou seja, de um esprito ou ser no corpreo, como ele diz a Boyle, em 16757. Desprovida de sentido ou de conscincia, penetra, preenche e age sobre toda a matria do universo, exercendo sobre as suas partes aes conformes as suas predisposies naturais. Essa substncia imaterial o esprito da natureza, um instrumento da vontade divina. A entidade infinita e extensa que abraa e anima todas as coisas por certo uma substncia. Mas no a matria. o Esprito; no um esprito, mas o Esprito, ou seja, Deus. O espao, com efeito, no somente real, qualquer coisa de divino.8

    Certamente, h fenmenos que demandam explicaes mecnicas, puras e simples, mas eles no devem ser superdimensionados, pois a presuno segura e inquestionada de alguns de que no existe nada no universo alm da matria levou-os precipitadamente a conjecturar solues mecnicas para situaes onde elas no se sustentavam.

    9

    Assim, por exemplo, discordando da explicao que Descartes d queda de uma pedra, More no admite que o movimento vertical em linha reta seja possvel sem a interveno de um princpio no mecnico, que a impea de seguir o curso das demais partculas do turbilho cartesiano.

    5 Correspondncia de Descartes a Henry More (1649) apud KOYR, s/ano, p. 116. 6 Id, p. 117. 7 KOYR, s/ano, p. 110. 8 Id, p. 146. 9 MORE apud BURTT, 1991, p. 113.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

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    Porm, em um mundo novo, a busca por regularidade e preciso no estudo da natureza a tnica do trabalho do cientista, e More sabe disso. Assim, de modo algum os princpios no mecnicos ferem essa premissa, nem representam um retrocesso ou retorno causas ocultas que no mais se admitem na cincia. O esprito da natureza comptivel com o tratamento cientfico dos fenmenos:

    Afirmo, com Descartes, que nada afeta nossos sentidos alm da variao da matria propiciada por

    diferenas de movimento, figura, posio de partes etc., mas divirjo dele ao sustentar que no o simples

    e puro movimento mecnico que causa todas essas modificaes sensoriais na matria, pois muitas vezes

    o responsvel direto por elas o esprito da natureza, nico e constante em todos os lugares, e que sempre

    age de forma semelhante em ocasies semelhantes, como um homem de viso clara e julgamento slido

    sempre pronuncia o mesmo veredito nas mesmas circunstncias10 .

    No universo cheio de Descartes, os corpos se movem uns em relao aos outros e a falta de um referencial adequado e confivel para a especificao do verdadeiro movimento ou repouso de um corpo traz novos problemas fsica cartesiana, segundo More. Para evidenciar isso, ele considera trs corpos AB, CD e EF dispostos da forma mostrada na Fig. 1.2a. Se o arranjo dos corpos se altera, assumindo a configurao indicada na Fig. 1.2b, v-se que AB se move para a esquerda em relao a CD e para a direita com respeito a EF. Isso, para More, uma contradio, pois AB no pode se movimentar, ao mesmo tempo, em dois sentidos diferentes.

    Ser que More pura e simplesmente no entende a relatividade dos movimentos? Ou o seu questionamento aponta para algo mais sutil? Nos prprios termos em que suscita o problema, percebe-se que a soluo demanda um sistema de referncia especial ou privilegiado. Esse referencial no pode ser nenhum outro corpo sensvel ele o espao absoluto, homogneo, imutvel. AB permanece em repouso em relao a esse espao, e a contradio acaba.

    ( a ) ( b ) Fig. 1.2 - A contestao do movimento relativo de AB, por More. No possvel ir alm. A soluo est longe de ser satisfatria, mas talvez se possa

    entender o seu alcance dizendo que ela faz surgir aspectos de um conceito o de espao absoluto

    10 Id, p. 112.

    CD

    AB

    EF

    AB

    CD

    EF

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    16

    que, adotado (com especificidades prprias) por Newton nos Principia, em 1687, vai ser objeto de muita discusso e polmica.

    Em uma obra publicada em 1671, Henry More enumera vinte conceitos comuns a Deus e ao espao, todos eles solenes atributos ontolgicos do absoluto11

    Como ressalta Koyr: entre qualificar o mundo material como infinito, infinito a se e per se, para nada necessitando da ao criadora de Deus e at excluindo esta ao e separar matria e espao, elevando esse ltimo dignidade de atributo divino e de rgo no qual e por meio do qual Deus cria e conserva o seu universo, um mundo finito, limitado no espao e no tempo, ele opta por esta ltima.

    . Assim, esse extenso infinito : Uno (homogneo em toda a sua extenso, no pode ser aumentado ou diminudo); Simples (no possui partes fsicas); Imvel (por ser infinito, no se movimenta); Eterno (sempre existiu e sempre existir); Completo (no se combina com nada); Independente (no est ligado a nenhuma coisa, mas lugar para todas as coisas); Existente em si (no depende de nenhum outro ser); Subsistente por si (auto perpetua a sua existncia); Incorruptvel (inaltervel); Necessrio (o mundo existe nele); Imenso (sempre possvel conceber uma extenso que ultrapassa qualquer limite imposto pela imaginao, e assim at ao infinito); Incriado ( o primeiro dos seres); Incircunscrito (nada o limita); Incompreensvel (nenhuma inteligncia finita pode compreeder o que no tem limites); Onipresente (imenso, infinito); Incorpreo (penetra a matria); Todo-penetrante (tudo preenche); Todo-Envolvente (tudo limita); Ser por Essncia (no recebe a sua essncia de qualquer outra coisa); Ser em Ato (no pode ser concebido como existente fora das suas causas); Ato Puro (existe necessariamente por si prprio).

    12 More claro quando escreve: pela mesma porta que a filosofia cartesiana parece querer expulsar Deus do mundo, eu, pelo contrrio, tento e esforo-me por O reintroduzir nele13

    O espao divino. Um mundo exclusivamente mecnico se despedaaria invevitavelmente devido

    operao irrestrita das leis do movimento. Toda a continuidade no universo tanto este espao imvel e

    incorpreo quanto as foras invisveis, tais como a gravidade e a coeso, que mantm unidas em um

    nico sistema as diferentes partes da estrutura csmica fundamentalmente espiritual.14

    No se deve esquecer: Henry More filsofo e telogo! 1.3 A questo do referencial absoluto newtoniano

    Na histria da mecnica, a primeira lei de Newton ou princpio da inrcia promove a mudana conceitual do tudo o que se move movido por alguma coisa, das fsicas aristotlica e do impetus, para todo o corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em 11 Id, p. 146-150. 12 KOYR, s/ano, p. 150. 13 MORE apud KOYR, s/ano, p. 146. 14 BURTT, 1991, p. 117.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

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    linha reta a menos que seja compelido a mudar o estado em que se encontra por foras a ele aplicadas.

    Esse princpio traz consigo a equivalncia dos estados de repouso e de movimento uniforme em linha reta, j que em ambos os casos a fora lquida nula. Mas o que significa, exatamente, afirmar-se que um corpo est em repouso? Ou em movimento? Afinal, um mesmo corpo pode estar estacionrio para um observador mas em movimento para um outro. Assim, a primeira lei de Newton levanta a questo do referencial em que se especifica o estado dinmico de um corpo.

    Cabe, ento, a pergunta: em relao a quem ou a que ponto do espao um corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta quando livre de fora ou sob a ao de fora resultante nula? Em outras palavras, haver ponto ou pontos especiais do espao capazes de referenciar, de forma absoluta, tanto o repouso quanto o movimento?

    Enquanto que para um newtoniano essa uma questo pertinente, para um aristotlico ela destituda de sentido. A Terra, em repouso no centro do universo, evidentemente o corpo segundo o qual se operam todas as mudanas, mas o aristotelismo, no campo da cincia, j est superado.

    Nas pginas que precedem o enunciado de suas trs leis, no primeiro livro dos Principia, Newton sustenta a existncia de um referencial absoluto, um sistema de referncia privilegiado, em relao ao qual o verdadeiro movimento (e repouso) de um corpo pode ser conhecido. O espao absoluto, infinito, uniforme, homogneo, imutvel, que, por sua prpria natureza, tem existncia independente de qualquer objeto material, , para Newton, esse referencial.

    Um corpo est em repouso absoluto se a sua posio no se altera em relao ao espao absoluto. O deslocamento do corpo de um lugar para outro nesse espao caracteriza o seu movimento absoluto. Dessa forma, em relao a esse espao que se pode especificar o verdadeiro movimento ou repouso de um objeto material.

    Por outro lado, um corpo se encontra em repouso em relao a um outro corpo (repouso relativo) se as relaes espaciais entre ambos permanecem inalteradas. Caso isso no ocorra, os dois corpos apresentam um movimento relativo.

    Movimentos absoluto e relativo so ilustrados por Newton atravs do seguinte exemplo: Se a Terra est realmente em repouso, um corpo parado relativamente a um navio, em seu interior, mover-

    se- verdadeira e absolutamente com a mesma velocidade com que o navio se movimenta na Terra. Mas

    se a Terra tambm se move, o verdadeiro e absoluto movimento do corpo surgir em parte devido ao

    movimento verdadeiro da Terra em relao ao espao imvel e em parte devido ao movimento relativo do

    navio na Terra. Se o corpo tambm se mover relativamente ao navio, seu verdadeiro movimento surgir

    em parte do verdadeiro movimento da Terra no espao imvel, e em parte dos movimentos relativos tanto

    do navio na Terra como do corpo no navio, e destes movimentos surgir o movimento relativo do corpo

    na Terra. Assim, se aquela parte da Terra onde se encontra o navio se move verdadeiramente para leste

    com uma velocidade de 10 010 partes, enquanto o navio, propriamente dito, com velas desfraldadas por

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    18

    um vento forte, se dirige para oeste, com uma velocidade expressa por 10 daquelas partes, um marinheiro

    caminhando no navio na direo leste, com 1 parte da velocidade mencionada, vai ser verdadeiramente

    levado atravs do espao imvel na direo leste, com uma velocidade de 10 001 partes, e relativamente

    Terra, para oeste, com nove partes daquela velocidade.15

    Fica ento claro que Newton concebe o movimento como uma relao entre dois corpos: quando um desses corpos o espao em si, o movimento absoluto.16

    De um modo geral, para dois corpos quaisquer A e B, pode-se escrever que

    , AeBeAB eee =+ ( 1 )

    no qual ABe : representa o movimento de A em relao a B;

    Bee : denota o movimento de B em relao ao espao absoluto, e;

    Aee : designa o movimento de A em relao ao espao absoluto, e. Portanto, o movimento de A em relao a B igual diferena entre os movimentos absolutos de A e B, ou seja,

    . BeAeAB eee = ( 2 )

    Mas como identificar um movimento absoluto? Sendo todos os pontos ou lugares do espao absoluto idnticos, parece, em princpio, fadada ao insucesso qualquer tentativa de detectar o deslocamento de um corpo nesse espao. Desse modo, obviamente natural, para Newton, que a rotina do senso comum atue dentro da perspectiva relativa, isto , que a localizao e a mudana de posio dos corpos sejam sempre estimadas em relao a algum ponto de referncia (um corpo animado ou inanimado). Assim, em vez de lugares e movimentos absolutos, usamos lugares e movimentos relativos, e isto sem qualquer incoveniente em questes comuns.17

    O que Newton alerta para que no se considere o referencial esttico que serve descrio quotidiana de eventos, seja ele qual for, como um referencial absoluto, pois pode ser que no haja um corpo realmente em repouso com relao ao qual os lugares e movimentos de outros possam ser referidos

    18

    Segundo Newton, h, inclusive, uma impossibilidade lgica associada deteco do repouso absoluto de um corpo. Mesmo existindo algum objeto com esse atributo especial, por exemplo na regio longnqua das estrelas fixas, ou talvez muito alm delas, no possvel identific-lo, pois impossvel saber, a partir das posies dos corpos uns com relao aos

    .

    15 NEWTON, 1990, p. 8. 16 RAY, 1993, p. 139. 17 NEWTON, 1990, p. 9. 18 Id, p. 9.

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    outros nas nossas regies, se qualquer deles mantm a mesma posio [de repouso absoluto] com relao quele corpo remoto...19

    Como se v, Newton estende ao repouso absoluto uma propriedade associada ao repouso relativo. Isto , se corpos que se encontram em repouso relativamente a um objeto qualquer, observvel ou no, esto em repouso uns com relao aos outros, ento dois ou mais corpos que estivessem em repouso absoluto estariam em repouso entre si.

    .

    Alm dessa dificuldade, h que se acrescentar uma outra. Um corpo supostamente em repouso no espao absoluto newtoniano teria que estar livre da ao de foras, ou sob fora resultante nula. Se houvesse entre os corpos apenas foras de contato, bastaria a ausncia de contato ou a presena de foras de contato equilibradas sobre um determinado corpo para que isso se efetivasse, na prtica, e, dessa forma, poder-se eleger tantos referenciais absolutos quantos satisfizessem a esse critrio. O conceito de fora, no entanto, extrapola os atos de puxar ou em-purrar dos aristotlicos. O peso de um corpo manifesta uma ao da Terra sobre o corpo (e vice-versa) sem que haja, necessariamente, contato direto entre ambos. De forma anloga, limalhas de ferro nas imediaes de um m sofrem a sua influncia, sendo por ele atradas ou repelidas. Corpos eletrizados tambm se atraem ou se repelem, sem contato fsico. Essa ao a distncia, to veementemente rejeitada pelos antigos, que traz consigo a idia de fora como uma interao entre dois corpos, est presente no universo como um todo. Com isso, constata-se que nenhum corpo est livre de fora, pois rigorosamente perturba e perturbado, em maior ou menor intensidade, por outros corpos. Sendo assim, somente se poderia conferir a um corpo o status de referencial absoluto caso se pudesse aferir como nula a fora resultante sobre ele decorrente de sua interao com o resto do universo.

    Desse modo, no se pode determinar o movimento verdadeiro, absoluto, de um corpo por referncia a qualquer outro objeto material, j que o que se tem, como certeza, apenas o repouso relativo dos corpos. Ao caracterizar as diferenas entre movimentos absoluto e relativo em termos causais, Newton refora ainda mais essa idia.

    Sempre que uma fora (resultante) age sobre um corpo, modifica-se o seu estado de repouso absoluto ou de movimento absoluto, isto , o corpo apresenta uma acelerao em relao ao espao absoluto (acelerao absoluta) durante o intervalo de aplicao da fora. Contudo, a mudana relativa no estado dinmico de um corpo no prova de seu movimento absoluto, isto , de que sobre ele est, necessariamente, agindo uma fora. Para que se modifique o movimento de um corpo A em relao a um outro corpo B, no preciso aplicar nenhuma fora a A; suficiente exercer uma fora sobre B. A fora aplicada a B altera, portanto, a acelerao de A em relao a B, mas no o movimento (ou repouso) de A em relao ao espao absoluto.

    Uma outra diferena est no fato de que, enquanto o movimento absoluto de um corpo compulsoriamente modificado por uma fora (resultante) a ele aplicada, em um movimento 19 Id, p. 9-10.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    20

    relativo isso no necessariamente o que ocorre. Quando sobre dois corpos idnticos A e B agem foras iguais modificam-se os movimentos absolutos de A e B enquanto perdura a ao das foras, mas no o movimento relativo.

    Portanto, qualquer movimento relativo pode ser modificado quando o movimento verdadeiro permanece inalterado, e o relativo pode ser preservado quando o verdadeiro sofre qualquer modificao20. Definitivamente, no atravs de consideraes sobre o movimento relativo per si, isto , da evidncia emprica de possveis variaes no estado dinmico de um corpo por referncia a um outro corpo material, que se vai chegar ao movimento absoluto, e ao espao absoluto. Ser mesmo possvel, ento, detectar um movimento absoluto? Do ponto de vista de Newton sim, que diz que o caso no de todo desesperador, pois temos argumentos para nos guiar parcialmente a partir dos movimentos aparentes, que so as diferenas dos mo-vimentos verdadeiros [eq.(2)], e parcialmente a partir das foras, que so as causas e os efeitos dos movimentos verdadeiros.21

    fazendo uso do efeito da ao de foras inerciais na rotao de dois sistemas fsicos distintos o constitudo por um balde com gua em seu interior e o formado por dois globos ligados por um fio que Newton prova, ou espera provar, a existncia do espao absoluto.

    1.4 A experincia do balde

    A clebre experincia do balde, desenvolvida por Newton, ilustra, segundo ele, um movimento circular verdadeiro, absoluto. Ela tem a seguinte descrio:

    Inicialmente, prende-se um balde extremidade livre de uma longa corda vertical. A seguir, torce-se fortemente a corda, coloca-se gua dentro do recipiente e libera-se o sistema ao se evidenciar a situao de repouso do lquido em relao ao balde. Quando a corda comea a se desenrolar constata-se que apenas o recipiente gira, permanecendo a superfcie da gua plana e estacionria (Fig.1.3a). Por atrito, a parede interna do balde transmite movimento s partculas de gua em suas imediaes; estas, por sua vez, comunicam movimento s suas vizinhas, desencade-ando um processo que faz a gua girar em relao ao balde. Ao revolucionar, a gua afasta-se da posio central do recipiente, isto , do eixo de rotao do movimento circular, ascendendo pelas suas bordas, o que confere sua superfcie uma forma cncava (Fig.1.3b). Quanto mais rpido o movimento, maior a concavidade da gua, que atinge o limite mximo quando a gua e o balde apresentam movimento relativo nulo, ou seja, quando ambos giram com a mesma velocidade angular (Fig.1.3c).

    20 Id, p. 11. 21 Id, p. 13.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    21

    ( a ) ( b ) ( c )

    Fig. 1.3 - A experincia do balde: ( a ) quando o balde comea a girar a gua no se move em relao a ele, e sua superfcie plana. ( b ) Com a continuidade do movimento, a gua passa a se movimentar em relao ao balde e sua superfcie se encurva. ( c ) No instante que as velocidades angulares do balde e da gua so iguais, no h movimento relativo entre eles, e a concavidade da gua mxima. Assim, a superfcie da gua tem forma plana e cncava em duas situaes de repouso da

    gua em relao ao balde. plana quando o movimento relativo da gua no recipiente mximo. Nesse caso, no havendo nenhum afastamento do lquido em relao ao eixo de rotao, constata-se que o seu movimento circular e verdadeiro ainda no teve incio.

    medida que o lquido sobe pelas paredes do recipiente, o movimento relativo entre a gua e o balde decresce. Quando a concavidade da gua mxima, ela fica novamente em repouso em relao ao balde; mas agora o seu movimento circular e verdadeiro (em relao ao espao absoluto) mximo.

    Detendo-se bruscamente o balde22

    Efetivamente, o balde no um referencial relevante para a descrio completa do movimento da gua. A gua um corpo acelerado, que sofre a ao de foras inerciais. Essas for-as, que Newton designa por foras de afastamento do eixo de rotao, explicam a concavidade do lquido. Como resume Ghins

    , observa-se que o movimento da gua em relao ao recipiente volta a ser mximo. Como, por alguns instantes, a concavidade da gua permanece inalterada, tem-se novamente uma situao contraditria em termos de movimento relativo: tanto quando est em movimento mximo em relao ao balde quanto em repouso em relao a ele, a gua mostra a mesma superfcie cncava.

    23

    - As foras centrfugas no podem ser atribudas a uma causa externa; tm sua origem no prprio movimento. So foras internas, ou ainda, foras de inrcia;

    :

    - As foras de inrcia so reais. Assim, devem ter uma causa ou uma fonte real; - As foras de inrcia so os efeitos de uma modificao do estado de movimento retilneo

    uniforme em relao a um sistema de referncia real. Esse referente fsico no o balde, nem as estrelas, nem qualquer corpo material. o espao absoluto, real e imaterial!

    Para demonstrar que tambm as estrelas fixas no servem como referencial para o

    22 Implementando-se mais uma ao no experimento de Newton, meramente didtica. 23 GHINS, 1991, p. 43-44.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    22

    verdadeiro movimento de um corpo, Newton desenvolve uma nova experincia, dessa vez de pensamento.

    1.5 A experincia de pensamento dos globos em rotao

    Na experincia do balde, a forma da gua em movimento depende, em parte, da fora gravitacional da Terra. possvel eliminar essa varivel examinando aspectos do movimento relativo e do movimento absoluto de um sistema fsico situado em um imenso espao vazio. a que dois globos idnticos, ligados um ao outro por meio de uma corda, giram em torno do centro de gravidade do sistema.

    A revoluo dos globos determina a existncia de uma tenso na corda, como resultado da tendncia que os corpos tm de se afastarem do eixo do movimento (Fig. 1.4). Essa tenso mensurvel, de modo que, se foras de mesma intensidade e direo, mas de sentidos opostos, fossem aplicadas simultaneamente em cada globo, poder-se-ia inferir o aumento ou a diminuio de seus movimentos, a partir do acrscimo ou decrscimo da tenso na corda.

    velocidade

    fora de afastamento do eixo eixo de rotao fora de afastamento do eixo velocidade

    Fig. 1.4 - A experincia dos globos: quando os corpos giram em torno do centro de gravidade do sistema, h uma tenso na corda devido a tendncia dos globos de se afastarem do eixo de rotao.

    A presena de foras de inrcia sobre um sistema constitui uma clara indicao de seu

    movimento em relao ao espao absoluto. Por conseguinte, no importa se os globos se encontrem ou no em um espao desprovido de matria, onde no h nada externo ou sensvel com o qual eles possam ser comparados. Esse fato mesmo irrelevante, j que para se ter evidncia inequvoca do movimento absoluto dos dois globos suficiente, apenas, a anlise interna do sistema, via tenso na corda. Newton enfatiza isso quando conclui a sua discusso sobre esse exemplo:

    Porm, se naquele espao fossem colocados alguns corpos remotos que mantivessem sempre uma dada

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    23

    posio uns com relao aos outros, como as estrelas fixas em nossas regies, no teramos como

    determinar, a partir da translao relativa dos globos entre aqueles corpos, se o movimento pertence aos

    globos ou aos corpos. Mas se observssemos a corda e descobrssemos que sua tenso era aquela mesma

    tenso que os movimentos dos globos exigiam, poderamos concluir que o movimento estava nos globos e

    que os corpos estavam em repouso; ento, finalmente, a partir da translao dos globos entre os corpos,

    poderamos obter a determinao dos seus movimentos.24

    Os globos giram em relao s estrelas; as estrelas giram em relao aos globos: no mbito da relatividade dos movimentos, da cinemtica rotacional, as velocidades angulares de um sistema em relao a outro so iguais em mdulo; diferem apenas no sentido do vetor velocidade angular, nada mais.

    A existncia de tenso na corda assegura o movimento absoluto dos globos em relao ao espao absoluto (e o movimento absoluto dos globos em relao s estrelas, se elas estivessem em repouso em relao ao espao absoluto). Inversamente, se os globos estivessem em repouso em relao ao espao absoluto, ento seriam as estrelas que apresentariam movimento absoluto em relao aos globos (e ao espao absoluto). Nesse caso, no haveria tenso na corda.

    1.6 O sensorium de Deus

    Em uma obra de David Gregory (1705), o autor diz que estava com Newton quando este

    manifestou dvida sobre como intitular uma das sete questes que pensava incluir na edio latina da Optica (1706). O que que preenche o espao vazio de corpos?, questionava Newton. Segundo Gregory:

    A simples verdade que ele cr que Deus onipresente no sentido literal [do termo]. E que, tal como

    somos sensveis a [percebermos] objetos no lugar de onde as suas imagens so transmitidas ao nosso

    crebro, tambm Deus, estando intimamente presente em todas as coisas, deve ser sensvel a [perceber]

    todas as coisas: com efeito, ele supe que assim como Deus est presente no espao em que no h corpo

    algum, Ele est tambm presente no espao em que est igualmente presente um corpo.25

    Conforme Koyr: O Deus de Newton no simplesmente um Deus filosfico, a impessoal e indiferente Causa Primeira

    dos aristotlicos, nem o Deus de Descartes ou de Leibniz, que so aos olhos de Newton deuses

    completamente indiferentes e ausentes do mundo. O Deus de Newton ou pelo menos Newton pretende

    que ele seja o Deus da Bblia, o Senhor efetivo e o Soberano do mundo por ele criado.26

    24 NEWTON, 1990, p. 13-14. 25 GREGORY apud KOYR, s/ano, p. 201. 26 KOYR, s/ano, p. 217.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    24

    Com a sua filosofia mecanicista, Descartes exclui a presena contnua de Deus na natureza, e isso inaceitvel para Newton. Efetivamente, h um ser que governa todas as coisas e ele eterno, onipresente, onipotente, onisciente, absolutamente perfeito. Embora se intuie alguns de seus atributos que bem podem ser os vinte, mencionados por More o conhecimento que se tem da sua natureza e de seus desgnios semelhante ao que um homem cego tem das cores, diz Newton no Esclio Geral do Livro III dos Principia. As paixes e os sentimentos humanos a Ele atribudos so meras alegorias.

    Mencionando no ter sido capaz de descobrir a causa da gravidade a partir dos fenmenos, e que assim no simula qualquer hiptese (hipothesis non fingo), pois tudo que no deduzido dos fenmenos deve ser chamado uma hiptese; e as hipteses, quer metafsicas ou fsicas, quer de qualidades ocultas ou mecnicas, no tm lugar na filosofia experimental27

    ; mas que suficiente que ela (a gravidade) exista, e que haja de acordo com a lei que ele inferiu, Newton conclui o Esclio Geral escrevendo sobre um certo esprito sutil, ainda desconhecido, que penetra e jaz escondido nos corpos:

    Um esprito atravs de cuja fora e ao as partculas dos corpos se atraem entre si a distncias prximas,

    e se unem, se contguas; e os corpos eltricos operam a distncias maiores, tanto repelindo como atraindo

    os corpsculos vizinhos; e a luz emitida, refletida, refratada, infletida, e esquenta os corpos; e toda a

    sensao excitada e os membros dos corpos animais movem-se ao comando da vontade, notadamente

    pela vibrao desse esprito, mutuamente propagada ao longo dos filamentos slidos dos nervos, dos

    rgos exteriores dos sentidos at o crebro, e do crebro at os msculos. Mas essas so coisas que no

    podem ser explicadas em poucas palavras, nem estamos providos daquela suficincia de experimentos que

    requerida para uma determinao precisa e para uma demonstrao das leis pelas quais esses espritos

    eltricos e plsticos operam.28

    Esse esprito, em suas diferentes manifestaes, tem semelhanas notrias com o esprito da natureza de Henry More, o instrumento da vontade divina. Para Newton, o espao absoluto no somente real, tambm qualquer coisa de divino. Ele o sensorium de Deus.

    Na questo 28 da Optica29, Newton retoma as crticas ao mundo frio e mecnico de Descartes, argumentando que os movimentos regulares e duradouros dos corpos celestes no podem ser explicados pelos turbilhes de matria cartesiano; e que, em nvel microscpico, essa matria deteria os movimentos vibratrios que constituem o calor30

    27 NEWTON, 1996, p. 258.

    . A existncia desse fluido denso faria definhar toda a estrutura da natureza. No sendo possvel sustent-lo, pela falta de evidncia, deve-se rejeit-lo, e com isso tambm negar a concepo de Descartes de que a luz consiste em uma presso ou movimento que se propaga atravs desse meio contnuo.

    28 Id, p. 258-259. 29 NEWTON, 1996, p. 279; NEWTON, 2002, p. 270. 30 Newton associa o calor, erradamente, ao movimento vibratrio dos constituintes da matria.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    25

    Em carta endereada a Richard Bentley (1662-1742), vrios anos antes da publicao da Optica, Newton reitera que a ordem do sistema solar no o resultado de uma causa cega ou fortuita. As quantidades de matria do Sol, dos planetas, dos corpos que orbitam os planetas (quatro em torno de Jpiter, cinco ao redor de Saturno e a Lua em torno da Terra), bem como a extenso das rbitas e as velocidades desses corpos, a inclinao do eixo da Terra... tudo isso requereu valores e propriedades estabelecidas por uma causa inteligente, por um hbil mecnico e gemetra, para criar e proporcionar a estabilidade dessa complexa estrutura.

    A relao de Deus com a sua magnfica obra explicitada na Questo 31 da Optica. A uniformidade maravilhosa do sistema planetrio, dos corpos dos animais, as leis que governam esse mundo, tudo o que existe, enfim,

    (...) no pode ser o efeito de nada alm do que a sabedoria e habilidade de um agente sempre vivo,

    poderoso, que, estando em todos os lugares, mais capaz por Sua vontade de mover os corpos em Seu

    sensrio uniforme ilimitado, e desse modo formar e reformar as partes do Universo, do que ns somos

    capazes, por nossa vontade, de mover as partes de nossos prprios corpos.31

    Newton admite que as aes mtuas entre os cometas e os planetas podem causar instabilidades no sistema, com o passar do tempo. Porm, Deus zela por sua obra e, de maneira cientfica, faz as reformulaes necessrias.

    Assim, Newton aparentemente segue um postulado de extrema importncia; pressupe, como todos os que

    trazem um interesse esttico cincia, que a ordem incomparvel, a beleza e harmonia que caracterizam o

    reino celeste como um todo, deve ser preservada eternamente. No ser preservada pelo espao, pelo

    tempo, pela massa e pelo ter, apenas; sua preservao requer o exerccio contnuo daquela vontade

    divina que escolheu livremente essa ordem e harmonia como os propsitos do seu primeiro esforo

    criador. Do arqutipo ao todo, Deus agora desceu para tornar-se uma categoria, entre outras; a ordem

    contnua, o sistema e a uniformidade, conforme observados no mundo, so inexplicveis de outra forma

    seno pela sua existncia.32

    Para muitos, entretanto, Newton foi longe demais no relacionamento de Deus com a sua obra. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) um crtico altura do significado dos conceitos envolvidos.

    Segundo Leibniz, no se pode aceitar que o espao infinito seja o sensrio de Deus que o Ser Supremo, presente em toda a parte, necessite de um rgo da sensao para perceber tudo com a clareza de sua grandeza. Muito menos, ainda, que de tempos em tempos sejam necessrios certos ajustes em sua obra. Um ser perfeito no exercita a imperfeio e nem dispe de rgos.

    31 NEWTON, 1996, p. 297; NEWTON, 2002, p. 291-292. 32 BURTT, 1991, p. 228-229.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    26

    Em carta Princesa de Gales, em 1715, Leibniz critica esses conceitos da fsica newtoniana. Se Deus precisasse de algum meio para sentir as coisas, elas no dependeriam inteiramente dele e, portanto, no seriam objetos da sua criao.

    Newton e seus asseclas tm ainda uma divertidssima opinio sobre a obra de Deus. Conforme eles, Deus

    de vez em quando precisa dar corda em seu relgio, porque seno ele deixaria de andar. O cientista no

    teve viso suficiente para imaginar um movimento perptuo. Essa mquina de Deus at to imperfeita,

    segundo eles, que o Criador se v obrigado de quando em quando a desengrax-la por um concurso

    extraordinrio, e mesmo arranj-la, como um relojoeiro faz com sua obra, o qual ser tanto pior arteso

    quanto mais vezes se vir obrigado a retocar e corrigir seu trabalho. Na minha opinio, a mesma fora e

    vigor subsiste sempre, passando somente de matria em matria, conforme as leis da natureza e a bela

    ordem preestabelecida. E creio que, quando Deus faz milagres, no para suprir as necessidades da

    natureza, mas sim as da graa.33

    A Princesa, digna de estabelecer relaes com Leibiniz e Newton, conforme Franois-Marie Arouet (1694-1778) conhecido pelo pseudnimo de Voltaire , promove ento uma disputa por cartas entre Leibniz e Samuel Clarke (1675-1729), discpulo de Newton, sobre as idias metafsicas do sbio ingls.

    Em resposta a Leibniz, Clarke diz que, justamente por estar presente em toda a parte, Deus percebe tudo por sua presena imediata, e assim pode agir segundo os seus propsitos. nesse sentido que o espao o seu sensrio, isto , o lugar da sensao. O olho, a orelha, etc., so rgos, mas no sensrios. Alis, o Cavaleiro Newton no diz que o espao um sensrio, mas que comparativamente e por assim dizer o sensrio, etc.

    Segundo o Dr Clarke: Embora Deus esteja presente em todo o universo, no se segue que ele seja a alma do mundo. A alma

    humana uma parte de um composto de que o corpo a outra parte; e essas duas partes atuam

    mutuamente uma sobre a outra, como sendo as partes de um mesmo todo. Deus, porm, est no mundo,

    no como uma parte do universo, mas como um governante. Age sobre tudo, e nada age sobre ele. No

    est longe de cada um de ns, porque nele ns (e todas as coisas que existem) temos a vida, o movimento

    e o ser.34

    Em qualquer reino, necessria a presena e a ao constantes de um soberano. O ttulo de rei ou governante s cabe quele que efetivamente exerce a funo de zelar pelo seu domnio, mostrando sabedoria, ordenando e dispondo as coisas como julga necessrio.

    Para Clarke (e Newton), os que consideram que o universo dispensa a ao contnua de Deus, como um relgio do relojoeiro, depois de colocado a funcionar, defendem uma doutrina que leva sua excluso do mundo. Isso impossvel, visto que no h foras na natureza que 33 LEIBNIZ, correspondncia com Clarke, p. 169. 34 Id, p. 176.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    27

    sejam independentes de Deus como as foras dos pesos e das molas so independentes dos homens. No universo, preciso o exerccio perptuo do poder e do governo de seu autor.35

    A controvrsia Leibniz-Clarke famosa na histria da cincia. Cheia de sutilezas, ela envolve um confronto entre gigantes.

    1.7 A rejeio de Mach ao espao absoluto newtoniano

    Quando se analisa o movimento relativo uniforme de dois corpos, como os barqueiros de

    Oresme36

    Contudo, se em determinadas situaes no se pode ter certeza de se estar parado ou em movimento retilneo uniforme, pela falta de um referencial privilegiado, o mesmo no ocorre quando esto envolvidas variaes de velocidade. Nesse caso, sem ser necessria nenhuma comparao externa, o observador sabe que se movimenta, pelas foras que experimenta nessa condio fsica.

    , que tendo apenas um ao outro como ponto de referncia no podem precisar quem se movimenta, coloca-se em evidncia uma situao fsica que parece conferir a um movimento com velocidade constante um carter diferenciado em relao a outras formas de movimento. De fato, o princpio da relatividade de Galileu (seo 1.8) estabelece a equivalncia fsica de todos os referenciais no acelerados.

    No entanto, se a velocidade um conceito que explicita a mudana temporal de posio de um corpo em relao a um dado referencial, por que variaes de velocidade parecem dispensar o referente fsico? Ser que no existe alguma comparao implcita ou oculta cada vez que se experimenta um movimento acelerado ou quando se faz referncia a ele?37

    Com os experimentos do balde e dos globos em rotao, Newton prova, ou espera provar, a existncia do movimento absoluto, isto , do movimento em relao ao espao absoluto. Na sua argumentao, explicita a existncia de uma ao do espao sobre a matria que produz as foras inerciais envolvidas. Mas no h nenhuma reao da matria sobre o espao como, em princpio, seria de se esperar, de acordo com a terceira lei de Newton, pois o espao no influenciado pela presena de seu contedo material.

    O fsico e filsofo austraco Ernst Mach rejeita o espao absoluto newtoniano. A sua objeo a esse conceito sustentada, em parte, por uma viso de cincia que no concede nenhum papel relevante a grandezas no observveis em uma teoria cientfica. Quando muito, e na melhor das hipteses, elas teriam uma funo meramente instrumental. O espao absoluto um desses exemplos: no diretamente apreensvel, no pode ser observado; um conceito metafsico e, como tal, destitudo de valor em uma cincia emprica como a fsica.

    35 Id, p. 175. 36 PEDUZZI, 1998, p. 296. 37 GREENE, 2005, p. 42.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    28

    As teorias cientficas no devem estabelecer vnculos causais com entidades no observveis. Devem se ater aos fatos, servir de instrumentos para descrever e prever o que pode ser observado. Os positivistas (empiristas) lgicos, e com eles Mach, aceitam como axiomas um conjunto reduzido de proposies fundadas na experincia sensvel, em uma fisiologia dos sentidos. Cabendo filosofia a anlise lgica da cincia, atribuem grande importncia a preciso da linguagem a matematizao dos fenmenos e lgica indutiva.

    Em uma cincia que cultiva o esprito antimetafsico, que combina o empirismo lgica formal para a sua anlise, questes relativas natureza da descoberta cientfica no tm nenhuma relevncia. Assim, para os positivistas, o conceito de espao absoluto da mecnica newtoniana no pertence ao contexto de justificao da teoria. Sendo inacessvel aos sentidos, esse conceito faria parte do contexto da descoberta:

    Se Newton introduz a noo de espao absoluto, dizem eles, porque ele tem crenas compartilhadas por

    muitas pessoas da sua poca em particular, as idias neo-platnicas de Henry More, contemporneo de

    Newton. Mas essas crenas, embora apaream nos Principia, pertenceriam de fato ao contexto de

    descoberta, ao conjunto de idias e crenas que compunham o ambiente intelectual em que Newton se

    criou.38

    Fig. 1.5 - Ernst Mach (1838-1916). O certo que Mach discorda do pressuposto newtoniano de que as foras inerciais sobre

    um objeto acelerado resultam de sua interao com o espao absoluto. Para Mach, elas se devem interao do objeto com os demais corpos do universo.

    Assim, Mach rejeita a afirmao newtoniana de que em um universo vazio, a no ser pela presena de dois globos ligados por um fio, a tenso no fio um indicador inequvoco de que esse

    38 GHINS, 1986.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    29

    sistema est girando em relao ao espao absoluto. Ele argumenta que Newton faz uma generalizao indevida quando considera que os resultados dos experimentos realizados no laboratrio so tambm vlidos em um espao essencialmente vazio.

    Segundo Mach, no pode haver nenhuma tenso no fio do experimento dos globos de Newton (em um universo vazio) porque esse sistema no interage com nenhum outro corpo. Alm disso, conceitos como translao, rotao, velocidade e acelerao demandam um referente fsico no possuem significado absoluto. Em um universo vazio, um corpo no tem como saber se est ou no em movimento. Nessas condies, fisicamente impossvel, e destitudo de significado lgico, procurar estabelecer qualquer distino entre girar ou no girar.

    As diferenas conceituais entre Newton e Mach so enfatizadas pelo fsico brasileiro Andr K. T. Assis (1962-)39

    em uma experincia de pensamento na qual o balde, a gua e a Terra esto em repouso em relao ao espao absoluto e as estrelas fixas giram com velocidade angular

    (oposta do experimento real realizado por Newton) em torno do eixo de simetria do balde. Nesse caso, que forma teria a gua?

    Para Newton, a superfice da gua seria inegavelmente plana, pois a gua se encontra em repouso em relao ao espao absoluto e as estrelas no exercem fora gravitacional lquida sobre as molculas do lquido. Como sua lei da gravitao universal no depende da velocidade nem da acelerao, vem que um conjunto de cascas esfricas girando ou paradas no vo exercer nenhuma fora resultante em nenhum corpo interno, qualquer que seja sua posio ou movimento.40

    Do ponto de vista de Mach, o que importa a rotao relativa entre a gua e as estrelas fixas. Como nessa experincia de pensamento tal movimento relativo o mesmo que o da experincia real desenvolvida por Newton, a superfcie da gua apresentaria uma forma cncava.

    Contudo, como alerta Assis: Obviamente esta experincia de pensamento... no completamente equivalente experincia real de

    Newton. A equivalncia cinemtica somente seria completa se a Terra girasse junto com as estrelas fixas

    com z em relao ao balde e gua. Mas estamos desprezando aqui as foras tangenciais (que esto num plano perpendicular ao eixo de giro) exercidas pela Terra girante sobre as molculas da gua. Isto ,

    estamos assumindo que a fora exercida pela Terra sobre a gua essencialmente seu peso apontando

    para baixo, no interessando a rotao da Terra em relao gua. Entretanto, Mach no demonstrou como o contedo material do universo capaz de agir

    sobre um determinado corpo. Mach deixou claro que a matria distante como o conjunto das estrelas fixas estabelecem um excelente sistema inercial. Mas ele tambm no explicou esse fato,

    39 ASSIS, 1999, p. 70-72. 40 Id, p. 71.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    30

    nem indicou como essa conexo entre as estrelas distantes e os referenciais inerciais determinados localmente poderia surgir.41

    1.8 Referencial inercial

    No prefcio que faz ao livro Concepts of space: the history of theories of space in physics, do fsico e historiador Max Jammer42

    Em suas consideraes, Einstein destaca que o conceito de espao de difcil compreenso intuitiva. Para ele, esse conceito est ligado a um outro, psicologicamente mais simples o de lugar (local).

    , em 1953, Einstein discute duas diferentes conceituaes sobre a natureza do espao: a) no h espao se no existe matria e b) o espao tem existncia independentemente de qualquer objeto material.

    Caracteriza-se um lugar por um determinado conjunto de objetos materiais, ou corpos, dispostos de alguma maneira. A localizao de um corpo neste lugar especificificado em funo da sua relao espacial com outros corpos. Assim, espao (lugar) e matria esto indissoluvelmente ligados. O espao nada mais do que uma espcie de disposio de objetos materiais. No havendo matria, no h espao. Portanto, no existe o vazio.

    possvel relacionar essa primeira concepo de espao com a de Descartes. Conforme escreve Einstein, em um outro texto: Descartes raciocinava mais ou menos da seguinte maneira: o espao idntico extenso; a extenso est ligada ao corpo; por conseqncia, no h espao sem corpos isto , no h espao vazio.43

    Uma segunda conceituao de espao, sutil e complexa em sua essncia, ope-se a esta. O seu significado pode ser apreendido considerando-se, inicialmente, uma caixa fechada contendo objetos em seu interior. O nmero de objetos que ela comporta e a forma como esto distribudos funo do espao interno disponvel. Claramente, o termo espao encerrado pela caixa designa a regio delimitada por seus contornos. Esse espao diferente para diferentes caixas, e isto independe das caixas conterem ou no objetos em seu interior. Nesses termos, o espao definido pelos limites fsicos da caixa to real quanto qualquer objeto em seu interior, ou o material de suas paredes. Ou seja, ele possui significado independentemente de qualquer objeto material.

    Como o espao encerrado por uma caixa no depende da espessura de suas paredes, pode-se reduzi-las a zero por uma operao de pensamento simples. Assim, a caixa deixa de existir, mas no o espao. Da elaborao desse conceito de espao, a partir do conceito funcional de caixas que podem conter objetos e sempre ser contidas por outras caixas, emerge no apenas uma generalizao evidente, mas um conceito-chave na fsica de Newton:

    41 Id, p. 74. 42 JAMMER, 1993. 43 EINSTEIN apud BALIBAR, 1988, p. 104.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    31

    Desta forma, por uma extenso natural do conceito de espao da caixa pode-se chegar ao conceito de um espao (absoluto) independente, ilimitado em extenso, no qual todos os objetos materiais esto contidos. Ento, um objeto material no situado no espao simplesmente inconcebvel; por outro lado, no referencial desta formao de conceito, inteiramente concebvel que um espao vazio possa existir.44

    Segundo Einstein, o conceito de espao b) foi enriquecido por Newton ao lhe conferir o adjetivo de absoluto e eleg-lo como referencial para a descrio do verdadeiro estado de um corpo. A validade da primeira lei de Newton est atrelada existncia desse sistema de referncia universal, que emerge face impossibilidade lgica e experimental da identificao do repouso absoluto de um objeto material.

    Contudo, como o espao absoluto inacessvel percepo sensorial, qual , ento, a sua utilidade prtica? Analisando o movimento relativo na experincia dos dois globos em rotao, quando menciona no se poder determinar se o movimento pertence aos globos ou s estrelas fixas, fica explcito o uso por Newton desse conjunto de corpos distantes, que mantm inalteradas as suas posies relativas, como um possvel referencial para o movimento dos globos. Mas o referencial das estrelas fixas no um substituto do referencial absoluto newtoniano. Para Newton, o referencial absoluto nico, e este referencial o espao absoluto.

    Frente a essa situao, pouco se acrescenta ao se dizer que um referencial inercial um sistema de referncia que se move com velocidade constante, ou que se encontra em repouso em relao ao espao absoluto. Ou ainda, que aquele no qual vlida a primeira lei de Newton. Que referencial esse, afinal, que vai dar validade ao uso das duas primeiras leis de Newton (j que a terceira independente do referencial adotado) na descrio prtica do movimento dos corpos?

    A Terra no um referencial inercial, pois nenhum observador ligado a ela ou a qualquer corpo em rotao est livre de fora. Porm, em um sem-nmero de situaes fsicas de interesse, os efeitos no inerciais decorrentes dessa rotao so desprezveis. Nesse caso, a Terra pode ser considerada como um referencial inercial. O navio de Galileu (e de Giordano Bruno), que se movimenta com velocidade constante em um tempo de calmaria, e o trem de Einstein, em trans-lao uniforme, que servem discusso de vrios experimentos, pressupem a Terra como um sistema de referncia inercial. Em geral, essa suposio vlida para experincias de curta durao, como as realizadas em laboratrios didticos, e restritas a pequenos segmentos da superfcie terrestre. No caso de um estudo com o pndulo de Foucault, por exemplo, que demanda tempos muito maiores de observao, a Terra no o referencial mais apropriado.

    O Sol, que rotaciona em torno de seu eixo e se movimenta, como as demais estrelas da Via Lctea, ao redor do centro de gravidade da galxia, tambm no um referencial inercial. Mas

    44 EINSTEIN in JAMMER, 1993, p. xv.

  • Sobre o referencial absoluto newtoniano

    32

    pode vir a s-lo em certas circunstncias, como quando se descreve cinemtica e dinamicamente o movimento de um planeta em relao a ele.

    A Via Lctea, galxias do grupo local, galxias distantes, o referencial no qual a radiao csmica de fundo isotrpica, etc. podem ser bons sistemas de referncia para o estudo de um sistema fsico, mas tambm podem se mostrar incomodamente suprfluos e desnecessrios.

    A argumentao desenvolvida conduz, necessariamente, a uma definio operacional de sistema de referncia inercial: um sistema inercial um sistema de referncia no qual a lei da inrcia parece ( tudo o que se pode dizer, na verdade) ser vlida. Ou, se se preferir, um referencial no qual se supe valer (dentro de uma determinada aproximao) a lei da inrcia. Nesse sistema, um corpo est estacionrio ou em translao uniforme se no h fora resultante atuando sobre ele.

    Uma vez caracterizado um sistema de eixos coordenados como um referencial inercial, qualquer outro sistema em repouso ou em translao uniforme em relao a esse referencial ser, tambm, um sistema inercial.

    No h um referencial especial, privilegiado: todos os referenciais inerciais oferecem perspectivas equivalentes para o estudo de um sistema mecnico. Dito de outra maneira, as leis da mecnica so as mesmas em todos os sistemas de referncia inerciais. Esse enunciado conhecido como o princpio da relatividade da fsica clssica, ou princpio da relatividade de Galileu.

    De acordo com esse princpio, nenhuma experincia mecnica conduzida em um sistema inercial pode conferir repouso ou movimento a esse sistema. A prpria indagao a esse respeito resulta sem significado face completa descontextualizao dos conceitos de espao, repouso e movimento absolutos em um mundo onde, de fato, apenas a relatividade do repouso e do movimento faz sentido.

    A teoria da relatividade especial, discutida no captulo 6, altera radicalmente as noes de espao e tempo da fsica clssica. Negando a existncia de um sistema universal de referncia, seja ele o espao absoluto de Newton ou o ter estacionrio, Einstein reformula o princpio da relatividade de Galileu para enfatizar que as leis da Fsica (e no s da mecnica) so as mesmas (isto , quando matematicamente escritas possuem a mesma forma) em todos os sistemas de referncia inerciais. No obstante, h ainda um longo caminho at Einstein, e do prprio Einstein relatividade geral (captulo 7).

    1.9 Referncias Bibliogrficas ASSIS, A. K. T. Uma nova fsica. So Paulo: Perspectiva, 1999. BALIBAR, F. Einstein: uma leitura de Galileu e Newton. Lisboa: Edies 70, 1988.

  • A relatividade einsteiniana: uma abordagem conceitual e epistemolgica

    33

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  • Captulo 2 O princpio da relatividade de Galileu

  • O princpio da relatividade de Galileu

    36

    2.1 A transformao de Galileu Considerando-se os problemas do referencial absoluto newtoniano como um referencial

    privilegiado na fsica, na perspectiva do movimento e do repouso relativo que se deve abordar a mecnica. Conforme Einstein, deve-se deixar de lado esta obscura palavra espao, com a qual, para sermos sinceros, no somos capazes de imaginar coisa alguma1

    Para fins de clareza no estudo de um movimento, deve-se falar desse movimento em relao a um corpo de referncia, ou sistema de coordenadas, ou sistema de referncia. Chamamos de sistema de coordenadas galileano um sistema de coordenadas cujo estado de movimento tal que, relativamente a ele, a lei da inrcia vlida

    .

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    Nesse contexto, faz-se necessrio explicitar como se d a passagem de coordenadas de um referencial inercial a outro para, a partir da, estabelecer as conexes existentes entre as velocidades e as aceleraes que os diferentes observadores desses sistemas atribuem a um mesmo sistema fsico.

    Se um sistema de coordenadas efetua um movimento uniforme e sem rotao em relao a um sistema galileano (inercial), ento esse sistema tambm