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ANAIS DO V SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE O PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL
A relevância do pensamento de Jacques Ellul no início do século XXI
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Universidade Estadual Paulista (UNESP)
17 e 18 de outubro de 2012 Franca - SP
Realização:
Apoio:
ANAIS DO V SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE O PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL
A relevância do pensamento de Jacques Ellul no início do século XXI
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Universidade Estadual Paulista (UNESP)
17 e 18 de outubro de 2012 Franca - SP
Realização:
Apoio:
Coordenação: Prof. Dr. Jorge David Barrientos-Parra Comitê Científico: Prof. Dr. Daniel Bourmaud (Université Montesquieu / Bordeaux IV – França) Prof. Dr. Patrick Chastenet (Université Montesquieu / Bordeaux IV – França) Prof. Dr. Jorge David Barrientos-Parra (UNESP – Araraquara/SP) Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges (UNESP – Franca/SP) Prof. Dr. Jorge Luís Mialhe (UNIMEP – Piracicaba/SP) Prof. Dr. Rui Décio Martins (FDSBC – São Bernardo do Campo/SP) Profa. Dra. Soraya Regina Gasparetto Lunardi (UNESP – Araraquara/SP) Profa. Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães (UFRJ – Rio de Janeiro/RJ) Prof. Dr. Alexandre Coutinho Pagliarini (UNIT - Aracaju/SE; FITS – Maceió/AL) Profa. Dra. Tania Lobo Muniz (UEL – Londrina/PR) Prof. Dr. Alberto Carlos Guimarães Castro Diniz (UnB - Brasília/DF) Prof. Dr. Carlos Luiz Strapazzon (UNOESC – Joaçaba/SC) Prof. Me. Alan Weston Wanderley (UNIFOZ – Foz do Iguaçu/PR) Prof. Me. Marcus Vinicius Matos (UNIFAMMA – Maringá/PR) Comitê Organizador: Prof. Dr. Jorge David Barrientos-Parra (UNESP – Araraquara/SP) Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges (UNESP – Franca/SP) Belª. Daiene Kelly Garcia (UNESP – Franca/SP) Belª. Daniela Aparecida Barbosa Rodrigues (UNESP – Franca/SP)
FICHA CATALOGRÁFICA
Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul /
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras. – N.5
(2012). – Araraquara : Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
Estadual Paulista, 2012.
Anais do V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques
Ellul. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas
e Sociais. Franca : UNESP/FCHS , 2012.
Anual.
Direção: Jorge Barrientos Parra.
ISSN 2176-6363
Direito – Periódicos
Os Anais do V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul constituem produção científica do Grupo de Estudos sobre Jacques Ellul, vinculado ao Centro de Estudos e Pesquisas Prof. Dr. Luiz Fabiano Corrêa, do Departamento de Administração Pública da FCL/UNESP Campus de Araraquara. Os organizadores do V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul não se responsabilizam pelo conteúdo dos textos publicados, cuja responsabilidade é dos respectivos autores.
APRESENTAÇÃO
Nos dias 17 e 18 de outubro, no ano do centenário do nascimento de Jacques
Ellul, o V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento desse laureado pensador francês teve
lugar na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP, Campus de Franca.
Organizado pelo Grupo de Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq), o
evento contou com o respaldo do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, da
Associação Internacional Jacques Ellul, do Centro de Estudos e Pesquisas Prof. Dr. Luiz
Fabiano Corrêa e com o significativo apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – CAPES e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Sob o título “A Relevância do Pensamento de Jacques Ellul no Início do Século
XXI”, alunos de Graduação de diferentes cursos (Administração Pública, Economia, Ciências
Sociais e Direito), de Pós-Graduação (principalmente dos Programas de Mestrado da UNESP
e da UNIMEP) e professores da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, da
UNIMEP, da UNESP e da Fundação Getúlio Vargas, apresentaram papers, debateram e
vivenciaram a interdisciplinaridade e a pluridisciplinaridade em tempos de profunda falta de
diálogo na Academia devido à conhecida separação existente entre as disciplinas.
Nesta edição tivemos a honra e a alegria de contar com a participação do Prof. Dr.
José Luis Garcia, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que
com suas aprofundadas reflexões e percucientes intervenções não somente abrilhantou os
debates, mas nos abriu perspectivas para futuras e promissoras pesquisas.
Gostaria de registrar aqui os meus sinceros agradecimentos em nome do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul e em nome do Comitê Científico às Bacharéis Daiene Kelly
Garcia e Daniela Rodrigues, alunas do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, pela
valiosa contribuição que deram tanto para a realização do Seminário como para a publicação
destes Anais.
Agradecemos também o apoio e o financiamento da CAPES, que sinaliza o
reconhecimento no âmbito federal desta linha de pesquisa sobre o pensamento elluliano, o
qual é uma das chaves para decifrar a sociedade tecnológica na qual estamos inseridos.
Na primeira parte apresentamos o fruto de reflexões de professores e pós-
graduados. Na segunda parte constam trabalhos de Iniciação Científica.
Franca, 18 de outubro de 2012.
Prof. Dr. Jorge Barrientos-Parra
Coordenador
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 3
ARTIGOS .................................................................................................................................. 7
MEDITAÇÕES DE JACQUES ELLUL SOBRE O LIVRO DE ECLESIASTES: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES ................................................................................................................... 8
PARADOXO ENTRE O PROGRESSO DA SOCIEDADE TÉCNICA E O REGRESSO EM
TERMOS DE IMPACTO AMBIENTAL ................................................................................ 18
A QUESTÃO DO RECONHECIMENTO DE TÍTULOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
DIREITO NO MERCOSUL: PROPAGANDA E AUTOENGANO ....................................... 28
ELLUL, ORTEGA Y GASSET, MIGUEL DE UNAMUNO. PONTO DE ENCONTRO ..... 40
AMBIVALÊNCIA DA TÉCNICA E A QUESTÃO AMBIENTAL ....................................... 52
A MODERNIZAÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO: UM PROCESSO DE
TECNIFICAÇÃO DOS MEIOS E A REDEFINIÇÃO DOS FINS ......................................... 59
DESAFIOS DO SÉCULO XXI: A TÉCNICA EM JACQUES ELLUL, O DIREITO À
PRIVACIDADE E A QUESTÃO DO TERRORISMO .......................................................... 73
A INVASÃO DAS IMAGENS E A MARGINALIZAÇÃO DA PALAVRA NA
SOCIEDADE TÉCNICA ......................................................................................................... 83
COMO SE FAZ E REFAZ O HOMEM E A MULHER DA SOCIEDADE TÉCNICA ......... 91
A MANIPULAÇÃO DA VIDA E A CONSTRUÇÃO DO HOMEM-MÁQUINA NA
SOCIEDADE TECNOLÓGICA ............................................................................................ 103
A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA NA ECONOMIA NO PENSAMENTO DE JACQUES
ELLUL ................................................................................................................................... 111
A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA NA ECONOMIA E SUAS IMPLICAÇÕES ................... 128
A INTERVENÇÃO DA TÉCNICA NO FENÔMENO HUMANO ...................................... 138
MÍDIA COMO QUARTO PODER REDUCIONISTA VERSUS O DEVIDO PROCESSO
PENAL ................................................................................................................................... 148
UMA ABORDAGEM PROPEDÊUTICA SOBRE A INTERVENÇÃO DA TÉCNICA NO
FENÔMENO HUMANO ....................................................................................................... 165
A INFORMAÇÃO E A PROPAGANDA POLÍTICA: ALCANÇANDO O PODER
POLÍTICO. ............................................................................................................................. 176
RESUMOS EXPANDIDOS ................................................................................................. 208
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ................................................. 209
SUSTENTÁVEL .................................................................................................................... 209
AMBIVALÊNCIA DA TÉCNICA E A QUESTÃO AMBIENTAL ..................................... 213
O PROCESSO DE TECNIZAÇÃO DE TODAS AS PARCELAS DA VIDA (OU “SOBRE
ESPERANÇAS PERDIDAS E DESFEITAS”) ..................................................................... 220
TÉCNICA MODERNA: AS CARACTERÍSTICAS DE ACORDO COM O PENSAMENTO
DE JACQUES ELLUL ........................................................................................................... 222
A TECNIFICAÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DO ENTRETENIMENTO E DOS
ESPORTES ............................................................................................................................. 226
A SUPERIORIDADE DA TÉCNICA SOBRE A TRADIÇÃO NO MUNDO MODERNO 232
MUDAR DE REVOLUÇÃO: ASCENÇÃO E QUEDA DO COMUNISMO NA RÚSSIA. 238
MÍDIA: QUARTO PODER REDUCIONISTA EM FACE DO DUE PROCESS OF LAW . 246
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERVENÇÃO DA TÉCNICA NO FENÔMENO
HUMANO .............................................................................................................................. 251
RESUMOS ............................................................................................................................ 260
TÉCNICA, TRANSPARÊNCIA E CIDADANIA NA ERA DIGITAL ................................ 261
AS EMOCÕES E A TÉCNICA: UM DIÁLOGO ENTRE O PENSAMENTO DE JACQUES
ELLUL E BERTRAND RUSSEL .......................................................................................... 262
OS DIREITOS HUMANOS E A RELEVÂNCIA DO PENSAMENTO DE JACQUES
ELLUL NO INÍCIO DO SÉCULO XXI ................................................................................ 264
O ESTABELECIMENTO VIRTUAL NA SOCIEDADE TÉCNICA: A NECESSÁRIA
BUSCA DE SEGURANÇA JURÍDICA NAS TRANSAÇÕES COMERCIAIS .................. 266
REFLEXÕES SOBRE ESTADO E TÉCNICA EM JACQUES ELLUL .............................. 268
CHINA: O EMERGENTE DAS OLIMPÍADAS, UMA ANÁLISE A PARTIR DE JACQUES
ELLUL. .................................................................................................................................. 270
A CIDADE E O CAMPO, NO CONTEXTO DA CIVILIZAÇÃO TÉCNICA .................... 272
O FENÔMENO TÉCNICO NO LIMIAR DO SER E DO FAZER DA REALIDADE
HUMANA. ............................................................................................................................. 275
ARTIGOS
8
MEDITAÇÕES DE JACQUES ELLUL SOBRE O LIVRO DE
ECLESIASTES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Jorge Barrientos-Parra1
Introdução; 1. Vaidade de Vaidades, Tudo é Vaidade; 2. O Poder; 3. O
Dinheiro; Conselhos Finais.
Introdução
Seguramente um dos textos bíblicos mais lidos é o livro do Eclesiastes [Qohélet] que
coloca o homem num dispositivo poético-sapiencial em que toda roupagem e todo artifício lhe
são retirados deixando-o completamente nu debaixo do sol. Pode então Qohélet examinar o
homem e dizer-lhe verdades muito apreciadas no Oriente e no Ocidente, outras nem tanto e
outras ainda permanecem obscuras.
Quanto ao método de trabalho Ellul diz que leu e meditou o livro de Eclesiastes
durante mais de cinquenta anos, numa confrontação dialogal diversa do método em base do
qual trabalhamos na universidade em que começamos por fazer uma bibliografia sobre o tema
e estudamos tudo o que encontramos disponível seguindo um plano pré-estabelecido. Assim
escrevemos em função de outros autores, seja para os contradizê-los ou seja para segui-los na
sua linha argumentativa.
Muito embora Ellul cite vários autores como D. Lys2, A. Maillot3, E. Podechard4, J.
Steinmann5, A. Barucq6, Pedersen, Lüthi, Von Rad, Lauha7, etc., a principal fonte para a sua
reflexão foi o próprio texto de Qohélet que ele estudou diretamente do hebraico, juntamente
com nove traduções, segundo ele: “para me ajudar e controlar”, (ELLUL, 1987, p. 11).
1 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
2 . L‟Ecclésiaste, ou que vaut la vie, Paris, Letouzey, 1977.
3 . “La contestation. Commentaire de l‟Ecclésiaste” in Cahiers du Réveil, Lyon, 1971.
4 . L‟Ecclésiaste, Paris, Gabalda, 1912.
5 . Ainsi parlait Qohelet, Paris, Éditions du Cerf, 1955.
6 . Ecclésiaste, Paris, Beauchesne, 1968.
7 . Kohelet, Munich, Neukirchener Verlag, 1978.
9
Assim quanto ao método Ellul nos oferece esta lição “tendo adquirido um certo
conhecimento e um determinado saber, é necessário marchar só e não repetir o que os outros
disseram”8.
Neste artigo analisaremos, em caráter preliminar e sem pretender esgotar o assunto,
três questões existenciais propostas por Qohelet, a questão do poder, do dinheiro e o sentido
da vida expresso na sua conhecida sentença: “Vaidade de vaidades tudo é vaidade”.
Comecemos por esta última.
1. Vaidade de Vaidades, Tudo é Vaidade
Como traduzir habèl ou hevel? Há séculos se traduz como “vaidade”, entretanto há
coisa de uns vinte anos se afirma que essa palavra hebraica pode significar literalmente vapor
ou hálito.
Para André Chouraqui a palavra habèl é essencialmente concreta, assim ela a traduz
como fumaça. O verso mais conhecido de Qohélet: “Habèl ha balîm hakol habèl”, ficaria
assim <Fumaça de fumaças tudo é fumaça>.
De acordo com Ellul a palavra habèl tem uma conotação valorativa. Assim dizer que
a riqueza é habèl é um julgamento de valor. De qualquer forma esta é uma palavra que
aparece também em Jó, nos Salmos, e também em Gênesis 4 e que será traduzida às vezes por
“vento” e outras vezes por “vão” ou “inútil”.
Ellul sublinha dois aspectos importantes na esteira de Chopineau9 entende que tudo é
hevel ou habèl, esse tudo sendo Um. No sentido de que há um destino para tudo e todos.
Existe um sopro (souffle) que é vão. É a globalidade como unidade. Qohelet escreve: “Eu
atentei para tudo...”, “todos os homens...”, “dediquei-me a investigar tudo o que é feito
debaixo do sol, etc. Assim, Tudo é Um englobado em hevel ou habèl. O outro aspecto
importante é que a palavra hevel ou habèl expressa também o destino. Todo o Eclesiastes está
marcado com a presença da morte, tudo vai nessa direção, inexorável. O sábio morre, o néscio
também morre, o pobre morre e o rico também, o homem morre e o animal também. Tudo
está submisso ao destino único da insignificância. Finalmente para Ellul é necessário evitar as
traduções por um termo concreto: vapor, fumaça, sopro, porque uma tradução desse tipo
8 . “Ayant un certain acquis et un certain savoir, il faut marcher seul et ne pas répéter ce que d’autres ont dit”.
La raison d‟être. Méditation sur l‟Ecclésiaste, Paris, Éditions du Seuil, 1987, p. 12. Tradução livre do autor.
9 . J. Chopineau , “Hevel en Hébreu biblique. Contribution entre sémantique et exégèse de l‟Ancien Testement”.
Thèse de doctorat devant l‟Université de Strasbourg, 1971.
10
valoriza a etimologia em detrimento do emprego do termo no contexto, e também porque em
francês (e nos acrescentaríamos em português) uma tradução semelhante não fornece o
equivalente da palavra hebraica [habèl ou hevel] que é muito mais do que uma palavra, é um
tema de meditação. (ELLUL, 1987, p. 66).
2. O Poder
Qohelet proclama que ele foi rei em Jerusalem. De sorte que no seu texto ele não fala
como um comentarista, ou alguém que aprecia as coisas de fora, de forma abstrata ou teórica.
Ele faz uma análise percuciente da realidade do poder.
A primeira constatação de Qohelet é que o poder é sempre absoluto. Esta certeza é
confirmada pelas palavras empregadas em 2:19 [“..ele se assenhoreará de todo o meu
trabalho...”], que designa o senhor absoluto, a autoridade absoluta, tendo nas suas mãos a
possibilidade de destruir, de arruinar, de mexer com a vida das pessoas.
Em 8:4 Qohelet afirma “a palavra do rei é suprema, é autoridade; e quem lhe dirá que
fazes?” Ora trata-se aqui de um rei, de alguém que ocupa um alto posto governamental e que
não é sábio (sábia).
Agora no nosso dia a dia podemos nos perguntar são os mais sábios que governam,
os que ocupam os altos postos das empresas públicas ou privadas. Seguramente não! Antes
são os mais ambiciosos, os mais sagazes, ardilosos, avaros, movidos pela sede de poder, de
dinheiro. Sobre isto Ellul constata (1987, p. 90,91).
“Tout autant vision du conseil d’administration d’une multinationale,
ou de l’administration et de la bureaucratie modernes, qui sont tout
aussi autoritaires, arbitraires, absolus, sans explication, que lê
dictateur ou le roi. Le pouvoir est toujours le pouvoir; quelle que soit
sa forme constitutionelle, il renaît toujours sous la forme d’un pouvoir
absolu.
Ellul faz uma leitura de Qohelet desmistificadora do poder muito relevante até para
os nossos dias. Ele toma a passagem que diz:
Melhor é o jovem pobre e sábio do que o rei velho e insensato, que já
não se deixa admoestar.
O jovem pode ter saído do cárcere para reinar, ou pode ter nascido
pobre no seu reino.
Vi que todos os que viviam e andavam debaixo do sol seguiam o
jovem, o sucessor do rei.
11
Todo o povo que ele dominava era sem conta. Mas os que lhe
sucederam não se agradaram do sucessor. Isto também é vaidade e
aflição do espírito.
De acordo com Ellul (1987, p. 92), este texto opondo o governante velho e estúpido a
um jovem pobre e sábio pode referir-se à sucessão de Salomão ou ao fato que à época de
Qohetet (século III a. C.) a realeza não tinha mais valor e criminosos haviam tomado o poder
e todos, a opinião pública, o povo, vão atrás dele e o aclamam. Ele estava na prisão e chega ao
poder com o consentimento de todos.
E qual é o fim de tudo isso? O povo e a posteridade não se agradaram dele. Isso tudo
é vaidade e correria atrás do vento.
Ellul pensando como historiador exclama: “quantas aventuras políticas esse texto nos
relembra? E a seguir resume a história de Louis XV (Le Bien-aimé)10
. Esse menino revestido
de todas as virtudes e de uma inteligência fora do comum, não tinha nenhuma chance de
chegar ao poder. Mas, é entronizado sendo ainda criança no meio do entusiasmo do povo, que
se vê, por fim, livre do velho horrível que se fazia chamar de Roi-Soleil. Mas qual é o fim
desse menino? Ellul escreve: “seu cortejo fúnebre,[59 anos depois], passará na indiferença
geral. Vaidade e corrida atrás do vento”, conclui. (ELLUL, 1987, p. 92)
No âmbito da vaidade do poder Ellul nos convida a pensarmos sobre o que Qohelet
ensina sobre a fama e a glória que provém desta ascensão do jovem rei (4: 13-16).
Inicialmente refere-se a 7:1, “melhor é a boa fama do que o precioso unguento”. [em francês:
“mieux vaut renom qu’huile parfumée...”].
De acordo com Ellul haveria aqui uma ironia, ele se pergunta: qual é a especificidade
do perfume? Tem um cheiro agradável, mas se evapora rápido, e se for a base de azeite, com
o tempo torna-se ranço. Aqui a comparação com a fama: esta também se evapora rápido,
talvez não tão rápido quanto o perfume, mas é da mesma natureza, não é durável.
Qohelet nos relembra repetidamente, “os mortos foram esquecidos”. Isto é um fato se
fizermos um teste verificando: quanto conhecemos de nossos ancestrais? Nos
surpreenderemos constatando quão pouco sabemos de nossos (nossas) bisavôs (bisavós), isso
na hipótese de sabermos alguma coisa. Nossos (nossas) avôs (avós) seguramente estão mais
presentes em nossa memória, mas os nossos filhos, se lembram deles? Muitas vezes há
apenas um tênue conhecimento como uma névoa em dissipação.
10 . Rei da França de 1715 a 1774.
12
Seguramente esta é uma das razões porque muitos governantes em todas as esferas
de poder gastam tempo e dinheiro para não serem esquecidos em esforços tais como:
mausoléus, túmulos monumentais, memoriais, grandes obras, e placas muitas placas onde
gravam seus nomes para não serem esquecidos, rua ou praça fulano de tal. Mas quem se
lembra deles? Hoje para que os estudiosos possam pesquisar seus atos oficiais, está na moda,
aqui e alhures, organizar um instituto. Será que nos instituto de Bill Clinton encontraremos
detalhes de seu ato mais famoso?
De qualquer forma é inevitável que com o passar do tempo: “Não haverá lembrança
dos antigos, e das coisas que hão de ser também não haverá lembrança”11
, como consolação
serão tema de historiadores e arqueólogos.
Para Ellul a opinião pública é essencialmente instável, o povo se afasta rapidamente
do governante que ele próprio apoiou. Se este fez o mal ninguém mais se lembra dele e muitas
vezes acaba recebendo honras, como, por exemplo, Collor de Mello. Agora se ele fez o bem,
da mesma forma, a sua lembrança é apagada da memória dos homens, e do político sábio e
integro que salvou a cidade ninguém mais se lembra dele.
Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens, e veio
contra ela um grande rei, e a cercou e levantou contra ela grandes
tranqueiras. Ora vivia nela um sábio pobre, que livrou aquela cidade
pela sua sabedoria. Mas ninguém se lembrou mais daquele pobre
homem12
.
Neste ponto o Professor da Universidade de Bordeaux faz uma aproximação entre
Qohelet e Jó dirigindo-se a seus amigos (12:2) ”Sem dúvida vós sois o povo e convosco
morrerá a sabedoria”. Trazendo este conselho para o nosso contexto Ellul, (1987, p. 94) nos
relembra que:
A Sabedoria, toda fama, toda cultura, são essencialmente relativas,
temporárias, frágeis, incertas, não duram mais do que uma geração do
povo, que morre rápido. O povo não é Deus. Jamais o povo, nem na
política nem na verdade diz a última palavra. E a fama, a ˂glória˃ das
multidões não é nada e não tem nada a ver com a Revelação de Deus.
Assim <voxpopuli, vox dei> é uma mentira...considerando tudo isso, é
perfeitamente ridículo de querer ganhar glória e reputação mundial.
Para finalizar o seu raciocínio Ellul convida o leitor a ler o Grand Larousse do século
XIX para conhecer certos personagens de grande reputação e popularidade em 1890 e
11 . Eclesiastes 1:11.
12 . Eclesiastes 9: 14-15.
13
totalmente desconhecidos hoje. O mesmo exercício poderíamos fazer com certos famosos de
algumas décadas atrás, excluindo dois ou três nomes de referência o restante é completamente
desconhecido.
Concluímos então com Qohelet, buscar o poder e a fama é vão e efêmero, é como
correr atrás do vento.
3. O Dinheiro
Uma outra grande vaidade, em todo tempo, tem sido o dinheiro. Nesta esfera do
pensamento de Qohelet nos encontramos com reflexões mais costumeiras, mais fáceis de
aceitar, porém não menos radicais. Ellul começa com: “o dinheiro permite tudo” (10: 19). Não
tenhamos ilusões nada escapa ao dinheiro, ele pode comprar tudo. Séculos mais tarde esta
afirmação de Qohelet encontrará eco no Apóstolo João quando escreveu o Apocalipse
(18:13), resumindo, o dinheiro compra além de coisas, objetos, instrumentos, commodities e
tecnologias; corpos e almas de homens (apoio político no Congresso Nacional, o silêncio
sobre algum fato comprometedor, o testemunho num processo, a sentença de um juiz, etc.).
Da mesma forma que na abordagem do problema do poder, aqui ele fala de uma
realidade que ele conhece por dentro. Com efeito, ele é um homem muito rico e já utilizou o
poder ilimitado do dinheiro.
“Fiz para mim obras magníficas: edifiquei casas, plantei vinhas; fiz hortas e jardins, e
plantei nelas árvores de toda espécie de fruto. Fiz tanques de águas para com eles regar o
bosque em que reverdeciam as árvores.
Adquiri servos e servas, e tive servos nascidos em casa. Também tive grandes
manadas de vacas e ovelhas, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém.
Amontoei prata e ouro, e joias de reis e das províncias; provi-me de cantores e
cantoras, e das delicias dos filhos dos homens, e de instrumentos de música de toda sorte”13
.
Ellul vê aqui uma admirável progressão ascendente do plano material ao plano
espiritual. Qohelet fez de tudo com a sua grande riqueza, ele afinal constata com satisfação:
“Em tudo isto perseverou comigo a minha sabedoria”14
. E com base nesta sabedoria ele pode
fazer a sua conclusão lapidar: “Tudo isso é vaidade, é correria atrás do vento” (v. 11).
E então Ellul se pergunta: em que, ou, como se expressa esta vaidade?
13 . Eclesiastes 2: 4-8.
14 . Eclesiastes 2:9.
14
Ele responde. Primeiramente porque o homem jamais está satisfeito tratando-se de
dinheiro. Em outras palavras correr atrás do dinheiro é uma corrida infinita. Via de regra,
ninguém diz: é suficiente!
Como afirma Qohelet: “O que ama o dinheiro nunca se fartará dele; quem ama a
abundância nunca se fartará de renda”15
.
Depois de ajuntar um primeiro milhão porque não acrescentar-lhe um segundo?
Assim não haverá jamais um limite, porque para fixar um lugar de parada é necessário
domínio próprio e Sabedoria. Se essas virtudes existem de início não haverá esta relação de
ganancia desmedida entre o indivíduo e o dinheiro.
O que Qohelet nos mostra é uma relação de amor entre a pessoa e o dinheiro. Jesus
retoma o mesmo problema: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. A palavra grega aqui
para dinheiro é Mamom, que designa o deus dinheiro. Esta questão do amor ao dinheiro
(Mamom), “onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” é crucial. O homem
contemporâneo corre atrás do dinheiro, porque é subserviente a Mamom. [Esta questão Ellul a
trata na sua obra “L‟homme et l‟argent”]. Todo nosso sistema econômico gira em torno ao
capital, que é o bezerro de ouro de nosso tempo e tudo lhe será sacrificado inclusive o
emprego e o bem estar de milhões de famílias como vemos na atual crise europeia.
O livro de Qohelet apresenta varias passagens com bastante ironia, aqui temos
algumas. A primeira: é necessário ganhar mais para consumir mais. Multiplica-se o dinheiro e
por consequência a opulência, o luxo, os bens, os compromissos e também se multiplicam os
que se alimentam desse dinheiro. Evidentemente, a essas alturas o orçamento já se esgotou e a
correria atrás do dinheiro recomeça.
No plano macroeconômico é ainda pior e aqui Ellul é profético:
“Il faut accroître indéfiniment la richesse collective pour dépenser en
armements, en équipements, en routes, en aéroports. Et l’on se
retrouve finalement endetté, on ne sait comment combler les deficits
de la sécurité, et de la dette globale d’inombrables États du monde.
Tout ceci correspond à “l’opulence” de nos jours et a remplacé les
bijoux et les palais, mais le fond du problème n’a pas changé”.
(ELLUL, 1987, p. 105).
Nesse mesmo verso aparece uma outra ironia o dinheiro atrai com absoluta certeza
aqueles que o devoram. Até porque o homem rico, via de regra, gosta de exibir-se, pavonear-
se, vangloriar-se. Então não faltarão os parasitas, os clientes, os que queiram fazer negócios
15 . Eclesiastes 5:10.
15
com ele, os artistas, os playboys, as mulheres, os exibicionistas, e também os bandidos, os
golpistas, os abutres e todos os dessa laia.
Este homem rico, segundo Ellul, rodeado do séqüito dos que se alimentam do seu
dinheiro, não tem outra coisa diante de si que um espetáculo para seus olhos, como afirma
Qohelet16
.
Trazendo esta situação para o nosso contexto na sociedade da opulência que nos
vivemos Ellul afirma que é exatamente a mesma coisa.
Dessas imensas somas produzidas, acumuladas, dilapidadas, que
resta? Um espetáculo. A sociedade da opulência (e do consumo) é a
sociedade do espetáculo. Reciprocamente a sociedade do espetáculo
na qual vivemos, implica a sede e o amor ao dinheiro (ELLUL, 1987,
p. 105, 106).
Numa outra ordem de coisas, finalmente este dinheiro é como fumaça. Ele
desaparece rapidamente.
Há um grave mal que vi debaixo do sol: as riquezas que seus donos
guardam para o seu próprio dano, ou as mesmas riquezas que se
perdem por qualquer má aventura, de modo que ao filho que gerou
nada lhe fica na mão17
.
A constatação do sábio Qohelet na sociedade agrícola escravocrata que ele viveu
aplica-se “mutatis mutandis” à nossa sociedade técnica18
ou pós-industrial19
ou sociedade da
informação20
.
Um mau negócio, um investimento fracassado e milhões viram fumaça. Ainda mais
hoje quando as operações em bolsa realizam-se eletronicamente. Assim Ellul sintetiza o
pensamento de Qohelet dizendo que o dinheiro ou se emprega para a opulência como no caso
precedente ou se guarda cuidadosamente, para desgraça de seu dono. Em verdade haveria uma
terceira hipótese que não é guardar, nem gastar, seria investir o dinheiro para fazê-lo render.
De qualquer forma, independentemente da hipótese escolhida pelo seu possuidor o
dinheiro é um embuste, e a vaidade é dar-lhe uma importância que não tem. (Cf. ELLUL,
1987, p. 106).
16 . “Avec l‟abondance du bien abondent ceux qui le mangent et quel bénéfice y a-t-il pour son possesseur, sinon
que c‟est um spectacle pour ses yeux?”. Eclesiastes 5:11. Tradução de Antoine Guillomont, publicada na
“Bibliothèque de la Pléiade”. Gallimard, 1959, última edição 1985.
17 . Eclesiastes 5: 13-14.
18 . De acordo com Jacques Ellul. A Técnica e o Desafio do Século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
19 . De acordo com Alain Touraine. La Société post-industrielle. Paris: Denoel, 1973.
20 . De acordo com Fritz Machlup. Ver The Production and Distribution of Knowledge in the United States.
Princeton University Press, 1962.
16
Qohelet constata também que nus saímos do ventre da nossa mãe e nus sairemos do
mundo, nada levaremos conosco, nem carro, nem casa, nem ações, nem letras do tesouro, nem
mesmo a prosaica poupança. Tudo ficará aqui, nada levaremos. E tudo o que deixamos não
sabemos para que servirá. Em outras palavras os nossos herdeiros podem se desfazer
rapidamente do que tão zelosamente acumulamos.
Então vale a pena consagrar a nossa vida para isso?
Ellul faz a seguir algumas considerações importantes. A primeira: Qohelet não
considera o dinheiro um mal em si mesmo. Não é o dinheiro na sua realidade concreta que é
condenado. O mal é que o dinheiro permite tudo – e que ele é nada. Você pode se doar
totalmente a ele, mais isso significa que você se liga ao nada. Esse é o mal, não somente a
infelicidade, não somente a ironia: mas, o mal. Esse nada para Ellul abre duas possibilidades
de reflexão:
i) uma que é trivial em nossos dias, o ser e o ter. Investir a sua vida em ter, ou
cumular-se de bens, significa nessa mesma medida perder o seu ser. O ser implica um outro
sentido que a conquista de bens. Como disse o Mestre da Galiléia “De que lhe serve a um
homem ganhar o mundo se ele perde <son être> - e que daria um homem em troca de <son
être>?”.
ii) a segunda possibilidade de reflexão é a técnica que em nossos dias “permite tudo”,
mas que não pode concretamente se desenvolver sem dinheiro. A técnica também é vento,
fumaça, vaidade. Da mesma forma que o dinheiro ela não pode ser considerada como mal em
si, o problema é que (da mesma forma que o dinheiro) se transformou em mediadora de tudo
porém em si mesma ela não é nada. Ontem era a sedução do dinheiro hoje é a sedução da
técnica.
Conselhos Finais
Por último, para finalizar uma nota positiva de Qohelet, ele constata:
“Então percebi uma bela e boa coisa: alguém comer e beber, e gozar cada um do bem
de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol, todos os dias da sua vida que Deus
lhe deu; esta é a sua porção.
Quanto ao homem a quem Deus deu riquezas e bens, e lhe deu poder para delas
comer, e tomar a sua porção, e gozar do seu trabalho: isto é dom de Deus”21
.
21 . Eclesiastes 5: 18-19.
17
Constata também:
“Não há coisa melhor para eles [os filhos dos homens] do que se
alegrarem e fazerem o bem na sua vida e também que todo homem
coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho; isto é um dom de
Deus”22
.
Assim o sábio nos ensina: se você tem riquezas reconheça que elas provêm de Deus,
segundo: elas não te pertencem, elas ficarão neste mundo, você não as levará consigo. Que
fazer então? Qohelet aconselha:
Faça o bem com as riquezas [e os dons] que Deus te deu, e segundo: seja feliz! Deus
quer que você seja feliz!
Agora se não estivermos fazendo o bem, provavelmente não seremos felizes.
Se não somos felizes, provavelmente não estamos fazendo o bem.
REFERÊNCIAS
CHOURAQUI, André. La Bible Chouraqui. Paris: Éditions Desclée de Brouwer, 2007.
ELLUL, J. La raison d’être. Méditation sur l’Écclesiaste. Paris: éditions du Seuil, 1987.
Bíblia de Referencia Thompson. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Editora
Vida, 1999.
ZUCK, Roy. Dios y el Hombre en Eclesiastés In: Bibliotheca Sacra, v. 148, n. 589, Enero-
Marzo 1991, p. 46-56. Disponível em inglês em:
<<http://www.biblicalstudies.org.uk/articles_bib-sacra_15.php>>. Acesso em 2 out. 2012.
22 . Eclesiastes 3: 12-13.
18
PARADOXO ENTRE O PROGRESSO DA SOCIEDADE TÉCNICA E O
REGRESSO EM TERMOS DE IMPACTO AMBIENTAL1
Soraya Lunardi2
1. A Sociedade Tecnológica
A análise da técnica pode se dar sob inúmeros aspectos e certamente não pode se
resumir à idéia da máquina3. Entretanto a máquina a origem e o desenvolvimento do
consumismo e seus efeitos são questões centrais da sociedade tecnica. O início do ciclo da
Revolução Tecnológica ocorreu no século XVIII naquilo que conhecemos como Revolução
Industrial. Começou como “surto técnico” que vem ao longo de 300 anos vem tomando
proporções cada vez maiores e mudando a vida de todos.
Na França, a Revolução Francesa, se preocupou com os direitos do homem, sua
igualdade, liberdade e fraternidade, a passagem do antigo regime para a sociedade moderna
foi consumada com uma ruptura tão forte quanto violenta. Sabemos que o regime da
desigualdade, foi combatido a ferro e fogo.
Por outro lado, na Inglaterra não houve uma revolução de seu povo como houve na
França. Como todos sabemos, a Inglaterra foi palco da chamada “Revolução Industrial” que
ocorreu de maneira silenciosa, sem armas ou lutas. Fruto do que denominamos progresso. No
mesmo século da Revolução Francesa os engenheiros ingleses iniciaram a produção de
máquinas4 que tinham como finalidade mecanizar os meios de produção com seu conseqüente
aumento. O homem iniciou então o ciclo da revolução tecnológica.
Certamente a técnica e a tecnologia5 não surgiram na época da Revolução Francesa,
o homem criou máquinas e equipamentos ao longo de toda a sua história, a roda mesmo foi
inventada em 4.000 AC, os egípcios construíram as incríveis Pirâmides, os Maias
1 Comunicação apresentada no V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul, realizado em 17 e
18 de outubro de 2012, na Faculdade de Ciências Humanas da UNESP/Campus de Franca.
2 Doutora em Direito do Estado pela PUC-SP; Pós-doutora em Direito pela Universidade Politécnica de Atenas
(Grécia). Professora de Direito Público da UNESP.
3 Ellul, 1968, p. 1-2 4 Em 1733 foi inventada a lançadeira volante que permitia um tear mais rápido, isso demandou uma produção
maior de fios problema esse resolvido com a máquina de tear hidráulica inventada pelo inglês James Hargreaves
em 1764 (Ellul, 1968, p. 114).
5 Ellul enfatiza que prefere o uso da palavra técnica ao invés de tecnologia, por entender ser essa muito mais
abrangente e adequada, mas no presente ensaio não será considerada essa distinção terminológica. (Ellul, 1968)
19
desenvolveram toda uma cultura com linguagem e tecnologia própria o que demonstra seu
domínio de diversos tipos de técnicas e de tecnologias, tudo isso muito antes do século XIX.
Mas a principal característica da Revolução Tecnológica é a sua finalidade: o aumento da
produção e do lucro com o fortalecimento do capital. A técnica vem se fortalecendo desde
então.
Sua importância em nossa sociedade vem sendo cada vez maior e seu papel de
protagonista no último século é admirável, já que nada conseguiu mudar tanto o mundo e a
vida das pessoas com poder aquisitivo. O modelo de produção em massa foi e é um sucesso
que pode ser bem ilustrado por alguns de seus maiores executores: Henry Ford ou mesmo
pelo MacDonald´s – histórias de sucesso do pós-guerra.
Contudo o que mais impressiona nesse período é a extensão e que o surto
econômico parecia movido pela revolução tecnológica. Nessa medida,
multiplicaram-se não apenas produtos melhorados de um tipo preexistente
mas outros inteiramente sem precedentes, incluindo muitos quase
inimagináveis antes da guerra. (...) A guerra, com suas demandas de alta
tecnologia, preparou vários processos revolucionários para posterior uso
civil. (...) Radar, motor a jato e vários que preparavam o terreno da
eletrônica e a tecnologia da informação do pós-guerra.6
Hobsbawm como observador privilegiado do desenvolvimento tecnológico no
capitalismo do século XX observa que três coisas mais impressionam o observador do
terremoto tecnológico:
a) Ele transformou totalmente a vida cotidiana do mundo rico e em menor
medida no mundo pobre: rádio, televisão, computadores, a bateria levou informações para os
lugares mais distantes, geladeira freezer, relógios digitais.
b) Quanto mais complexa a tecnologia, mais difícil seu desenvolvimento, da
concepção inicial até a produção. Nesse contexto, pesquisa e desenvolvimento de produtos
tornaram-se fundamentais para o desenvolvimento econômico - o que representou vantagens
para “economias de mercado desenvolvido.” A comercialização de tecnologia é muito mais
rentável que a de manufaturados, assim o investimento em tecnologia se torna cada vez mais
importante para o desempenho econômico e o lucro.
c) A nova tecnologia representa normalmente menos gastos, já que representa
pouca mão de obra ou até a substitui (como no caso das denominadas aulas “telepresenciais”).
6 Hobsbawm, 2010 p. 257-258.
20
A era tecnológica se caracteriza por precisar cada vez menos de trabalhadores, satisfazendo as
necessidades de sempre maior número de consumidores.7
A revolução tecnológica foi tão bem aceita pelas sociedades e entrou na consciência
das pessoas como elemento positivo, de tal modo que se tornou o principal recurso de vendas.
Todos os produtos desde o sabão em pó, produtos de beleza, computadores, celular, televisor,
vendem melhor se tiver o logo de “nova tecnologia”. O novo não só é melhor como é
apresentado como imprescindível e até revolucionário (Ex. IPhone I, II, III, IV).
Todos consumimos a nova tecnologia e acreditamos nela. Quem soluciona as
dúvidas do nosso tempo é o google.com. A rede mundial de computadores sabe tudo e abriga
todas as informações. Tornou-se assim a nova fábrica do consenso8 que apesar de ser
democrática, facilitando o acesso, é também facilmente manipulável.
2. A Técnica como Dogma – O Narcisismo da Racionalidade
Ellul estava certo quando já em 1954 viu na técnica o desafio (enjeu) do século,
considerando-a sendo elemento mais característico. A sociedade moderna acredita, quase sem
questionar, em tudo que é científico9, tudo que é tecnológico é aceito quase como um dogma.
A idéia de que tudo que é tecnológico é racional, somado ao fato de o homem
acreditar em sua racionalidade, faz com que não questione a tecnologia. É uma relação
curiosa que desenvolvemos com a racionalidade. Se ela se exterioriza pela tecnologia,
admiramos e acreditamos na tecnologia em uma relação narcisista de auto-admiração, somos
orgulhosos da nossa racionalidade. Adoramos a nossa racionalidade, como fazia Narciso que
ficava se mirando na lagoa. Ellul ilustra a idéia da seguinte forma: “vimos que ao longo de
todo o curso da civilização, sem exceções, a técnica pertenceu a uma civilização: era um
elemento, englobado em uma multidão de atividades não técnicas. Atualmente a técnica
englobou a civilização toda inteira” (Ellul, 1968, p. 116-117).
Verificamos que esse narcisismo se amplia e se aprofunda em um processo
irreversível. Admiramos a tecnologia e quem a domina. A universalização da tecnologia e sua
aceitação sem qualquer questionamento é um fenômeno de domínio universal. “Representa o
7 Hobsbawm, 2010, p. 260-262.
8 Chomsky e Herman, 2006.
9 Esse é uma das facetas da técnica, mas é a objeto de análise no presente ensaio.
21
triunfo do que, desde os gregos, consideramos como propriamente humano no homem o
„logos”, a razão.”10
Nesse sentido:
“A ciência goza, na consciência cotidiana, de um crédito tão elevado que
mesmo ideologias totalmente não-científicas (isso é, com conteúdo negativo)
esforçam-se para ter uma base "científica" e, dessa forma, se legitimar, como
ocorreu, por exemplo, com as teorias raciais e outros delírios biológicos
gerados sob o fascismo. Na consciência cotidiana atual, a ciência, a natural e
a social, é a autoridade máxima” (Heller, 1975, p. 202).
O problema dessa adoração e do não questionamento da tecnologia é que ela
favorece a alienação, a exploração econômica e a dominação cultural. Entretanto, o grande
problema não está ligado somente à tecnologia, e à técnica mas se relaciona muito mais com a
estrutura social de exploração e alienação nas nossas sociedades.11
A alienação e a
fragmentação social aumentaram muito com a tecnologia, basta olhar ao redor. Cada vez mais
as pessoas se alienam em seus mundos tecnológicos – ouvindo músicas, consultando seus e-
mails, lendo notícias no facebook. Mas o papel preponderante ainda é o do Estado que
mantém as estruturas e superestruturas de reprodução de desigualdades sociais.
Isso não significa que a tecnologia e a racionalidade sejam um problema social no
sentido de uma atividade e estrutura “ruim”. A questão não é demonizar a tecnologia e a
ciência, mas refletir criticamente, questionar os pressupostos e as consequências de certos
desenvolvimentos tecnológicos. Nelson Rodrigues dizia que “toda unanimidade é burra”.
Mais que isso. A unanimidade, a simples aceitação e até admiração não nos leva a lugar
nenhum. Precisamos questionar.
Não podemos deixar de reconhecer que a tecnologia e a pesquisa alcançaram
inúmeros benefícios para a humanidade. Não se pensa em se afastar do modelo de uso da
tecnologia e das novas pesquisas. O problema que Ellul muito bem coloca são as
consequências da vida em uma sociedade tecnológica e a necessidade de reflexão crítica.
3. A Revolução Tecnológica e o Consumismo
A Revolução tecnológica foi o motor que movimentou a sociedade capitalista, sendo
fundamento da economia (Ellul, 1968, p. 136). Ao mesmo tempo, a sociedade capitalista
10 Roland Corbisier, in Ellul prefácio prefácio ao livro “A Técnica e o Desafio do Século” (Ellul, 1968).
11 Em sentido contrário, Ellul entende que o problema central do nosso século não é o capitalismo mas a
máquina (p. 3).
22
alimentou a tecnologia em um ciclo de dependência recíproca. Como resultado desse
mutualismo entre tecnologia e capitalismo chegamos ao consumismo, como um dos males do
nosso tempo. “O capitalismo procura racionalizar o momento do consumo, fabricando não só
o produto, a mercadoria, mas também o consumidor, pela propaganda.”12
A revolução tecnológica mudou a base econômica em comparação com a
manufatura, quando os produtos eram feitos de maneira artesanal e personalizada. Havia
alfaiates e costureiras, a agricultura era uma atividade familiar sem emprego de agrotóxicos e
métodos industriais. Logo a produção era muito mais limitada e controlada pelos produtores.
Após a revolução industrial a indústria passou a produzir mais tecidos e demais
produtos, de maneira rápida e padronizada. Isso exigia um mercado consumidor maior e
técnicas de vendas mais sofisticadas para escoar a produção. Isso fez surgir fenômenos como
a moda e a publicidade que dão base ao consumismo. Hoje não nos basta uma roupa para
vestir, precisamos de roupa da moda, apresentada pela propaganda e devendo ter marca
específica, cor específica, comprimento específico, textura específica. Da mesma forma os
automóveis, os celulares, os eletrodomésticos, os aparelhos eletrônicos e de informática
mudam constantemente. Tornam-se ultrapassados, velhos, desatualizados e há pressão social
para que sejam trocados. Temos sucessivos lançamentos de novos produtos de “nova
geração”. O mais recente IPhone é mais fino, mais rápido, tem processador melhor e máquina
fotográfica melhor! Mas ele não é um telefone?
Esses símbolos do capital delimitam as classes sociais, as castas da modernidade. A
necessidade de se colocar nessas castas passa a ter importância tão grande na vida das pessoas
que abrem mão do próprio corpo, como ocorreu com um jovem chinês de 17 anos que vendeu
um rim por R$ 6.000,00 para comprar um Iphone e um Ipad.13
Tudo isso demonstra o fetiche e a força desses símbolos na sociedade atual: em todas
as sociedades onde o mercado é triunfante, onde o as mercadorias medem o sucesso, se não
tivermos certo número de objetos socialmente necessários, não podemos ser reconhecidos,
nem mesmo ser pessoas de fato.14
Pensemos em alguém que detêm nenhum bem de valor, um
mendigo que mora na rua. Quem ele é? Não é “ninguém”. Ou é um “Zé Ninguém”. O
exemplo indica a atualidade da análise de Marx, em sua obra “O Capital”, sobre o fetichismo
da mercadoria, sendo as relações sociais representadas e vividas através das coisas que têm o
12 Roland Corbisier, prefácio ao livro “A Técnica e o Desafio do Século” (Ellul, 1968).
13 http://oglobo.globo.com/mundo/justica-julga-envolvidos-em-venda-de-rim-para-compra-de-ipad-5756976.
14 Walzer, 2003, p. 142.
23
“poder” quase mágico de sinalizar relações sociais, enquanto os homens estabelecem as
relações materiais.15
Isso nos faz pensar na questão colocada por Michael Walzer: O que o dinheiro não
compra? O autor usa uma frase de Oscar Wilde que definia o cínico como “aquele que sabe o
preço de tudo, mas não sabe o valor de nada.” Algumas coisas não podem ser compradas, rins
não deveriam ser vendidos, mas historicamente encontramos inclusive leis que possibilitaram
a mercantilização das vidas. Assim, por exemplo, a Lei americana de Alistamento de 1863
impôs o primeiro alistamento geral dos homens nos EUA, em razão da sangrenta guerra civil.
O departamento de guerra e o presidente Lincoln fizeram uma convocação nacional na
mobilização para ganhar a guerra contra o Sul racista. O fato é que se compravam dispensas
por trezentos dólares (uma multa aplicada àqueles que não se apresentassem). Um Nova-
iorquino perguntou: “Lincoln acha que os pobres têm que entregar a vida e deixar os ricos
pagarem 300 dólares para ficar em casa?”.16
Se a técnica é um desafio, como bem observa Ellul, o problema central da alienação
do nosso tempo ainda é o capital e a estrutura da sociedade que exige seus símbolos para
determinação do lugar de cada indivíduo. Esse fenômeno gera o consumismo. Cada vez mais
você será avaliado por aquilo que você tem e você precisa de muitas coisas para ser uma
pessoa integrada na sociedade capitalista do seu tempo.
4. O Problema dos Resíduos Sólidos como Conseqüência do Consumismo
A sociedade técnica e tecnológica vive do capitalismo e o alimenta como
conseqüência das necessidades de consumo, impostas pela sociedade capitalista. Entre os
inúmeros problemas que isso gera, no presente ensaio será analisado o problema dos resíduos
sólidos e o desafio do desenvolvimento sustentável.
O desenvolvimento é necessário para que o Brasil melhore seu Índice de
Desenvolvimento Humano e a condição de vida dos brasileiros. O desenvolvimento é um
processo de expansão das liberdades reais. O desenvolvimento como liberdade ultrapassa a
ideia do simples aumento de renda. “O desenvolvimento requer que se removam as principais
fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e
destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos” (Sen, 2008, p. 17).
15 Marx, 1990.
16 Walzer, 2003, p. 130-133.
24
O desenvolvimento sustentável é a meta dos países que pretendem obter altos níveis
de produtividade e competitividade com responsabilidade. O destino dos resíduos sólidos é
um tema polêmico, pois representa um grande problema para o meio ambiente e para a
sociedade, sendo justamente as sobras do processo produtivo e do consumo. Uma gestão
inadequada (tratamento e disposição) de resíduos sólidos resulta em poluição, riscos à saúde
pública e à economia, contrariando os princípios básicos do desenvolvimento sustentável:
produção e consumo com responsabilidade.
No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece os
padrões para classificação e armazenamento dos resíduos sólidos por meio da NBR
1004:2004. Os resíduos sólidos são definidos como:
Resíduos no estado sólido e semi-sólido, que resultam de atividades da
comunidade de origem: industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola,
de serviços e de varrição. Ficam incluídos, nesta definição os lodos
provenientes de sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em
equipamentos e instalações de controle de poluição, bem como determinados
líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede
pública de esgotos ou corpos d‟água, ou exijam para isso soluções técnica e
economicamente inviáveis em face à melhor tecnologia disponível.
Quase 40% do lixo produzido no Brasil é descartado de forma inadequada. São 74
mil toneladas de resíduos por dia que seguem para lixões a céu aberto. Volume suficiente para
encher, até a borda, 56 piscinas olímpicas.17
Em agosto de 2010 foi sancionada a Lei federal n. 12.305, que instituiu a Política
Nacional de Resíduos Sólidos. Em 23 de dezembro de 2010, a lei foi regulamentada pelo
Decreto no 7.404, iniciando uma política nacional para o setor de resíduos após duas décadas
de discussões.
Os principais pontos da Política Nacional de Resíduos Sólidos são:
- fechamento de lixões a céu aberto até 2014. No lugar deles, devem ser criados
aterros controlados ou aterros sanitários. Os aterros têm preparo do solo para evitar a
contaminação de lençol freático, captam o chorume que resulta da degradação do lixo e
contam com a queima do metano para gerar energia;
- só os rejeitos poderão ser encaminhados aos aterros sanitários. Trata-se da parte do
lixo que não pode ser reciclado. Atualmente, apenas 10% dos resíduos sólidos são rejeitos. A
17 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/08/menos-de-10-das-cidades-nao-apresentaram-projeto-
para-tratar-lixo.html.
25
maioria é reciclável ou orgânica, que poderia ser reaproveitada em compostagens e
transformada em adubo;
- elaboração de planos de resíduos sólidos nos municípios. Os planos municipais
serão elaborados para ajudar prefeitos e cidadãos a descartar de forma correta o lixo.
Outro importante avanço da política é a chamada "logística reversa". Essa logística
diz que uma vez descartadas as embalagens são de responsabilidade dos fabricantes, que
devem criar um sistema para reciclar o produto. Por exemplo, uma empresa de refrigerante
terá que criar um sistema para recolher as garrafas e latas de alumínio e destiná-las para a
reciclagem.
O prazo determinado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos para que estados e
municípios elaborem seus planos integrados de gestão terminou no dia 2 de agosto de 2012.
Esse plano foi uma exigência do governo federal para a obtenção de repasse de recursos
federais para obras de saneamento e limpeza pública.
Uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Municípios em maio e julho
de 2012 aplicou um questionário em 3.457 municípios e demonstrou que a maioria das
cidades brasileiras não cumpriu a determinação da Lei. Apenas 9% concluíram o plano de
gestão de resíduos. Os planos se encontram em andamento em 1.449 (42% do total dos
municípios). No restante 49% (3.457 municípios), os planos de gestão ainda não foram
iniciados devido à inexistência de equipe técnica ou falta de recursos financeiros ou por
estarem aguardando a liberação de recursos federais.18
Como os municípios não são obrigados a entregar o plano para os órgãos do governo,
o Ministério começou a levantar com as associações municipais e a Caixa econômica o
número de planos apresentados.19
O problema é o custo para substituir os lixões por aterros sanitários (quase R$ 11
bilhões). Segundo o governo, o dinheiro existe, mas os municípios pequenos terão dificuldade
para financiar seus projetos. Um bom exemplo para resolver o problema são os consórcios
intermunicipais, como ocorre no Rio Grande do Sul, onde onze municípios construíram um
aterro sanitário de uso comum, produzir adubo orgânico e reciclar os materiais.20
18Disponível em: <<http://www.em.com.br/app/noticia/especiais/rio-mais-
20/noticias/2012/08/03/noticias_internas_rio_mais_20,309859/pesquisa-aponta-que-apenas-9-dos-municipios-
fizeram-plano-de-gestao-de-residuos.shtml>>.
19 Idem.
20 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/08/menos-de-10-das-cidades-nao-apresentaram-projeto-
para-tratar-lixo.html.Idem.
26
5. Conclusão
A técnica foi usada ao longo dos séculos para inúmeras causas. Essa técnica oferece
produtos úteis e confortáveis, por outro lado a sua utilização leva à massificação da sociedade
e afeta a nossa liberdade. Nesses casos a técnica foge ao controle dos homens gerando vários
problemas entre eles morais e ambientais que Ellul denominou de “Blefe tecnológico”,21
em
seus estudos pioneiros sobre essas questões.22
Um dos graves problemas do nosso século, resultado da utilização inconsequente da
técnica é o consumismo e a degradação ambiental. O volume de resíduos sólidos produzidos
em razão dessa relação circular entre o desenvolvimento da técnica e o consumismo é um dos
desafios a ser enfrentado, especialmente pela administração pública.
As soluções apresentadas pelo legislador brasileiro para o tratamento desses resíduos
ainda não foram implementadas, mas representam um passo importante para uma solução o
pelo menos para diminuir esse problema. Por outro lado uma análise crítica nos permite
questionar essa solução que transfere ao Estado a responsabilidade pelas conseqüências da
técnica. Aqueles que se beneficiam diretamente pela técnica, a indústria e os consumidores,
não assumem a sua responsabilidade pelos resíduos que produzem. A logística reversa é
muito melhor aplicada em países europeus, no Brasil esse método carece ainda de uma
regulamentação adequada, mas pode significar um segundo passo importante para o
tratamento dos resíduos sólidos. A responsabilidade econômica e social decorrente desses
resíduos é um dos desafios do século.
BIBLIOGRAFIA
Barrientos-Parra, Jorge (org.), Anais Jacques Ellul – Novos Atores Globais, Técnica e
Direito: um diálogo com Jacques Ellul. Araraquara: Editora UNESP, 2009.
Chomsky, Noam; Herman, Edward, La fabbrica del consenso. Milano: Il Saggiatore, 2006.
Ellul, Jacques, A Técnica e o Desafio do Século. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1968.
21 Ellul, 1990.
22 Barrientos-Parra, 2009, p. 22.
27
Ellul, Jacques, The Technological Bluff. Grand Rapids: Eerdmans, 1990.
Heller, Agnes, Sociologia della vita quotidiana. Roma: Riuniti, 1975.
Hobsbawm, Eric, A Era dos Extremos – O Breve Século – XX. 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
Marx, Karl, Capital, Volume one. Penguin Classics: London, 1990.
Sen, Amartya, Desenvolvimento Como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Walzer, Michael, Esferas da Justiça – Uma Defesa do Pluralismo e da Igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
28
A QUESTÃO DO RECONHECIMENTO DE TÍTULOS DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM DIREITO NO MERCOSUL: PROPAGANDA E
AUTOENGANO1
Jorge Luís Mialhe2
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A questão da revalidação e do
reconhecimento de títulos acadêmicos estrangeiros pelo Brasil. 3.
Propaganda e autoengano. 4. Doutorado “light” e autoengano coletivo.
5. Considerações finais.
Introdução.
Para que a integração acadêmica no MERCOSUL ocorra de forma equilibrada, é
necessário discutir a harmonização dos critérios de credenciamento dos cursos de pós-
graduação stricto sensu no bloco. No Brasil, por exemplo, a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES é extremamente rigorosa para
autorizar o credenciamento e o reconhecimento de cursos de mestrado e doutorado.
Os programas de mestrado e de doutorado brasileiros são avaliados e pontuados
trienalmente a partir de relatórios detalhados (Coleta-CAPES); os alunos trabalham com
prazos exíguos para a conclusão das suas teses; a avaliação sobre a quantidade e a qualidade
das publicações produzidas é rígida, as revistas são classificadas por áreas de conhecimento
por meio do Qualis, isto é, “o conjunto de procedimentos utilizados pela CAPES para
estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação”.3 Nesse
1 Comunicação apresentada no V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul, realizado em 17 e
18 de outubro de 2012, na Faculdade de Ciências Humanas da UNESP/Campus de Franca. 2 Doutor, mestre e bacharel pela USP. Pós-doutorado nas universidades de Paris e Limoges. Docente do
Departamento de Educação da UNESP/Campus de Rio Claro e do Programa de Mestrado em Direito da
Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. E-mail: [email protected]
3 Tais medidas têm provocado um enorme estresse na comunidade acadêmica brasileira, inclusive com
repercussões na saúde dos docentes e discentes, conforme demonstram estudos realizados por Lucia Malagris et
al. (2009), Célia Aparecida Paulino et al. (2010), Rayssa Soares de Souza et al. (2010). Na feliz expressão de
José Luís Garcia (2012), o “cognatariado”, particularmente vinculado aos programas de pós-graduação stricto
sensu, está submetido, até por questões de sobrevivência, à lógica produtivista do capitalismo acadêmico, muitas
vezes subserviente ao colonialismo cultural, descomprometido com o encaminhamento de soluções para os
problemas brasileiros. Nesse sentido, ao analisar a produção na área de Economia que, em alguma medida,
aplica-se a área do Direito, Luiz Carlos Bresser Pereira (2011) constata: “os artigos publicados por pesquisadores
em revistas brasileiras obtêm uma pontuação nas avaliações da CAPES muito menor do que os publicados em
29
sentido, discute-se até que ponto tais critérios seriam aceitos pelos demais países do bloco e,
em caso negativo, quais deveriam ser as providências adotadas para coibir a concorrência
desleal dos cursos de doutorado “light”, semipresenciais, oferecidos fora do Brasil, não
credenciados pela CAPES e, portanto, inválidos no território brasileiro.
A questão da revalidação e do reconhecimento de títulos acadêmicos pelo Brasil
Nas conclusões do Seminário “Sistemas de Acreditação de Carreiras de Pós-
graduação no MERCOSUL” realizado em Montevidéu, em 2009, os representantes do bloco
reconheceram que:
Los mecanismos que se instrumenten deberían referirse a la búsqueda
de la excelencia de los programas de posgrado, haciendo énfasis en las
actividades de investigación. Debe hablarse de estándares de alta
calidad: si no esta política no tendría sentido, reiteraría las exigencias
nacionales y no tendría trascendencia. El posgrado debe enriquecer al
grado, debe tender a la generación de conocimiento original, lo cual
sería incompatible con estándares mínimos. Este enfoque potenciaria
el rol de este sistema en la generación de recursos humanos
calificados en la región. (MERCOSUL, 2009, p.3)
Questão essencial é determinar qual é a interpretação dada ao Acordo de Admissão
de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de Atividades Acadêmicas nos Estados
Partes do MERCOSUL, regulamentado no Brasil pelo Decreto n° 5.518, de 23 de agosto de
2005.
Conforme Mazzuoli, “a partir da promulgação desse Acordo, muitos interessados em
realizar seus cursos de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) começaram a se
deslocar para várias Universidades de países do MERCOSUL” cuja organização de ensino
“mostrou-se extremamente atraente, a permitir a conclusão de cursos de Mestrado em até 18
meses e de Doutorado em até 24 meses, ao contrário do que ocorre no Brasil” cujos cursos
exigem aprovação em disciplinas presenciais, “que completam semestres letivos inteiros e
revistas estrangeiras. A participação das revistas nacionais na classe A é zero. O que estamos dizendo aos jovens
brasileiros com essa política? Que pautem suas pesquisas e sua forma de pensar pelos padrões dos países ricos
nossos concorrentes. Mas é mais difícil publicar em uma revista estrangeira, dizem-nos. Claro que é em algumas
revistas, mas não é esse o critério. Ao Brasil, o que interessa são economistas que saibam analisar e propor
soluções para os problemas brasileiros. Quando revelo à CAPES minha indignação com o colonialismo cultural,
dizem-me que estão traduzindo a visão da comunidade acadêmica. Mas quem „consagra‟ tal monstruosidade é o
Estado brasileiro, que existe não para traduzir, mas para afirmar valores.” (Grifei)
30
períodos médios de conclusão de 24 a 48 meses para os cursos de Mestrado e Doutorado,
respectivamente”. (MAZZUOLI, 2010, p.1)
Por força de lei, mesmo os diplomas de mestre e doutor provenientes dos países que
integram o MERCOSUL, estão sujeitos ao reconhecimento. O acordo de admissão de títulos
acadêmicos, Decreto nº 5.518, de 23 de agosto de 2005, não substitui a Lei maior, portanto,
não dispensa da revalidação/reconhecimento (Art.48, § 3º, da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação) os títulos de pós-graduação conferidos em razão de estudos feitos nos demais
países membros do MERCOSUL. (CAPES, 2009, p.1)
O Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de
Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do MERCOSUL “versa o caso dos pesquisadores
que obtiveram seus títulos em algum dos países-membros do MERCOSUL” e que pretendam
“exercer atividades de docência e pesquisa temporariamente no Brasil”. (MAZZUOLI, 2010,
p.1)
Além disso, conforme disposto no art. 5°. do referido acordo, o reconhecimento de
títulos para qualquer outro resultado que não o ali instituído deve orientar-se pelas normas
específicas dos Estados Partes. Dessa forma, conforme anota Mazzuolli, “o citado Acordo não
trata, em hipótese alguma, da situação de um brasileiro que obtém um título de Mestrado ou
Doutorado no exterior e pretende exercer os direitos que tal título lhe confere, em território
brasileiro”. Nessa hipótese, “somente a revalidação do título, nos termos da Lei nº 9.394/96
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação), é que lhe concederá o direito de atuar como Mestre
ou como Doutor no Brasil, notadamente no ambiente universitário do qual faz parte”.
(MAZZUOLI, 2010, p.1).
Para ter validade no Brasil, o diploma concedido por estudos realizados no exterior
deve ser submetido ao reconhecimento por universidade brasileira que possua curso de pós-
graduação avaliado e reconhecido pela CAPES. O curso deve ser na mesma área do
conhecimento e em nível de titulação equivalente ou superior, conforme o art. 48, da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação. (CAPES, 2009, p.2)
Na análise de Mazzuolli, a interpretação do STJ não deixa dúvidas sobre o alcance
do Acordo:
no Recurso Extraordinário No. 971.962/RS, o relator Ministro
Herman Benjamim confirmou que o Acordo de títulos no
MERCOSUL não afasta o procedimento de revalidação nacional.
Pouco depois da decisão do STJ o Conselho Mercado Comum do
MERCOSUL regulamentou o Acordo (Decisão n. 29/09) para dizer
31
exatamente a mesma coisa. O artigo 2º da Decisão do MERCOSUL,
denominado „Da Nacionalidade‟, trata do tema e explica que a
admissão de títulos e graus acadêmicos, para os fins do Acordo, não
se aplica aos nacionais do país onde sejam realizadas as atividades
de docência e de pesquisa. (MAZZUOLI, 2010, p.2)
Nesse sentido,
qualquer cidadão brasileiro que cursa pós-graduação no exterior
deverá encaminhar seu diploma para revalidação em Instituição de
Ensino Superior nacionais, desde que cumpram com as exigências do
Conselho Nacional de Educação e da CAPES, conforme o art. 4º da
Resolução do CNE-CES no 1/2001. Caso contrário, não terão seus
títulos revalidados e os mesmos não terão qualquer efeito no Brasil.
Assim, é equívoco corrente considerar que os títulos obtidos em países
do MERCOSUL não necessitam de revalidação para surtirem efeitos
no Brasil. O que fez o referido Acordo foi regular formas de
cooperação acadêmica, de caráter temporário e a título de intercâmbio,
nada mais. (MAZZUOLI, 2010, p.2)
A CAPES chama a atenção para a ampla a “divulgação de material publicitário por
empresas captadoras de estudantes brasileiros para cursos de pós-graduação modulares
ofertados em períodos sucessivos de férias, e mesmo em fins de semana, nos Territórios dos
demais Estados Parte do MERCOSUL”. (CAPES, 2009, p.2)
Propaganda e autoengano
Na sua clássica obra A Técnica e o Desafio do Século, Jacques Ellul, ao analisar o
poder da propaganda, constata: “é preciso que a propaganda se torne tão natural quanto o ar
ou o alimento”. (ELLUL, 1968, p.374).
Assim, estimulada pela propaganda que vende facilidade, milhares de brasileiros
“auto-enganados” procuram driblar as exigências de titulação no Brasil obtendo os seus
títulos de doutorado em direito na Argentina.
Nas palavras de Gianetti da Fonseca, “o auto-engano é quando você está convencido
da realidade de alguma coisa que é fantasiosa, que é ilusória, que não é real”. Num primeiro
momento “a noção de auto-engano esbarra em grave contradição. Para que eu me engane com
sucesso dentro do modelo proposto é preciso que eu minta para mim mesmo e ainda por cima
acredite na mentira.” (GIANETTI DA FONSECA, 1997, p.118)
32
Nesse sentido, a procura de milhares de pessoas por um atalho acadêmico para a
obtenção leviana de títulos de doutorados em direito seria um “auto-engano coletivo em
grande escala”, uma “resultante trágica e grotesca de uma multidão de auto-engano
sincronizada entre si no plano individual.” (GIANETTI DA FONSECA, 1997, p.110)
A CAPES entende que quem sustenta a validade automática no Brasil dos diplomas
de pós-graduação obtidos nos demais países integrantes do MERCOSUL, despreza o preceito
do artigo 5°. do Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de
Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do MERCOSUL promulgado pelo Decreto nº
5.518, de 2005 e a Orientação do MEC consubstanciada no Parecer CNE/CES nº 106, de
2007, “praticando, portanto, propaganda enganosa”. Grifei (CAPES, 2009, p.3)
Para a CAPES, “a despeito do que é sustentado pelas operadoras deste comércio, a
validade no Brasil dos diplomas obtidos em tais cursos está condicionada ao reconhecimento,
na forma do artigo 48, da LDB”. (CAPES, 2009, p.2)
O Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de
Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do MERCOSUL determina que os títulos de
Mestrado ou Doutorado emitidos pelos países do bloco sejam “reconhecidos e credenciados
nos Estados Partes” (art. 1º), e “devidamente validados pela legislação vigente nos Estados
Partes” (art.3º). Conforme destacou Mazzuolli,
É notório o fato de que muitas Instituições de Ensino Superior, que
estão a oferecer cursos de Mestrado ou de Doutorado em países do
MERCOSUL, não têm qualquer tipo de credenciamento e/ou
autorização para funcionamento no próprio país de origem, o que
impede a brasileira (escolhida para a revalidação) levar a cabo o
procedimento homologatório. Incumbe à parte interessada fazer prova
de que o título que porta provém de Instituição de Ensino Superior
reconhecida e credenciada no país de origem, condição sem a qual fica
prejudicada a revalidação nacional do mesmo. (MAZZUOLI, 2010,
p.2)
Na mesma linha de pensamento de Jacques Ellul, ao criticar a razão técnica e a
propaganda, Luiz Gonzaga Belluzzo adverte que:
A especialização e a „tecnificação‟ crescentes despejam no mercado,
aqui e no mundo, um exército de subjetividades mutiladas,
qualificadas sim, mas incapazes de compreender o mundo em que
vivem. Os argumentos da razão técnica dissimulam a pauperização
33
das mentalidades e o massacre da capacidade crítica”. (BELLUZZO,
2012b, p.47)
A razão técnica destaca Ellul (1968, p.378), “dá a cada um, uma justificação. Cada
um recebe a convicção de que é justo, bom e de que está com a verdade”. A razão técnica,
potencializada pela propaganda, alimenta o autoengano coletivo.
Nesse sentido, alguns sites jurídicos brasileiros têm difundido propaganda de
doutorados “light”, oferecidos por instituições argentinas cujos cursos, em determinadas
casos, não são sequer acreditados no próprio país, como será destacado no item 4.
Para Beluzzo, “na sociedade contemporânea” [a propaganda é executada] “pelos
aparatos de comunicação de massa apetrechados para produzir o que Herbert Marcuse
chamou de ´automatização psíquica´ dos indivíduos. Os processos conscientes são
substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas”. (BELLUZZO, 2012b, p.47)
Ainda conforme Belluzzo,
o domínio do espaço público pelos aparatos de comunicação procede
à sistemática lobotomia das capacidades subjetivas que ensejam a
crítica e resistem à manipulação. Trata-se de um procedimento de
neutralização das funções de contestação massacradas pela
publicidade travestida de informação (BELLUZZO, 2012b, p.47)
Tal propaganda assemelha-se a uma “engrenagem” voltada para a remoção “de
quaisquer resíduos de razão crítica que os indivíduos livres porventura consigam preservar
que, por sua vez, nutrem as comunidades ilusórias”4 de doutorandos a procura de títulos,
mesmo não reconhecidos no Brasil. Vale dizer, o autoengano coletivo, estimulado pela
propaganda, busca facilidades educacionais às custas do achatamento do padrão de qualidade
das pesquisas da pós-graduação.
De acordo com a análise de Belluzzo, “ao tratar do papel da educação no
fortalecimento das democracias, Karl Mannheim”, no livro Liberdade, poder e planejamento
democrático
acolhe a idéia de Ortega y Gasset sobre o homem educado: aquele que
se distingue pelo conhecimento das filosofias que regem sua época.
Isso deveria ser complementado, diz ele, por um conhecimento dos
4 Belluzzo, 2012b,p.47.
34
fatos que permitam a todos formar idéias sólidas acerca do lugar do
homem na natureza e na sociedade. Cabe à educação examinar os
problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles relacionados
com a vida democrática. Uma vez tratadas essas questões
fundamentais para o homem moderno, o estudante vai encontrar o
lugar adequado para a boa formação profissional. (BELLUZZO,
2012b, p.34)
Seria esta “boa formação profissional”, a preocupação central dos brasileiros que
procuram os cursos de doutorado “light” na Argentina? Ou, ao contrário, a sua clientela seria,
na realidade, formada por “auto-enganados”, experts em atalhos, adeptos indefectíveis da
teoria do “fato consumado”, temperada com generosas pitadas do consagrado “jeitinho” ou
“Brazilian way”?
Conforme destaca Lenio Streck,
No país do jeitinho, um grupo de juristas (pessoas formadas em
Direito, alguns ocupando cargos importantes) busca mobilizar
políticos para, exatamente, arrumar um jeitinho de passar por cima das
exigências da legislação brasileira. As notícias são de que já há duas
assembléias legislativas mobilizadas. Agora parece que está marcada a
mobilização da assembléia de Minas Gerais. Os deputados estaduais
são instados a fazer leis para legitimar diplomas de doutorado obtidos
especialmente no MERCOSUL, mais detalhadamente, na Argentina,
como se isso não fosse absolutamente inconstitucional, por força da
competência privativa da União Federal para legislar sobre diretrizes e
bases da educação nacional, conforme o artigo 22, XXIV da
Constituição. (STRECK, 2012, p.2)
Doutorado “light” e autoengano coletivo
A partir das análises de Lenio Streck sobre o artigo de Marcelo Varella e Martonio
Barreto Lima5, verificam-se exemplos de auto-engano coletivo estimulados pelas técnicas de
propaganda, difundidos por três cursos argentinos de doutorado em Direito vinculados: a
Universidade do Museu Social Argentino (UMSA), a Universidade Católica Argentina
(UCA) e a Universidade de Buenos Aires (UBA).
De acordo com as informações de Varella e Barreto Lima:
5 Políticas de revalidação de diplomas de pós-graduação em direito no Brasil: dificuldades de desafios para o
sistema brasileiro. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Brasília, v. 2, n. 1, p. 143-161, jan/jun., 2012.
35
Há diferentes perfis de instituições que oferecem doutorado a
estudantes brasileiros. Apenas na Argentina, há três vezes mais
estudantes de doutorado brasileiros do que no Brasil. O próprio
conceito de doutorado parecer ser distinto entre os estudantes
brasileiros e os argentinos em alguns casos. Nesse contexto, destacam-
se instituições de qualidade questionada, como a Universidad del
Museo Social Argentino, mas também instituições de qualidade
reconhecida, como a Universidade de Buenos Aires e a Universidade
de Católica da Argentina, que abriram um mercado exclusivo para
doutorandos brasileiros. O Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais
teve seu recredenciamento negado pela Resolução 1172/2011. O
Doutorado em Aspectos Bioéticos e Jurídicos da Saúde teve seu
credenciamento negado pela Resolução 1156/2011. Em outras
palavras, o diploma não é válido nem mesmo na Argentina”.
(VARELLA e BARRETO LIMA, 2012, p.150)
Certamente, das três instituições acima citadas, aquela que mais chama atenção pelo
uso da técnica da propaganda e do estímulo ao auto-engano é a UMSA. Nesse sentido,
prosseguem os autores:
O curso de verão é o que mais chama a atenção dos brasileiros na
UMSA. A inscrição não se faz diretamente na instituição, mas apenas
por meio de instituições brasileiras com convênios com a UMSA. Os
preços variam entre os parceiros, que além da intermediação podem
incluir despesas de viagem e hotel ou passeios na Argentina. Não há
processo seletivo para o ingresso. Nesta outra modalidade, as aulas
ocorrem em quatro períodos concentrados, em janeiro e em julho. Há
cerca de 20 dias de aula por visita, com 10 horas de aula por dia.
Como há aulas todos os dias, não há tempo para leitura de textos entre
as aulas. Da mesma forma, deve-se entregar um artigo de 30 páginas,
até dois meses após o termino da disciplina, conforme o professor. O
doutorado de verão era realizado no Brasil, entre 1997 e 2001. A partir
do maior controle da CAPES, em 2001, deixou de ser realizado no
País. De 2007 em diante foram criadas as turmas de verão na
Argentina e, mais recentemente, realizados diferentes convênios com
instituições brasileiras. O sucesso do curso levou à expansão: em 2012
são 23 turmas paralelas de doutorado em Direito, com um total de 800
estudantes, ou seja, uma média de 34 alunos por sala. Para conseguir
atender a demanda de aulas, foram contratados outros professores,
temporários, para os períodos de aulas, totalizando 44 docentes em
2012, de acordo com a própria Secretaria. (VARELLA e BARRETO
LIMA, 2012, p.151)
A questão que se coloca é: quando estes professores e alunos terão tempo para
constituírem grupos de pesquisa comprometidos com publicações, v.g., em conformidade com
36
os rígidos padrões de exigência do Qualis brasileiro? Na pesquisa realizada, Varella e Barreto
Lima informam que:
“Estes professores têm uma carga de trabalho concentrada durante o
período de aulas, não havendo grupos de pesquisa ou outras atividades
obrigatórias aos estudantes brasileiros, como exigência de publicação
de sua produção científica em revistas devidamente indexadas no
sistema de classificação de periódicos de cada área no âmbito da
CAPES. De acordo com os organizadores do curso, as reuniões de
orientação ocorrem durante o período de aulas, a cada seis meses.
Confessamos dificuldade em assimilar a idéia sobre como um aluno
com 10 horas de aula por dia consegue se reunir com seu orientador
no mesmo dia. Mais questionável é a capacidade de um orientador
discutir a tese de 20 a 40 orientandos de doutorado durante três ou
quatro horas. Em outras palavras, apenas a Universidade do Museu
Social Argentino tem uma vez e meia mais estudantes de doutorado
do que toda a pós-graduação brasileira em Direito, e tal número tende
a aumentar com o sucesso dos convênios.” Grifei. (VARELLA e
BARRETO LIMA, 2012, p.151)
Assim, diante do capitalismo acadêmico que parece imperar em terras portenhas, os
cursos de pós-graduação em direito, tratados como simples mercadoria educacional,
edulcorada pela propaganda dos sites jurídicos destinados aos auto-enganados brasileiros,
torna-se praticamente inviável falar-se em integração acadêmica no MERCOSUL. Como bem
destacou Paulo Roberto de Almeida, “uma proclamada „latinoamericanidad‟ não faz o menor
sentido no plano das metodologias e das pesquisas de ponta, como se o fato de pertencer ao
mesmo arco cultural ou a uma mesma zona geográfica representasse qualquer garantia de
qualidade acadêmica.” (ALMEIDA, 2010, p.7)
Malgrado todas as justas críticas que se possam fazer ao produtivismo acadêmico,
apenas o Brasil tem demonstrado interesse em elevar a qualificação do seu sistema de pós-
graduação, de acordo com os (discutíveis, reafirmo) padrões internacionais de excelência
acadêmica. Em suma: ruim com eles, pior sem eles.
Considerações finais
É imperioso que o MERCOSUL aquilate o ensino superior dos seus Estados-
membros, desde a sua base, buscando formas de elevar o nível dos sistemas de avaliação
dessas instituições de ensino em cada Estado-membro.
37
Dado este passo, será fatível desenvolver um sistema de avaliação integrada, com
relevância acadêmica, capaz de promover a equivalência de créditos, que alcance todas as
carreiras, particularmente a jurídica, baseado em critérios rígidos e norteado por regras que
primem pela qualidade dos cursos de pós-graduação stricto sensu oferecidos pelas
universidades dos países do bloco, notadamente na Argentina, voltadas para aqueles projetos
de pesquisa comprometidos com a busca de solução de problemas comuns que afligem o
MERCOSUL.
Defende-se, pois, a harmonização dos critérios de credenciamento dos cursos de pós-
graduação stricto sensu no MERCOSUL que sejam refratários a ação predatória dos apóstolos
do capitalismo acadêmico, arautos do auto-engano coletivo.
Não se combate o produtivismo acadêmico com a mediocrização do sistema de pós-
graduação. É necessário buscar-se um meio termo, levando-se em conta as particularidades de
cada área do conhecimento sem a diktat das ciências duras sobre as ciências humanas e
sociais, todavia, contra o rebaixamento do nível de qualificação acadêmica destas últimas e a
sua conformação à lógica da quase venalidade dos títulos acadêmicos pelos mercadores do
saber.
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ambiente acadêmico. Revista Espaço Acadêmico. n° 111, ago. 2010, p.120-127.
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2012.
40
ELLUL, ORTEGA Y GASSET, MIGUEL DE UNAMUNO. PONTO DE
ENCONTRO1
Rui Decio Martins 2
As próximas linhas escondem e ao mesmo tempo estimulam um desafio: fazer
um diálogo sempre expansivo da obra de Jacques Ellul com outros autores, de outros tempos,
de outras nacionalidades, de outras visões.
Nesse momento os escolhidos para iniciar tão árdua e profícua tarefa foram
José Ortega y Gasset, responsável por imensa e profunda obra intelectual, sobre quem nos
debruçaremos um pouco mais, e Miguel de Unamuno, outro espanhol de escol e professor da
Universidade de Salamanca e autor da primorosa obra "Del sentimiento trágico de la vida",
utilizada aqui apenas como um prólogo àquele desafio. Futuramente outros pensadores
poderão ser "chamados" ao confronto com a obra elluliana, tais como Raimundo Lúlio
(Ramon Llull) e Pietro Ubaldi.
Por ora, enfatizaremos Ortega y Gasset, assentando-nos em seu escrito "A
rebelião das Massas".
Gasset nasceu em Madri, em 9 de maio de 1883, filho de jornalistas e
proprietários de um jornal, El Imparcial. Desta gênese nasceu um filósofo, dos maiores de
língua hispânica no século XX, que encontrou no jornalismo a base intelectual e estilística de
sua produção.
Formou-se em filosofia na Universidade de Madri, aprimorando-se na
Alemanha, em Marburgo.
Exerceu vida pública ao lado da vida acadêmica e cultural, com uma vasta obra
de caráter crítico.
Faleceu no dia 18 de outubro de 1955, em Madri.
Para iniciarmos esse desafio reportamo-nos à Miguel de Unamuno que inicia
sua obra "Del sentimiento trágico de la vida " refletindo sobre o homem de carne e osso
1 Comunicação apresentada no V Seminário Brasileiro sobre o Pensamento de Jacques Ellul, realizado em 17 e
18 de outubro de 2012, na Faculdade de Ciências Humanas da UNESP/Campus de Franca.
2 Prof. Dr. do Programa de Mestrado em Direito, da UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba. Prof.
Dr.Titular de Direito Internacional da FDSBC - Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, e seu atual
Vice Diretor. Prof. Dr. Assistente aposentado do Curso de Direito da UNESP, campus de Franca/SP.
41
(1980, p.25). Para ele as palavras humanidade e humano não refletem a realidade fática,
concreta, qual seja, o homem.
El hombre de carne y hueso, el que nace, sufre y muere - sobre todo
muere -, el que come y bebe y juega u duerme y piensa y quiere, el
hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdaderp hermano.
(...) un hombre que nos es de aqui o de allí ni de esta época o de la
outra, que no tiene ni sexo ni pátria, una idea, en fin. Es decir, un no
hombre (1980, p.25).
O que interessa para ele é o homem de carne e osso, o que é objeto e sujeito de
qualquer filosofia. Em geral nos são apresentados os sistemas filosóficos como sendo
originados uns dos outros; seus autores, os verdadeiros filósofos aparecem como meros
coadjuvantes.
La íntima biografia de los filósofos, de los hombres que filosofaram,
ocupa un lugar secundário. Y es ella, sin embargo, esa íntima
biografia la que más cosas nos explica. (1980, p.27)
O autor em questão traça um ligeiro quadro afirmando que a filosofia se
aproxima mais da poesia do que da ciência.
Não raro, para nós, a ciência é mais estranha do que a filosofia, posto que
"cumplen un fin más objetivo, es decir, más fuera de nosotros. Son, en el fondo, cosa de
economia." (1980, p.27). Define um novo descobrimento como sendo uma coisa que serve
para algo.
Así, el teléfono pude servirnos para comunicarnos a distancia
com la mujer amada. ?Pero ésta para qué nos sirve? Toma uno el
tranvía eléctrico para oir una ópera; y se pregunta: ? cuál es, en este
caso, más útil, el tranvía o la ópera? (1980, p.27)
Partindo desse ponto de vista a filosofia serve para formarmos um visão
unitária do mundo e da vida e trás como consequência "un sentimiento que engendre una
actitud íntima y hasta una acción. Pero resulta que esse sentimiento , en vez de ser
consecuencia de aquella concepción, es causa de ella." (1980, p.27)
Significa, isso, que passamos a ver a vida e compreender o mundo a partir de
nosso sentimento em relação à própria vida. (1980, p.27)
42
Já para Ortega y Gasset, o homem é tratado como alguém que faz parte de uma
coletividade, que atua com base em procedimentos que podem levar ao progresso ou a uma
situação de retrocesso social.
Na verdade, como exemplificado adiante, essa massa interessa-se mais pelo
produto que uma sociedade com base na técnica possa proporcionar do que com a própria
civilização.
Na obra, de 1926, A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset (1926, p.40) faz
uma análise da técnica relacionando-a com uma posição das massas que para ele pode ser
conceituada como primitiva. Para estudar o comportamento das massas - e que poderia gerar
um movimento revolucionário em seu agir - o autor confessa que o faz com o uso de suas
convicções filosóficas já estudadas em outros momentos e locais, isto é, nega que faz um
estudo das massas utilizando-se de uma metafísica da história.
Para ele,
(...) toda vida, e portanto, a história, se compõe de puros
instantes, cada um dos quais está relativamente indeterminado com
respeito ao anterior, de sorte que nele a realidade vacila, piétine sur
place, e não sabe bem se se decidir por uma ou outra entre várias
possibilidades. Este titubeio metafísico proporciona a todo o vital esta
inconfundível qualidade de vibração e estremecimento. (1926, p.40)
Para o autor este movimento das massas pode levar a uma "nova organização
da humanidade" (1926, p.40), mas também pode ser o contrário. O progresso que pode ser
obtido deve ser eivado de um sentimento de que esse mesmo progresso possa não ser seguro.
Mais congruente com os fatos é pensar que não há nenhum
progresso seguro, nenhuma evolução, sem a ameaça de involução e
retrocesso. Tudo, tudo é possível na história - tanto o progresso
triunfal e indefinido como a periódica regressão -, porque a vida
individual ou coletiva, pessoal ou histórica, é a única entidade do
universo cuja substância é perigo. Compõem-se de peripécias. É,
rigorosamente falando, drama. (1926, p.40)
A ação das massas com suas novas condutas podem ser indícios de futuras
perfeições. Para Gasset a ordem antiga arrasta consigo ainda alguns resquícios em maior ou
menor grau, "valorizações e respeitos sobreviventes e já sem sentido (...) normas que já
provaram sua insubstancialidade." (1926, p.40)
43
Após fazer uma digressão sobre a evolução da humanidade européia,
afirmando que esta só poderia passar para um estágio superior e mais avançado quando se
desnudasse de seu passado e se aproximasse de "sua pura essencialidade, até coincidir consigo
mesma." (1926, p.40)
O temor exposto na obra em comento é o de uma grande possibilidade de que
todo o "crescimento de possibilidades concretas" (p.41) possa ser anulado por si só em
decorrência da mudança comportamental daqueles que detêm a direção social européia, qual
seja, "um tipo de homem a quem não interessam os princípios da civilização. Não os desta ou
os daquela, mas, os de nenhuma." (1926, p.41)
É bem verdade que para esse homem interessam as novas coisas, tais como os
anestésicos, os automóveis e outras mais. A crítica do autor é que esse interesse "confirma seu
radical desinteresse pela civilização. Pois estas coisas são só produtos dela, e o fervor que se
lhes dedica faz ressaltar mais cruamente a insensibilidade para os princípios de que nascem."
(1926, p.41)
Abrimos uma janela para observar, neste momento, a visão de Jacques Ellul,
para quem a técnica está mais além do resultado dela derivado, tão somente.
Ele vê as implicações daí decorrentes, como por exemplo, na questão do
automóvel, acima exposto por Gasset.
Ellul deixa de lado a visão pura do objeto tomado em si mesmo e parte para
uma profunda exploração da realidade contida no entorno daquele objeto: a questão do
combustível que remete à questão do petróleo que tem gerado inúmeros conflitos locais e
mundiais, a corrupção incidente sobre os povos mais pobres em busca do acesso facilitado e
mais barato de matérias primas, o poder das grandes agremiações industriais, econômicas e
políticas que privilegiam o uso de veículos praticamente ao nível individual em detrimento do
transporte público, as mudanças nas paisagens urbanas e rurais, a poluição causada por essa
matriz de transporte, os acidentes com vítimas fatais ou feridas. (PORQUET, p.52-3)
O autor francês vê a técnica como estando a serviço do homem porque ele a
criou. Afirma que o fenômeno técnico é a preocupação da imensa maioria dos homens atuais,
de pesquisar em todas as coisas o método mais eficaz (PORQUET, p.54).
Para Ellul não se pode reduzir a técnica a uma simples aplicação prática da
ciência. Na verdade aquela surge antes desta, muito embora os dois institutos sigam caminhos
entrelaçados e que se completam. É por isso que ele crê que a técnica é o fator predominante
da sociedade moderna.
44
Na continuidade, relata o autor de Salamanca que desde o período renascentista
havia um entusiasmo crescente para com as novas ciências surgidas a partir de então, é dizer,
as ciências físicas, atraindo mais e mais interessados nos novos processos de investigação.
Todavia, esse interesse crescente de geração após geração sofre uma diminuição a partir dos
anos trinta do século XX.
Nos laboratórios de ciência pura começa a ser difícil atrair discípulos. E isso
acontece quando a indústria alcança seu maior desenvolvimento e quando as pessoas mostram
maior apetite pelo uso de aparelhos e medicinas criados pela ciência. (1926, p.41)
O ensaio estudado pretende dar a resposta à seguinte pergunta : "o que significa
situação tão paradoxal?" (1926, p.41)
Pode ser dito, assim, que o fulcro da questão reside da ideia de o homem
dominante hoje é um primitivo. Mas não um primitivo vivendo em eras priscas; ao contrário,
ele emerge "em meio de um mundo civilizado." (1926, p.41)
O autor destaca com veemência que:
O civilizado é o mundo, porém, seu habitante não o é: nem
sequer vê nele a civilização, mas usa dela como se fosse natureza. O
novo homem deseja o automóvel e goza dele, mas crê que é fruta
espontânea de uma árvore edênica. No fundo de sua alma desconhece
o caráter artificial, quase inverossímil, da civilização. (...) O homem
massa atual é, com efeito, um primitivo que pelos bastidores deslizou
no velho cenário da civilização. (1926, p.41)
Opondo-se ao pensamento de Spengler3 para quem à cultura vai suceder uma
época de civilização, tomando esta como sendo a técnica, e que a técnica pode continuar
vivendo quando morreu o interesse pelos princípios da cultura,(1926, p.41), Ortega y Gasset
vai em sentido diametralmente contrário ao afirmar que a técnica é essencialmente ciência.
Creio ser necessário, aqui, repisar ipsis literis o pensamento do eminente espanhol:
A ciência não existe se não interessa em sua pureza e por ela
mesma, e não pode interessar se as pessoas não continuam
entusiasmadas com os princípios gerais da cultura. Se se embota esse
fervor - como parece ocorrer -, a técnica só pode perviver um pouco
de tempo, aquele que lhe dure a inércia do impulso cultural que a
criou. Vive-se com a técnica, mas não da técnica. Esta não se nutre
3 Ortega y Gasset não nos dá maiores detalhes sobre qual obra de Spengler ele aqui se refere.
45
nem se respira a si mesma, não é causa sui, mas precipitado útil,
prático, de preocupações supérfluas, não práticas. (1926, p.41)
Para Gasset a técnica não tem a capacidade de garantir o progresso e nem
mesmo a continuidade da técnica, todavia ele admite o papel relevante do tecnicismo na
sociedade atual, ou melhor, com suas palavras, na "cultura moderna (...) que contém um
gênero de ciência, o qual vem ser materialmente aproveitável." (1926, p.42)
Uma questão imposta pelo autor é a seguinte: "Não é demasiado absurdo que
nas circunstâncias atuais não sinta o homem médio, espontaneamente e sem prédicas, fervor
superlativo por aquelas ciências e suas congêneres, as biológicas?" (1926, p.42)
A razão dessa pergunta se fundamenta no fato de que outras manifestações da
cultura, como a política, arte, direito, moral se tornaram problemáticas. Todavia, sobressai-se
nesse contexto negativo a ciência empírica, aquela que na atualidade parece ser a única a
despertar uma certa eficiência nas massas.
A angústia descrita pelo autor ora apreciado é no sentido de entender porque as
massas não investem, por si mesmas, mais adequadamente na ciência, posto que é ela que
fornece a cada dia novos inventos, que beneficiam o homem médio, pois "todo o mundo sabe
que, não cedendo à inspiração científica, se se triplicassem ou decuplicassem os laboratórios,
multiplicar-se-iam automaticamente riqueza, comodidade, saúde, bem estar." (1926, p.42)
Constata, com certa tristeza, que o após guerra (1ª guerra) gerou uma classe de pária social - o
cientista.
Mas as massas não podem viver sem a ciência, pois quem vai sustentá-las
posto que humanidade cresce incessantemente exigindo cada vez mais alimentos e bens de
consumo, nem sempre essenciais?
A crítica principal de Ortega ao comportamento das massas é no tocante ao
desinteresse destas com relação à ciência, podendo-se esperar apenas um estado
comportamental de barbárie de quem assim agir, principalmente porque tal desapego à ciência
reflete-se
talvez com maior clareza que em nenhuma outra parte, na massa dos
técnicos mesmos - de médicos, engenheiros, etc., os quais soem
exercer sua profissão com um estado de espírito idêntico no essencial
ao de quem se contenta com usar do automóvel ou comprar o tubo de
aspirina -, sem a menor solidariedade íntima com o destino da ciência,
da civilização. (1926, p.43)
46
Para o professor espanhol o mais grave é a desproporção existente entre os
frutos colhidos pelo homem derivados da ciência e o reconhecimento que dedica a esta. Nas
suas palavras:
Só posso explicar-me esta ausência do adequado reconhecimento se
recordo que no centro da África os negros vão também em automóvel
e se aspirinizam. O europeu que começa a predominar - esta é a minha
hipótese - seria, relativamente à complexa civilização em que nasceu,
um homem primitivo, um bárbaro emergindo por um alçapão, um
"invasor vertical".(1926, p.43)
Bem se vê que os tempos em que foram escritas estas lições eram outros. Hoje,
pela citação acima, estaria o autor enredado nos maus lençóis do politicamente incorreto, pois
ao referir-se a negros poderia ser interpretado como uma expressão discriminatória, que
feriria os direitos mais elementares e fundamentais de qualquer pessoa - não importando o
continente em que habite, nem sua cor, nem sua cultura - a ser considerada plenamente como
sujeito de direitos tanto no plano interno como no internacional.4
Mais adiante, Ortega continua a digressão sobre o homem massa e sua relação
com a civilização do século XIX, período de sua criação. Para o professor ibérico o citado
século ensejou o surgimento de uma civilização diferenciada da dos séculos anteriores pois
que estava fundada na técnica.
Mas foi nessa centúria que a ciência deu um enorme salto qualitativo e
quantitativo em relação aos períodos anteriores. É nesse século, também, que Revolução
industrial proporcionou uma grande acumulação de capital. Para Ortega só faltava juntar a
fome com a vontade de comer. Assim, da "copulação entre o capitalismo e a ciência
experimental" (1926, p.49), surgiu a denominada técnica contemporânea.
Da mesma forma que Ellul, mais tarde, para Ortega a técnica não é toda ela,
sempre, revestida de cientificismo. Exemplifica com a confecção dos machados de pedra no
período lítico da pré história que embora utilizasse técnica de fabricação nem de longe
possuia sequer um rudimento de ciência. 5
4 Não podemos nos esquecer que essa obra foi escrita em 1926, época em que os direitos humanos sequer
tinham sido cogitados, embora se pudesse afirmar sobre a existência de direitos fundamentais, mas somente no
âmbito restrito das jurisdições soberanas. Quero crer que o estudado autor não teve outra intenção além de referir
a uma situação que envolvia diferenças quase abissais entre as mais diversas regiões do planeta no que diz
respeito ao acesso à técnica como elemento proporcionador de condições de vida mais dignas.
5 Segundo Robert Foley (2003), "a primeira tecnologia, conhecida como oldovana, nome tirado do sítio Olduvai,
na Tanzânia, onde ela foi descrita pela primeira vez, existiu durante mais de um milhão de anos. Sua sucessora, a
acheulense, caracterizada por grandes machados desbastados nas duas faces, também se manteve estável por
47
A Arqueologia nos mostra que há cinquenta mil anos surgiu o homo sapiens e
que por 40 mil anos viveu em cavernas, era coletor e caçador, quando usava alguns
instrumentos de pedra polida, ainda incipientes, vestia, por vezes, peles de animais, vivia em
pequenos grupos nômades.
Reputa-se que o comportamento aliado à capacidade mental humanos mais que
sua própria anatomia é que diferenciaram os primeiros humanos de outro animais.
O homem fazedor de ferramentas, o homem caçador, a mulher coletadora, o homo
economicus, o homo hierarchicus, o homo politicus, e o homo loquans, são, todos eles,
apelidos cujo propósito era resumir numa palavra a natureza humana. Eles, e tantos outros,
são traços usados por diversas pessoas para identificar a força propulsora subjacente à
natureza humana. (FOLEY, 2003, p.63) (grifos do autor citado)
Assim é que aquele homem primitivo, diante do crescimento populacional
passa a usar o meio para satisfazer suas necessidades e não mais para só se defender dele.
Ainda na lição de FOLEY,
Para muitos, a fabricação de ferramentas foi o fator decisivo. Basta
um exame superficial do mundo para perceber até que ponto os
humanos dependem da tecnologia. E isso não apenas no caso de povos
urbanos e industrializados, mas no de todas as sociedades. Casas,
alimentos, armas, jogos, tudo isso, em certa medida, implica
tecnologia, mesmo que seja construção relativamente simples. (...) A
base para a fabricação de ferramentas consiste, em parte, na
capacidade manipulatória das mãos destras e, em parte, na capacidade
do cérebro de coordenar e criar ações que tenham consequências
tecnológicas. As aplicações práticas dessas capacidades são óbvias,
indo desde a simplicidade da roda até a potência de um reator nuclear.
(2003, p.63)
Na verdade o papel da tecnologia é permitir aos seres humanos modificar o
mundo em seu favor, diferentemente dos outros animais pois "a tecnologia pode transformar
uma espécie num componente ativo da construção do meio ambiente." (FOLEY, 2003, p.64)
Para o autor em questão a tecnologia é a maneira pela qual o mundo humano é
criado.
cerca de um milhão de anos. Mesmo as tecnologias mais tardias, associadas aos neanderthalenses e conhecidas
como musterienses, consistindo sistematicamente em cernes de pedra lascados que haviam passado por
preparação antes de serem desbastados, não sofreram grandes alterações durante bem mais de cem mil anos. Em
contraste a tecnologia lítica associada aos humanos modernos nunca perdurou por mais de cinco mil a dez mil
anos, sendo, em geral, bastante mais efêmera. Além disso, o ritmos de mudanças tecnológicas entre os humanos
modernos, que continua a ocorrer até hoje, apresenta aceleração constante." (p.101)
48
Nessa linha de pensamento Jean-Luc Porquet (2003, p.40) ensina que a
primeira grande revolução humana, assentada na técnica, é a revolução na agricultura,
aproximadamente há dez mil anos, quando se passou da condição de nômade para a de
sedentarismo. Com isso a vida social e individual toma novas formas. Retrato disso são as
pinturas rupestres em grutas que deixam de enfocar cenas de animais, isolados ou em bandos,
para mostrarem com predominância o homem coletivo, com suas armas e utensílios. Surge,
em decorrência desse novo modo de agir, a figura do chefe, o que é mais corajoso, o mais
hábil para dirigir o grupo, grupo esse que agora, com suas ferramentas, produz mais e tem
necessidade de armazenar o excesso produzido. Ao criarem locais para depositar esse
excedente, criaram a noção de propriedade; a partir de então, foi um crescendo até atingir o
estágio das grandes metrópoles e, com esse desenvolvimento, como não poderia de deixar de
ser, por enquanto, as guerras. (2003, p.41)
O fruto dessa revolução é que a agricultura se desenvolve rapidamente em
relação às épocas anteriores: é a irrigação, o trato da terra, o uso do metal para construir novas
ferramentas e, finalmente, a construção de máquinas. (PORQUET, p.41)
Podemos ver a importância da técnica na agricultura atual na leitura de
MAZOYER e ROUDART (2010, p.27):
Podemos medir a produtividade bruta do trabalho agrícola pela
produção de cereais ou de equivalente cereal por trabalhador agrícola
e por ano. Em pouco mais de meio século, a relação entre a
produtividade da agricultura menos produtiva do mundo, praticada
exclusivamente com ferramentas manuais (enxada, pá, cajado, facão,
faca ceifadeira, foice...) e a agricultura mais bem equipada e produtiva
do momento realmente se acentuou: passou de 1 contra 10 no período
do entre guerras, para 1 contra 2.000 no final do século XX.
Voltando a PORQUET, na antiguidade, embora tenham fornecido grandes
feitos intelectuais, a questão da técnica não foi muito desenvolvida, embora existente.
Segundo ele, para alguns isso se deu por causa do uso da escravidão que embotaria a
necessidade de criar novos utensílios posto que os escravos eram abundantes e mais baratos e,
ainda, faziam tudo.
Na verdade, mesmo com os povos árabes que legaram grandes inventos
técnicos e, depois, no período medieval, a não utilização da técnica como é feita hoje, deveu-
se a fatores exógenos à própria noção de técnica, sendo mesmo, mais uma questão cultural do
que qualquer outra coisa.
49
As condições para a mudança surgem no século XVIII. O autor retro
mencionado cita Ellul para afirmar que diversos fatores contribuíram para influenciar o
progresso técnico naquele século, tais como o aumento demográfico, uma situação econômica
mundial favorável e forte, o desaparecimento de tabus que permitiu o engajamento na área
técnica sem que isso fosse considerado como uma violação ao sagrado. (2003, p.44)
Com o advento da Revolução Francesa, de 1789, uma nova sociedade surge,
num novo meio cultural, político, econômico, que reclama o desenvolvimento e uso da
técnica. (PORQUET, p. 45)
Ao tempo de se iniciar a Primeira Guerra Mundial o "progresso técnico
apresenta tantas maravilhas ( iluminação elétrica, telégrafo, telefone, aviação, motor a
petróleo, bicicleta, etc.) derramando seus efeitos para todos os domínios (vilas, transportes,
habitação, medicina, etc.) que todos, Estado e indivíduos, burgueses e operários, se convertem
e cantam à sua glória." (PORQUET, p.46)
E essa foi a realidade em todos os tempos e locais até o advento do século XIX. O
vertiginoso aumento demográfico ocorrido na Europa depois de 1.800 funda-se entre outros
fatores na técnica, pois de uma população de 180 milhões passa logo no início da Primeira
Guerra para 460 milhões.6
Um dado interessante abordado por Gasset repousa em quem passa a dirigir o
povo europeu a partir de então. Para ele, não há dúvida, são os técnicos: engenheiros,
médicos, advogados, professores, etc. Enfatizando o papel da ciência e sua relação com a
técnica pergunta: "quem, dentro do grupo técnico, o representa com maior altitude e pureza?"
(1926, p.50) A resposta não se faz esperar: o homem de ciência. Mas é esse mesmo homem
ciência que a técnica transformará em homem massa, ou seja, num modo de ser que atinge
todas as classes sociais e que impera em nosso tempo e que Ortega vai denominar como
primitivo, como um "bárbaro moderno." (1926, p.50)
Paradoxalmente, nesse período, a ciência experimental, em plena desenvoltura
desde o século 16, passou a exigir que os operadores científicos deixassem de agir com a
visão unificadora da ciência para agirem com a visão da especialização.
Os homens de ciência não são a ciência. A ciência não é especialista. Ipso
facto deixaria de ser verdadeira. Nem sequer a ciência empírica, tomada na sua integridade, é
verdadeira se a separarmos da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho nela tem de
ser - irremediavelmente - especializado. (1926, p.50)
6 Estatística fornecida por Gasset (1926, 50).
50
Assim, ao longo do século XIX vai se formando uma categoria de homem
civilizado que não vê mais a ciência como um todo; ele a exercita de modo apenas parcial,
pouco importando o conjunto.
É um homem que, de tudo quanto há de saber para ser um personagem
discreto, conhece apenas determinada ciência, e ainda dessa ciência só conhece bem a
pequena porção em que ele é ativo investigador. Chega a proclamar como uma virtude o não
tomar conhecimento de quanto fique fora da estreita paisagem que especialmente cultiva, e
denomina diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber. (1926, p.50-51)
Para Ortega y Gasset isto se dá porque a ciência é feita, essencialmente, por
homens medíocres que conseguem manipular habilmente partes do conteúdo global de uma
ciência e com isso passam a operar isoladamente de outros segmentos e, por consequência,
passam a se distanciar dos demais segmentos em que não atua e sobre os quais passa se
desinteressar cada vez mais. E ele, então, se considerará "um homem que sabe. (...) nele se dá
um pedaço de algo que , junto com outros pedaços não existentes nele, constituem
verdadeiramente o saber." (1926, p.51)
Não se pode, porém, rotular esse homem como ignorante; mas também não se
pode alcunhá-lo de sábio, pois embora não conhece o todo é conhecedor de sua parte e se
considera "um homem de ciência." (1926, p.51) (grifo do autor citado)
Para Ortega y Gasset o comportamento do especialista se torna primitivo
quando diante da política, da arte, na vida social e nas ciências em geral. Torna-se um
ignorante mas cujas posições sobre os diversos temas são posições enérgicas e eivadas de
suficiência; transforma-se em um ser hermético, mas satisfeito que desejará predominar fora
de sua especialidade. Essa pretensão tem como resultado que o especialista se "comportará
sem qualificação e como homem massa em quase todas as esferas da vida." (1926, p.51)
São esses homens que não se submetem às instâncias superiores que estão em
posições chaves e com isso "simbolizam, e em grande parte constituem o império atual das
massas, e sua barbárie é a causa mais imediata da desmoralização européia." (1926, p.51)
Atualmente é muito maior o número de homens de ciência (os especialistas)
que o de homens cultos e isso certamente ameaça o progresso científico. Portanto, é
necessária uma outra geração para assumir tal tarefa.
Encerro esta digressão com as próprias palavras de Gasset:
51
Mas se o especialista desconhece a fisiologia interna da ciência que
cultiva, muito mais radicalmente ignora as condições históricas de sua
perduração, isto é, como devem estar organizados a sociedade e o
coração do homem, para que possa continuar havendo investigadores.
A decadência de vocação científica que se observa nestes anos é um
sintoma preocupador para todo aquele que tenha uma idéia clara do
que é a civilização, a idéia que sói faltar ao típico "homem de ciência",
cume de nossa atual civilização. Também ele acredita que a
civilização está aí, simplesmente, como a crosta terrestre e a selva
primigênea. (p. 52)
Bibliografia
FOYER, R. Os humanos antes da humanidade. Uma perspectiva evolucionista. Trad.
Patrícia Zimbres. São Paulo: Ed. UNESP, 2003.
MAZOYER, M. ROUDART, L. História das agriculturas no mundo. Do neolítico à crise
contemporânea. Trad. Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira. São Paulo: Ed. UNESP; Brasilia,
DF: NEAD, 2010.
ORTEGA Y GASSET. J. A rebelião das massas. Trad. Herrera Filho. Ed. eletrônica: Ed.
Ridendo Castigat Mores. In: mhtml:file://C:\Documents and Settings... 15/6/2011.
PORQUET, Jean-Luc. Jacquel Ellul. L'homme qui avait presque tout prévu. Paris: Le
cherche midi, 2003.
UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida. En los hombres y en los
pueblos. Madrid: Espasa-Calpe S.A, 1980
52
AMBIVALÊNCIA DA TÉCNICA E A QUESTÃO AMBIENTAL
Fernanda Defourny Corrêa1
Jorge Barrientos-Parra2
RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade destacar o pensamento do
estudioso Jacques Ellul quanto à ambivalência da técnica e os impactos que esta causa ao
meio ambiente. Inicialmente, o artigo aborda sobre o que é a ambivalência da técnica. Esta
que se caracteriza por ser uma combinação intrínseca de elementos positivos e negativos, e se
diferencia do termo “ambiguidade”, cuja qual tem como significado o confuso e o
indeterminado, estes que não caracterizam a ambivalência, que pelo ao contrário, traz a ideia
de que no mesmo objeto há duas orientações precisas com valores opostos. Além disso, o uso
da técnica não pode ser entendido por possuir efeitos “perversos”, justamente por possuir
tanto efeitos bons e maus intrinsecamente ligados. Com base nisso, são discutidas as
consequências do progresso técnico, que não só propiciou à humanidade um enorme conforto
com o surgimento de saneamento básico, medicamentos e até mesmo os eletrodomésticos,
como trouxe também efeitos negativos, que não só atingiu o ser humano, mas atingiu
principalmente o meio ambiente. Portanto, Ellul questiona que todo progresso técnico se paga,
e para o meio ambiente, paga-se ao considerar: a baixa qualidade do nosso ambiente (com a
poluição); o êxodo rural, que deixa as propriedades expostas às empresas industriais, ou
ainda, permitem incêndios catastróficos causados pelo descuidado às terras, de quando eram
habitadas; e o “desaparecimento” de produtos, que foram substituídos por outros, por questões
de rentabilidade, causando em contrapartida uma maior poluição, por em alguns casos os
produtos serem dificilmente reciclados. Outro aspecto abordado é que o progresso técnico
suscita problemas mais difíceis que aqueles que ele resolve. No caso do meio ambiente são os
problemas de poluição, ameaça da falta de água, florestas desmatadas, entre muitos outros,
que são problemas tão complexos que não se sabe se podem ser reduzidos a um problema
técnico, este que poderia ser resolvido pela técnica. Por fim, é abordado sobre influência que
muitas empresas sofrem pela questão ambiental nos dias de hoje, pois perceberam que
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara). Membro do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq). 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
53
enfrentar essa questão seria uma estratégia para fortalecer suas posições no mercado e sua
imagem corporativa, além de ser um estímulo à inovação de tecnologia.
Palavras-chaves: Jacques Ellul. Ambivalência da técnica. Questão ambiental.
INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva discutir as ideias do pensador Jacques Ellul sobre a ambivalência
da técnica e o impacto que a mesma causa no meio ambiente.
“A ambivalência é entendida como o desenvolvimento da técnica que não é bom,
nem mau, nem neutro, mas que é uma mistura complexa de elementos positivos e negativos
inerente à técnica” (ELLU, 1988, p. 262)3, independentemente do seu uso.
É errado dizer que tudo depende do uso que fazemos da técnica para ter efeitos bons
e maus. Ellul mostra em outras obras que a técnica carrega consequências em si, e que,
acreditar que tudo depende de seu uso é pensar que a técnica é neutra.
Jacques Ellul diferencia a ambivalência de duas outras noções. Primeiro, da noção de
ambiguidade, a qual caracteriza o confuso e o indeterminado, enquanto a ambivalência traz a
ideia de que no mesmo objeto há duas orientações precisas com valores opostos. Segundo, da
noção do “efeito perverso”, que precisamos rejeitar, pois lembra um uso da técnica que seria
“perverso”. Porém, precisamos entender que os efeitos bons e maus estão intrinsecamente
ligados em toda a técnica.
A técnica passou por um grande processo de desenvolvimento a partir do século
XIX, e esse progresso técnico nos propiciou uma vida com maior conforto. Desde o
surgimento da morfina, da vacina contra a febre amarela e da penicilina, até o surgimento do
saneamento básico e de máquinas, estas que pouparam grandes esforços braçais pelos homens
nas indústrias.
Inúmeros são os lados positivos que esse progresso trouxe à humanidade. Porém
Ellul nos mostra que esse progresso técnico também trouxe consequências desastrosas, como
uma das principais vítimas o meio ambiente.
QUESTÃO AMBIENTAL E O PROGRESSO TÉCNICO
3 Tradução livre de Débora Kommers Barrientos e Jorge Barrientos-Parra, das páginas 89 a 139 do livro Le bluff
tecnologique, publicado pela editora francesa Hachette em 1988. Cf. Ellul, 1988, p 89-139.
54
Segundo Almeida e Gomes (2012), com o crescimento descontrolado das atividades
produtivas, do consumo e da população, houve uma veloz degradação de ambientes naturais,
seja para a geração de recursos produtivos, seja pelo acúmulo de poluentes. E isso levou Ellul
a expressar algumas das consequências do progresso técnico ao meio ambiente, sendo uma
delas o preço a se pagar por ele, além dos problemas extremamente difíceis que é preciso
resolver por causa desse progresso.
Um exemplo é a baixa qualidade do nosso ambiente, ao considerar as externalidades
destes, como a poluição, a piora da saúde, e outros danos de toda ordem.
Outro preço a pagar é que, com o progresso técnico, houve o êxodo rural, e as
propriedades rurais passaram a ser um lugar de lazer para os moradores da cidade. Com isso,
além dessas propriedades ficarem expostas aos interesses das empresas industriais, elas
deixaram de ser tratadas como quando eram habitadas, causando a destruição da natureza e
incêndios catastróficos, que ocorrem pelas folhagens e galhos secos sobre o solo (camada
inflamável).
Portanto, além de causar incêndios catastróficos, por um lado, o êxodo rural
propiciado pelo progresso técnico criou nas propriedades camponesas um lugar de lazer e
permitiu uma produção agrícola acentuada com enormes máquinas. Por outro lado, criou um
afluxo de mão de obra na cidade que só fez aumentar o desemprego, além de uma produção
agrícola tão considerável, graças às máquinas e os produtos químicos utilizados, que não
podia ser mais vendida por um preço rentável, pois precisava cobrir a depreciação. Por fim,
criou uma “quebra” da sociedade rural, ao propiciar um capitalismo no campo com uma
concentração da propriedade rural. A propriedade rural, então, nunca estará “protegida”
contras as empresas industriais.
Devo colocar em pauta um outro aspecto discutido por Ellul, e que às vezes não
damos conta, que é o “desaparecimento” de produtos, que são substituídos por outros. Por
exemplo, os têxteis, que hoje em dia são compostos mais por materiais artificiais, como o
poliéster, além de outros como o algodão e a lã, do que antigamente, que era composto por
materiais mais duráveis, o linho e o cânhamo. Outro grande exemplo é a substituição sofrida
pelas garrafas de vidro, aquelas que normalmente armazenavam refrigerantes ou leite, e hoje
vemos em grande maioria sendo armazenados por garrafas PET (polietileno tereftalato) e por
caixas de leite longa vida, respectivamente.
O PET é um polímero termoplástico da família do poliéster que iniciou sua trajetória
justamente na indústria têxtil, apresentando como um excelente substituto às fibras de linho
55
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DO PET, 2012), como já foi citado.
Quanto às caixas de leite longa vida, apresentam em sua composição seis camadas, dentre elas
o papel, o polímero e o alumínio, cada uma com sua finalidade de proteger o produto, e para
serem reciclados, o processo exige uma demanda muito maior de energia e dinheiro. Por isso,
essa substituição de produtos causou uma maior poluição do meio ambiente, por justamente
ser mais caro de reciclá-los.
Vários produtos dos países de terceiro mundo, como minérios, açúcar e madeira
poderiam ser totalmente eliminados se os países de primeiro mundo desenvolvessem a
produção de matérias artificiais, e isso arruinaria a produção dos que mais precisam. Porém, é
possível um dia que se consiga parar com o progresso técnico? Acredito que seja pouco
provável que se consiga parar, pois também precisamos da técnica para a nossa sobrevivência,
por sempre ter nos proporcionado uma vida com maior conforto.
Segundo Ellul,
É evidente que a técnica aporta valores consideráveis, indiscutíveis.
Mas ela destrói outros dos quais é impossível dizer se são mais ou
menos importantes que as anteriores. Não podemos chegar a um
verdadeiro progresso (sem compensação), ou negá-lo, e menos ainda
quantifica-lo.” (ELLUL, 1988, p. 272) 4
Jacques Ellul também mostrou que o progresso técnico suscita problemas mais
difíceis que aqueles que ele resolve. Poluição, produção de novos elementos químicos, o
esgotamento incalculável dos recursos naturais, a temível ameaça de falta de água, florestas
desmatadas, o desperdício dos solos cultiváveis, etc. Esse é o resultado do crescimento
descontrolado das atividades produtivas e a aplicação das técnicas. São problemas tão
complexos que poderão um dia ser resolvidos? Ellul disse que para cada perigo ou
dificuldade, encontramos forçosamente a resposta técnica adequada, ou seja, que tudo pode
ser reduzido a um problema técnico. Porém, esses problemas ecológicos são tão mais
complexos do que qualquer um daqueles resolvidos nos séculos XIX e XX. Os governos
fazem o possível para negar o problema. E aqueles que realmente se importam, consideram
que o perigo é tão grande que é preciso tomar medidas imediatas.
QUESTÃO AMBIENTAL E SUA INFLUÊNCIA SOBRE AS EMPRESAS
4 Tradução livre de Débora Kommers Barrientos e Jorge Barrientos-Parra, das páginas 89 a 139 do livro Le bluff
tecnologique, publicado pela editora francesa Hachette em 1988. Cf. Ellul, 1988, p 89-139.
56
As sociedades, que foram fundadas no industrialismo, nasceram e se desenvolveram
despreocupadas com os problemas ambientais que causavam. Tudo era feito em nome do
progresso, do crescimento e do desenvolvimento econômico. Os questionamentos ambientais
não chegavam a perturbar as ações dos condutores destas sociedades, nem a desafiar esta
forma de organização social. Os comandantes da indústria e dos negócios não estavam
preparados para enfrentar o questionamento ambiental (ALMEIDA;GOMES, 2012).
No entanto, muitas empresas perceberam que enfrentar as questões ambientais é uma
estratégia para fortalecer suas posições de mercado por meio da redução de custos de
produção, do desenvolvimento de novos produtos, e da melhoria da imagem corporativa. As
questões ambientais tornaram-se, em algumas empresas, um estímulo para a inovação
tecnológica. Elas também se tornaram estímulo para o aprimoramento de técnicas de
gerenciamento de imagem, como bem afirmaram Almeida e Gomes (2012).
Umas das formas das organizações mostrarem respeito ao meio ambiente são por
meio dos rótulos verdes (selos verdes), que se tornaram um elo de comunicação entre o
fabricante e o consumidor, este cada vez mais consciente com as questões ecológicas,
tornando os atributos ambientais um dos diferenciadores na escolha de produtos.
Esses rótulos verdes visam dar informações ao consumidor a respeito do produto,
caracterizando-se por identificar os produtos que causam menos impacto ao meio ambiente
em relação aos seus similares. Porém essas informações nem sempre são verdadeiras quando
esses rótulos partem do próprio fabricante que procura demonstrar os aspectos ambientais
positivos do produto, buscando a conquista do consumidor.
Diversos países criaram seus próprios selos, passando a ser um diferencial
competitivo. Contudo, essa proliferação de rótulos ambientais gerou vários problemas, pois os
parâmetros eram pessoais. Essa situação levou a ISO 14000 a criar normas e critérios gerais
para a rotulagem ambiental. Esta que de modo geral, é campo de estudos do Subcomitê 03 da
ISO (International Organization for Standardization), que no Brasil é representada pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), de acordo com Biazin e Godoy (2000).
Por outro lado, há empresas que ignoram essas questões ambientais, talvez por
acreditarem que um investimento numa tecnologia ambientalmente menos danosa não traga
benefícios financeiros a elas. E um grande exemplo do resultado do progresso técnico, que
não respeita os limites ambientais é a “Ilha de Lixo” que se formou no Oceano Pacífico. São
aproximadamente quatro milhões de toneladas de garrafas e embalagens, que foram
empurradas para lá pelas correntes marítimas e formam um amontoado próximo de 700 mil
57
km² (duas vezes o estado de São Paulo). Desse lixo, 80% tem origem dos continentes, e 20%
são jogados por navios. (VERLI, 2010)
CONCLUSÃO
Para o nosso tempo não podemos pensar no conforto sem pensarmos na ordem
técnica, um conforto ligado à vida material e no aperfeiçoamento das máquinas. Antigamente
o homem sequer imaginava que pudesse sofrer qualquer influência da técnica. (ELLUL,
1968) Com um autocrescimento, esta chegou atualmente a um patamar em que progride quase
sem intervenção do homem.
Porém, este progresso da técnica, como foi discutido ao longo do artigo, ao mesmo
tempo em que trouxe consequências boas ao homem, por outro lado trouxe consequências
catastróficas ao meio ambiente. Por isso que a técnica é considerada ambivalente.
É sempre importante estabelecer a razoabilidade na utilização dos recursos naturais,
não bastando à vontade de utilizar esses bens ou a possibilidade tecnológica de explorá-los,
pois o homem não deve ser a única preocupação do desenvolvimento, mas também a própria
natureza, já que, para preservar a vida humana, será preciso conservar a vida dos animais e
das plantas, será necessário, assim, haver uma perfeita harmonia com a natureza, segundo
Machado (2008).
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA Jr, Antônio Ribeiro; GOMES, Helena L. R. M. Gestão Ambiental e Interesses
Corporativos: Imagem ambiental ou novas relações com o ambiente? Ambiente &
Sociedade, São Paulo, v. XV, n. 1, p. 157-177, jan.-mai. 2012.
BARRIENTOS, D. K.; BARRIENTOS-PARRA, J. A Ambivalência das Técnicas. In:
SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE O PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL, 1., 2008,
Piracicaba. Anais...Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista, 2009, p. 259-294.
BIAZIN, C. C. O selo verde: uma nova exigência internacional para as organizações.
Maringá, 2000. Disponível em <
58
http://xa.yimg.com/kq/groups/15828919/1822358654/name/ENEGEP2000_E0131.pdf >.
Acesso em 5 de set. 2012.
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Trad. Roland Corbisier. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1968.
MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
VERLI, L. A Ilha de Lixo. Superinteressante, São Paulo: Abril, nº 284, nov. 2010.
59
A MODERNIZAÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO: UM PROCESSO
DE TECNIFICAÇÃO DOS MEIOS E A REDEFINIÇÃO DOS FINS
Flávia Silvério Rosa da Silva1
Jorge Barrientos-Parra2
Resumo
O objetivo deste artigo é refletir como a técnica vem atuando na modernização da
Justiça do Trabalho no Brasil nos últimos anos. O artigo pretende analisar o Processo Judicial
Eletrônico (PJe-JT) e a Conciliação, duas das medidas adotadas para modernizar a Justiça do
Trabalho. Para tanto, buscou-se na teoria de Jacques Ellul elementos que ajudassem a
compreender o desenvolvimento destes fenômenos. Partindo do pressuposto de que a
sociedade é técnica, verifica-se que também as suas instituições são técnicas. Assim,
pretende-se verificar de que forma as características da técnica apresentadas por Ellul
(automatismo da escolha técnica, autocrescimento, unicidade, universalismo e autonomia)
estão presentes nas mudanças operadas nos últimos anos pela Justiça do Trabalho. Esta
análise dará uma visão do formato que esta instituição vem adquirindo e qual o seu papel
diante da civilização técnica.
Palavras-chave: Modernização da Justiça do Trabalho; Processo Judicial Eletrônico;
Conciliação; Civilização Técnica.
Introdução
Este artigo está dividido em cinco seções: a primeira seção traz algumas informações
a respeito do processo de modernização pelo qual a Justiça do Trabalho vem passando. A
segunda e a terceira seção refletem sobre o processo de modernização a partir das
características da técnica propostas por Jacques Ellul: automatismo da escolha técnica,
autocrescimento, unicidade, universalismo e autonomia. A quarta seção apresenta o papel que
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara). 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
60
a Justiça do Trabalho assume diante da civilização técnica. Por fim, a quinta seção traz
algumas considerações finais a respeito dos ganhos obtidos com a celeridade.
A modernização da Justiça do Trabalho
A Justiça do Trabalho, um dos ramos da Justiça Federal da União, é regulada pelo
artigo 114 da Constituição Federal. A ela compete julgar conflitos individuais e coletivos
entre trabalhadores e patrões, incluindo aqueles que envolvam entes de direito público externo
e a administração pública direta e indireta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios. Ela é composta por juízes trabalhistas que atuam na primeira instância e nos
tribunais regionais do Trabalho (TRT), e por ministros que atuam no Tribunal Superior do
Trabalho (TST).3
Quando uma ação é ajuizada na primeira instância, ela é submetida a um processo
judicial sob a presidência de um juiz de trabalho e passará por uma série de procedimentos
que demandam certo tempo. Em virtude do excessivo número de processos, este tempo tem se
estendido de forma a tornar a Justiça cada vez mais lenta, gerando uma sobrecarga e
consequentemente, provocando uma crise de desempenho e a perda de credibilidade.
Em resposta a esta situação, desde os anos 2000 a Justiça do Trabalho vem adotando
práticas com vistas à sua modernização. É preciso considerar que esta instituição segue um
modelo burocrático, hierarquizado (primeira instância – composta por Varas de Trabalho
(VT); segunda instância – composta pelos TRTs e terceira instância – composta pelo TST e se
necessário, do STF) e é também altamente normatizado.
Com vistas à modernização, gradualmente foram adotadas estratégias, tais como o
planejamento estratégico administrativo e financeiro, bem como a informatização dos
processos burocráticos. Em 2006, foi aprovada a Lei n. 11.419 que dispõe da informatização
dos processos judiciais. Desde então, a Justiça do Trabalho vem reunindo esforços para a
criação de um sistema integrado para lidar com os processos judiciais eletronicamente, o
chamado Processo Judicial Eletrônico (PJE-JT).
O PJE é um sistema nacional de processo sem papel, que tramita exclusivamente
pela internet. Inicialmente, foi desenvolvido para atender às necessidades da Justiça Federal,
no Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região (Pernambuco - PE). A decisão de adotá-lo
como modelo para todo o Judiciário partiu do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que vem
3 Definição obtida no site do STF
61
buscando a padronização dos mais de 40 tipos de processos eletrônicos espalhados pelo país.
O sistema PJE – JT foi elaborado pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e o
Tribunal Superior do Trabalho (TST) em parceria com os 24 tribunais regionais do trabalho. 4
Em 05 de dezembro de 2011, foi inaugurada a Vara Trabalhista de Navegantes, em
Santa Catarina. Ela foi a primeira vara do Brasil a trabalhar com o PJE - JT. A partir daí, o
sistema foi se espalhando e a meta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é que até o final de
2012 pelo menos 10% das varas circunscritas em cada um dos 24 Tribunais Regionais do
Trabalho sejam atingidas.
No I Encontro Nacional de PJE, ocorrido no dia 29 de maio de 2012, o presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o ministro Ayres
Britto, apresentou as vantagens e os efeitos da sua aplicação no Judiciário, tais como ganhos
ao meio ambiente (com redução de papel), economia de gastos, maior celeridade na
tramitação de processos e maior integração entre os tribunais, dentre vários outros.5
Além do PJE, outra forma que vem sendo adotada para modernizar a Justiça são as
chamadas Semanas Nacionais de Conciliação. Trata-se de campanha, realizada anualmente,
que envolve todos os tribunais brasileiros, os quais selecionam os processos que tenham
possibilidade de acordo e intimam as partes envolvidas para solucionarem o conflito. A
medida faz parte da meta de reduzir o grande estoque de processos na justiça brasileira.
De acordo com o CNJ, em 2011 os resultados da Semana Nacional de Conciliação no
âmbito da Justiça do Trabalho mostram que foram realizados 32.616 acordos, o que permitiu
a arrecadação da quantia de R$ 616.999.698, 46.
A adoção destas duas práticas na modernização da justiça do trabalho reforça o
princípio de celeridade processual que está presente na constituição: “a todos, no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação” ( Art. 5º, inciso LXXVIII). Isso ocorre porque tanto
o processo judicial eletrônico quanto a conciliação são ferramentas que racionalizam os
procedimentos gerando uma economia de tempo. Para ilustrar esta afirmação, cabe citar que
em 2007 o tempo médio para julgar um processo nos TRTs era de 132 dias, já em 2011, esse
número caiu para 118 dias.6
4 Informação obtida do site do TRT-ES
5 Reportagem veiculada no site do CNJ.
6 VASCONCELOS, M. Justiça do trabalho é a mais célere. Consultor Jurídico: 07 de agosto de 2012.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-ago-07/justica-trabalhista-celere-anuario-justica-trabalho.
Acesso em: 02/10/2012.
62
Um breve olhar sobre a sociedade atual, que é uma sociedade técnica, permite
verificar que de forma geral, a demanda por respostas e soluções rápidas é uma necessidade
que está influenciando o novo formato assumido pelas instituições. Contudo, é preciso
considerar que a justiça é um processo que demanda tempo e esforço. Os mecanismos
adotados para modernizar a Justiça do Trabalho cumprem com sucesso a sua missão, ao
oferecer um direito processual baseado na eficiência e na produtividade. No entanto, é
necessária uma reflexão no sentido de apurar quais os efeitos e as consequências que a adoção
destes procedimentos provoca voluntária e involuntariamente. Tendo em vista a atual fase em
que se encontra a Justiça do Trabalho no Brasil, a próxima seção é uma tentativa de
compreender este fenômeno da modernização através da teoria proposta por Jacques Ellul.
A técnica como meio de padronização dos procedimentos e dos
comportamentos.
A análise do cenário no qual está inserida a Justiça do Trabalho bem como a reflexão
em torno do processo de modernização que esta instituição vem passando nos últimos anos,
permite afirmar que na realidade, esta Justiça vem sofrendo um processo muito forte de
tecnificação. Os parágrafos a seguir procuram identificar de que maneira a Justiça do
Trabalho vem sendo tecnificada.
Em primeiro lugar, Ellul (1968) aponta que o direito é uma ciência dominada pela
técnica: a técnica jurídica. Esta técnica está nas mãos do Estado e se apresenta de forma
dissociada em dois elementos: o elemento judiciário (correspondente ao poder judiciário) e o
elemento jurídico (correspondente ao poder legislativo). O poder judiciário não está mais
autorizado a criar o direito, mas apenas de aplicá-lo, usando o conceito em abstrato ao caso
concreto.
Para constatar o que foi dito por Ellul, é sabido que a Justiça do Trabalho é regida
pelo direito do trabalho, e utiliza principalmente a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
O papel das Varas de Trabalho é analisar as ações individuais trabalhistas à luz das regras
contidas na CLT. Basicamente, trata-se de verificar se o caso se enquadra nas regras. A partir
daí, lança-se a sentença. Esta é a chamada fase do conhecimento. Uma vez que o processo
transita em julgado, inicia-se a fase de liquidação, ou seja, apuram-se os cálculos de acordo
com o que foi determinado na sentença. Em seguida, assim que o cálculo é homologado,
63
inicia-se a execução, com o objetivo de transformar bens ou títulos em numerário e assim
pagar o exequente e garantir que a sentença seja cumprida.
O processo judicial eletrônico é uma tentativa de otimizar este processo trabalhista
(composto basicamente pelas fases de conhecimento, liquidação e execução), transformando o
processo que antes era feito em papel, e que passa agora a tramitar em meio eletrônico. Neste
ponto, cabe a seguinte pergunta: isto realmente significa um avanço?
A resposta à pergunta acima é que não necessariamente. De fato, a proposta de
modernização dos procedimentos por meio da informatização pode levar a transferência dos
problemas encontrados nas operações diárias para o meio digital. Ellul (1968) afirma que, a
técnica ao desenvolver-se, apresenta problemas inicialmente técnicos, os quais, por isso
mesmo, só podem ser resolvidos pela técnica. Uma vez que a Justiça do Trabalho adote novas
ferramentas para lidar com os procedimentos administrativos, deve-se ter a consciência de que
surgirão novos problemas. Um exemplo concreto é um fato real vivenciado pela autora deste
artigo. No primeiro semestre de 2012, quando fazia estágio na 3ª Vara de Trabalho de
Araraquara, em que a maioria dos procedimentos já são realizados por meio de um sistema
informatizado, um raio atingiu um poste de luz que por sua vez impactou no funcionamento
do transformador do fórum. Com isso, a maioria dos computadores, bem como o servidor de
internet foram danificados. No dia seguinte, não foi possível trabalhar. A única solução foi
aguardar a chegada dos técnicos em informática. Isso gerou um atraso no andamento dos
processos.
Diante da situação acima, pode-se questionar o porquê de a informática ter sido
escolhida como uma das ferramentas de transformação da realidade. Uma das características
da técnica apontadas por Ellul(1968) é o chamado automatismo técnico. Para este autor, a
técnica agora é que opera a escolha, sem discussão possível, entre os meios a utilizar. O
homem não é mais, de modo algum, o agente de escolha. Não se diga que o homem é o agente
do progresso técnico, e que ainda escolhe entre as técnicas possíveis. Na realidade, não: é um
aparelho registrador dos efeitos, dos resultados obtidos por diversas técnicas, e não se escolhe
por motivos complexos e de certo modo humanos; decide apenas em função do que apresenta
o máximo de eficiência. Não é mais uma escolha: qualquer máquina pode efetuar a mesma
operação. E se homem ainda parece fazer uma escolha, abandonando este ou aquele método,
embora excelente de determinado ponto de vista, é unicamente porque aprofunda a análise
dos resultados e verifica que, de outros pontos de vistas esse método é mesmo eficiente.
64
Portanto, a escolha por determinados métodos se dá pelo grau máximo de eficiência
que pode ser alcançado. Em 2002, o Tribunal Regional de São Paulo era considerado o
tribunal com a pior prestação de serviços da Justiça. Para reverter esta situação, foi contratada
uma consultoria da FGV Projetos.7 A proposta da consultoria para a melhoria dos
procedimentos baseava-se na aplicação de raciocínio lógico, pela racionalização de tarefas.
Ora, o consultor pode ser considerado um “aparelho registrador” dos efeitos, dos resultados
obtidos por diversas técnicas. A profunda análise dos resultados levou a consultoria a concluir
que de outros pontos de vista, aquele método era o mais eficiente. Por isso mesmo, ele foi
adotado pelo Tribunal.
O resultado positivo do trabalho realizado pelo TRT de São Paulo despertou na
instância superior federal a necessidade de elaborar um sistema unificado para todo o Brasil.
Neste ponto, verifica-se outra característica da técnica apontada por Ellul: o universalismo,
pois ela se impõe como a linguagem compreendida por todos os homens. Ou seja, as
instâncias superiores do judiciário verificaram que era preciso que todo o sistema falasse a
mesma língua. Com efeito, o PJE-JT trata-se de um esforço conjunto dos 24 TRTs. Cada
tribunal selecionou alguns servidores para compor um grupo a nível nacional para discutir a
elaboração e implementação do sistema unificado.
Este grupo formado por servidores de todas as partes do país era extremamente
heterogêneo e tinha a missão de construir algo que fosse comum a todos. Logo, havia a
expectativa de que esta heterogeneidade expressa nas mais diversas formas de pensamento e
de culturas regionais fosse um fator de discórdia e um entrave à ação da técnica. No entanto,
esta ação refletiu na verdade a eficiência da técnica, no sentido de que esta é um meio de
apreensão da realidade, de ação sobre o mundo, que permite precisamente desprezar toda
diferença individual, toda subjetividade. É rigorosamente objetiva. Apaga as opiniões
pessoais, os modos de expressão particulares ou mesmo coletivos. Isso explica o fato de que
mesmo sendo tão heterogêneo, este grupo de servidores foram capazes de trabalhar juntos a
fim alcançar os objetivos propostos. O objetivo em comum criou um laço entre eles. Os que
agem todos de acordo com a mesma técnica estão ligados uns aos outros por uma fraternidade
não formulada. Eles acabam tendo a mesma atitude em face da realidade. Não precisam falar-
se, compreender-se em sua verdade ou personalidade, pois necessariamente as divergências de
opinião e de personalidade são suprimidas pela técnica. Esses homens e mulheres trabalham
7 GONÇALVES, J. E. L. Os desafios de modernizar a justiça. Revista Getúlio, março de 2008. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7077>. Acesso em: 10 de setembro de 2012.
65
em equipe; mas, para isso, não precisam conhecer-se e compreender-se. Precisam apenas
conhecer bem a técnica e saber antecipadamente o que fará o vizinho, companheiro de equipe.
(Ellul, 1968)
O esforço deste grupo resultou na criação do PJE - JT, que atualmente está na fase de
implementação, e desde 2011vem sendo instalado nas três instâncias da Justiça do Trabalho,
de forma simultânea em todo o país.
A imposição da técnica diante da resistência humana e ambivalência em sua
utilização
Dentre os problemas apontados como um entrave às mudanças que vinham sendo
operadas no âmbito da Justiça do Trabalho é importante destacar que houve e ainda há uma
resistência muito grande por parte dos servidores e dos usuários em implantar o PJE - JT. O
consultor José Ernesto de Lima Gonçalves, coordenador da FGV Projetos, que atuou na
reforma do TRT de São Paulo no ano de 2002, afirmou ter encontrado muita resistência e
complicação em alguns dos órgãos nos quais trabalhou. Em relação ao alto escalão, eles viam
as mudanças como uma ameaça que iria diminuir-lhes o poder. Já o baixo escalão se via
ameaçado por que estavam acostumados com a rotina. O consultor explicou que à medida que
o trabalho foi sendo realizado, os servidores foram entendendo, prestando atenção no
funcionamento e perceberam o quanto estavam aproveitando. E a partir daí passaram a
defender as mudanças.
O fato descrito acima é prova de que o ser humano não tem escolha diante da técnica.
Ela se impõe de tal forma a ponto de eliminar automaticamente toda atividade não técnica, ou
então a transforma em atividade técnica. As pessoas que são contrárias ou que resistem à
técnica são facilmente por ela dominadas. Nada mais pode entrar em competição com o meio
técnico. Nem o homem nem o grupo pode resolver seguir qualquer outro caminho além do
caminho técnico - estão com efeito colocados diante do seguinte dilema muito simples: ou
bem decidem salvaguardar sua liberdade de escolha, decidem usar o meio tradicional ou
pessoal, moral ou empírico, e entram então em concorrência com um poder contra o qual não
tem defesa eficaz; seus meios não são eficazes, serão esmagados ou eliminados, e eles
próprios serão vencidos, ou então resolvem aceitar a necessidade técnica; nessa hipótese,
vencerão, submetendo-se, porém, de modo irremediável, à escravidão técnica. (ELLUL,
1968)
66
A melhor técnica é aquela mais sutil. E uma das formas encontradas para aperfeiçoar
o sistema do PJE-JT são os próprios usuários que ao utilizá-lo podem ajudar a melhorá-lo por
meio da abertura de chamadas à central técnica. Ellul (1968) aponta que isso tem relação com
a característica da técnica denominada de autocrescimento, pois se trata da soma dos
pormenores aperfeiçoando o conjunto, é essa pesquisa anônima, coletiva, que faz avançar as
técnicas, quase em toda a parte, de um mesmo movimento. E dessa forma as pessoas
participam da construção da técnica, e é esta interação que fará com que elas passem de uma
situação de resistência para uma situação de defesa da técnica.
Neste ponto, reflete-se que a modernização da Justiça do Trabalho por meio da
informatização requer uma mudança de cultura organizacional. A técnica não só vence a
resistência do ser humano como modifica toda a sua forma de trabalhar. Do mesmo modo, a
mecanização nos escritórios, do trabalho administrativo, suscita o problema de uma
organização necessariamente diferente, pois não se trata apenas de substituir homens por
máquinas ou de fazer mais depressa o mesmo trabalho de antes, mas de efetuar trabalhos de
novo tipo, que devem ser integrados em uma nova organização. (ELLUL, 1968)
Obrigatoriamente, esta nova organização vai demandar que o ser humano assuma
uma postura distinta. O tipo de profissional demandado por esta nova realidade pode ser
qualquer pessoa, desde que, para desempenhar as tarefas que lhe foram incumbidas, ela seja
adestrada. Para realizar este tipo de trabalho, as qualidades que a técnica requer para evoluir
são precisamente qualidades adquiridas, de ordem técnica e não de uma inteligência
particular. Logo, o sucesso da “modernização” da Justiça do Trabalho depende do
treinamento que é dado aos servidores e usuários do sistema. Nesse sentido, para acelerar a
implantação do PJE-JT, o ministro João Orestes Dalazen, presidente do TST e do CSJT
conclamou os 12 Tribunais que já implantaram o sistema a auxiliarem os demais tribunais que
ainda não o tinham feito. Cada tribunal “padrinho” prestaria auxílio principalmente na área
técnica. 8
Outra característica importante da técnica e que é apontada por Ellul refere-se à sua
ambivalência. A ambivalência da técnica permite a interpretação e análise dos benefícios do
PJE - JT. Por ocasião do evento Rio + 20, a Justiça do Trabalho montou um estande na cidade
do Rio de Janeiro para expor seus projetos e atividades. Neste evento, o ministro Dalazen
discursou sobre o Processo Judicial Eletrônico na Justiça do Trabalho e destacou as vantagens
obtidas com este projeto.
8 Notícia extraída do site da CSJT.
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O primeiro benefício refere-se ao meio ambiente: para tornar digitais todos os
processos judiciais haverá uma economia anual equivalente a mais de duas mil toneladas de
papel, 200 milhões de litros de água e 10 milhões de kilowatts de energia elétrica. O segundo
benefício envolve as questões administrativas: além de acelerar o andamento processual, o
Processo Judicial Eletrônico atua diretamente na redução de gastos públicos, ao possibilitar
um enxugamento nos custos da atividade fim do Judiciário; a diminuição de despesas em
material de expediente, pessoal, mobiliário, prédios para acomodação dos processos que
tramitam em autos físicos, arquivos e transporte. O terceiro benefício refere-se ao ganho dos
advogados e das partes em acessibilidade e transparência, já que os processos estarão
disponíveis on line. E o quarto benefício é que a extinção dos autos em papel implicará na
redução de emissão de gás carbônico despendido na produção e uso de equipamentos, como
impressoras.
Diante destes efeitos positivos, cabe lembrar que o homem jamais pode prever a
totalidade das consequências de uma ação técnica. A história mostra que toda aplicação
técnica, em suas origens, apresenta efeitos (imprevisíveis e secundários) muito mais
desastrosos do que a situação anterior ao lado dos efeitos previstos, esperados, que são válidos
e positivos. A todo o momento, está sendo anunciado que a informatização é uma das
estratégias mais eficazes para se modernizar. Pois bem, também é preciso considerar os
efeitos indesejáveis que o PJE - JT possa vir a provocar.
Um exemplo de efeito indesejável é a questão da segurança da informação e a
violação da privacidade. A proposta é de que os processos judiciais estejam disponíveis na
rede mundial de computadores, de tal forma que só as partes e o advogado possam acessá-lo.
Atualmente, o site do TRT de Campinas permite a consulta do andamento dos processos a
qualquer pessoa. Ele disponibiliza os registros da tramitação processual, os despachos, bem
como atas de audiências realizadas.
Assim à medida que os bancos de dados se aperfeiçoam e se integram, o risco de
violação da privacidade é crescente na sociedade técnica. Podemos nos perguntar: como
garantir os direitos da pessoa humana diante do sistema técnico no qual nos achamos
inseridos? 9 Ora, em junho de 2011, hackers invadiram os sites da Presidência da República,
do Portal Brasil, da Receita Federal, da Petrobras, do Ministério do Esporte, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Cultura. O governo brasileiro
9 PARRA, J.B. A violação dos direitos fundamentais na sociedade técnica. Revista de Informação Legislativa.
Brasília: a. 48, n.189 jan/mar 2011.
68
afirma que os bancos de dados contendo as informações não foram afetados. Mesmo assim, o
episódio mostra a fragilidade deste tipo de ferramenta. E a resposta a este tipo de problema
técnico, é mais técnica: técnica de informática e técnica jurídica. 10
Outra resposta possível e razoável para este problema deve partir dos operadores de
direito, que devem tentar uma resistência libertária perante o sistema, desenvolvendo um
controle democrático dos bancos de dados, sobretudo daqueles impostos pelo Estado (...). Por
outro lado, é necessário utilizar o direito não como mera técnica de controle a serviço do
Estado e do capital, mas como último obstáculo para evitar que a técnica informática – sinal
do avassalador progresso do sistema técnico imponha-se ao preço da liberdade e da violação
do direito de intimidade das pessoas. (PARRA, 2011).
O PJE-JT também prevê a substituição do papel pelo digital. Essa substituição deve
considerar que o uso de equipamentos eletrônicos gera o lixo eletrônico. Para se ter uma ideia,
do total de lixo produzido na cidade de São Paulo, 42% correspondem a produtos de
informática. 11
Portanto, o fenômeno técnico não pode ser dissociado, de modo a permitir
conservar o que é bom e evitar o que é mal. Dessa forma, a técnica apresenta a característica
da unicidade, pois há uma “massa” que a torna indivisível e, para mostrá-la, tomamos apenas
os exemplos mais simples, e, portanto, os mais discutíveis. (ELLUL, 1968)
A função assumida pela Justiça do Trabalho a partir de sua tecnificação
A principal crítica que pode ser feita a esta modernização empreendida pela Justiça
do Trabalho por meio da informatização, é a de que ela não ataca o principal problema desta
instituição: ela existe para fazer com que as regras sejam cumpridas, porém não
necessariamente isto implica que ela tenha que fazer a Justiça. Neste ponto Ellul (1968) é
enfático: o elemento judiciário é encarregado das questões práticas, mas não de fazer o
direito. Pode tornar-se então minunciosamente técnico, pois a questão de justiça não mais lhe
diz respeito; não precisa ser juiz das regras que lhe dão para aplicar. Ou seja, fazer justiça
pressupõe incerteza e imprevisibilidade, elementos que a técnica não suporta.
De acordo com uma reportagem do Jornal o Estado de São Paulo, muitos juristas
apontam que o problema está na desatualização da CLT, que foi editada em 1.º de maio de
1943 pela ditadura varguista, quando o Brasil dava os primeiros passos rumo à
10 Notícia obtida no site da BBC Brasil.
11 Dados obtidos no site da Infomoney
69
industrialização. Alegam que esta lei não atende as necessidades contemporâneas, visto que a
economia se diversificou e a tecnologia mudou as formas de produção, levando os diferentes
ramos de atividade a exigir leis especiais, conforme suas respectivas necessidades. Por causa
das diferenças de doutrina e das decisões contraditórias decorrentes, só 31% das sentenças da
Justiça do Trabalho são cumpridas quando chegam à fase da execução. As demais, apesar de
terem sido encerradas no mérito, acabam não sendo executadas - segundo o TST, há ações já
transitadas em julgado que se arrastam há mais de dez anos. E isso se deve principalmente
devido a morosidade das execuções.
Assim, questões como o excesso de processos trabalhistas, que não são céleres e nem
eficazes são sintomas de um problema estrutural. A modernização proposta atinge apenas os
sintomas, e não tem força para agir na raiz de suas causas.
Com relação às técnicas de conciliação, trata-se de tentar fazer com que as partes
litigantes cheguem a um acordo. Na Vara de Trabalho a tentativa de acordo é estimulada em
todas as fases do processo. Quando a conciliação se dá na fase de liquidação, significa que a
sentença já foi proferida e os cálculos já foram apresentados pelas partes. Neste momento, o
reclamante e o reclamado são postos frente-a-frente para que negociem os valores a serem
pagos. Assim, a conciliação traz a sensação de que é possível negociar, de que é possível fazer
uma escolha, pois as partes podem aceitar ou não o acordo proposto. Para explicar este
fenômeno é preciso ter em mente a autonomia da técnica: Ellul (1968) aponta que a técnica
mais perfeita é aquela que mais se adapta e consequentemente a mais flexível; a verdadeira
técnica saberá preservar uma aparência de liberdade, de escolha e de individualismo do
homem- tudo isso calculado de tal modo que se trata apenas de uma aparência integrada em
uma realidade cifrada.
Portanto, a Justiça do Trabalho faz a mediação dos conflitos instaurados entre
empregadores e empregados. Pois bem, se esta instituição não mais tem a função de criar o
direito, tampouco autonomia para fazer a justiça, que papel lhe cabe então? Pode-se dizer que
desde sua gênese, ela surge como uma entidade responsável por instalar e manter a ordem.
Ellul (1968) reflete que quanto mais precisa a técnica jurídica se torna, mais tende o direito a
assegurar a ordem (que é, aliás, um dos grandes objetivos do Estado). Neste sentido, para
manter a ordem, “a injustiça é preferível à desordem”.
Sendo assim é possível afirmar que a Justiça do trabalho vem sofrendo um processo
de tecnificação com vistas a se tornar uma instituição mais eficiente e capaz de produzir,
assegurar e manter a ordem. Este papel é fundamental e está de acordo com o conceito de
70
civilização técnica proposto por Ellul (1968): isso significa que nossa civilização é construída
pela técnica (faz parte da civilização unicamente o que é objeto da técnica), que é construída
para a técnica (tudo o que está nessa civilização deve servir a um fim técnico), que é
exclusivamente técnica (exclui tudo o que não é ou o reduz a sua forma técnica). Assim
também as mudanças operadas na instituição Justiça do Trabalho são conduzidas pela técnica
e para técnica, e não mais pelo ser humano e para a Justiça.
Logo, as reflexões trazidas ao longo deste artigo permitem compreender quais os
rumos que esta instituição Justiça do Trabalho tomará e qual o modelo projetado para os
próximos anos, sem, contudo, esgotar este assunto.
Considerações finais
Após a reflexão sobre as características da técnica e de que forma elas estão
presentes no processo de modernização da Justiça do trabalho, é preciso considerar de fato,
que além da eficiência, a celeridade também está sendo alcançada. O processo judicial
eletrônico e a conciliação têm contribuído para que a Justiça do Trabalho ofereça no menor
tempo possível uma solução plausível para os litígios trabalhistas.
Na sociedade técnica a pressa é um elemento que permeia todo o cotidiano. A busca
por rapidez é uma obrigação para os indivíduos, cuja administração do tempo escasso é um
desafio. Pois bem, diante da economia de tempo obtida com a tecnificação da justiça do
trabalho e de outras instituições análogas, cabe uma série de questionamentos: qual o sentido
desta rapidez? Qual o sentido de tanta agilidade? Como tem sido utilizado o tempo ganho por
meio da economia dos processos? Estaria o homem tirando proveito para o descanso ou para o
lazer, ou este tempo tem sido empregado em mais trabalho?
É importante refletir que as mudanças na Justiça do trabalho são decorrentes de
pressões de uma sociedade impaciente, que deseja uma resposta rápida, não importando qual
seja. No âmbito trabalhista, preza-se uma pauta de audiências que seja produtiva e que dê
conta de muitos processos, em detrimento da qualidade das sentenças. A celeridade, por
vezes, acaba por exigir do ser humano um ritmo de trabalho mais intenso, ao ponto de haver
reflexos na saúde dos indivíduos. Doenças por esforço repetitivo tem se tornado cada vez
mais comum.
Um outro aspecto a ser considerado é que as mudanças introduzidas na Justiça do
trabalho acabam por reforçar também a sensação de segurança jurídica. Os resultados
71
positivos das medidas adotadas levam a sociedade a renovar a sua crença nesta instituição, de
tal forma que a introdução de novas práticas tende a se tornar um padrão a ser seguido tanto
pelos demais ramos do judiciário quanto por outras esferas do Estado.
Portanto, pode-se concluir que a tecnificação da Justiça do trabalho é tida como um
processo necessário e intrínseco ao bom funcionamento da sociedade técnica, a medida que
reproduz os novos valores prezados por esta sociedade: celeridade, eficiência, eficácia e
efetividade. No entanto, ao mesmo tempo em que estes valores são necessários, eles também
devem ser questionados, pois ao contrário do que a técnica prega, eles não são absolutos e não
consideram o ser humano em sua totalidade, e não permitem que ele se desenvolva de forma
plena.
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ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968
72
FERRARI, I. História do trabalho, do direito do trabalho e da justiça do trabalho. 2ª edição.
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VT de Navegantes (SC). TRT-ES. O4 de setembro de 2012. Disponível em:
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TRT INFORMATIVO. Informativo do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Campinas, junho/agosto de 2011-ano 25- n. 235
73
DESAFIOS DO SÉCULO XXI: A TÉCNICA EM JACQUES ELLUL, O
DIREITO À PRIVACIDADE E A QUESTÃO DO TERRORISMO
Natália Zampieri1
Jorge Barrientos-Parra2
Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma conexão entre as temáticas da
técnica, segundo Jacques Ellul, e do direito à privacidade, vinculado à noção de controle das
informações, quando a violação do direito à privacidade se dá pela justificativa da proteção ao
terrorismo. Na primeira parte do estudo, seguirão considerações gerais sobre o fenômeno do
terrorismo. Consta na segunda parte do estudo considerações sobre o pensamento de Jacques
Ellul e, de uma forma específica, sobre as características da técnica consideradas pelo autor. A
terceira parte pretende demonstrar a relevância da interferência da técnica no direito à
privacidade, quando existe sobre esse direito a necessidade de certa relativização em nome da
proteção ao terrorismo.
Palavras-chave: terrorismo, Jacques Ellul, técnica, ambivalência, direito à
privacidade, controle da informação.
Introdução
Nestas breves considerações, a temática do terrorismo foi escolhida para ilustrar e
contextualizar modernamente a interferência entre a técnica e os direitos fundamentais.
O acontecimento de 11 de Setembro de 2001 marcou uma nova etapa em diversos
aspectos, inclusive, constitucionais. A relação entre soberania, direitos fundamentais,
autoridade e liberdade sofreu transformações e o fato foi um dos motivos desencadeadores da
possibilidade da realização de várias violações de direitos em nome de uma suposta segurança
nacional/internacional, cuja finalidade é a adoção de medidas preventivas contra atos
considerados terroristas.
1 Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Membro do Grupo de Estudos sobre Jacques
Ellul (Diretório CNPq). 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
74
Apesar das medidas de combate ao terrorismo deverem ser tomadas em respeito aos
direitos e liberdades, e mesmo assim sendo feitas, a prática pode demonstrar um fenômeno no
mínimo interessante de ser exposto: há, no fundo, um paradoxo entre a proteção de direitos
fundamentais por meio da violação de direitos fundamentais.
Pretender-se-á, neste estudo, contextualizar o pensamento de Jacques Ellul na
questão do direito à privacidade, que tem sofrido atualmente algumas mudanças de
paradigma. Na primeira parte do presente estudo, será feita uma breve exposição a respeito do
terrorismo, tema esse que serve de base exemplificativa da prática do uso da técnica e do
contraponto do direito à privacidade. Em um segundo momento, pretende-se expor
brevemente acerca das características da técnica segundo o entendimento de Jacques Ellul. Na
terceira e última parte do trabalho, pretender-se-á conjugar os argumentos a fim de
demonstrar, em linhas gerais, que atualmente vivemos em um período de transição e que
carece aos estudiosos do direito o estímulo no desenvolvimento e contextualização do próprio
direito em simetria à esse período de transição, principalmente quando estamos diante de um
direito constitucional fundamental, qual seja, o direito à privacidade e a relevância do
questionamento a respeito do tratamento dos dados pessoais.
1. Contextualização da abordagem: o paradigma do terrorismo
Segundo Clausewitz, a guerra é uma tendência a manter os extremos e o terrorismo
sofre a mesma evolução, compondo-se também por um fator de natureza psicológica, que
reflete o medo das vítimas potenciais dos atos terroristas.3 As motivações terroristas podem
ser políticas, sociais, religiosas, etnicas ou raciais.4
De acordo com Habermas, o terrorismo, relativamente ao âmbito político e à
concretização dos seus objetivos, é possível verificar a diferenciação de pelo menos três tipos
de terrorismo: uma guerrilha indiscriminada, uma guerrilha paramilitar e o terrorismo global.
O primeiro tipo tem como exemplo o terrorismo palestino, em que o assassinato é muitas
vezes executado por um suicida. O modelo de guerrilha paramilitar tem como exemplo os
movimentos de libertação nacionais e é retrospectivamente legitimado pela formação do
3 BRIBOSIA, Emmanuelle; WEYEMBERGH, Anne. Lutte contre le terrorisme et droits fondamentaux.
Bruxelles: Nemesis Bruylant, 2002, p. 11. 4 Idem, p. 13.
75
Estado. O terceiro, o terrorismo global, não parece ter objetivos politicamente realistas que
não os de exploração da vulnerabilidade de sistemas complexos.5
Das diversas correntes existentes sobre o terrorismo é possível observar alguns
elementos comuns: a violência como meio e o terror como resultado.6 Compete ao Estado a
prevenção dos atos que eventualmente possam pôr em causa a ordem pública, de forma a
atingir a dignidade das pessoas ou até mesmo violar valores constitucionais. É ele quem
possui legitimidade para utilizar dos meios adequados e necessários à prevenção dos atos.7 8
Sobre o conceito de terrorismo, interessante analisar a opinião do governo norte-
americano sobre o tema – apesar de não restar definido propriamente o que seja „terrorismo‟,
mas sim aquilo que se designa uma atividade terrorista: trata-se de qualquer atividade que seja
ilegal ao abrigo das leis do local onde é cometida e que envolva uma das seguintes ações: 1.
Sequestro ou sabotagem de qualquer tipo de transporte. 2. A apreensão ou detenção, e ameaça
de morte, de ferimento, ou de continuação da detenção, de outro indivíduo para obrigar uma
terceira pessoa a executar ou a abster-se de executar um ato como condição explícita ou
implícita de libertação do indivíduo preso ou detido. 3. Um ataque violento sobre uma pessoa
internacionalmente protegida ou sobre a liberdade dessa pessoa. 4. Um assassinato. 5. O uso
de qualquer agente biológico, químico ou arma ou dispositivo nuclear, explosivos ou arma de
fogo. 6. Uma ameaça, tentativa ou conspiração para executar qualquer dos atos anteriores.9
A crítica que deve ser feita é que esta definição legal é suficientemente abrangente de
modo a permitir a inclusão de praticamente qualquer tipo de crime. É, portanto, pouco
rigorosa, sendo difícil notar a diferença entre um crime não-terrorista e um crime terrorista,
entre terrorismo nacional e internacional, entre um ato de guerra e um ato de terrorismo.10
E tal como acontece com muitas outras noções jurídicas, o que permanece obscuro,
dogmático ou pré-crítico, não evita que os poderes existentes, os designados poderes
legítimos, façam uso dessas noções quando lhes parece oportuno. Pelo contrário, quanto mais
confuso ou abstrato for o conceito, mais útil servirá para uma apropriação, contextualização e
classificação oportunista.
5 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror: diálogo com Jürgen Habermas e Jacques Derrida.
Porto: Campo das Letras, 2004, p. 100. 6 ALPOIM, Paulo. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p.
904. 7 Idem, p. 908.
8 Considerando uma escala internacional, os Estados, individualmente considerados, fazem parte de um conjunto
de sujeitos que atuam em rede e que possuem os mesmos objetivos. 9 CHOMSKY apud BORRADORI, Giovanna, p. 169.
10 BORRADORI, Giovanna, pp. 169-170.
76
2. Breves reflexões sobre o pensamento de Jacques Ellul relacionados à técnica
O desenvolvimento técnico, conforme afirmado por Ellul, já não é mais um
instrumento passivo nas mãos do Estado, mas, por outro lado, um instrumento ativo.11 A
técnica, considerada como um sistema autônomo, que interpretativamente e genericamente
pode ser entendida como o conjunto de todos os métodos que caracterizam uma sociedade
especificamente em um momento histórico e que alcançam, de forma racional,12 a eficácia
absoluta em todos os campos da atividade humana, não se manifesta de forma sempre
homogênea ou idêntica nos diversos períodos históricos até então vivenciados.
Segundo o entendimento do autor a respeito das características da técnica13, a
ambivalência aparece como efeito de caráter sistemático da técnica, ou seja, da relação de
dependência existente entres os métodos humanos e a sua interação favorecida pelas
comunicações modernas, efeito esse que parece não ser bom, nem mau e tampouco neutro.
Há, na verdade, uma mescla de elementos relacionados de forma ambígua, mas que nem por
isso se excluem. Esses elementos convivem no sistema técnico.14
De alguma forma, esses elementos se manifestam no inevitável progresso técnico. A
manifestação provoca consequentemente transformações no progresso técnico,
transformações essas que, ao atuarem em certo campo, dissipam efeitos em outro (s) campo
(s), afetando-os. A afetação não pode ser, entretanto, medida objetivamente, uma vez que os
efeitos incidem justamente em campos diferentes daquele campo inicial; de onde partiu a
transformação. Dessa forma, pode-se entender que o progresso técnico é relativo.15
Considerando ainda que o progresso técnico pretenda resolver problemas de forma
eficaz, conforme comentado anteriormente, o autor entende que como resultado dessa
característica é possível constatar o aparecimento de mais problemas, os quais são,
possivelmente, imperceptíveis em um determinado momento, mas que produzirá efeitos
11 ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra Ltda., 1968, p. 253.
12 Forma essa que pode ser entendida como a utilização adequada daqueles meios que estão, no momento
histórico a ser considerado, disponíveis aos fins propostos pela sociedade. 13
Cinco são as características da técnica: o automatismo, a indivisibilidade, a universalidade, a racionalidade e a
autonomia. De forma concisa e objetiva, todos os problemas de ordem técnica possuem uma técnica própria de
solução também técnica; de forma que quanto maior for a expansão do fenômeno técnico, maior será a
dependência entre os métodos que produzem modificações; afetando de forma ilimitada todas as culturas; de
forma a extrair da realidade os fatores e elementos que podem ser úteis na solução de problemas;
autonomamente, governando a si própria. ELLUL, Jacques, pp. 63-149. 14
Idem, p. 257. 15
Idem, p. 396.
77
secundários (positivos, negativos ou neutros) imprevisíveis e apenas verificados em momento
posterior.16
Mais especificamente no plano do direito, conforme será desenvolvido em seguida, o
autor tece os seguintes comentários:
O direito está radicalmente viciado pelo seu atraso. Não se trata apenas de fazer leis,
mas de encontrar os princípios jurídicos que poderiam coordenar as construções tornadas
necessárias pela técnica moderna; pois todos os princípios tradicionais desmoronam, por
exemplo o da não retroatividade das leis ou da personalidade dos delitos e das penas. Não é
porque estejamos em uma sociedade particularmente ruim mas porque o direito não está a ela
adaptado nem é capaz, enquanto sistema, de absorver as inovações necessárias. Trata-se, pois,
da resistência de uma técnica longamente experimentada, tradicional, a uma transformação
social; e não se tem, como nos outros casos, a experiência privada, nesse domínio jurídico, a
fim de tornar mais eficaz essa técnica.17
Neste sentido, se para o técnico do direito todo direito depende de sua eficiência,
seria possível considerar que a utilização de mecanismos técnicos que promove a segurança
pública, por eles mesmos, pode justificar a violação da liberdade e da propriedade.
3. Os direitos fundamentais frente à técnica
Mesmo considerando a diferenciação existente entre os direitos fundamentais em
sentido amplo18 a importância da reflexão não perde sua justificativa. Arriscado, porém
necessário, é analisar os direitos fundamentais frente ao pensamento de Jacques Ellul,
inserindo suas considerações no atual contexto da globalização, promovendo um diálogo entre
16 Idem, pp. 1-3.
17 Ibidem, p. 257.
18 A diferenciação reside basicamente entre os chamados direitos fundamentais constitucionais e os direitos
humanos. Apesar da frequente, e até por vezes inconsequente, análise das duas realidades como se idênticas
fossem, parece ser mais apurada a parte da doutrina que classifica os direitos fundamentais constitucionais como
sendo aqueles de matriz nacional, ligados à força dos direitos individuais e das garantias institucionais, seguidos
pela dinâmica própria do princípio democrático; e, por outro lado, possuidores de uma diferença perceptível em
relação aos primeiros, estão os direitos humanos, ou também chamados direitos fundamentais internacionais. A
realidade dos direitos humanos aspira a uma matriz diferenciada daquela dos direitos fundamentais
constitucionais; os direitos humanos aspiram a uma matriz universal, a qual não se localiza apenas dentro de um
Estado, mas sim na arena internacional na medida em que pretende a expansão da salvaguarda de valores
essenciais à dignidade da pessoa humana e a liberdade dos povos. Nesse sentido, e de uma forma didática e
concisa, é possível citar o entendimento de Suzana Tavares da Silva na obra: SILVA. Suzana Tavares. Direitos
fundamentais na arena global. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 21-24.
78
esses direitos e as considerações anteriormente apresentadas no que diz respeito à violação do
direito à privacidade e à reserva da intimidade, fundamentalmente.19
Os direitos de primeira geração, ou direitos de defesa dos indivíduos perante o
Estado20, são aqueles que, na prática, estão no centro dos entraves promovidos pelas novas
regras de segurança. Ao combater o terrorismo luta-se pela liberdade e bem-estar, direitos
esses supostamente já conquistados em períodos e contextos históricos antecedentes. A luta,
por outro lado, ao reclamar maior segurança, possui o seguinte preço: a violação do direito à
reserva sobre a privacidade.
A dogmática desenvolvida durante o séc. XX, tendente ao apuramento de um Estado
de Direito no qual o balanceamento entre segurança e liberdade permitisse revelar meios
legítimos de actuação policial no combate e na prevenção da criminalidade, perde sustentação
quando o valor que é atacado radica na própria organização social tal como ela se encontra
construída no seu todo, e não em aspectos parcelares dessa organização [...], ou em valores
que a sustentam [...].21
O perigo difuso22 operado pelo “terrorismo” exigiu a criação de novas estratégias
políticas, jurídicas23 e militares, provocando um desarranjo naquilo que se acreditava estarem
definitivamente pacificado: os “poderes” dos poderes públicos (e até mesmo desse vinculado
a entes privados) e as liberdades individuais. Apesar de o perigo difuso constituir uma
incerteza24, certo é, por outro lado, que os direitos à reserva sobre a intimidade e a
personalidade25, bem como a proteção de dados pessoais são colocados em xeque.
19 Considerando que não se pretende aqui desenvolver a diferenciação ou demonstrar as diversas correntes de
entendimento existentes a respeito da diferenciação ou não dos conceitos e suas razões, é cabível considerar
„privacidade‟ em sentido amplo. 20
Constam deste rol de direitos o direito à vida, o direito à liberdade, à propriedade, à igualdade, às liberdades de
expressão e aos direitos de participação política. São dotados de fortes características de defesa frete ao Estado,
no sentido de delimitar uma zona de liberdade e de atuação entre os indivíduos e o Estado, de forma que o
Estado não intervenha na esfera individual dos cidadãos. Por definirem abstenções dirigidas ao Estado,
constituem direitos de cunho negativo, correspondendo, na grande maioria, aos chamados direitos civis e
políticos, os quais marcaram a fase inicial do constitucionalismo ocidental. A classificação pode ser observada
pela leitura de diversos autores, dentre eles, por exemplo, JELLINEK apud ALEXY, Robert. Teoria dos direitos
fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, pp. 254-269 e VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os
direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 53-56. 21
SILVA. Suzana Tavares, p. 153. 22
HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Liberdad y seguridad em la estelade los atentados terroristas. In: Teoria y
Realidad Constitucional, n.º 12/13, año 2003/2004, pp. 474-475. 23
Dentre os quase infindáveis exemplos que poderiam ser mencionados neste breve estudo, cito o caso do novo
regime jurídico de vigilância das telecomunicações de 21.12.2007, o Acórdão BundesVerfassungsGericht, de
02.03.2010 – Alemanha, no qual estava em questionamento as medidas adotadas internamente para transpor a
Diretiva 2006/24/CE, de 15 de Março, referente ao armazenamento de dados de telecomunicações. 24
Tal incerteza não demonstra diferenças significativas entre os riscos típicos da sociedade tecnológica que
conhecemos; há, inclusive, uma interligação entre esses riscos. 25
Os quais possuem uma componente de liberdade.
79
O direito à reserva sobre a intimidade está inserido numa perspectiva de controle de
informação sobre a vida privada. O controle da informação, por sua vez, protege a divulgação
e a circulação de informações sobre a vida privada do indivíduo, dentre outras esferas de
privacidade. Conforme afirma Paulo Mota Pinto, “a estes interesses opõem-se o interesse ao
conhecimento e à divulgação da informação, e o interesse no acesso ou controle das acções da
pessoa”.26
Considerando que o Estado deseje atuar de forma administrativamente eficiente (ou
pelo menos assim se espera), parece ser pressuposto o conhecimento do maior número de
informações a respeito da sua população. A coleta das informações, por sua vez, dada a sua
dificuldade, passou para as mãos de privados. A tecnologia da informação, que passou a ser
desenvolvida, é, portanto, um dos elementos determinantes que interfere em larga escala na
sociedade atual relativamente à temática da esfera da intimidade e do tratamento de dados
pessoais.
Além da tradicional dimensão individual da reserva da privacidade, é possível
constatar a existência de uma dimensão coletiva que interfere na privacidade. Segundo
Stefano Rodotà, a partir do momento em que o interesse do indivíduo é superado pelo
interesse coletivo, as dimensões restam alteradas.27 Esse caráter de interesse coletivo pode, por
exemplo, ser exemplificado pela situação de combate ao terrorismo e a necessidade de
contextualização da segurança pública a eventuais ameaças. É possível constatar ainda que a
fluidez na relação jurídica de risco dificulta a tentativa de regulação do direito e da
determinação de limites à utilização da tecnologia em favor da segurança. Os resultados do
impacto da tecnologia na sociedade são, portanto, de difícil previsão.
É possível considerar similares os entendimentos de Ellul e Beck28 sobre a técnica.
Em linhas genéricas, os autores concordam que no raciocínio tecnológico não passam
considerações éticas ou morais, mas sim estritamente racionais.
Sobre os direitos fundamentais, diante de uma crença, da mera importação de teorias
estrangeiras ou até mesmo pela evolução do próprio direito, presencia-se uma fase em que os
direitos constitucionais fundamentais não são absolutos; e a utilização dessa argumentação
26 Ainda para o autor, a autorização da disponibilidade da informação, quando efetuada pelo titular do direito,
impede que a violação do direito seja típica. Considera, portanto, a ausência de lesão ao direito, levando-se em
consideração a verificação da integridade do consentimento. PINTO, Paulo Mota. A limitação voluntária do
direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (Org.). Estudos em
Homenagem a Cunha Rodrigues. Vol. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, pp. 527-558. 27
RODOTÀ, Stefano. Tecnologie e diritti. Bologna: Il Mulino, 1996, p. 27. 28
BECK, Ulrich, La società globale del rischio. Trieste: Asterios, 2001, pp. 12-15.
80
hermenêutica legitima,29na abordagem jurídica em questão, a utilização e a aceitação dos
resultados alcançados por meio do uso da técnica em combate, por exemplo, ao “terrorismo”.
Presencia-se uma fase de transição, onde os antigos paradigmas nos quais o
instrumento jurídico se baseia tornaram-se insuficientes e desatualizados. Há, nesse sentido,
urgente necessidade da construção de modelos jurídicos condizentes com as características
dessa fase de transição.
Conclusão
No contexto da temática do estudo, Canotilho reflete sobre a existência de diferentes
dimensões da sociedade de risco30 e de seus problemas. Para o autor, os riscos típicos da
civilização tecnológica e das questões jurídicas a eles associadas localiza-se em um patamar
diferente daqueles problemas que articulam o risco com dimensões psicológicas e ideológicas,
que legitima o uso de ações preventivas ou repressivas. Entende ainda o autor que as
justificativas relacionadas à segurança e defesa dos cidadãos não podem ser invocadas para
legitimar a precaução e a prevenção do risco social.31
Esta é, evidentemente, uma posição não unânime na doutrina, justamente pela
complexidade dos questionamentos e pelo fato das características inerentes ao período de
transição. Um dos benefícios colaterais dos quais parece não restar dúvidas é o fortalecimento
de uma visão um tanto estreita de “segurança”, que, a longo prazo, provavelmente aumentará
a insegurança.
É evidente que essa etapa de transição gera ainda insegurança em termos jurídicos,
na medida em que a regulação, por meio da legislação, é ainda incompleta e irregular, criando
dificuldades na transposição de situações inevitáveis provocadas pelo avanço tecnológico,
principalmente no que diz respeito à conservação de dados pessoais.
29 Jacques Ellul considera que as decisões políticas parecem estar dominadas pela técnica ou a ela ser
indissociáveis. Não há vontade clara; há uma urgência na demonstração de crescimento naturalmente ligada à
técnica. ELLUL, Jacques, pp. 259-260. Se isso é verdade, então uma decisão política apenas legitima o uso da
técnica. Fato curioso é que no plano do moderno direito constitucional o uso da técnica pode ser considerado
legítimo ainda que ausente a suposta vontade política transposta por uma norma jurídica expressa. 30
Conforme análise feita por Beck e Luhman. 31
CANOTILHO, José Joaquin Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008, pp. 240-241.
81
Por fim, da mesma forma como entende Frosini, é importante deixar registrado que o
jurista precisa adquirir consciência informática, relativamente à responsabilidade intrínseca
aos problemas que de forma inédita são inerentes ao avanço tecnológico.32
BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
ALPOIM, Paulo. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
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32 FROSINI, Vittorio. Informatica e diritto. In: Il diritto nella società tecnologica. Milano: Giuffrè, 1981, p. 270.
82
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Universidade de Coimbra, 2011.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2009.
83
A INVASÃO DAS IMAGENS E A MARGINALIZAÇÃO DA PALAVRA
NA SOCIEDADE TÉCNICA
Flávia Graciely Gomes1
Jorge Barrientos-Parra2
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo discutir as ideias de Jacques Ellul no que tange
ao que ele chama em sua obra de invasão das imagens na sociedade técnica. Primeiramente
será feita uma breve explicação sobre o surgimento da imagem, e a diferenciação entre o que
se entende por imagens do homem antigo e as dos tempos atuais.
Considerando que imagem passou a fazer parte da vida das pessoas, e mais do que
isso, a ser essencial para o homem, serão identificadas algumas das instâncias nas quais a
imagem se insere e seus impactos.
Primeiro será tratada a crítica que Ellul faz ao uso da fotografia, que acredita ser
inútil, mas inevitavelmente com a evolução da tecnologia, propiciou-se sua disseminação
através da internet, e revelou-se cada vez mais a sua importância.
Ellul cita a “sociedade do espetáculo” debordiana, na qual visivelmente vivemos
atualmente numa sociedade na qual a imagem é indiscutível e se torna mais real que a
realidade. A imagem ganha cada vez mais força ao alcançar os meios de comunicação,
sobretudo a televisão, fazendo com que a palavra vá perdendo a sua força.
Por fim, será analisada a utilização da imagem na política através da representação e
sua influência na formação de opinião dos eleitores. Assim, a partir do pensamento de Ellul,
será possível perceber o quão presente e indispensável a imagem se torna para as pessoas e
analisar até que ponto a imagem pode de fato substituir a palavra, questionando-se assim a sua
realidade.
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
84
Palavras-chave: Jacques Ellul, Sociedade Técnica, Imagem, Sociedade do
Espetáculo, Representação, Meios de Comunicação.
Introdução
Imagem pode significar a representação visual de um objeto, bem como uma
aquisição dos sentidos, uma representação mental de um objeto real. O conceito de imagem
tratado neste trabalho é não só aquela produzida pelo ser humano na criação artística, na
fotografia, na pintura, no desenho, na gravura, mas toda forma visual que expresse ideias.
Enquanto produção humana, portanto, todas as imagens são consideradas técnicas.
Em seu livro “A palavra humilhada”, Jacques Ellul faz uma distinção entre imagem e
palavra e analisa as implicações da influência da imagem na sociedade técnica e a
concomitante marginalização da palavra.
Embasado pelas ideias de Ellul, serão analisadas algumas das diferentes instâncias
nas quais a imagem se insere cada vez mais no cotidiano do homem, bem como apresentar a
crítica que Ellul faz a esse fenômeno: o da invasão das imagens na sociedade técnica.
Surgimento da imagem
Não há como citar um momento histórico em que a imagem tenha surgido. Para
Ellul, a imagem existe desde o surgimento do homem, mas há que se observar que não há
“medida comum entre as imagens das sociedades anteriores e as nossas” (ELLUL, 1984, p.
113), pois naquelas apenas as classes mais altas, como reis e príncipes, que representavam um
número ínfimo de pessoas, tinham acesso a esculturas, pinturas. A massa continuava alheia a
tais criações. Era o homem rico quem detinha a obra-prima, a qual permanecia estritamente
confidencial, guardada para ser desfrutada sozinho ou com seus amigos de mesma classe
social. Como assinala Ellul (1984), “a maioria dos homens está excluída do jogo das imagens
e aqueles que as possuem são donos de uma pequena quantidade, sempre a mesma.”
É importante destacar que não existe comparação entre o que o homem
tradicionalmente conheceu como imagem e o que é conhecido atualmente. Aquele homem
não tinha outra imagem senão à da natureza. A multiplicação das imagens alterou o
fenômeno, a proliferação das imagens preparou a mudança no olhar, que passa a cobrir o
85
homem que vive a seu lado e transforma o outro em objeto. (ELLUL, 1984, p. 115).
Trataremos a seguir desta invasão das imagens e seus impactos.
Fotografia
Não existe apenas a imagem que é apresentada ao homem. O homem de hoje detém
de recursos tecnológicos capazes de criar as imagens, através das câmeras fotográficas (e
celulares que dispõem desse recurso). Ellul critica veementemente o registro de lembranças,
pois acredita que para o que realmente merece ser lembrado, a memória é suficiente, não
necessita de um pedaço de papel para recordação. Uma pessoa realiza uma viagem, por
exemplo, muitas vezes com o único objetivo de registrar o momento com a foto. Uma vez
gravado, conclui-se a missão. O verdadeiro sentido de desfrutar uma viagem é esvaziado, a
foto desperta falsas recordações, puramente externas e inúteis.
Hoje em dia, com a grande disseminação do uso de redes sociais na internet, é muito
comum encontrar as pessoas compartilhando fotos pessoais, de suas experiências, publicando-
as on-line para que todos possam ver e comentar. Uma necessidade de registrar e mostrar a
todo momento o que está fazendo. Qual a utilidade desta ação? Em nada essas fotografias
contribuem para quem as vir. Apenas servem de autoafirmação. Como Ellul afirma, “na crise
da identidade do homem moderno, no meio dos fluxos técnicos e da dispersão, a imagem dá-
lhe a certeza de que ele existe, a foto lhe garante um passado”. (ELLUL, 1984, p. 124)
A invasão das imagens e a espetacularização da sociedade
É notório que vivemos hoje “num mundo de imagens: fotos – cinema – televisão –
anúncios – cartazes – sinalizações – ilustrações” (ELLUL, 1984, p. 115). Isso é constatado ao
observarmos a repercussão da famosa frase de Bonaparte “um croqui vale mais do que um
longo discurso” nos tempos atuais (ou, mais comumente usada pelos brasileiros, a imortal
frase de Mao-Tsé-Tung “mais vale uma imagem do que mil palavras”). Ellul explica que
aquela frase, no contexto de guerra no qual foi proferida, foi perfeitamente aplicável, pois é
fato que para explicar uma estratégia de defesa ou ataque a imagem simplificaria este
processo de entendimento.
86
O problema apontado por Ellul é que as pessoas fizeram disto uma verdade
incontestável, a evidência indiscutível de que a imagem torna vão qualquer outro meio de
expressão.
Passamos a viver num mundo da representação, do espetáculo e da informação
confundido com o visual. Ellul neste ponto faz uma alusão à sociedade do espetáculo
debordiana, que, como explica Arbex:
consiste na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através
dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais
políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à
vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos,
personalidades, gurus, mensagens publicitárias (ARBEX JR., 2002).
Na sociedade do espetáculo, as características do visual são atribuídas a toda
informação, ou seja, toda comunicação é exprimida através de imagens. Segundo Ellul, esta
sociedade tornou-se espetáculo:
A singularidade da imagem é que em nossos dias é a sociedade que,
substituindo a Natureza, fornece e garante ao homem todos os seus
meios de vida, todas as suas possibilidades, mas, ao mesmo tempo é
seu maior perigo, a ameaça total e constante, individual e coletiva.
(ELLUL, 1984, p.116)
A imagem é a forma de expressão escolhida por nossa civilização. A visão da
imagem passou a permitir a exclusão da realidade porque esta não é mais confrontada com
uma verdade, ou seja, passou a permitir uma representação considerada real e indiscutível,
“porque a imagem é mais real do que a realidade” (ELLUL, 1984, p. 117). Isto mostra que a
representação significa também o papel que uma pessoa dá a si, não aceitando quem
realmente é.
Feuerbach (1998) assim discorre em relação ao culto da imagem:
“Nosso tempo, sem dúvida prefere a imagem à coisa, a cópia ao
original, a representação à realidade, a aparência ao ser. O que é
sagrado não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à
medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o sagrado cresce a
seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do
sagrado.”
O fluxo incessante¬ das imagens anestesia seus consumidores, pois estes não mais
determinam suas escolhas e os acontecimentos da sua vida, mas são alienados deste processo.
“O contemplador de imagens projeta seus desejos e não é mais capaz de distinguir se são seus
ou não”. (SALVATTI, 2007)
87
A imagem passou a ser dominante e se tornou indispensável à vida humana. O
homem prefere mergulhar neste mundo ilusório a aceitar a vida vazia em que vive.
Invasão dos meios de comunicação
A proliferação das tecnologias de informação e comunicação em muito contribuíram
para essa tremenda proliferação das imagens. A ampla e rápida disseminação de informações
pela televisão e mais recentemente através da internet, aliada ao estilo de vida contemporâneo,
no qual as pessoas parecem temer a todo o momento o desperdício de seu tempo, propiciou a
substituição quase que completa do texto pela imagem. As pessoas precisam da imagem para
conseguir entender a informação. O texto por si só já não é suficiente: as pessoas já não têm
paciência para ler.
A TV para Ellul representa a multiplicação de imagens na vida cotidiana das pessoas
e com ela as pessoas vivem “constantemente uma peça teatral” e suas casas “não passam de
um cenário” (ELLUL, 1984, p. 120). A TV apaga e ofusca a realidade, oferecendo uma gama
de figuras que se torna mais real do que a própria vida.
As imagens tornam-se seres reais e contribuem para uma situação de isolamento do
homem. As pessoas interagem cada vez menos entre si, pois encontram prazer em ficar
solitárias nesta contemplação. Para Salvatti (2007), a televisão se caracteriza como o veículo
mais eficiente de propagação do espetáculo, pois consegue manter o espectador vidrado, sem
controle sobre sua vida, substituindo-a pela representação.
Representação e Imagem na Política
Como já foi dito, a imagem tornou-se indispensável para a transmissão de
informações. No campo da política isto é fácil de identificar.
Ellul explica que a utilização da imagem, iniciada por Mussolini e intensamente
realizada por Hitler, foi decisiva para a persuasão de seus seguidores. O visual das
assembleias, com ritmos e movimentos calculados, significava a manifestação do poder, pois
o visto era incontestável e o povo inteiro simbolizado.
O que Hitler criou depende da promoção geral da imagem, e, se as liturgias nazistas
produziam tal efeito, é porque fazia parte deste processo de nossa civilização. O mesmo
acontece nas manifestações populares de atualmente, onde “tudo é espetáculo e a liturgia faz
88
desaparecer o indivíduo numa realidade nova” (ELLUL, 1984, p. 126), manifestações que
mostram na verdade sua passividade.
Segundo Ellul, os comícios e passeatas são tão necessários à vida política quanto a
liturgia para a missa católica, pois suprem a indigência da palavra, que já não tem mais
alcance.
A imagem e a representação estão presentes na história das ideias políticas expressa
em uma comunicação persuasiva. Como observado por Gomes (2007), hoje a tecnologia nos
oferece inúmeras possibilidades de seu uso, principalmente a televisão e a internet que nos
fazem viver a era que está sendo chamada de uma civilização de imagens.
A opinião pública é formada através da imagem que o político deseja passar, a qual
pode ser verdadeira ou mera representação. A partir de uma campanha de imagem daí pode
ser formado um juízo positivo ou negativo da pessoa, instituição ou partido político. Mas
temos sempre que ficar atento a veracidade desta imagem transmitida que pode determinada o
rumo de uma eleição e, assim, do destino de uma nação.
Utilidades das imagens
Para Ellul a visão é triunfante devido à sua utilidade: poupa-nos do esforço de
pensar, recordar; constitui coesão de grupo; nos faz ganhar tempo, economizar forças. As
imagens artificiais conferem o movimento no qual o homem delega a um aparelho uma
qualidade que lhe era específica. Não há mais necessidade do processo de reflexão pois existe
a evidência.
Ellul ressalta que neste esvaziamento da palavra, não há má intenção nem finalidade.
Pedagogos, cineastas, jornalistas, as utilizam com boas intenções, a fim de cumprirem da
melhor forma o seu papel.
As técnicas substituem o homem num crescente número de atividades e o universo
de imagens no qual ele se situa facilita incrivelmente essa substituição. A imagem é portanto
indispensável à constituição da sociedade técnica. Mas a imagem exclui a crítica, pois é bem
mais fácil renunciar e se deixar levar pelo fluxo sempre renovado das imagens fornecidas,
indispensáveis na monotonia dos dias. A palavra só aumentaria as angústias e incertezas e
faria com que tomasse maior a consciência do vazio, incapacidade e insignificância (ELLUL,
1984, p.129).
89
A hipnose da imagem torna o homem mais calmo quanto mais terrível for o
espetáculo. Ellul cita como exemplo o filme mais violento ou que denuncia as piores
atrocidades é, na realidade, o meio de se contentar com a situação.
A representação visual também leva à rápida compreensão porque dispensa o
espectador de analisar o passo-a-passo de um processo, ele representa diretamente o resultado.
A imagem é para o homem a prova daquilo que representa. Olhar para uma imagem é
suficiente para convencer da veracidade do que ela reproduz, é um dado imediato e
incontestável.
As pessoas acreditam que a imagem é perfeitamente conforme o fato. Continuamos a
assimilar automaticamente a imagem ao fato e o rompimento dessa assimilação nos leva a
sentirmos um certo mal-estar. A imagem passa a ser um testemunho indiscutível.
Mas para Ellul essa idéia é errônea. O enfoque de um detalhe, como efeitos de luz,
ângulos de visão, modificam sua natureza. Além disso, a mesma foto/imagem pode
representar situações opostas dependendo da interpretação do espectador, e da intenção de
quem a reproduz. Hoje em dia, com recursos de softwares de computador, é possível
manipular uma imagem conforme o desejo. Principalmente em revistas e na internet circulam
fotos de artistas, personalidades e celebridades, sempre manipuladas, pois precisam parecer
perfeitas, isto é, a imagem que o artista que transmitir precisa parecer perfeita aos olhos do
espectador.
Conclusão
A técnica possibilitou a multiplicação das imagens. Elas não foram criadas porque o
homem assim desejou, mas o processo de desenvolvimento da técnica as criou, e em seguida
“o homem compreendeu o quanto era agradável, inteligente e bom de consumir” (ELLUL,
1984, p.149)
A visualização se trata de fazer da palavra um objeto da técnica. A imagem se tornou
a condição para que a palavra possa ter eficácia, mas que jamais alcançará tanta força quanto
a representação visual.
Com a evolução tecnológica, o processo ficou mais evidente. As imagens podem ser
encontradas e disseminadas por toda parte, principalmente através da internet. O homem
passou a incorporar as imagens em todos as instâncias, tornando-a indispensável à sua vida.
90
Como observa Fridman (1999), a cultura baseada na imagem, dispondo de meios
como a televisão, os computadores, a publicidade, superou a palavra (que não tem mais
eficácia), propiciando um fluxo ininterrupto de imagens. Este fluxo é observado em todo lugar
e os enredos dos meios de comunicação de massa produzem um "real" (ou hiper-real) que
substitui a vida pelo que ocorre a partir dos monitores.
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Pós-Graduação em Artes Cênicas. MG 2007. Disponível em:
<http://www.portalabrace.org/ivreuniao/GTs/Territorios/Representacao%20e%20Espetaculo
%20Debordiano%20-%20Fabio%20Salvatti.pdf>. Acesso em: 05 out. 2012
91
COMO SE FAZ E REFAZ O HOMEM E A MULHER DA SOCIEDADE
TÉCNICA
Rebeca Makowski de Oliveira Prado1
RESUMO: O presente texto centra-se na verificação da introjeção da técnica no
psicológico e na aparência de homens e mulheres imersos no processo de tecnificação a
abranger todos os aspectos da vida humana; cuja ingerência necessariamente se
instrumentaliza via massificação cultural, adestramento, cisão, abstração e artificialização da
humanidade no humano, inviabilizando sua sensibilidade, personalidade e espiritualidade.
Sob esses aspectos realiza-se investigação sobre a condição humana em face da investida do
uso técnico, evidenciando que o despertar da consciência crítica e, principalmente, de técnicas
humanas são condições contra tecnização.
INTRODUÇÃO
Desde os primórdios a sociedade encontra-se organizada em torno do que Jacques
Ellul (1968) denominou de técnica, que ao longo de anos foi se desenvolvendo e
aprimorando-se enquanto conhecimento racional-instrumental de organização social, cujo
valor primoroso centra-se no nível de eficiência das relações humanas (social, político,
econômico, lazer).
A proposição da questão técnica, cravada nas relações humanas, está permeada de
originalidade e aborda a relação imediata e determinante entre a técnica e a organização das
atividades humanas e do próprio ser humano (interno e extreno).
Caracterizada por automatismo, autoacréscimo, indivisibilidade, universalismo e
autonomia, o substrato de sua progressiva imponência na sociedade contemporânea dá-se em
face da perene exigência de desenvolvimento, progresso e satisfação das necessidades
humanas artificializadas em torno da organização urbana, a resultar na aplicação técnica
imperativa em todos os domínios, tornando-se valor supremo das relações humanas.
Contudo, conforme asseverado por J. Ellul, , a técnica não se sujeita à valoração ;
pois não seria nem boa nem má, sua qualificação ética dependeria apenas do uso que dela se
1 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP (Campus de Franca).
92
faz, condiderando-se neutra do ponto de vista axiológico. Essa neutralidade técnica é
caracterizada em face da eleição de valores técnicos (racionalidade e eficiência) para
configuração do uso técnico, distante dos quais não haverá aplicabilidade técnica.
A imanência entre técnica e uso técnico revela que a técnica utilizada não é passível
de valoração ética (valores não técnicos), simplesmente porque, sendo técnico, é o único uso
possível em face de critérios técnicos. O uso adequado é determinado mediante o uso técnico,
ou seja, voltado para a eficiência e racionalidade instrumental. O processo tecnológico não
está mais subordinado a outros valores (valores não técnicos), mas, sim, passa a moldá-los
conforme critérios de eficiência e racionalidade instrumental (valores técnicos).
Imperioso observar que, a despeito de tais características que excluem conotações
ética, política, religiosa, estética etc. (ideologias), claramente observa-se o compromisso
técnico em corromper a espiritualidade (imanente) do ser humano mediante um processo de
reificação/materialização do humano e transfiguração de sua realidade.
No mundo contemporâneo, tal processo apresenta-se em permanente processo de
racionalização e artificialização das relacões humanas com o objetivo de tecnificá-las e
instrumentalizá-las, ou seja, alterar-se o status do homem de fim para meio. “A técnica
corresponderia assim a uma exigência de racionalização, a uma forma superior de „saber
fazer‟ cuja aplicação seria característica precisamente nos setores da atividade humana”
(ELLUL, 1968, prefácio).
O homem já não é mais o fim do desenvolvimento técnico, mas serve de meio para o
desenvolvimento técnico em função do próprio aprimoramento técnico; a racionalização
instrumetal, materialização e artificialização do humano ampliam e estendem os níveis de
interferência técnica até o ponto em que não mais é sensível a distinção entre pessoa e técnica,
haja vista a máxima da eficiência de racionalização/organização ter alienado e massificado os
traços da personalidade humana (psicológica e fisicamente).
Sob essas premissas, inicia-se a abordagem do tema proposto atentando-se para os
resultados do fenômeno técnico nas relações sociais, e, especialmente, no desenvolvimento do
ser humano nos níveis – intrínsecos – psicológicos, físico e espiritual.
1 TECNIFICAÇÃO DA HUMANIDADE: massificação da aparência e da
personalidade psíquica humanas em face da técnica
Nada, pois, pode permanecer intacto ao abrigo da tecnificação.
93
Os valores técnicos (racionalidade e eficiência) demandam a concretização de
diversos objetivos técnicos para se efetivarem da forma mais ampla possível; dentre esses
objetivos técnicos destaca-se a transformação do meio real em realidade artificial (grandes
centros urbanos provocaram grande afastamento da natureza).
Ao criar um ambiente inumano a técnica rompe com a naturalidade da relação entre
o homem e o ambiente externo, tornando-se imperativo a artificialização do próprio ser
humano para que a vida não perdesse seu sentido. Assim, a artificalidade do meio determinou
a introjeção técnica de artificialização e universalização da humanidade do homem, com as
quais foi possível a substituição do sentido natural da vida.
A criação de uma sociedade inumana pela técnica (artificial) desencadeia uma
variedade de efeitos técnicos, centrar-se-á no poderio técnico em tornar o ser humano vazio
por meio da perda de sua individualidade física, psicológica e espiritual.
A técnica tronou-se meio uniformizante, reduzindo a individualidade humana à
uniformidade de massa – a técnica irrompe nos processos de individualidade humana,
deflagra insatisfações e contamina de repúdio à diferença até destruí-la, refazendo a
personalidade e aparência humana à sua imagem e semelhança (ELLUL, 1968, prefácio).
Mediante investidas psiciológicas via propaganda (circuito técnico complexo), o
homem é transformado em máquina, em ser antissocial, artificializado, em ser massificado
por manipulação dos meios de “informação” (em verdade, meios de poduzir ação). A
ingerência no subconsciente humano, possibilita ao fenômeno técnico arrastar cada ser
humano, à revelia de vontade e consciência, à redução do homem à massa, à perda da
sensibilidade, à dequalificação da espiritualidade via materialização da humanidade.
Por meio de técnicas psicológicas e psicanalíticas, a propaganda e publicidade
dirigem-se a cada indivíduo com extraordinário poder de persuasão e de pressão intelectual e
psíquica (ELLUL, 1968, p. 372) – atua no subconsciente do homem e da mulher promovendo
resultados quase infalíveis. O poder da imagem gera um reflexo certeiro, o que J. Ellul
descreve como sistema do reflexo condicionado, ou seja, o aperfeiçoamento técnico da
medida dos reflexos e de provocação dos reflexos dependem de sistemática educação em
relação à imagem e seu respectivo reflexo.
Imperioso atentar para o fato de que essa é uma técnica obsessiva, que não permite
ao homem libertar-se (ficar só consigo mesmo) da propaganda em nenhum momento, pois
disso depende a eficiência dos meios empregados para persuadir o reflexo infalível. “Tudo
94
converge ao mesmo ponto, tudo tem a mesma ação sobre o indivíduo. Os meios empregados
assumem tal magnitude que o homem não os percebe mais.” (ELLUL, 1968, p. 374).
Conforme descrito por J. Ellul (1968, p. 374), a propaganda torna-se tão natural que
o homem já não percebe mais sua ingerência em relação às decisões que são tomadas; torna-
se tão natural quanto o ar ou o alimento; atuando via manipulação e provocando o reflexo
desejado.
Por certo que o deslinde da rentabilidade proprocionada pela técnica (manipulação)
tornou-se um dos principais fatores de expansão da propaganda em face do ser (interno e
externo ) humano. “É verdade que o capitalismo procura racionalizar o momento do consumo,
fabricando não só o produto, amercadoria, mas também o consumidor, pela propaganda.”
(ELLUL, 1968, prefácio).
A propaganda ao atuar na área psicológica, manipula o subconsciente e determina a
supressão do espírito crítico e cria uma boa consciência social. Tal técnica pode ser
denominada de técnica psicanalítica de massas por desencadear a massificação do pensamento
de cada indivíduo, e, por conseguinte, de sua personalidade, que se torna escrava da
“informação” propagandística (manipulação: falsas palavras que não têm finalidade de
informar, mas formar) (ELLUL, 1968, p. 380).
Essa escravização cria uma disponibilidade de massas, ou seja, torna o ser humano
suscetível de estratégias oportunas ao alvedrio técnico.
Preparado o campo psiciológico, por meio do qual se originou a vacuidade do
indivíduo e desintegração de sua personalidade psiquíca (criação de um ser artificializado,
reconstruído e massificado), a imperiosidade técnica dirige-se aos traços humanos físicos. A
individualidade afeita aos traços físicos distintivos de um ser humano a outro também deve
ser massificada e artificializada para se integrar à representação de uma realidade
artificialmente construída pela técnica.
Assim, dilacera-se o real-natural por meio da construção de uma realidade-artificial,
diante da qual o ser humano deve artificializar-se permanentemente.
As marcas da individualidade humana são corrompidas, aniquiladas e massificadas.
A desvalorização do homem em sua diversidade física, via processos de massificação,
descaracteriza e repudia as marcas externas de beleza que não se encontrem nos padrões de
artificialidade, taxando-as como feio .
Diversas são as proposituras técnicas para a artificialização externa do homem:
cirurgias (invasivas ou não), utilização de remédios de emagrecimento, tratamentos estéticos,
95
academia; todos apoiados na intensificação da técnica na aparência externa do ser humano,
nenhum abordando a necessidade de reforma alimentar para atingir o equilíbrio corporal e
mental, nenhum afirmando a beleza existente na diversidade.
As consequencias de tal manipulação podem ser aduzidas parcialmente, pois, a
despeito dos apontamentos e acompanhando o posicionamento de J. Ellul (1968, p. 377), tais
consequências são dificultosamente reconhecíveis e muitas escapam à percepção, pois o
homem se encontra cabalmente absorvido e manipulado pela técnica que dificilmente
consegue objetivar tais consequências de forma abrangente.
Contudo, facilmente se afirma que a técnica de massificação da personalidade
psíquica e física resulta na dilaceração da individualidade, da diversidade e da espiritualidade,
extirpando a identidade de cada ser humano, padronizando-o artificialmente e tornando
inviável a construção da alteridade e solidariedade nas relações sociais.
[...] o homem não é nada mais do que um animal adestrado que
obedece à reflexos condicionados. A tal ponto que a diferença se situa
no plano da higiene e da estatística; mas a identidade no plano
humano e moral. Os efeitos humanos da técnica são independentes do
fim ideológico ao qual é aplicada. (ELLUL, 1968, p.384)
Como J. Ellul afirma, a técnica da propaganda submete o homem a um adestramento
pois suprimiu o problema moral dentre seus valores. A técnica exclui cada vez mais exclui o
humano do homem, um processo perverso.
Conquanto não seja possível moralizar a técnica é possível refletir sobre seus
resultados e consequências nas relações humanas absortas em um mundo contangedor demais
e despersonalizante (ELLUL, 1968, p.389).
É um processo em cadeia, cada vez mais automático e mecânico, impassível de
resistência, pois o movimento da invasão técnica que lhe é próprio (rumar à perfeição) não
pode ser detido; somente pode ser posto em questão quando esgotar suas possibilidades de
eficiência e racionalidade instrumental.
A amplitude e profundidade das consequências dessa ingerência técnica na
personalidade, na parência e na espiritualidade – elementos intrínsecos – podem ser
observadas nas mais diversas enfermidades como depressão, estresse, obesidade, bulimia,
anorexia, bullying etc. – todas doenças relacionadas com o equilíbrio entre corpo e espírito.
2 ARTIFICIALIZAÇÃO DO REAL: técnica e imagem
96
Conforme asseverado por J. Ellul, a artificialização do meio natural preparou as
condições necessárias para que o homem fosse transformado em objeto, espetacularizado
(DEBORD), cindido em partes abstratas, e, posteriormente, tendo suas partes reunificadas
pela técnica, conquanto ainda veja o homem como um todo cindido abstrato (segmentado).
Nesse sentido, J. Ellul refere-se à obra de Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo,
para retratar a supremacia da imagem sobre o humano, a produzir o irrealismo da sociedade
real, a negação visível da vida. “Sociedade constituída por, para, e em função de, por meio da
visualização. Tudo lhe sendo subordinado, nada existindo de significativo fora dela.”
(ELLUL, 1984, p. 116).
A visão elimina a realidade porque não é mais afrontada, confrontada
com uma verdade. A visão permite uma representação da realidade,
considerada como real, identificada ao real proque tão indiscutível
quanto ele, porque a imagem é mais real do que a realidade. [...]
Apresentação à queal corresponde a representação que dou a mim
mesmo, papel que represento recusando considerar exatamente quem
sou eu, quem me faz o que sou. Discurso. As imagens são tão mais
satisfatórias! (ELLUL, 1984, p.116-117).
De fato, vivemos na era técnica do audiovisual, onde a imagem se move, fala e cria
representações nas quais os seres humanos passam a espelhar-se; afinal, a imagem tudo
contém! Imagem fugaz e colorida de uma realidade artificializada e obsessiva, a impedir o ser
humano de ver o real (preto e branco).
A conjugação e conaturalidade técnica-imagem forma e deforma as reações,
necessidades e pensamentos humanos (ELLUL, 1984, p.118), condiciona e predispõe a
humanidade (artificializada) às ingerências técnicas, às formas e aos mitos. “Quanto mais ele
contempla mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele
compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo.” (DEBORD, 2005).
Guy Debord (2005, passim) assevera que o espetáculo é a afirmação da aprência e a
afirmação de toda a vida humana, social, como simples aparência; constitui-se negação visível
da vida, negação da vida que se tornou invisível. O espetáculo constitui-se na afirmação de
que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. “O espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizada por imagens.”
Ora, esta imagem corresponde a toda a realidade que conhecemos –
nunca um determinado movimento, um determinado grupo, uma
determinada personagem poder ser incomum, não-conforme. Quanto
mais se me apresentarem como incomum, mais ele será marginalizado
na própria conformidade das imagens. Fecha-se a ssim, o aro da
97
realidade-irrealidade, do jogo das imagens, quando o visual define
todo o ser vivo. (ELLUL, 1984, p. 143-144, grifo nosso).
Assim, a personalidade humana é modificada pelas imagens com as quais convive e
que se sobrepõem ao universo real (ELLUL, 1984, p.120). Não há mais individualidade, “de
uma sociedade de indivíduos e de ações individuais passamos para uma sociedade de papéis a
representar [...] o ritmo essencial da vida escapa-me [...] as contradições sociais são
suprimidas para só deixar aparecer um desenrolar de imagens selecionadas” (ELLUL, 1984,
p.141).
Nesse sentido, introjeta-se no humano a artificialização de sua visão, do
reconhecimento de quem ele é, da razão de sua existência, haja vista a irrealidade das imagens
obliterar sua natureza humana complexa e incindível, reduzindo a visão humana à
materialidade, a sinais e às aparências. “Tomo por realidade o que me é mostrado, e o real se
apaga.”; “o processo que consistiu em eliminar como existente tudo o que não era redutível à
compreensão científica e à esquematização visual” (ELLUL, 1984, p. 146 e p. 154).
Por conseguinte, escamoteou-se a espiritualidade humana, a sensibilidade, e a
investida de abstração técnica sobre a personalidade humana a tornou manipulável e
artificializada. A perversidade encontra-se na insersão técnica em todo o ser de forma
invasora, constrangedora, que o deixa aprisionado na irrealidade de necessidade abstratas.
Homem feito para agir com seus músculos, cada dia com todos seus
músculos, eis que está agora, môsca em um papel colante, sentado oito
horas em um escritório, sem movimento, sem contato com o material,
entregue ao papel. E um quarto de hora de cultura física não compensa
oito horas de ausência; homem feito para respirar o produto
maravilhoso da função clorofiliana, eis que respira um obscuro
composto de àcido e carvão. Homem feito para um meio vivo, eis que
está em um universo lunar, composto de pedras, cimento, asfalto,
ferrofundido, de vidro, de aço. As árvores se estiolam no meio das
fisionomias estéreis e cegas de pedra [...] No universo morto, restam
apenas os ratos e os homens. (ELLUL, 1968, p. 327).
Por meio de uma modificação psicológica, pode-se, pois, ao mesmo
tempo, tirar do homem um maximum e conseguir que suporte
alegremente os inconvenientes do mundo – primeiro objetivo das
técnicas psicológicas. Trata-se de obter um rendimento. É a lei técnica
e êste rendimento só pode ser obtido pela mobilização total do
homem, corpo e alma, o que supõe uma mobilização de suas fôrças
psíquicas. (ELLUL, 1968, p. 331, grifo nosso).
98
Essa realidade de aparências transforma o ser humano em mero objeto, matéria
manipulável pelas condições do uso técnico. O irreal condiciona valores e escolhas
artificializadas, cobre a verdade; a imagem media uma falsa realação com o real. O mergulho
na realidade falsa converge para o ausentar-se do homem de si mesmo, tornando-se vazio,
abstrato, material e, consequentemente, tecnicizado.
Esse estilo de vida proposto pela publicidade penetra tanto melhor
quanto mais corresponde a certas tandências fáceis e simples do ser
hmanos e que age sobre homens vivos em um mundo no qual não há
mais estilo de vida fundado em valores. Não há mais valores
espirituais que formem e informem a modo de viver dos homens
atuais. Avançam, pois, sem razão fundamental, inquietos, realmente,
com novas estruturas. (ELLUL, 1968, p. 417, grifo nosso).
A centralidade da imagem na vida do homem resulta no homem técnico que
necessita viver de imagens, sem as quais, a vida não faz mais sentido; pois “a técnica exige
um homem visual. O homem que vive num meio técnico exige que tudo seja visualizado.”
(ELLUL, 1984, p.151).
Assim, quanto ao estilo de vida humano, especialmente em relação à fisiologia
(estrutura orgânica) e aparência, a ingerência técnica não poderia ausentar-se em propror um
estilo de vida técnico e abstrato. Logo, de forma opressora, manipuladora e constrangedora, o
uso técnico intervém no âmbito mais íntimo do ser humano: sua personalidade e sua
autoestima; desnaturando-o, artificializando-o.
A personalidade é tida pela técnica como elemento secundário, por não ser
subsumível à biometria; contudo, a predileção técnica pelo homem revela a necessária
investida técnica na abstração da personalidade e artificialização de suas expressões
(psicológico e aparência). “[...] a fim de operar à vontade, a técnica dissocia para em seguida
reconstituir, separa os elementos do homem para sintetizar um homem que ainda não
havíamos conhecido.” (ELLUL, 1968, p. 397).
Nossos gestos não têm mais o direito de exprimir nossa personalidade,
e basta olhar para os velhos ataranhados no meio de uma rua
parisiense para saber que nossa velocidade torna abstrato o
movimento e não suporta os gestos imperfeitos porque humanos.
(ELLUL, 1968, p. 338, grifo nosso).
É preciso mesmo que tudo seja coisificado, reificado para se tornar
objeto da técnica. Tudo reduzido a sua corporalidade. O homem, efim,
condenado a ser somente máquina (acrescentar a isto o termo “que
deseja” nada altera!). (ELLUL, 1984, p. 153).
99
Cada vez menos êsse homem terá tempo de tomar consciência de sua
presença viva? Sem dúvida, dirigirá efetivamente a máquina, mas ao
preço de sua própria individualidade. (ELLUL, 1968, p.407).
Não há mais espaço para individualidade e desenvolvimento da personalidade, pois
ambos ameaçam a imperiosidade do uso técnico pelo projeto político de alienação da
sociedade, cada vez mais transfomada em massa, com exponencial redução da subjetividade.
Como asseverado, a técnica modificou a alimentação, a aparência, a personalidade –
todos os processos naturais! Até mesmo o processo de envelhecimento foi atingido com a
investida técnica no tempo (alteração do ritmo biológico e psicológico) e na aparênca, não há
mais beleza em atingir-se a maturidade, considerada “doença”. A abstração e rigidez técnica
penetram toda a estrutura do ser (ELLUL, 1968, p. 336).
A partir de sua lógica de encadeamento de efeitos, a desconsiderar as causas
primárias, a técnica aplica o enunciado “para dificuldade técnica, remédio técnico”. Atua
sempre no plano das evidências (técnicas). Nesse aspecto, é precioso questionar tais
evidências e raciocinar-se da causa (natural) para os efeitos – forma de enfrentamento dessa
marcha da evolução cega ; pois, reiteradamente, mitiga-se a formação de uma razão
investigativa de causas primárias, de uma razão voltada para o desenvolvimento do humano
complexo.
Prevê resultados que procura. Não fins, mas resultados. E, a partir daí,
dá-se um grande salto no desconhecido e, além desse desconhecido,
encontra-se a explicação de tudo, a resposta a todas as objeções: o
mito do Homem. (ELLUL, 1968, p. 400).
Essa nova estrutura social “inalterável e indiscutível” confere ao homem e à mulher
duas possibilidades (técnicas): continuar a ser o que é e tornar-se cada vez mais inadaptado,
neurotizado e menos eficaz, formando uma humanidade de refugo; ou integra-se à sociedade
técnica, tornando-se o homem de massas (afinal, não se pode viver de outra maneira em uma
sociedade de massas), submetendo-se ao alvedrio técnico de mutação e adestramento
psíquico. (ELLUL, 1968, p. 341).
Contudo, desvela-se: o ser humano é real, o resto é ilusão; o ser humano não é
cindível, é um todo complexo material e espiritual. É um homem em um grupo, não um
elemento do grupo. A despeito da artificialização do meio e do homem, as investidas do uso
técnico não foram capazes de superar o hiato entre a técnica e o homem.
[...] o homem ainda não está à vontade nesse estranho meio, e a tensão
que lhe é aqui exigida pesa gravemente nas armadilhas do sonho.
100
Procura fugir e cai nas armadilhas do sonho. Procura responder e cai
nas organizações. Sente-se inadaptado e se torna hipocondríaco: êsse
mundo previdente e hábil, no entanto, previu todas essas reações do
homem. E empreende-se, por meios técnicos de toda ordem, tornar
vivível pelo homem o que não o é; sem modificar sej ao que fôr, mas
agindo sobre o homem. A psicologia é cada vez mais levada em conta,
pois sabe-se o que significa a moral! (ALLUL, 1968, p. 327-328).
Outrossim, o despertar da consciência crítca individual conduzirá o comportamento
humano à agir coerentemente com sua natureza: humana; não artificializada, não cindida pela
ingerência técnica de abstração e uniformidade. “Em cada um de nós existe uma correlação do
ver e do ouvir, e o justo equilíbrio dos dois produz o equilíbrio da pessoa.” (ELLUL, 1984, p.
6).
O homem é feito de unidade de seu ser, não uniformidade, para que lhe seja
preservada a diversidade, contudo, vive esquartejado por todas as forças deste tempo;
escravizado pouco a pouco por constrangimentos abstratos que lhe dizem o que fazer para ter,
e o que ter para ser. Tornou-se cego, surdo e impotente. Alienado de sua própria existência.
(ELLUL, 1968, p. 332).
A resistência a esse processo de alienação, despersonificação, abstração e
desintegração da humanidade do humano pelo uso técnico reside, conforme assevera J. Ellul
(1968, p. 426) no aperfeiçoamento de técnicas humanas (filosofia, política, espiritualidade),
sendo qualquer outro meio considerado ineficaz ou maléfico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este ensaio pretendeu-se atentar para um dos viés da proposta de Jacques Ellul
consistente no despertamento do homem da escravização da técnica em face do poder
racionalizatório-instrumental que se impõe em todas as relações humanas e no ser humano;
assim, promoveu-se a tentativa de desmi(s)tificação de que a técnica tornou-se inerente ao
progresso infinito e ao desenvolvimento humano.
Porquanto, a construção dialética entre a técnica e o ser humano evidencia algumas
facetas e implicações da ingerência técnica, via instrumentos técnicos de propaganda, no
psicológico, na aparência e na espiritualidade de cada indivíduo a resultar no aniquilamento
da individualidade e obstruir a construção da diversidade, alteridade e solidariedade, e o
despertamento para a espiritualidade.
101
Estamos, de certo modo, na situação do doente que sofre e ao qual se
dá morfina. Esta lhe permite não mais sofrer, não mais ser escravo do
sofrimento. Mas, o homem se acostuma progressivamente com a
droga, não pode mais passar sem ela, torna-se seu escravo e, quando a
doença passou, fica no entanto sob o império do nôvo senhor.
(ELLUL, 1968, p. 423).
Um interessante questionamento foi levantado por J. Ellul ao indagar que tipo de
homem a técnica está gerando (a sua imagem e semlhança de racionalidade e eficiência): será
um homem com as qualidades de Cristo ou um homem oco, vazio, esgotado na materialidade,
vivendo para o consumo e instintos, desvinculado do desenvolvimento complexo e integrado
(?).
[...] não sabemos ainda quais são as repercussões dessa transformação
no homem. Estamos ainda no começo dêsses estudos. Que é que está
modificando no homem pela transformação do meio, em todas as
formas? Não o sabemos. O que é certo é que há modificações. Nós o
pressintimos pelo desenvolvimento das neuroses e pela diferença do
comportamento que nos revela a literatura contemporânea. (ELLUL,
1968, p. 338).
Tal questionamento deve ser respondido por um despertar individual e permanente à
sensibilidade humana (material e espiritual). O homem pode subsistir às circunstâncias
adversas e variadas, contudo, há situações em que, mesmo sobrevivendo, perde tudo aquilo
que faz dele um homem. (ELLUL, 1968, p. 407).
REFERÊNCIAS
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro.
Lisboa: Antipáticas, 2005.
ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. Tradução Maria Cecília de M. Duprat. São Paulo:
Paulinas, 1984.
______. A técnica e o desafio do século. Tradução Roland Corbister. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.
MENEZES, Cynara. Os excessos do lobby. Carta Capital, ano 13, n. 667, p. 26-30, out. 2011.
102
VEJA. Projeto verão. São Paulo, ano 44, v. 2239, n. 42, p. 120-128, out. 2011.
WHITE, Ellen G. A ciência do bom viver. Disponível em: <https://egwwritings.org/>. Acesso
em: 21 out. 2011.
103
A MANIPULAÇÃO DA VIDA E A CONSTRUÇÃO DO HOMEM-
MÁQUINA NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA
Beatriz Rennó Biscalchim1
Jorge Barrientos-Parra2
RESUMO: A partir dos pensamentos de Jacques Ellul o presente artigo propõe-se a
discutir sobre como a técnica passa a condicionar o comportamento do homem, no sentido de
submissão como de influência, tornando essa relação cada vez mais intrínseca e indivisível,
fazendo com que não seja possível identificar parte alguma da sociedade sem a influencia da
técnica. O presente artigo também irá tratar das aplicações da técnica no campo da medicina.
PALAVRAS-CHAVE: Técnica, homem, medicina, influência.
INTRODUÇÃO
O Presente artigo propõe-se a discutir sobre a interação da técnica com o homem, a
luz dos pensamentos de Jacques Ellul, no seu clássico livro A Técnica e o Desafio do Século
precisamente no capitulo V no qual trata das Técnicas Aplicadas ao Homem. O artigo tem o
propósito de tratar dessa interação tanto no sentido de submissão como também de influência
do homem perante a técnica. E como essa interação se torna tão intrínseca que Ellul
caracteriza essa relação com o binômio homem-máquina que o artigo irá descrever como esse
fenômeno acontece. O presente trabalho também irá tratar da questão da unicidade como
característica intrínseca da técnica.
MEDICINA
“Eis-nos diante da forma de intervenções mais importantes: a
cirurgia e a medicina” (Ellul, 1968, p. 394).
1 Graduanda do 2° Ano do curso noturno de Administração Pública pela UNESP- Campus Araraquara. 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
104
Primeiramente devemos colocar alguns exemplos dessas intervenções para melhor
entendimento desse tema.
Em 1935 o neurologista português Egas Moniz, desenvolvia uma intervenção
cirúrgica no cérebro, onde são cortadas as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo que é o
centro de reorganização dos estímulos vindos do tronco cerebral, essa intervenção foi
chamada de Leucotomia pré-frontal ou popularmente conhecida como lobotomia. Por esse seu
trabalho Egas Moniz ganhou em 1949 o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia.
Essa intervenção foi primeiramente utilizada em pacientes graves de esquizofrenia.
Apesar de 6% de seus pacientes não sobreviverem a operação e outros ficarem com alterações
de personalidade muito mais severas, essa técnica foi praticada com muito entusiasmo em
muitos países, já que a técnica apesar dos efeitos colaterais tinha como objetivo social maior
silenciar os doentes psiquiátricos que eram tidos como incômodos naquela época , onde não
havia ainda os fármacos antipsicóticos.
Em 1936 nos Estados Unidos, o medico Walter Fremam utilizou uma variante dessa
intervenção onde espetava um picador de gelo no crânio do paciente, e com a ajuda de um
martelo ele o girava e destruía assim as conexões neurais entre os lobos frontais e a tálamo.
Essa intervenção apesar de seus métodos horríveis de aplicação chegou a tal certo ponto de
popularidade que chegou a ser utilizado em crianças com mau comportamento.
Graças aos abusos excessivos de sua utilização como também seus resultados
irreversíveis e com a descoberta dos primeiros fármacos psiquiátricos, essa técnica foi banida
a partir dos anos 50 na maioria dos países onde eram praticados, e ficou marcada na historia
como uma técnica bárbara da psicologia.3
Outro exemplo é a Talidomida que é um medicamento desenvolvido na Alemanha e
lançado no mercado no final da década de 50.
Esse medicamento era utilizado como calmante e ansiolítico, a Talidomida foi
utilizada largamente por gestantes para controlar as náuseas e a ansiedade da gravidez. No
entanto o que elas não sabiam é que esse remédio causava má formação do feto. Depois de
vários casos de bebês com atrofiamento dos membros e em alguns casos até com deficiências
na coluna vertebral, cegos e surdos, foi-se pesquisar o que estava causando essas deficiências
nos bebês, e se descobriu que a culpa era do medicamento Talidomida, ou seja, o remédio foi
lançado no mercado sem ter sido submetido aos devidos testes de laboratório.
3 Dados obtidos em : LEVINSON, Hugh . Lobotomia faz 75 anos: De cura milagrosa a mutilação mental. BBC
News, 15 de Novembro de 2011. Disponível em
<http:/www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/11/111110_lobotomia_75_anos_mv.shtml?print=1>.
105
Em 1961, depois de protestos a Talidomida foi proibida no mundo, Mas, no entanto
em 1965 descobriu-se que esse medicamento auxiliava no tratamento da hanseníase, o que fez
com que sua fabricação voltasse.4
Um outro exemplo é um artigo publicado no site da ANA (Articulação Nacional de
Agroecologia), contendo um estudo que trazia as consequências que um transgênico e um
agrotóxico provocam a saúde humana.
No estudo foram utilizados o milho transgênico NK 603, e o agrotóxico Roundup
que é o mais utilizado no planeta.
O estudo foi realizado com 200 ratos submetidos a três alimentações distintas, as
doses do milho com os agrotóxicos utilizados na dieta dos ratos são equivalentes à dieta da
população norte americana em sua alimentação cotidiana.
Os resultados foram alarmantes, eles revelaram uma mortalidade muito alta quando
consumidos os dois produtos, e também os ratos desenvolveram tumores maiores que uma
bola de ping-pong, as fêmeas desenvolveram tumores mamários, e problemas renais, os
machos morreram em sua maioria por problemas crônicos hepato-renais. Esse estudo revela
os riscos que os alimentos transgênicos e os agrotóxicos representam para a saúde da
população.5
Por fim, outro exemplo, estudos sobre a gripe espanhola que foi uma pandemia que
ocorreu nos anos de 1918 ao final da II Guerra Mundial, e se espalhou por quase todo o
mundo, afetou 50% da população mundial, e matou de 20 a 40 milhões de pessoas sendo
qualificada como o mais grave conflito epidêmico de todos os tempos, nesses estudos
publicados na revista Science,6 uma equipe Americana, em 2003, adicionou dois genes de
uma amostra de vírus da gripe espanhola a uma linhagem moderna de gripe, essas alterações
provocadas nos vírus da gripe moderna podem torná-lo tão mortais quanto a linhagem
existente em 1918.
O Professor Dr. Jorge Barrientos-Parra sintetiza claramente o que se pensa sobre essa
questão:
4 Dados obtidos nos sites : Associação Brasileira dos portadores da síndrome da Talidomida
<http:/www.talidomida.org.br>, e Associação Brasileira das vitimas da talidomida
<http:/www.abvt.wordpress.com/o-que-e-a-talidomida>.
5 Dados obtidos no site: ANA – Articulação Nacional de Agroecologia
<http://www.agroecologia.org.br/index.php/noticias/noticias-para-o-boletim/333-transgenicos-aumentam-em-
ate-tres-vezes-ocorrencia-de-cancer-em-ratos>.
6 Science, 26 de maio de 2006. Chemical Synthesis of Poliovirus cDNA: Generation oh Infectious Virus in the
Absence of Natural Template”. Disponível em <http:www.sciencemag.org/content/297/5583/1016.short>.
106
Ora essas doenças (varíola, poliomielite e gripe espanhola) trouxeram
morte e muita dor ao longo da História [...] as mutações do vírus da
gripe espanhola até agora amedrontam meio mundo, como vimos no
caso da gripe aviária. Racionalmente esperaríamos que se fizesse de
tudo para manter essas três pestes naturais sobre controle. Eis,
entretanto que as recriamos artificialmente.7
Essas doenças ficaram marcadas na historia trazendo morte e dor no mundo inteiro o
mínimo que se esperava como diz Barrientos na citação “estar sob controle”, e eis que
recriamos uma mutação mais mortal do que a ultima.
Em seu livro Ellul nos diz que essas técnicas que degeneram o ser humano e são
consideradas graves, o campo de utilização delas é muito limitado, pois não querem que o
grande público fique sabendo delas, pois isso iria gerar reações espetaculosas, foi o que
aconteceu no caso da Lobotomia a partir do momento em que apareceram os primeiros
fármacos psiquiátricos, essa intervenção foi banida e considerada bárbara, mas a partir do
momento que essas técnicas está ao nosso dispor nós em algum momento iremos utilizá-las
“porque tudo o que é técnico, sem distinção de bem e mal, é forçosamente utilizado quando
está ao nosso dispor”.(ELLUL, 1968, p. 103).
Mas então porque criamos essas técnicas? Ellul nos diz que a técnica se guia através
de novas descobertas se orienta pela eficiência e não se deixa manipular por questões da
moral, e religião. Se naquela época precisava-se achar uma solução para silenciar os doentes
psiquiátricos a técnica o fez, não levou em conta a moral, nem as consequências que trariam
para o paciente, pois para ela o objetivo era tratar os pacientes e esse objetivo foi alcançado, e
por isso foi utilizado por tanto tempo.
A Talidomida foi primeiramente utilizada como calmante pelas grávidas que não
sabiam de suas consequências, mas o objetivo da técnica que era ser utilizada como calmante
foi alcançado.
Na questão dos transgênicos, no Brasil o milho em questão foi autorizado em 2008 e
está amplamente disseminado nas lavouras, e o agrotóxico Roundup é o mais utilizado nas
lavouras do mundo todo, sobretudo nas transgênicas. Esse caso é muito grave, pois é um caso
da atualidade, e que nos atinge, a técnica passa até a ferir nosso direito à saúde para alcançar
sua eficiência, Artigo 6º da Constituição Federal:
7 Barrientos-Parra, J.B. A técnica como desafio do século XXI, p. 69. Anais do IV Seminário brasileiro sobre o
pensamento de Jacques Ellul 2011. Disponível: http://jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/11/09/anais-do-iv-
seminario-brasileiro-sobre-o-pensamento-de-jacques-ellul/>
107
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
Os estudos foram feitos com ratos, mas as quantidades de milho e agrotóxico ao qual
eles foram submetidos são equivalentes à dieta diária de uma pessoal, ou seja, quem garante
que nós humanos ingerindo esses produtos também não vamos desenvolver tumores.
Um exemplo de que as técnicas modificam sim o energismo humano, mas agora
saindo um pouco do campo da medicina e entrando na questão social, e da cultura, são as
tribos indígenas que estão cada vez mais perdendo sua essência sua cultura a medida com que
entram em contato com as técnicas da sociedade tecnológica.
Outro motivo pela qual tal essas técnicas sejam aplicadas é que não se pode separar o
lado bom do lado ruim da técnica essas partes estão intrinsecamente ligadas, é o conceito da
Unicidade da técnica que é uma característica própria dela. Ellul diz em seu livro: “é uma
característica intrínseca, não é possível distinguir entre os diversos elementos da técnica, dos
quais uns poderiam ser mantidos, os outros afastados; distinguir entre a técnica e o uso que
dela se faz” (ELLUL, 1968, p.98).
Podemos até ficar com receio, pois não sabemos o que esperar dela, e para ela
interessa deixar o grande publico na ignorância para que suas intervenções sejam aplicadas
sem grandes exaltações.
Ellul em uma passagem conclui brilhantemente a questão das intervenções no
homem “que se possa modificar efetivamente o ser humano, não há duvidas, mas não se sabe
ainda em que sentido se opera essa modificação nem o que se pode esperar exatamente de tais
intervenções” (ELLUL, 1968, p. 394).
HOMEM – MÁQUINA
A técnica como já dito é aplicada onde é necessária e se orienta rumo a novas
descobertas e se dirige a pessoa. Em uma passagem Thomas B. Macaulay escreve sobre a
ciência e a técnica:
prolonga-se a vida, mitigou a dor, extingui doenças, aumentou a
fertilidade dos solos, deu novas possibilidades para o navegador,
forneceu armas ao guerreiro, atravessou grandes rios e estuários com
pontes que desconheceram nossos pais[...] iluminou a noite com o
esplendor do dia, ampliou o alcance da visão humana, multiplicou o
poder dos músculos humanos, acelerou o movimento, reduziu as
108
distâncias, facilitou a comunicação e a condução dos negócios e das
expedições comerciais[...] estes são apenas alguns dos seu frutos, de
seus primeiros frutos, pois é uma filosofia que nunca repousa, que
nunca se detém, que nunca está perfeita. A sua lei é o progresso.
(Thomas B. Macaulay, 1837)
A passagem é antiga, mas já se viam os primeiros frutos da técnica. Cada técnica
corresponde a uma necessidade humana, o que move a técnica é a eficiência, e como na
citação ela nunca esta perfeita, a lei da técnica é o progresso.
A sociedade moderna nunca esteve tão atrelada com a técnica tudo o que fazemos,
necessitamos, ou não necessitamos é imposto ou manipulado por ela, o que faz com que nosso
comportamento seja condicionado.
Passa-se assim o homem a ser analisado em todos os seus aspectos, duração,
resultados, o homem passa a ser contabilizado, racionalizado e a técnica cria um tipo de
homem tido como o único perfeito. Ellul nós diz em seu livro “a técnica passa a me fornecer
as normas de minha vida no que diz respeito à habitação trabalho, nutrição, educação e etc...”
(ELLUL, 1968,p.405). Nessa passagem fica explicito que a técnica cria um tipo de homem,
um modelo, ao qual todos nós seguimos, porque a técnica faz com que acreditemos que esse
modelo é o perfeito de comportamento.
A técnica então condiciona o modo de pensar, de se vestir, de agir, condiciona,
portanto o nosso comportamento.
Ela desenvolve um conhecimento técnico do homem cada vez mais minucioso, e cria
com isso uma relação muito grande que Ellul caracteriza com o binômio homem-máquina, ao
qual nos da a primeira vista uma interpretação de uma relação de adaptação da máquina ao
homem, mas essa relação tem um outro sentido, uma outra contrapartida. Essa outra
interpretação supõe a adaptação perfeita do homem diante da máquina que é a técnica em seu
estado puro. Um exemplo que Ellul coloca em seu livro e que reflete exatamente o que essa
afirmação nó quer dizer é o exemplo do operário de uma fabrica. O operário que trabalha em
uma fabrica com o sistema de montagem em serie, ele esta condicionado a fazer os mesmos
movimentos varias horas por dia, isso o leva a sentir um mal estar, um desconforto perante o
trabalho, esse sentimento o faz querer pedir demissão do trabalho, mas ele não o faz porque
esse operário fora da fabrica tem um lar, uma família, tem contas a pagar, então ele se
submete aquele trabalho, aquela máquina, pois precisa dela para se sustentar.
A técnica também tende a se tornar cada vez mais especializada, mais minuciosa,
mais rigorosa calculada para um tipo certo de homem, um homem que se adapte cada vez
109
mais a ela, o que faz com que o binômio homem – máquina se torne cada vez mais
indivisível.
Ellul trata em seu livro que essa relação de adaptação do homem a técnica, não
precisa ser aceito, mas essas pessoas que não se adaptarem a ela terão uma posição de
inferioridade perante ela e aos outros que se adaptaram com ela.
Chegamos então um condicionamento tão forte, tão intrínseco do homem em relação
a técnica, “quanto mais se encontra o homem no desenvolvimento técnico, mais se encontra
ele inserido nela” (ELLUL, 1968, p. 406).
O mundo inteiro se torna cada vez mais técnico, os adaptáveis serão cada vez, mais
adaptados e os que não se adaptarem não terão espaço na sociedade que é técnica.
CONCLUSÃO
Podemos concluir com todas essas considerações que a técnica é aplicada onde é
necessária, e busca alcançar seu objetivo, não importa como, importa que seja eficiente para
aquele caso, se a técnica levasse em consideração a moral talvez a lobotomia nunca fosse
aplicada, ou talvez os indígenas ainda contivessem sua essência maior. Como ela segue a lei
da especialização, a medida que se adquire mais conhecimento, mais se pretende modificar o
interior do homem.
A técnica nós dias de hoje já contabilizou o homem, a sociedade se tornou técnica,
não se faz mais nada sem ter um vestígio dela.
O homem agora passa então a ser técnico, todos nossos comportamentos são
condicionados por ela, e como diz Ellul quem não se adaptou perante a técnica, passou a uma
posição inferior, pois quem se adaptou progrediu e quem não aceitou essa condição ficou em
uma posição inferior. Um exemplo nos dias de hoje, no mundo globalizado a língua inglesa
deixou de ser um diferencial no currículo, agora é um item obrigatório, quem tem a língua
passa na frente de quem não tem.
E a técnica cada vez mais vai ser especializar e a sociedade vai se especializar junto
com ela, pois agora a técnica dita as regras.
REFERÊNCIAS
110
BARRIENTOS-PARRA, J.B. A técnica como desafio do século XXI, p. 69. Anais do IV
Seminário brasileiro sobre o pensamento de Jacques Ellul, 2011, Rio de Janeiro.
Constituição Federal de 1988.
ELLUL, J. A Técnica e o Desafio do Século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
LEVINSON, Hugh. Lobotomia faz 75 anos: De cura milagrosa a mutilação mental. BBC
News, 15 de Novembro de 2011.
MACAULAY, T. B. Ensaio sobre Bacon, 1837.
SCIENCE, 26 de maio de 2006. Chemical Synthesis of Poliovirus cDNA: Generation oh
Infectious Virus in the Absence of Natural Template.
Internet
http:/www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/11/111110_lobotomia_75_anos_mv.shtml?print=1
http:/www.abvt.wordpress.com/o-que-e-a-talidomida
http:/www.talidomida.org.br
http:www.sciencemag.org/content/297/5583/1016.short
http://jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/11/09/anais-do-iv-seminario-brasileiro-sobre-o-pensamento-de-
jacques-ellul/
http://www.agroecologia.org.br/index.php/noticias/noticias-para-o-boletim/333-transgenicos-aumentam-em-ate-
tres-vezes-ocorrencia-de-cancer-em-rato
111
A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA NA ECONOMIA NO PENSAMENTO DE
JACQUES ELLUL
Carla Arantes de Souza1
Resumo: O pensamento de Jacques Ellul (1912-1994), cuja técnica se apresenta como a
categoria central, foi perspicaz no sentido de desvendar muitos dos problemas que acometem a
existência humana em nossa era, suas análises mantêm-se sobremaneira atuais. É o que ocorre com
suas observações acerca das influências da técnica na Economia, principalmente sobre os ditames
de eficiência que repercutem na sua pretensão de ciência exata e expurgam do seu campo de análise
qualquer juízo moral. Ellul denuncia o afastamento entre Economia e Sociedade e demonstra o
caráter antidemocrático da técnica econômica. No que diz respeito ao problema do dinheiro e o seu
papel no exercício do poder na sociedade, Ellul conclama a responsabilidade individual em
detrimento das soluções coletivistas que apregoam as mudanças integrais do sistema econômico.
Estes são alguns dos pontos que pretende enfrentar o artigo a partir de uma revisão bibliográfica.
Palavras-chave: Técnica. Economia. Dinheiro. Liberdade. Democracia. Responsabilidade
individual.
SUMÁRIO: Introdução; 2 A caracteriologia da técnica em Jacques Ellul; 3
Os ditames técnicos na Economia: sobre o distanciamento entre Economia,
sociedade e as tratativas da técnica contra a democracia; 4 O giro de Ellul:
das soluções coletivistas, para a tomada de consciência das
responsabilidades individuais, ou contra a ótica do imobilismo;
Conclusões; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Introdução
Em tempos de crise civilizacional, da barbárie no campo social e do esvaziamento do
sentido da existência humana, a qual não pode se sustentar fora do consumismo, do desfrute dos
bens materiais que se manifesta em sinais externos de riqueza, do frenesi das redes sociais, dos
celulares “inteligentes”, faz-se premente debruçar-se sobre os pensadores que de forma crítica
1 Mestranda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP (Franca-SP) na linha de
pesquisa “Direito, Mercado e Relações Internacionais”. Integrante do Grupo de Estudos e Extensão Democracia
Econômica (GEDE).
112
buscaram desvendar este estado de coisas, no qual o homem tem cada vez menos espaço,
substituído pelos ditames técnicos que a tudo desumaniza, objetiva e transforma em meio.
O pensamento de Jacques Ellul (1912-1994), neste sentido, mostra-se campo profícuo de
análise para a investigação da sociedade técnica, sua dinâmica, assim como de questionamento
acerca dos caminhos possíveis para a reconstrução das subjetividades usurpadas pela tirania
objetivadora da técnica, da possibilidade da escolha autêntica acerca do próprio caminhar, do
próprio exercício da liberdade humana. Daí a perspicácia da indagação que perpassa a obra de
Jacques Ellul “existe, ainda, espaço para o homem neste mundo técnico?
A técnica de nossa época, segundo Ellul, dominou todos os campos da existência,
subordinando tudo e todos aos valores e propósitos exclusivamente técnicos. A técnica sempre
esteve presente na história da humanidade, no entanto esta que se nos apresenta, a qual se coloca
acima do bem e do mal, inalcançável pela moral e pela ética, já que a técnica consubstanciou-se no
único valor possível, fez render os homens e mulheres a nenhum outro propósito senão a busca da
eficiência técnica.
O mesmo se dá no âmbito da Economia, e, ainda que sobre ela tenha escrito em momento
histórico com conjuntura político-econômica distinta, Ellul denuncia com extrema lucidez inúmeros
aspectos da ciência econômica de nosso tempo, sobretudo no que diz à impossibilidade de
coexistência das atuais técnicas econômicas e da democracia, tendo em vista que a técnica
econômica não é debatida pela sociedade, circunscrevendo-se ao âmbito de competência dos
técnicos, informada por motivos exclusivamente técnicos; as técnicas econômicas têm na eficiência
seu fim último, em detrimento da moral e dos valores humanos ou qualquer outra preocupação que
não seja de natureza técnica. Não há nada que possa obstar a concretização da racionalidade técnica.
Outro ponto do pensamento de Jacques Ellul que abordamos neste trabalho é a sua
oposição aos que apregoam as soluções sistêmicas, os quais defendem: basta mudar o sistema
econômico e todos os problemas que afligem a sociedade desaparecerão! Como se tal fosse capaz
de recolocar o homem e a mulher em posição de maior importância, em detrimento do fenômeno
técnico. Vai-se verificar, a propósito, as críticas eloqüentes de Ellul à crença nas grandes soluções
coletivas, denunciando o quão covarde é tal atitude, visto que exime o indivíduo de qualquer
responsabilidade, por exemplo, com relação à forma como utiliza o seu dinheiro, e outras ações que
impõem ao indivíduo o desafio de empreender uma escolha: submeter-se aos ditames técnicos ou
rebelar-se e seguir o penoso caminho da escolha autêntica.
2 A caracteriologia da técnica em Jacques Ellul
113
A técnica, segundo Ellul, sempre esteve presente na história da humanidade, ocorre que a
que marca estes dois últimos séculos, não é a mesma de outrora, trata-se de fenômeno inteiramente
novo. Adverte Ellul que aqueles que analisam o fenômeno técnico ainda reproduzindo a visão do
século XVIII, com centralidade na máquina, nada compreenderam da técnica; cometem, assim,
equívoco inescusável. Segundo ele “(...) a técnica é característica precisamente onde a máquina não
funciona” (ELLUL, 1968 p. 5). O fenômeno técnico alcançou todos os espaços da sociedade, da
reprodução da vida, e uma das maiores novidades é que “(...) a técnica deixa de ser ela mesma
objeto para o homem, torna-se sua própria substância [sic.]: não é mais colocada em face do
homem, mas nêle [sic.] se integra e o absorve progressivamente” (ELLUL, 1968 p. 5).
Sobre as relações da técnica e da máquina:
A técnica integra a máquina na sociedade, a torna social e sociável.
Constrói para ela igualmente o mundo que lhe era indispensável, põe
ordem onde o choque incoerente das bielas havia acumulado ruínas.
Clarifica, arruma e racionaliza: faz, nos domínios abstratos, o que a
máquina fez no domínio do trabalho. (ELLUL, 1968 p. 4)
Até o sec. XIX as técnicas empregadas não tinham caráter absoluto, existia alguma
margem de escolha possível ao homem, segundo Ellul, até esta fase da história as técnicas subsistem
numa diversidade de formas, a imitação é lenta; neste contexto a ação do homem ainda é
fundamental, pois “Quando ocorre o contato de várias formas técnicas, o homem decide da escolha
em função de numerosas razões; a eficácia é apenas uma delas, como Deffontines deixa claro, por
exemplo” (ELLUL, 1968, p. 79). Em outras palavras, “(...) o pêso [sic.] material das técnicas ainda
não é sobre-humano (ELLUL, 1968, p. 80).
Diferentemente, o fenômeno técnico que nos circunda, progressivamente atingiu toda a
civilização (ELLUL, 1968, p. 130), passamos a conviver com a tirania da técnica; a única
racionalidade possível, a eficiência.
Isso significa que a técnica que toma o homem por objeto se encontra bem no centro da
civilização, e vemos esse extraordinário acontecimento que a ninguém parece surpreender,
formulado freqüentemente pela designação „civilização técnica‟. A fórmula é exata e é preciso
avaliar sua importância: civilização técnica, isso significa que nossa civilização é construída pela
técnica (faz parte da civilização ùnicamente [sic.] o que é objeto da técnica), que é construída para a
técnica (tudo o que está nesta civilização deve servir a um fim técnico), que é exclusivamente
técnica (exclui tudo o que não o é ou o reduz à sua forma técnica). (ELLUL, p. 129)
114
Eis que a partir da segunda metade do sec. XVIII e, sobretudo, no correr do sec. XIX, deu-
se uma proliferação de invenções técnicas sem precedentes. Ellul relata que já no século XVIII
existia entre os filósofos o otimismo e a crença de que as invenções técnicas seriam capazes de “(...)
facilitar a vida dos homens, de proporcionar-lhes mais conforto e simplificar seu trabalho” (ELLUL,
p. 47). Este visão filosófica acabou por engendrar a proposição de que a ciência deveria orientar-se
por objetivos práticos, a aplicação da técnica, levaria inevitavelmente “(...) não apenas a felicidade,
mas a justiça. Nesta atitude encontra seu ponto de partida o mito do progresso”. (ELLUL, p. 48-
49).2
Ellul, no segundo capítulo da sua obra intitulada “A Técnica e o desafio do século”3 traça a
caracteriologia da técnica dos tempos atuais. Segundo ele as principais características desta são: o
automatismo, o autoacréscimo, a insecabilidade, o universalismo, a autonomia.
O automatismo diz respeito ao automatismo da escolha técnica, esta se reproduz por si
mesma; a escolha é orientada exclusivamente por motivos técnicos, o ser humano não possui mais
qualquer possibilidade de escolha (porque desta renunciou), figura como mero operador dos
imperativos técnicos. Nas palavras de Ellul:
(...) é a técnica que agora opera a escolha “ipso facto”, sem remissão, sem
discussão possível, entre os meios a utilizar. O homem não é mais, de
modo algum, o agente da escolha. Não se diga que o homem é o agente do
progresso técnico (...) e que ainda escolhe entre as técnicas possíveis. Na
verdade não: é um aparelho registrador dos efeitos, dos resultados obtidos
por diversas técnicas, e não escolhe por motivos complexos e de certo
modo humanos; decide apenas em função do que apresenta o máximo de
eficiência. Não é mais uma escolha: qualquer máquina pode efetuar a
mesma operação. (ELLUL, 1968, p. 83)
Aliás, segundo Ellul, “A pior reprovação que se possa imaginar em nosso mundo
moderno, é precisamente dizer que tal pessoa ou tal sistema impede êsse [sic.] automatismo
técnico”. (ELLUL, 1968, p. 83) Este é motivo pelo qual Ellul acredita na derrocada do capitalismo,
justamente porque este impede este automatismo4. Neste sentido, para Ellul, K. Marx estava correto
2 Ellul explica tal transformação da sociedade mediante a ocorrência de cinco fatores: “(...) o desfecho de uma
longa experiência técnica, o crescimento demográfico, a aptidão do meio econômico, a plasticidade do meio
social interior, o aparecimento de uma clara intenção técnica”. (ELLUL, 1968, p. 49)
3 ELLUL, Jacques. A Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 63-150.
4 Nas palavras do autor, “A reação capitalista é bem conhecida: compram as patentes das novas máquinas mas
não as utilizam; às vezes como ocorreu em 1932 na maior fábrica inglêsa [sic.] de espelhos e de vidros,
compraram máquinas já em funcionamento e as destruíram. O regime capitalista também não pode, no plano
econômico e social, seguir o automatismo técnico porque é incapaz de organizar um sistema de repartição dos
produtos que permita absorver tudo o que a técnica permite produzir: é levado invitàvelmete [sic.] a crises de
115
quando previa o desaparecimento daquele, visto que “Encontramo-nos, atualmente, na fase de
eliminação histórica de tudo aquilo que não é técnico”. (ELLUL, 1968, p. 87) Do ponto de vista
técnico, segundo Ellul, o comunismo apresenta-se como sistema mais eficiente no sentido de
melhor possibilitar o automatismo.
Com relação ao autocrescimento,
Êsse [sic.] princípio pode ser formulado em duas leis: 1.º Em uma
civilização técnica, o progresso é irreversível; 2.º O progresso técnico
tende a efetuar-se, não de acôrdo [sic.] com uma progressão aritmética,
mas de acordo com uma progressão geométrica.
A primeira dessas leis dá-nos uma certeza baseada em tôda [sic.] a história,
de que cada invenção técnica provoca outras invenções técnicas em outros
domínios. Jamais ocorre uma parada, ainda menos um retrocesso.
(ELLUL, 1968, p. 92-93)
A segunda lei diz respeito à solidariedade das técnicas, visto que “(...) uma descoberta
técnica tem repercussões e acarreta progressos em vários ramos da técnica e não em um só ramo;
em segundo lugar: as técnicas combinam-se entre elas e quanto mais há dados técnicos a combinar,
maior é o número de combinações possíveis” (ELLUL, 1968, p. 94), nisto reside a progressão
geométrica.
Enfim (...) a técnica, desenvolve-se, apresenta problemas inicialmente
técnicos, os quais por isso mesmo, só podem ser resolvidos pela técnica. O
nível atual reclama um novo progresso e esse progresso aumenta, ao
mesmo tempo, os inconvenientes e os problemas técnicos, exigindo, em
seguida, ainda outros progressos (ELLUL, 1968, p. 95).
O elemento da unidade ou insecabilidade consiste na impossibilidade de “(...) distinguir
entre a técnica e o uso que dela se faz. Essas distinções são rigorosamente falsas e provam que nada
se compreendeu do fenômeno técnico, cujas partes são antològicamente [sic.] ligadas e cujo uso é
inseparável do ser”. (ELLUL, 1968, p. 98). Não se podem separar os diversos elementos que
compõem a técnica com o propósito de afastar alguns (os maus) e manter outros (os bons).
Igualmente, Ellul adverte o equívoco que reside na crença de muitos que defendem que
“Desde que se modifique o uso não haverá mais inconvenientes na técnica”. (ELLUL, 1968, p. 99).
Também, o erro da opinião que apregoa ser possível
superprodução; também não pode utilizar a mão-de-obra liberada pelo progresso técnico: ocorre então a crise do
desemprego”. (ELLUL, 1968, p. 84-85)
116
[...] orientar a técnica (e não seu uso) na direção do que é positivo,
construtivo, enriquecedor, deixando de lado o que é destruidor, negativo,
esterelizante. Em têrmos [sic.] demagógicos, deveríamos desenvolver as
técnicas de paz e deixar de lado as técnicas de guerra. De modo menos
simplista, procurar os meios que atenuam os inconvenientes técnicos, sem
agravá-los, portanto: não teria sido possível descobrir os motores atômicos
e a energia atômica sem criar a bomba? Raciocinar assim é estabelecer
uma separação entre os elementos técnicos que nada justifica. Não há
técnicas de paz e técnicas de guerra (ELLUL, 1968, p. 102).
Trata-se de mecanismo próprio da técnica, pois esta inevitavelmente gera sofrimentos,
flagelos, porque estes são integrantes dela mesma; não podem ser dissociados. Outro aspecto trágico
do fenômeno técnico é que “O instrumento tende a aplicar-se sempre que pode ser aplicado;
funciona porque existe sem discriminação” (ELLUL, 1968, p. 103), e será aplicado ainda que não se
possa prever a totalidade de suas conseqüências, pois “(...) tudo o que é técnico sem distinção de
bem e de mal, é forçosamente utilizado quando está a nosso dispor”. (ELLUL, 1968, 103)
O último, o mais decisivo e marcante elemento da técnica é a autonomia, pois que
“Tornou-se [a técnica] uma realidade em si, que se basta a si mesma, com suas leis particulares e
suas determinações próprias” (ELLUL, 1968, p. 135).
A técnica condiciona e provoca as mudanças sociais, políticas e econômicas. É o motor de
todo o resto, apesar das aparências, apesar do orgulho do homem que pretende que suas teorias
filosóficas ainda têm uma força determinante e que seus regimes políticos são decisivos na
evolução. Não são mais as necessidades externas que determinam a técnica, são suas necessidades
internas (ELLUL, 1968, p. 135).
Desta forma, alçada uma posição para além do bem e do mal, “A técnica não suporta
nenhum julgamento, não aceita limitação alguma. A moral decide dos problemas morais; quanto
aos problemas técnicos não lhe cabe opinar. Sòmente [sic.] critérios técnicos devem ser postos em
jôgo [sic.]” (ELLUL, 1968, p. 136). A técnica não só se encontra livre do controle, do juízo de
valor, eis que “[...] seu poder, sua autonomia, acham-se tão bem estabelecidos que ela se transforma
por sua vez em juiz da moral, em construtora de uma nova moral” (ELLUL, 1968, p. 136). Neste
sentido não pode a técnica ser considerada um elemento neutro.
Neste quadrante, o homem assume definitivamente o seu papel de coadjuvante perante a
técnica,
(...) esta prossegue seu curso cada vez mais independentemente do homem,
isto é, que o homem participa cada vez menos ativamente da criação da
técnica, que se torna uma espécie de fatalidade, por combinação
automática dos elementos anteriores. O homem é reduzido, nesse processo,
117
ao nível de catalizador ou ainda de ficha que se coloca na abertura do
aparelho automático e que desencadeia o movimento sem dele participar.
(ELLUL, 1968, p. 137)
Não há escapatória diante do domínio técnico, “Quando a técnica não está perfeitamente
adaptada ao fim que o homem se propõe, quando o homem pretende subordinar a técnica a seu fim
pessoal, percebe-se logo que é o fim que se modifica e não a técnica” (ELLUL, 1968, p. 143-144).
Não se trata mais, então de fazer desaparecer o homem, mas de levá-lo à composição, de
levá-lo a enquadrar-se na técnica, a deixar de experimentar os sentimentos e as reações que lhe
seriam pessoais. Não há técnica possível com um homem livre. (...) É preciso que a técnica reduza o
homem a ser um animal técnico, rei dos escravos técnicos. Não há fantasia que se mantenha diante
dessa necessidade, não é possível a autonomia do homem em face da autonomia técnica. O homem
deve então ser trabalhado pelas técnicas, seja negativamente (técnicas de conhecimento do homem),
seja positivamente (adaptação do homem ao quadro técnico), para fazer desaparecer as arestas que
sua determinação pessoal introduz no desenho perfeito da organização (ELLUL, 1968, p. 140).
Com a desumanização do homem, perdem-se os laços sociais, a sociedade inteira vê-se
arruinada, resta somente a técnica, que se incumbe a si mesma a tarefa de mediar as relações dos
homens e mulheres com o mundo e consigo mesmos.
Ora, a técnica é um meio de apreensão da realidade, de ação sôbre [sic.] o
mundo, que permite precisamente desprezar toda diferença individual, toda
subjetividade. É rigorosamente objetiva. Apaga as opiniões pessoais, os
modos de expressão particulares ou mesmo coletivos. O homem vive
atualmente por participação em uma verdade tornada objetiva: a técnica é
apenas uma ponte entre a realidade e o homem abstrato. Cria também um
laço entre os homens. Os que agem tôdos [sic.] de acordo com a mesma
técnica estão ligados uns aos outros por uma fraternidade informulada.
Têm de fato a mesma atitude em face da realidade. Não precisam falar-se,
compreender-se em sua verdade ou sua personalidade (ELLUL, 1968, p.
133).
Não bastasse todas as inflexões da técnica para o domínio de todos os espaços de
reprodução da vida, ela, ainda, usurpa do homem tudo o que este acreditava ser sagrado, misterioso,
pois a técnica descobre tudo (o mistério não é nada mais do aquilo que a técnica ainda não
desvendou), “(...) tudo isso a técnica se apodera e põe a seu serviço” (ELLUL, 1968, p. 145) E,
como “(...) o homem não pode viver sem sagrado; transfere seu senso de sagrado para aquilo
mesmo que destrói tudo o que era seu objeto (do sagrado): para a técnica. No mundo em que
vivemos foi a técnica que se tornou o mistério essencial”. (ELLUL, 1968, p. 146)
118
No campo sociológico as consequências são severas,
O homem perde o senso social e comunitário em contato com a técnica, ao
mesmo tempo que se quebram, sob a ação das técnicas, os quadros que o
mantêm. Isso se verifica de várias maneiras: desaparecimento das
responsabilidades, das autonomias funcionais, das espontaneidades
sociológicas, ausência de contatos entre os meios técnicos e o meios
humanos, etc. (ELLUL, 1968, p. 128).
Para Ellul, o fenômeno técnico é irreversível, totalitário, e passa ao largo da imensa
maioria, ou seja, dela ainda não tomamos consciência; não somos capazes de medir seu alcance
(ELLUL, 1968, passim).
Seja o operário que apregoa seu pôsto [sic.] porque nêle [sic.] encontra
uma alegre confirmação de sua superioridade ou o jovem esnobe que corre
a 150 quilômetros na estrada com seu Oldsmobille, ou o técnico que
observa a elevação das estatísticas, ao que dizem respeito; de qualquer
modo a técnica é sagrada porque é a expressão comum do poder do
homem e porque sem ela voltaria a ser pobre, só e nu, sem disfarces,
deixando de ser o herói, o gênio, o arcanjo que um motor lhe permite ser a
preço módico. E mesmo aquêles [sic.] que sofrem, que foram
desempregados ou arruinados pela técnica, mesmo aquêles [sic.] que a
criticam ou atacam (sem ousar ir muito longe, teriam contra eles todos os
adoradores) têm em relação a ela essa má consciência de que sofrem todos
os iconoclastas. Não encontram em si mesmos ou fora dêles [sic.] uma
fôrça [sic.] compensadora daquilo que põem em dúvida. Não vivem no
desespêro [sic.] que seria o testemunho de sua libertação (ELLUL, 1968, p.
129).
3 Os ditames técnicos na Economia: sobre o distanciamento entre Economia e
sociedade e as tratativas da técnica contra a democracia
Os ditames técnicos na Economia, conforme assinala Ellul, atribuem a esta a natureza de
ciência exata, cuja análise do seu desempenho só pode se dar por meio da análise técnica dos
mecanismos numéricos, matemáticos que a representam; a análise se dá, pois, num plano técnico e
abstrato, não possuindo qualquer relação com a ética, a moral ou com preocupações atinentes ao
bem viver dos povos. Isto se dá não sem antes a técnica promover uma cisão entre sociedade e
Economia. Nas palavras do autor:
Ao passo que nas civilizações tradicionais o aspecto social e o aspecto
econômico são indissolùvelmente [sic.] ligados a um todo comunitário, em
119
uma sociedade técnica os dois aspectos são rigorosamente separados, o que
dissolve o grupo todo inteiro. As duas atividades conjuntas (de produção e
de relação) não podem ser separadas sem que esta separação arruíne a
sociedade tôda [sic.]. (ELLUL, p. 128-129)
Em meio à tecnificação da Economia informada pelo valor único da eficiência, as decisões
podem ser tomadas somente pelos técnicos, não se trata de assunto que diga respeito aos cidadãos
comuns. Neste sentido:
Até agora, todo homem medianamente culto podia acompanhar os
trabalhos, as teorias dos economistas. Atualmente é preciso ser um
especialista e um técnico. De um lado, a técnica, ela própria difícil, e os
instrumentos que lhe são necessários não podem ser manejados sem prévia
educação; de outro, o desejo de muitos economistas é o de construir-se um
círculo fechado. Isso acarreta a conseqüência sempre grave de excluir o
público da vida técnica, mas não pode ser de outra maneira. (ELLUL,
1968, p. 165)
Processa-se, nesta conjuntura, uma mutação profunda da economia política. Esta não é
mais uma ciência moral no sentido tradicional, tornou-se essencialmente técnica, voltada, em última
instância, para o alcance da máxima eficiência. Os fins são subjugados pela técnica e os valores e
preocupações humanas perdem cada vez mais espaço (ELLUL, 1968, passim).
Como ciência exata, a Economia, segundo Ellul, criou diversos ramos de estudos e
instrumentos sempre voltados ao fim último que é a eficiência. Servem a este propósito a Estatística,
a Contabilidade, a aplicação das matemáticas à Economia, o método dos modelos5, as técnicas de
opinião pública6. Para a interpretação dos dados econômicos, no sentido de traduzi-los em ações,
criou-se a Econometria. A “estocástica” ao procurar “[...] estabelecer, a partir de grande número de
observações, uma lei de probabilidade ou freqüência de acordo com a qual é possível prever a
realização de determinado fenômeno” (ELLUL, 1968, p. 168-169) é instrumento hábil às projeções
futuras.
5 Nas palavras de Ellul, “O môdelo (sic.) é uma „representação simplificada mas completa da evolução
econômica de uma sociedade, uma nação, por exemplo, durante determinado período, em seu aspecto
qualificado‟ (Vicent). É portanto, uma reprodução em miniatura, e em forma de equação, de certo „conjunto‟
econômico. Evidentemente é impossível fazer entrar em um modelo todos os fenômenos econômicos. Será
preciso, portanto, escolher. O primeiro fato é pois uma escolha, fundada em uma decisão teórica, em constantes e
variáveis que entram no modelo. Essa decisão teórica, no entanto não é arbitrária; é orientada por certos
princípios, em particular pela necessidade de ligar a observação à ação. Escolhidas as constantes e as variáveis
do sistema (podem ser muito numerosas – até 70 variáveis) estabelecem-se relações entre elas.” (ELLUL, 1968,
p. 170-171)
6 Segundo Ellul esta consubstar-se-ia em, “Diversos sistemas – sondagens, amostragens, inquéritos, etc. – que
permitem estabelecer periodicamente, em relação a cada questão importante, o sentimento de tal classe ou
categoria da população.” (ELLUL, 1968, p. 171-172)
120
As técnicas contábeis também sofrem profunda mutação. Dos contadores passa-se a exigir
novas capacidades. Conforme ELLUL, “[...] o contador não é mais um simples agente registrador
dos movimentos dos fundos da emprêsa (sic.), torna-se um verdadeiro „engenheiro da
rentabilidade‟.” (ELLUL, 1968, p. 169).
Desta forma, forja-se uma ampla gama de técnicos da Economia, cada qual inscrito em sua
especialidade, detentores de técnicas e linguagens impenetráveis por qualquer cidadão que não seja
igualmente um técnico especialista, o que dá ensejo à contundente crítica de Ellul acerca do caráter
antidemocrático das técnicas econômicas, conforme segue:
(...) a técnica no meio econômico, dá origem a uma aristocracia de
técnicos, que detém segredos que ninguém pode penetrar. Suas decisões
assumem então o aspecto de decretos arbitrários e incompreensíveis,
embora sejam seriamente fundamentadas. Semelhante ruptura, inevitável
desde que a técnica avance, é decisiva para o futuro das democracias. A
vida econômica, não em sua matéria, mas em sua direção, escapa
doravante ao povo. Não há mais democracia possível em face de uma
técnica econômica aperfeiçoada. As decisões do eleitor e mesmo dos
eleitos são simplistas, incoerentes, inadmissíveis tècnicamente (sic.). E é
uma grande ilusão acreditar que é possível conciliar a técnica econômica
com um controle democrático, ou com decisões das bases... (ELLUL,
1968, p. 165-166).
A onipotência da técnica e a supremacia de seus técnicos na Economia criam um espectro
de perversidades. A Economia é concebida como um ente abstrato, auferível somente pelos
números, seja do Produto Interno Bruto, da sua taxa de crescimento anual, déficits, superávits,
dentre outros indicadores que não buscam investigar, ainda que de forma longínqua, a real condição
de sobrevivência das populações, com critérios quantitativos e qualitativos.
Em meio aos ditames técnico-econômicos ainda que uma medida econômica do ponto de
vista da moral não for justa, se for técnica deverá ser aplicada de forma imperativa. Tal foi o que
ocorreu na avassaladora crise econômica que acometeu o mundo em 2008, a qual sabidamente teve
íntima relação com os abusos perpetrados pelo sistema financeiro internacional e pelos grandes
agentes econômicos.
Apesar de, por óbvio, as raízes da crise que nos acomete ter natureza sobremaneira
complexa, mais do que qualquer outra que presenciamos, interessante observar que as soluções
propagadas foram de forma quase absoluta aquelas velhas conhecidas, a saber: ajuste fiscal (o que
significa a supressão de direitos sociais conquistados pela sociedade) e política monetária, sem
121
qualquer inovação. Tal ocorreu, tendo em vista que tais são as soluções técnicas mais eficientes
apregoadas pela ciência econômica fundada no neoliberalismo.
A sociedade, a propósito não debateu a contento se tais são medidas justas, se primavam
pelo bem estar das populações que vivem nos países mais atingidos, se resultariam em distribuição
de riquezas ou asseguramento da dignidade humana. Tais preocupações, certamente, também não
permearam as discussões nas rodas de economistas renomados, porque não são interesses imanentes
da técnica.
Desta forma, os Estados, sob a orientação dos técnicos, propõem uma vez mais que a
sociedade civil suporte o ônus da crise, sendo a supressão de direito sociais (como, por exemplo, o
recrudescimento das regras para a obtenção da aposentadoria na Europa) um mal necessário.
Enquanto isso, o sistema financeiro que há décadas tem usufruído de ampla liberdade, devido à
desregulação do setor, na busca de margens de lucro galopantes, parecem não só inatingíveis e vêm
obtendo altas cifras de dinheiro público para o soerguimento.
Aliás, o aporte de recursos públicos nas instituições financeiras, conforme observa Ariel
Dasso, foi, e ainda é, uma das principais soluções técnicas empregadas tendo em vista o
soerguimento da economia mundial:
La técnica de inyección de moneda disponible (fresh money) a bancos e
grandes corporaciones se traduce en la estatización de las empresas y el
programa de reprivatización acontecerá por vía de la titulización o
securitización del capital social estatal, curiosamente el mismo instrumento
cuyo uso abusivo provocó la gran crisis de los mercados en todo el mundo.
(DASSO, 2009, p. 1572).
4 O giro de Ellul: das soluções coletivistas, para a tomada de consciência das
responsabilidades individuais, ou contra a ótica do imobilismo
Claro está o drama em que se encontra submergida a humanidade. Diante de tal quadro,
Ellul resiste a apregoar qualquer falsa esperança:
É inútil esperar pela modificação desse sistema que é complexo e delicado
demais para que alguma de suas partes seja modificável isoladamente.
Aliás, vemos que se aperfeiçoa e se completa cada dia em seu próprio
sentido, [...] não vemos nenhum sinal de modificação nesse edifício,
nenhum princípio de organização diferente, que não seja fundado na
necessidade técnica. (ELLUL, 1968, p. 119).
122
Segundo Ellul, “A vitória técnica já foi alcançada; já é tarde demais, quer para limitá-la,
quer para pô-la em dúvida. E é o vício de todos os sistemas que pretendem equilibrar o poderio
técnico: chegam tarde demais.” (ELLUL, 1968, p. 131-132).
Desta forma Ellul expressa sua descrença na propagação de grandes soluções totalitárias,
coletivas, fundamentadas nos sistemas econômicos globais.
E assim o faz quando analisa o problema do dinheiro, o papel fundamental que este exerce
na Economia e a identificação deste com a conquista de poder na sociedade. Ellul defende que o
dinheiro passou, no último século, por profunda transformação; tornou-se abstrato e impessoal.
Abstrato, na medida em que o dinheiro não possui valor por si mesmo; o símbolo propriamente dito,
tal como a realidade econômica que ele representa, tornou-se ainda mais abstrata (ELLUL, 1984, p.
10).
A impessoalidade, por sua vez, reside no aumento da sensação de que o uso do dinheiro
não é um ato individual, não é permeado por qualquer forma de controle pessoal, diferentemente
disto, resulta do jogo de interações distantes e complexas, em meio ao qual os atos humanos são
simplesmente eco. Resulta deste processo de abstração e impessoalidade do dinheiro que os
problemas relativos a ele praticamente deixam de existir (ELLUL, 1984, p. 10).
Neste sentido,
Não há necessidade de qualquer indivíduo tomar uma decisão ou
questionar suas próprias ações: o dinheiro é simplesmente uma realidade
em determinada economia. Ele é intocável, o indivíduo não pode fazer
nada sobre isso. Cada um de nós possui a sua cota de dinheiro. Nós a
gastamos. O que mais podemos fazer? Se as coisas não vão bem, o
máximo que podemos esperar é por uma mudança na economia. E, de fato,
se o dinheiro é realidade econômica fortemente ligada ao complexo social,
que podemos nós, como indivíduos, fazer quando vislumbramos injustiça,
desequilíbrio e desordem? Na presença de uma máquina tão grandiosa, o
ato individual dificilmente pode ser levado a sério (ELLUL, 1984, p. 11,
Tradução Livre)7.
Ocorre que um indivíduo não pode adquirir ou gastar dinheiro sem se tornar parte da
complexa interação com a economia numa escala maior. Ellul não aceita a visão impessoal da
Economia, para a qual a atividade humana é irrelevante. Neste sentido, resgata o problema moral do
7 “No need for any individual to make a decision, to question his or her own actions: money is simply a reality in
one kind of economy. It is untouchable; the individual can do nothing about it. We each get our share of money.
We spend it. What else can we do? If things do not go well, the most we can hope for is a change in the
economy. And indeed, if money is an economic reality tightly linked to the social complex, what can we as
individuals do when we see injustice, imbalance, and disorder? In the presence of such an enormous machine,
the individual act can hardly be taken seriously. ” (ELLUL, 1984, p. 11)
123
homem com relação ao dinheiro, recolocando-o em sua posição de responsável por suas escolhas,
atribuindo relevância à questão: como ele adquire ou como ele gasta o dinheiro? (ELLUL, 1984,
passim)
Segundo Ellul, quando são aceitos a abstração e a impessoalidade do dinheiro, à condição
e à escolha atribuem-se nenhum significado, restará como única preocupação o forjamento de
mecanismos mais justos de distribuição, o que ocorre pela defesa de determinado sistema
econômico em detrimento de outro. Esta consiste na posição daqueles que buscam solucionar o
problema do dinheiro por meio da mudança integral do sistema econômico, a qual Ellul não se filia,
e adverte: “Agora, se vamos construir um sistema técnico perfeito, mas vamos deixar que os
indivíduos permaneçam em seus estados naturais, este irá rapidamente deteriorar, assim como têm o
capitalismo deteriorado”8 (ELLUL, 1984, p. 13, Tradução Livre). Para ele tal conduta
[…] é igualmente um erro e um ato de covardia. Consiste em erro
precisamente porque se recusa a considerar o elemento humano no
problema. Assenta-se na idéia estrita da neutralidade da natureza humana,
como se a paixão e o pecado não fossem fatores relevantes na questão do
dinheiro e não estivessem sempre presentes, como se o capitalismo ou o
comunismo pudessem ser edificados no plano abstrato sem que se leve em
conta o fator natureza humana (ELLUL, 1984, p. 12, Tradução Livre)9.
Parece, portanto, ser a natureza humana o fator que corrompe o sistema. Evidente, o grave
equívoco dos que crêem na solução do problema relacionado ao dinheiro por intermédio de um
sistema. (ELLUL, 1985, p. 15). Neste sentido,
Deste ponto de vista, como pode o capitalismo ser mais válido que o
socialismo, ou o comunismo que o capitalismo? O mesmo erro reside no
âmago de ambos: a fuga perante a responsabilidade e o uso contínuo de um
álibi. Quando eu desejo falar sobre dinheiro, todos me apresentam seus
sistemas. “Se existe um problema relacionado ao dinheiro, isto ocorre
porque o sistema econômico se apresenta injusto”. Tudo o que devemos
fazer para solucionar o problema do dinheiro é transformar o sistema
econômico. A partir da mudança do sistema, predizem que o homem
tornar-se-á justo e bom, que saberá exatamente o que fazer com o seu
dinheiro, que não mais cobiçará as posses alheias, que não mais praticará
roubo, que o homem não mais subornará mulheres e oficiais públicos, que
não mais se corromperá pela fortuna, que se tornará sensível à pobreza, que
8 “Now if we build a technically perfect system but leave people in their natural state, they will quickly spoil it,
as they have spoiled capitalism”.( ELLUL, 1984, p. 13)
9 […] is both an error and an act of cowardice. It is an error precisely because it refuses to consider the human
element in the problem. It is posited on the strict neutrality of human nature, as if human passion and evil were
not factors in the problem of money and would not always exist-as if capitalism or communism could be built in
the abstract without taking human nature into account. (ELLUL, 1984, 12)
124
também não acumulará dinheiro, nem o desperdiçará, que ele não mais
sonhará em ascender socialmente, que não usará sua riqueza acumulada
para obter poder na sociedade, que não usará seu dinheiro para humilhar os
outros. (ELLUL, 1984, p. 12, Tradução Livre)10
.
Para Ellul aderir a um sistema é escolher um álibi que permite ao indivíduo permanecer
descomprometido com a transformação, pois que fundamenta a recusa por uma tomada de decisão
individual,
Meu dinheiro? Meu trabalho? Minha vida? Eu não tenho que me
preocupar a respeito porque estou envolvido em tal e tal movimento que se
encarregará de tudo uma vez que conquiste o poder. Esta válvula de escape
dá-me uma grande facilidade para evitar enfrentar a realidade e realizar o
poder que o dinheiro exerce sobre mim. Muito fácil, apesar de todos os
sacrifícios, porque tal atitude me permite acreditar que, por um lado, os
problemas pessoais relacionados com dinheiro se resolverão por si
mesmos, por outro, que minha atitude diante deles é a mais correta11
(ELLUL, 1968, p. 16, Tradução Livre).
Para Ellul, o envolvimento em movimentos coletivos torna desnecessário o enfrentamento
de nossa própria condição, nossos próprios problemas morais, tornando-os dotados de nenhuma
importância. Assim, podemos permanecer confiantes de que nossa atividade na militância nos
coletivos resolverá todos os nossos problemas morais e espirituais. Desta forma, “Somos poupados
de lidar com todos os nossos pecados, nossas injustiças, nossa ganância por dinheiro: estas coisas
são menores se tenho o conforto do sistema. Esta atividade pública é a fonte de nossa esperança, de
nossa garantia individual e, ao mesmo tempo, de nossa justificação”12
(ELLUL, 1984, p. 17,
Tradução Livre).
10 “Seen in this light, how can capitalism be more valid than communism, or communism than capitalism? The
same error lies at the heart of both: the flight from responsibility and the pursuit of an alibi. When I want to talk
about money, everyone hands me his system. "If there is a money problem, it is because the economic system is
unsound." All we need to do to solve the money problem is to change the economic system. This amounts to
predicting that man will become just and good, that he will know exactly what to do with his money, that he will
no longer covet his neighbor's possessions, that he will no longer steal, that he will give up bribing women and
public officials, that he will not be corrupted by his own material good fortune, that he will sympathize with the
needy, that he will neither hoard his money nor waste it, that he will no longer dream of "upward mobility," that
he will not use his accumulated wealth to gain power in society, that he will not use his money to humiliate
others”. (ELLUL, 1968, p. 12)
11 “My money? My work? My life? I don't have to worry about them because I am involved in such-and-such a
movement which will take care of all that for everyone once it comes to power. This escape hatch gives me an
enormously easy way to avoid facing reality and realizing the power money has over me. Enormously easy in
spite of all the sacrifices, because this attitude allows me to believe, on the one hand, that personal money
problems will solve themselves and, on the other, that my own attitude is righteous”. (ELLUL, 1968, p. 16)
12 “We can rest assured that our public activity will solve our own moral and spiritual problems as well as those
of other people. We are therefore free to give in to all our sins, our injustice, our lust for money: these things are
minor if we have joined the comforting system. Its public activity gives us our hope, our sole guarantee and, at
the same time, our justification” (ELLUL, 1984, p. 17)
125
Segundo Ellul, aqueles que vislumbraram os equívocos dos coletivos que se engajam na
busca pela transformação do sistema, os quais se negam a sustentar-se na ação coletiva e buscam
individualmente confrontar os poderes deste mundo, são acusados de nada fazerem, de se recusarem
a agir, de não possuírem compromisso com a transformação do mundo. Estes que não se limitam a
escolher entre o capitalismo e o comunismo, aos olhos da maioria, não demonstram interesse pelos
problemas relativos ao dinheiro em nossa sociedade, isto, pois, predomina a idéia de que a auto-
reflexão e a ação individual em nada resultam e não podem ser consideradas sérias (ELLUL, 1984,
p. 18).
Para Ellul, nossas decisões podem resultar em conseqüências de longo alcance, sendo
capazes de transformar todo o entorno (ELLUL, 1984, 19). Trata-se de uma possibilidade; é certo
que não temos qualquer garantia, fato que consiste em grande desvantagem em relação às grandes
soluções coletivas, que apregoam que a certeza da transformação com a implementação do novo
sistema econômico. Nas palavras de Ellul:
Claro que a atitude individual não é capaz de solucionar os problemas
gerais e o capitalismo não será transformado pela ação individual. No
entanto, é certo também que estas ações coletivas, sejam políticas ou
econômicas, não terão melhor resultado. Somente um otimismo absurdo e
cego poderia concordar com qualquer um que proclame que o socialismo
resolverá todos os problemas econômicos e financeiros do capitalismo, ou
que um retorno a uma economia de livre mercado sob o controle do poder
estatal será suficiente para purificar a terra13
(ELLUL, 1984, p. 19,
Tradução Livre).
De acordo com Ellul, em todas as situações é impossível vislumbrar a ausência dos perigos
imanentes a relação homem- dinheiro. A propósito, nenhum sistema econômico pode funcionar sem
dinheiro; defender o contrário só seria possível com o uso da mais pura utopia, o que pode não ser
útil, pois configurar-se-ia perigosa ilusão (ELLUL, 1984, p. 22- 23).
Restaria, portanto ao sujeito, o caminho, que não é o único, mas a Ellul lhe parece o mais
lúcido, de empreender incessantes esforços no campo individual para viver fora do manto das forças
opressoras, mantendo ainda alguma margem de liberdade de escolha.
13 “Of course individual attitudes cannot solve general problems, and capitalism will not be transformed by
individual action. We have no recipe for global situations. But it is far from certain that collective action,
whether political or economic, would do any better. Only a blind and absurd optimism would allow anyone to
say today that socialism Will solve all the economic and financial problems of capitalism or that a return to the
free-market economy with the restriction of governmental powers will suffice to purify the land”. (ELLUL,
1984, p. 19 )
126
CONCLUSÕES
O pensamento de Jacques Ellul é campo imensamente fértil para a compreensão de nosso
tempo, dos problemas que acometem a civilização. Faz-nos refletir que o fenômeno técnico ainda
não eliminou o ser humano somente porque precisa deste instrumento para mediar sua relação com
o mundo.
No campo da economia, os resultados da racionalidade técnica são desastrosos. Não
assistimos aos debatedores públicos adentrarem nas questões postas por Ellul, não há qualquer
preocupação com a justeza das medidas econômicas para o soerguimento da economia mundial.
Estas devem ser aplicadas porque são as medidas técnicas que foram eleitas como as mais
eficientes; não é permitido que nenhum fundamento moral ou ética contra isso se oponha.
O cenário, portanto é desalentador, o poder da técnica e do dinheiro penetrara em todos os
rincões da vida e muitos ainda não se deram conta deste novo fenômeno.
Ellul não acredita nas soluções fundadas na mudança de sistema contra o império da
técnica (pois nenhum sistema político-econômico seria capaz de destroná-la), no entanto isto não
autoriza a colocá-lo dentre os céticos, pelo contrário, deve-se reconhecer seu imenso esforço no
sentido de propagar a tarefa de revoltar-se perante o imperativo técnico e o poder do dinheiro, de
levar a cabo escolhas autênticas, sobretudo pela tomada de consciência da responsabilidade
individual.
Ele coloca diante de nós o desafio de individualmente estabelecermos uma vida autêntica,
fora dos ditames da técnica, conclama-nos a efetivar mudanças individuais, enfrentando nossos
problemas no campo da ética, da moral, da espiritualidade. Depõe contra a atitude extremamente
confortável de esconder-se sob o manto das soluções coletivas, centradas exclusivamente nas
mudanças de sistemas econômicos.
Propõe o desafio de mantermos intactas nossas subjetividades diante do rolo compressor
da objetivação técnica, da desumanização técnica, o que nos parece uma atitude extremamente
ativista e militante, a demonstrar que não podemos ficar inertes esperando que ocorra uma grande
transformação, a qual seria implementada primeiramente nas relações macro da sociedade para
depois estabelecer-se no plano individual. Ellul conclama a todos que procurem realizar algo,
alguma ação que represente a revolta diante da técnica e de luta pela preservação de seu direito de
escolha.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
127
ELLUL, Jacques. A Técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
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DASSO, Ariel Ángel. Derecho Concursal comparado. Tomo I – 1 ed. – Buenos Aires: Legis
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FARIA, José Eduardo. Revista Direito GV. Poucas certezas e muitas dúvidas: direito depois da crise
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SEN, Amartya, entrevistado por Mônica Teixeira, disponível em :
<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/32/entrevistados/amartya_sen_2001.htm>, acesso em 10
nov 2011.
___________ Desenvolvimento como liberdade (Trad. Laura Teixeira Motta). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Desordem na engrenagem da Civilização. Valor Econômico, São
Paulo, 14, 15 e 16 de setembro de 2012. Caderno A, p. 16.
128
A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA NA ECONOMIA E SUAS
IMPLICAÇÕES
Jean de Carvalho Rocha1
Jorge Barrientos-Parra2
RESUMO
A intenção deste artigo é dar embasamento para o entendimento dos efeitos
imediatos da técnica quando inserida no campo econômico e político. Para isso, recorremos
primeiramente ao aspecto histórico-conceitual da tecnificação da economia para entendermos
as causas e as implicações deste fato. À luz do arcabouço teórico de Jacques Ellul em seu
livro “A Técnica e o Desafio do Século” será feita uma análise dos meios técnicos da
intervenção do Estado na Economia por meio do Plano e suas implicações democráticas e
antidemocráticas para a sociedade, evidenciando a persistente influência da técnica em todos
os campos, mais especificamente no âmbito econômico.
Palavras-chave: Tecnificação da economia; Plano; Estado.
INTRODUÇÃO
Renomados economistas, em suas obras, escreveram suas teses de modo a enfatizar
muito menos o aspecto técnico dos processos econômicos e sociais do que o aspecto
econômico. Desta maneira, não é incomum encontrarmos o cerne dos problemas humanos
baseados no capitalismo, no dinheiro ou em suas variantes. Muitos dos manuais clássicos de
economia não levam em consideração a técnica ou têm uma visão superficial desta, quando na
realidade ela domina não só a área da produção, mas do consumo, da publicidade e
propaganda, da política, entre outras.
Não somente os teóricos e intelectuais têm essa errônea percepção. É muito frequente
e quase inevitável a qualquer pessoa culpar o “sistema” – capitalismo – pelos infortúnios da
1 Graduando do curso de Ciências Econômicas da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq)..
129
vida. Diferentemente do que se pensa a técnica é o motor e o fundamento da economia e não o
contrário. Por isso, o que muitos economistas atribuíam como consequências do capitalismo
Jacques Ellul caracteriza como efeitos da evolução técnica.
Desta maneira, o presente trabalho tem como intuito principal evidenciar a técnica
em sua atuação no âmbito econômico e para isso, utilizaremos cinco tópicos, excluindo-se
esta introdução e a conclusão, sendo o primeiro “A Tecnificação da Economia Política”, onde
tratamos alguns aspectos históricos da penetração da técnica na economia e o aspecto
antidemocrático desta; o segundo tópico, “Capitalismo e a Técnica Econômica”, aborda a
contradição entre a técnica e a economia em seus objetivos finais; o terceiro tópico, “A
Técnica Econômica no Socialismo”, visa demonstrar as semelhanças e diferenças da
penetração da técnica na economia entre o regime Socialista e o regime Capitalista; o quarto
tópico, “O Estado e a Técnica Econômica”, objetiva inserir o Estado na discussão através do
entendimento do Plano e sua dimensão, função e objetivo; e, finalmente, o quinto tópico, “As
Implicações do Plano”, discute as consequências da aplicação do Plano na sociedade.
A TECNIFICAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA
O século XX e suas crises revelaram a ineficácia dos sistemas econômicos, as
contradições e incertezas inerentes. Em outras palavras, evidenciou-se vulnerabilidade
metodológica em torno da teoria econômica dada as falhas lógicas, os métodos incipientes e o
subjetivismo. Surge, assim, a necessidade da mudança metodológica na economia, onde se
procurou separar rigorosamente o que é do que deveria ser. “A economia política não é mais
uma ciência moral no sentido tradicional, torna-se técnica.” (ELLUL, 1968, p.164). Desta
maneira, incorpora-se paulatinamente o elemento técnico evidenciado pela matemática,
estatística, econometria, entre outras disciplinas exatas pertencentes à área econômica.
Essa transição do subjetivismo para a exatidão é conhecida na literatura econômica
como a Revolução Marginalista3, conceito cunhado no final do século XIX, tendo como
principais nomes os autores Menger (1968), Jevons (1988) e Walras (1986). Estes autores, por
meio de suas obras, foram capazes de criar, a exemplo da Física, uma tendência exata e
racional, isto é, técnica para o estudo da economia, deixando um legado que, posteriormente
e, inclusive até hoje, se tornou convencional no meio acadêmico.
3 O nome “Revolução Marginalista” se dá pela relevância do conceito de Utilidade Marginal para a técnica
econômica a partir de Bentham.
130
Com muita pretensão, esta gama de autores buscou superar as dificuldades no que se
refere à lógica das matérias sentimentais e irracionais. Como exemplo desta tentativa pode-se
citar a obra de Bentham (1979), “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”,
que consiste, entre outros assuntos, na medição do nível de prazer ou sofrimento (prazer
negativo) das pessoas em quantidades ao experimentarem algum tipo de situação ou
circunstância, permitindo a construção do conceito de utilidade marginal, tema que será
objeto de estudo de muitos renomados economistas a partir de então4. Desta forma, algo que
outrora era totalmente subjetivo, particular e não mensurável passou a se tornar propício para
a racionalização e criação de padrões por meio de técnicas econômicas, redundando em um
distanciamento dos temas mais comuns para com a sociedade, devido às exigências técnicas
dos assuntos. Ora, assim, constata-se que a vida econômica não vai de encontro com o povo,
sendo “grande ilusão acreditar que é possível conciliar a técnica econômica com um controle
democrático” (ELLUL, 1968, p.166).
A economia que antes era algo ordinário, presente na administração dos recursos de
um lar5 e pertencente a todas as camadas da população se tornou, com a tecnicização
econômica, algo para economistas e técnicos econômicos junto a determinadas instituições
sejam elas públicas ou privadas. Acompanhamos, assim, a criação de um círculo fechado no
qual se excluiu o público da vida econômica, visto que, a própria economia do lar se tornou
técnica na medida em que se demandam conhecimentos de matemática financeira, estatísticas,
habilidades em softwares de gestão financeira, ou mesmo calculadoras.6
CAPITALISMO E A TÉCNICA ECONÔMICA
Assim como não há compatibilidade entre técnica e democracia há uma forte
oposição entre a técnica e a economia. Enquanto a última busca maximizar os lucros, a
primeira busca a eficiência. Nos termos de Ellul: “a técnica é fatalmente contrária à economia,
pois a primeira tem por fim a eficácia ou a racionalidade, e a segunda a rentabilidade.”
(ELLUL, 1968, p.206). Como exemplo pode-se citar o empresário e as relações produtivas.
4 Joseph Schumpeter, Alfred Marshall, J. S. Mill, entre outros.
5 Do grego, Economia – oikonomía – significava “direção de uma casa”. Desta forma, Economia, em sua origem
primária, era considerada como a ciência da administração da comunidade doméstica.
6 A tecnicização econômica é apenas um dos campos de penetração da técnica. Este fenômeno se espalha em
praticamente todos os campos excluindo paulatina e sorrateiramente as pessoas dos assuntos que antes eram
triviais e corriqueiros. Como exemplo deste fato temos o forte avanço dos cursos técnicos na tentativa de cobrir
as demandas da população por serviços cada vez mais técnicos.
131
Ao comprar uma máquina nova o empresário se torna refém desta, pois na medida em que são
lançadas novas máquinas mais eficientes no mercado ele não pode se adequar
tecnologicamente, visto que ainda deve terminar de pagar o financiamento do seu capital
fixo7. Como o próprio autor ressalta: “o capitalista, no entanto, vê os bens de que é
proprietário desvalorizarem-se à medida que o progresso técnico se desenvolve.” (ELLUL,
1968, p.204). Por isso, racionalmente e na realidade, prefere-se maximizar a renda a
maximizar a eficiência produtiva.
Agora, como exemplo mais específico, temos o setor sucroalcooleiro brasileiro no
qual por muito tempo deixou-se de mecanizar-se o corte da safra de cana-de-açúcar visando
baratear o custo da produção. Obviamente, é um assunto amplo e que envolve questões
trabalhistas e sociais de readequação, inclusão e qualificação, no entanto, para fins de
argumentação, a conseqüência deste fato reflete-se no atraso tecnológico e defasagem
produtiva que o Brasil tem em relação a outros países neste setor.8 Outro exemplo
contundente é o uso dos carros elétricos e o impacto econômico da substituição da gasolina,
do álcool e do diesel nos grandes players mundiais.
Chegamos aqui a uma explícita contradição, na qual o capitalismo, na prática,
apresenta-se como um obstáculo ou um freio ao progresso técnico. Essa condição determina,
por conseguinte, o próprio fim do capitalismo sendo substituído pelo socialismo, que de
acordo com Ellul, é um sistema em que se explora ainda mais a capacidade técnica já que o
ideal do lucro é extirpado.9
A TÉCNICA ECONÔMICA NO COMUNISMO
Mesmo no Comunismo Ellul ressalta a inevitável presença da técnica e, não obstante,
neste a Técnica se apresenta fortemente ligada ao estado, o organismo centralizador de todas
as atividades. Enquanto no capitalismo temos o capitalista como detentor dos meios de
produção e principal agente explorador do proletário, no Comunismo, baseado na experiência
7 Este é compreendido em tudo que não se consome no ciclo de produção, isto é, máquinas, edifícios,
equipamentos e outros bens físicos.
8 Na legislação do Estado de São Paulo há um prazo final para o fim do corte manual da cana-de-açúcar e, com
isso, um prazo final para a eliminação das queimadas: Nas áreas mecanizáveis, a meta antes prevista para 2021,
de acordo com a Lei nº 11.241 de 19 de setembro de 2002, passou para 2014. Nas áreas não-mecanizáveis, ela
passou de 2031 para 2017.
9 Com relação ao fim do capitalismo Ellul conclui: “O fator mais profundo de destruição do capitalismo é,
portanto, na realidade, a técnica, muito mais do que a revolta dos homens que não faz senão acompanhar a
técnica e explicitá-la.” (Ellul, 1955, p.205).
132
da Rússia e nas outras experiências socialistas, temos o Estado como o detentor dos meios de
produção e principal agente explorador do proletário. Em todo caso, no Comunismo Russo –
regime muito próximo de um capitalismo de Estado – o Estado passou a ter o papel social do
capitalista, inclusive acumulando para si o montante de capitais e quaisquer outros recursos
dentro do território nacional (ELLUL, 1985).
Como é amplamente tratado por Ellul em seu livro “Mudar de Revolução: o
inelutável proletariado”, durante o comunismo russo, apesar do ideal da extinção da classe
proletária, foi quando esta sofreu a maior espoliação, principalmente quando nos referimos
aos campos de trabalho.10
O desenvolvimento técnico tanto almejado por aquela Rússia rural
culminou em uma super-exploração dos camponeses. Visando o aceleramento da
industrialização na Rússia Lênin e, depois Stálin, investiram fortemente na construção de
fábricas e na propagação da ideologia do trabalho como algo enobrecedor do homem e,
portanto, cabia a todos a função de trabalhar em prol dos objetivos do Estado. Para tanto, o
plano se mostrou essencial enquanto objeto técnico canalizador do poder nas mãos do Estado.
Trata-se de uma ferramenta de extrema eficiência, apesar dos já vistos aspectos
antidemocráticos dele resultantes11
.
Neste sentido, assim como no capitalismo, a consequência final da influência da
técnica no Comunismo não foi outro se não a natural alienação do ser humano em todas as
áreas à técnica. Sendo que o desenvolvimento técnico aplicado a este regime não inibiu a
exploração do proletário, muito menos a concentração de capitais por parte do Estado. Pelo
contrário, a Técnica, ao longo da história, engendrou a criação de diferentes classes e,
portanto, do conceito da mais-valia12
seja qual for o sistema político.
O ESTADO E A TÉCNICA ECONÔMICA
Nota-se, portanto, que assim como qualquer outra técnica, a econômica não é neutra,
não é simplesmente um instrumento a serviço de ideologias ou doutrinas, ela tem sua própria
10 Locais de espoliação do trabalho, para onde os preguiçosos, ladrões e outras “escórias” da sociedade iam
pagar à sociedade por seus erros através do trabalhado forçado para o Estado. Estes campos não eram, em sua
maioria, campos efetivamente rentáveis, pois o trabalho ali empregue não contribuía social e economicamente
para o desenvolvimento russo, no entanto eram amplamente usados como castigo aos que não se submetiam ao
Estado.
11 Sobre os aspectos antidemocráticos da técnica rever tópico 2.
12 A mais-valia, como produto de todo um “sistema”, existe aonde quer que exista o proletariado. Este é vítima
de exploração não diretamente do capitalista, mas do sistema político ao qual está submetido. Nas palavras de
Ellul (1985, p. 86) “o proletariado não é produto direto do capitalismo, mas da industrialização”.
133
direção, autonomia e sua força. Por isso, não se pode postergar a introdução do papel do
Estado em todas essas relações, posto que, a “necessidade técnica que lhes dá origem só
adquire força e valor por meio da intervenção do Estado” (ELLUL, 1968, p.159). “Só o
Estado parece capaz, na hora atual, de sustentar o ritmo do progresso técnico nessa direção”
(ELLUL, 1968, p.160). Um exemplo claro disso são as pesquisas espaciais e atômicas que por
razões óbvias só podem ser patrocinadas pelo setor público.
Basta ligarmos o noticiário ou lermos um jornal para que fique evidente a
interdependência e inseparabilidade entre Estado e vida econômica por intermédio da técnica.
A técnica vincula o mecanismo econômico e o Estado de modo a propiciar um centralismo
onde só este último pode supervisionar o conjunto dos organismos formadores da sociedade.
A inevitável consequência de tal vinculação é o nascimento do Estado técnico. A partir de
então, “O progresso técnico em economia não é de modo algum possível sem essa intervenção
do Estado.” (ELLUL, 1968, p.202).
A intervenção do Estado na economia se dá através de uma técnica de ação: o Plano.
Este teve seu início na União Soviética fortemente vinculado ao comunismo, no entanto, com
o tempo, foi perdendo seu cunho ideológico e assumindo valor próprio. Em síntese, pode-se
definir o Plano como um instrumento técnico que o Estado utiliza para regular a totalidade
dos aspectos da nação em um prospecto de alguns anos. Seu foco está em dois principais
conceitos: a) escolha dos objetivos; b) previsão dos meios. Sua orientação se dá de acordo
com a busca da eficiência e a necessidade social como princípios constantes. Porém, sabe-se
que este último apresenta algumas dificuldades para aferição e provisão. Não obstante, muitas
vezes se faz uma escolha entre os dois princípios. Enfim, independente das reformas
propostas para a solução de uma injustiça ou incoerência na sociedade do capital, todas
passam por intermédio do plano. “Não é o plano, em si mesmo, uma solução. É o instrumento
indispensável de todas as soluções.” (ELLUL, 1968, p.182).
AS IMPLICAÇÕES DO PLANO
O plano, assim como toda técnica, adquire autonomia e auto crescimento, tendendo a
aplicar-se sempre a novos domínios. Não se pode limitá-lo nem impedi-lo, pois o plano
engendra-se a si mesmo. Desta forma, como consequência iminente, o Estado assume total
controle das finanças e a renda nacional de toda nação, refletindo em ausência de liberdade
para a população. Não obstante, assiste-se a um processo de massificação custeada por um
134
Estado antidemocrático que impede a participação pública e, que uma vez que se utiliza de
métodos quantitativos globais e de estatísticas, suprime as particularidades, as características
locais e suas demandas.
A técnica não permite que o povo opte, segundo a sua vontade, pelo mais eficiente.
As escolhas são restritas à vontade técnica, de modo que “tudo o que é ganho pela técnica, é
perdido pela democracia;” (ELLUL, 1968, p.215). A produção não é determinada de acordo
com as demandas da sociedade, mas sim pelas demandas técnicas, por isso, o cidadão não
escolhe o que quer comprar, mas compra somente aquilo que lhe é oferecido, provando que o
povo não é soberano. E de fato, “quando a economia se torna rigorosa e técnica, não pode
suportar a intervenção perturbadora dos desejos operários.” (ELLUL, 1968, p.182).
O liberalismo se apresenta em oposição ao planejamento13
, pois defendem uma
economia livre das mãos do Estado, isto é, sem planejamento dando maior margem à natureza
em contraponto ao uso das técnicas. Deste modo, o mercado se autorregularia de acordo com
a tendência de equilíbrio entre oferta e demanda dos bens e serviços, o que nada mais é do que
a prática do Laissez-faire, a economia sem a intervenção do Estado.
Contudo, não podemos deixar de ressaltar as benesses do plano, pois é evidente que
o liberalismo – ausência de técnica/plano – não representa uma solução efetiva em termos
econômicos e sociais. Primeiramente porque o mercado não se autorregula, como provaram as
crises; o mercado por si só não garante distribuição de renda, igualdade e democracia. Pelo
contrário, o mercado se mostrou concentrador, oligopolista e antidemocrático. Nas palavras
de Ellul: “O homem não realiza espontaneamente o que é mais eficaz” (ELLUL, 1968, p.186).
Nesse sentido, é possível enxergar o planejamento como libertador em decorrência
da sua capacidade de racionalizar métodos e processos e, com isso, aumentar a produção.
“Esta permite satisfazer a maior número de necessidades; ora, a satisfação das necessidades é
a condição da liberdade” (ELLUL, 1968, p.183). Ou seja, “o plano permite fazer mais
depressa e mais completamente o que parece desejável” (ELLUL, 1968, p.190), até porque, só
o Estado é capaz de realizar algumas atividades. Só ele pode mobilizar todas as forças da
nação, ou mesmo fazer o balanço geral de recursos.
Ademais, a técnica, no geral, apresenta efeitos democráticos para a sociedade. À
medida que se aumenta a produtividade, baixam-se os preços, facilitando o acesso a maior
13 Apesar de Ellul enfatizar a palavra “plano”, entende-se o plano como o resultado do planejamento dentro de
uma economia planificada. Por isso, a despeito de suas diferenças conceituais, estaremos aplicando ambas para
denotar o mesmo fim, qual seja a necessidade de racionalizar os métodos, processos, produção e administração,
seja no setor público ou privado.
135
bem-estar. A técnica, também, proporciona a estandartização das mercadorias e reduz as
possibilidades de escolha. Entretanto, esse fenômeno que se apresenta como ruim acaba se
convertendo em benefícios sociais através da equalização democrática.
O paradoxo, portanto, não se encerra por aí, pois reduzir possibilidades de escolhas,
baixar os preços e padronizar as mercadorias presumem ação autoritária do Estado e
centralização cada vez mais forte, exigindo, assim, a redução da democracia e da liberdade.
Logo, para Jacques “essa democracia não passa de um rótulo colocado na realidade de uma
ditadura.” (ELLUL, 1968, p.219).
Enfim, o plano não redunda em uma sociedade socialista, nem ao menos uma
sociedade ditatorial. “O equilíbrio a encontrar entre técnica e liberdade, Estado e empresa, é
instável, é constantemente contestado, e deve ser constantemente recuperado.” (ELLUL,
1968, p.193). Para tanto, é indispensável a ação do Estado na economia de uma maneira
equilibrada que permita a iniciativa dos empresários e a liberdade (controlada) do mercado.
CONCLUSÃO
Diante da explanação do tema é possível notar facilmente que a técnica, hoje, está
por trás de todos os aspectos da vida do homem, independente do sistema no qual este está
inserido – Capitalismo ou Socialismo. Atualmente não se consegue pensar em administração
pública sem a incorporação do plano, e seus efeitos controversos, aplicado a todas as áreas da
sociedade. A tecnificação da economia produz algumas contradições iminentes,
primeiramente, entre a economia e a técnica com relação a seus fins. Enquanto a primeira
objetiva o lucro a última objetiva a eficiência. Não obstante, aparece outra contradição: entre
a técnica econômica e seus aspectos democráticos, pois à medida que a técnica alcança a
economia ela retira a população comum da vida econômica e instaura técnicos no lugar
revelando um caráter antidemocrático da técnica.
Como vimos, mesmo no Comunismo a técnica revelou seu poder e se colocou acima
do regime político sendo ferramenta de espoliação do proletário e, com isso, ferramenta da
desigualdade social, demonstrando que seja Capitalismo, seja Comunismo a técnica não
assume ideologia e caminha em um sentido único, a eficiência. Por sua vez, a necessidade de
eficiência dá ensejo ao plano, uma ferramenta propícia e indispensável à penetração da
técnica na economia e na política. Nestes termos, “O progresso tecnológico não está mais
136
subordinado a outros valores, metas ou trans-técnicos, mas exclusivamente aos valores
técnicos, quer dizer, à racionalidade instrumental e à eficácia” (CORBISIER,1968)14
.
Ávidos por eficiência o ser humano se submete, inconscientemente, a técnica,
incorporando-a até mesmo na maneira de gerir os recursos da nação. Como consequência
disto tem-se que o plano que veio para promover liberdade, igualdade, democracia e
desenvolvimento produz, na verdade, ditadura e alienação. Enfim, parafraseando a célebre
citação de Marshall McLuhan: “O homem cria a técnica, a técnica recria o homem.”15
.
Por esta via, o homem é iludido à medida que deposita no “sistema” a culpa pelas
mazelas sociais, desigualdades, adversidades, opressões e injustiças da vida, se colocando em
uma posição de mero coadjuvante de uma história cujo protagonista é a técnica. Esta atua
independente da vontade do homem, alienando-o de modo que não se consegue ter o
reconhecimento da autonomia e independência da técnica a despeito do homem. Sendo assim,
ela continuará em seu processo de auto crescimento, se universalizando e penetrando em
todos os campos possíveis se transformando em matéria essencial para todos os seres
humanos, suas relações sociais, políticas, econômicas e culturais ainda que aqueles não
tenham plena ciência do fato. Os efeitos desta “invasão” são imprevisíveis e irreversíveis,
caracterizando uma ambivalência, isto é, a técnica trás tanto consequências positivas como
negativas, porém tais efeitos sendo indissociáveis, sempre estaremos condicionados a ambos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
ELLUL, J. Mudar de revolução – o inelutável proletariado. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
JEVONS, W. S. A teoria da economia política. Tradução de Cláudia Laversveiller de
Morais. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os economistas).
14 Roland Corbisier foi o tradutor responsável pela tradução e prefácio do livro “A técnica e o Desafio do
Século” de Jacques Ellul.
15 Citação original: “O homem cria a ferramenta, a ferramenta recria o homem”.
137
MENGER, C. Princípios de economia política. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo:
Nova Cultural, 1968 (Os economistas).
WALRAS, L. Compêndio dos elementos de economia política pura. Tradução de João
Guilherme Vargas Netto. 2. ed. São Paulo:Nova Cultural, 1986. (Os economistas).
138
A INTERVENÇÃO DA TÉCNICA NO FENÔMENO HUMANO
Robson Henrique Oliveira1
Uelton Carlos Porto2
RESUMO: A liberdade humana, em sua face objetiva, consiste na possibilidade
material de o ser humano dar finalidade às coisas no mundo, por que o ele, em si mesmo
considerado, não é finalidade pré-constituída: Ele é aquilo que ele constrói. Da mesma forma,
a realidade material é o contexto pelo qual a pragmática dessa liberdade deve ser avaliada e,
como é cediço, tal realidade exerce dominação existencial (Marx). Eis a dupla face da eterna
contradição humana, como bem alinhavou Hegel. Ora, o ser, historicamente e dialeticamente
considerado, é apenas um fenômeno circunstancial na história do todo (Teilhard Chardin) e
esse aspecto em particular da exegese humana conceitua a Coisa em si: a espiritualidade. Por
isso, Ellul conclui que só podemos ser verdadeiramente livres julgando espiritualmente.
Assim, tudo o que é existente no mundo e que, em tese, interfere na espiritualidade factual do
homem, interfere diretamente no fenômeno humano. Em outros trabalhos apresentados a este
seminário pretendeu-se abordar como o fenômeno da técnica na midiática contemporânea
interfere no limiar entre o ser e o fazer da realidade humana e como se processa a
interferência da técnica na intersubjetividade do agir humano. Esses trabalhos trazem uma
ideia inicial da problemática que delineia o objetivo deste artigo, qual seja, o de demonstrar
que a técnica exerce uma interferência direta no fenômeno humano.
Palavras-chave: Ser. Técnica. Intervenção. Paradigmas. Dialética.
Considerações Iniciais
Ó sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado
e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal
prodígio. Quão claro, livre, fácil e simples conseguimos tornar tudo
quanto nos rodeia! Quão brilhantemente soubemos. Deixar que nossos
sentidos caminhassem pela superfície e conspirar a nosso pensamento
um desejo de piruetas caprichosas e de falsos raciocínios! Quanto nos
1 Bacharel em Direito pela Faculdade São Francisco de Piumhi - Faspi.
2 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário. Autor e coautor de
obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros).
139
esmeramos para conservar intacta nossa ignorância, para lançar-nos
aos braços de uma despreocupação, de uma imprudência, de um
entusiasmo e de uma alegria de viver quase inconcebíveis, para gozar
a vida! E sobre esta nossa ignorância edificaram-se as ciências
baseando a vontade de saber em outra ainda mais poderosa, a vontade
de permanecer na incógnita, na contra-verdade, não sendo esta
vontade o contrário da primeira, mas sua forma mais refinada.
(NIETZCHE, 2001, p. 24, grifo no original).
Restou consignado3 e discutido a ambiguidade sintética do ser, a face subjetiva e a
face objetiva - na intersubjetividade - de sua condição: Por um lado a condenação do ser ao
juízo e às escolhas, pelo outro, a projeção do ser a ele mesmo, ao absoluto, à experiência do
não sentido, pois “a exigência do Absoluto está inscrita na própria essência do dinamismo
mais profundo da razão humana4 (DOWEL, 2007, p. 247, 248, grifo no original).
Transcendência esta mesma que falta à modernidade “à medida que a tensão se
prolonga, é visivelmente sob uma forma muito diferente de equilíbrio - não eliminação, nem
dualidade, mas síntese - que parece haver de se resolver o conflito” (TEILHARD DE
CHARDIN, 1955, p. 323).
Nessa mesma esteira de raciocínio, Dowel (2007, p. 247, 248, grifo no original)
assinala que
Somente essa experiência [unidade] poderá dirigir as energias
espirituais da civilização para o reencontro da fonte transcendente do
sentido ou para descobrir uma nova estrutura da experiência do
Transcendente que se torne princípio inspirador de uma realização
mais autenticamente humana dos grandes ideais da modernidade.
Posto isto, cabe refletir que o homem é a finalidade de si, mas não pode ser
considerado em seu fenômeno um fim em si mesmo. Individualmente considerado ele não é,
pois nasce e somente a posteriori constrói o seu ser. Da mesma forma, a coletividade também
não é; cada sociedade e cada cultura possuem em um determinado contexto histórico aspectos
que lhe concernem, características e atributos próprios a serem analisados5.
3 A síntese foi melhor trabalhada no artigo “Uma abordagem propedêutica sobre a intervenção da técnica no
fenômeno humano” apresentado a este seminário, de autoria destes mesmos autores.
4 Trabalhada no resumo expandido “A interferência da técnica na intersubjetividade e na objetividade do
agir humano” apresentado a este seminário, de autoria destes mesmos autores.
5 Analisa-se assim o Zeitgeist - espírito do povo - dentro de uma idéia do ser em facticidade, do Dasein.
140
Muito embora não possa ser conceituada de per si, a Coisa em si da realidade
humana pode ser auferida e abstraída da historicidade dialética, existindo por si. Hegel (1992,
p. 72) assinala que
A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do espírito só
pode ser mínima [o espírito existe por si]. Assim ele deve esquecer-se,
como já o implica a natureza da ciência [natureza técnica]. Na
verdade, o indivíduo deve vir-a-ser [pois ele não é em si], e também
deve fazer, o que lhe for possível; mas não se deve exigir muito dele
[ética no trato com a ação em si], já que tampouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo.
Relativamente ao ser humano, finalidade e fim são coisas diversas. O homem não
encerra um conceito: O Para-si “não é o que é e é o que não é” (SARTRE, 2009, p. 121).
Na intersubjetividade, o homem utiliza as coisas existentes no mundo na medida em
que necessita satisfazer a sua condição objetiva isto é, é ele quem dá finalidade às coisas
existentes no mundo: Uma montanha lhe serve, tanto como objeto para a exploração mineral e
lucrativa quanto para uma escalada de fim de semana, exemplo que pode ser estendido a
qualquer outro existente em bruto6. Obviamente, cabe ressaltar que essa explanação inicial em
nada interfere nos ideais do neokantismo, pois claro e evidente é o fato de que a normatização
hipotética deve impor o preceito da dignidade da pessoa humana (art. 1º c/c art. 5º da CF de
1988) na intenção de nortear o agir humano na realidade, porque a finalidade do homem,
como dito, é ele mesmo7.
Assim, o fato de que o homem possui casuisticamente a liberdade por optar entre
uma ou outra maneira de utilizar as coisas do mundo, na busca de sua essência, esboça, no
aspecto subjetivo, sua liberdade fundamental. A técnica em si mesma interfere subitamente
nesse aspecto, pois é um fenômeno alheio ao ser e tem leis próprias de manifestação e de
existência, como será exposto adiante.
Em sendo o homem aquele que dá finalidade às coisas do mundo, tendo como
finalidade última ele mesmo, ser-e-mundo devem “fluir” em facticidade. O caos, o absoluto, o
não sentido - a outra face do fenômeno do ser - carece de uma realidade mutável. Para Hegel,
6 Vide Heidegger (1993) sobre os existentes em bruto e sua relação com o ser.
7 Essa estrutura relacional é fruto das reflexões de conclusão de curso de um dos autores, titulada “O
Neoconstitucionalismo como viés de construção do ser pela ótica da Fenomenologia, à luz de um discurso de
democracia como direito fundamental e garantia do mínimo existencial da pessoa humana” apresentado à Faspi -
Faculdade São Francisco de Piumhi, em agosto de 2012, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel
em Direito.
141
(1992, p. 31, grifo no original) a síntese poética de Parmênides, foi “a maior obra prima da
dialética antiga, era tido como a verdadeira revelação e a expressão positiva da vida divina”:
“Tudo flui”: A natureza flui, modifica-se; o ser flui no tempo (HEIDEGGER, 1993); é
transitório, é transcendente, está-aí-no-mundo em facticidade. Hegel (1992, p. 31, grifo no
original) assinala que “mesmo então apesar das muitas preocupações que o êxtase produzia,
de fato esse êxtase mal entendido não devia ser outra coisa senão o conceito puro”.
Mas o “tudo flui” deve ser considerado em seu tempo (Antiguidade Clássica) e,
quanto a este segundo aspecto do ser, tem-se que nos dias de hoje as coisas do mundo fluem
em ritmo próprio, alheias a ele ser, tamanha a grandeza da realidade técnica, impondo ao
homem a dialética de suas leis, interferindo também nesse segundo aspecto, tal como será
exposto adiante.
Nesse diapasão, é a ação humana na realidade que materializa a transcendência do
ser. Conhecer o ser é, entrementes, conhecer o processo histórico-dialético que o
circunscreve.
Ora, da implicação da situação humana no mundo moderno infere-se que uma
realidade que não transcende na história e que possui essência própria, é de certa forma
antagônica ao fenômeno de ser, porquanto o ser-no-mundo em construção carece de um ser e
de uma realidade, ambas em construção. O fenômeno humano, situando-se no equilíbrio entre
o ser e o não ser, entre o nada e a busca pelo absoluto, entre o ser e a realidade material, é
deturpado pelo fenômeno da técnica.
Paradigmas
Posto isto, se o devir, a aspiração ao todo, o sentido do todo, à beleza, à arte (etc),
integram a possibilidade de o ser humano transcender a si mesmo no mundo, seja
intuitivamente, seja sensivelmente, possibilitando o fluir das suas escolhas no mundo, da
construção de sua história por uma consciência historicamente mutável, quando colocada face
a face com uma realidade essencialmente racionalizada - um fim em si - o resultado é a
caracterização de um verdadeiro óbice ao transcender e uma direta influência no ser, seja na
intersubjetividade, seja na objetividade de seu agir.
Aliás, é esta mesma a característica fundamental da “[T]écnica”: Existência em si
mesma, autonomia frente ao homem que a criou (ELLUL, 1968, Intróito). Modificação
142
permanente e irreversível da realidade que aprisiona o homem fora da natureza [fora do
absoluto, fora de si mesmo, fora do conceito puro da Coisa em si] (ELLUL, 1974, p.68).
Necessário é ressaltar que nos ateremos apenas à obra de Ellul para explicitar
algumas características - fundamentais - da técnica, concernentes à essência do fenômeno
técnico, trazendo um presságio ao devir (a segregação do ser pela realidade técnica).
Levar-se-á em consideração o exposto em sua obra sobre todos os fatores que
desencadearam a consciência técnica8, as quais serão mais que suficientes aos propósitos
desse trabalho, pois este, como dito, é conciso e não almeja esgotar o tema, mas apenas abrir
espaço para novas e outras discussões, como será ao fim colocado.
O trabalho em pauta requereu pesquisa técnica, revisão bibliográfica e compilação de
obras e trabalhos acadêmicos que assistem ao tema.
Este estudo tem por proposta trazer os pressupostos da influência da realidade
técnica na essência humana. Deixa-se ao fim, entrementes, aberta a hipótese de se investigar
em ulteriores estudos, mais completos, a essencialidade deste fenômeno e qual o seu alcance
pragmático.
A interferência da realidade técnica
Com o advento da técnica, a síntese9, fulcrada no equilíbrio entre o ser e a realidade
material foi violada. Se o ser é a síntese - ambígua - objetiva e contingente que reclama a
unidade, necessita-se refutar toda e qualquer teoria ou práxis que pregue ou empregue
fundamentalmente algo exterior ao alcance ser, que lhe tenha influência direta.
Ora, nesse sentido assinala Ellul (1974, p. 73) que
O fenômeno da técnica tornou-se independente da Máquina (Ellul em
“A traição pela tecnologia”). A técnica pensará para si, não para o
homem: A ordem que ela [a técnica] criou destinava-se a ser um pára-
choque entre ele e a natureza, mas evoluiu de maneira autônoma e fez
suas próprias leis, que não são as do homem ou da natureza [unidade]
(...).
8 Ellul (1968) descreve no intróito os cinco fatores que contribuíram de forma peculiar e necessária ao advento
do fenômeno revolucionário da tecnologia, o desfecho de uma longa experiência técnica, o crescimento
demográfico, a aptidão do meio econômico, a plasticidade [fenômeno coesivo, de unificação cultural] do meio
social e, por fim, o aparecimento de uma clara consciência técnica. Conceitos para os quais remetemos o leitor
para uma melhor compreensão.
7 Como dito, a síntese foi melhor trabalhada no artigo “Uma abordagem propedêutica sobre a intervenção da
técnica no fenômeno humano” apresentado a este seminário, de autoria destes mesmos autores.
143
Assim, a técnica, que teria por objetivo fundamental instrumentalizar a liberdade
humana no mundo, parece concretizar uma deturpação silenciosa no âmago da unidade
dialética do ser.
A influência da técnica na dialética
Por conseguinte, o ser se determina conforme essa realidade e essa realidade mesma
é, inclusive, anterior à cognoscibilidade.
Com efeito, deve-se colocar em debate a reflexão sobre a modernidade da influência
da realidade técnica, em tese desconhecida em vida por Hegel.
Entra em jogo, pois, um ponto especial, qual seja, o de rediscutir a influência da
realidade nos aspectos dialéticos relacionais e reflexivos da tese, da antítese e da síntese (na
consciência histórico-dialética).
Toda tese baseia-se em uma realidade dada; a antítese por sua vez é uma
manifestação interior do ser que revela a síntese. Esta, por sua vez, transforma-se em nova
tese. Ocorre que quando essa realidade flui, um movimento dialético acaba por ser imposto na
essência humana, o que absolutamente não ocorre quando da análise da realidade técnica pois
a técnica não flui pelo ser humano, mas por si mesma.
A realidade técnica é diferente de tudo o que já se viu antes. A era da tecnologia, da
rapidez, dos jingles, destroça a realidade contingente e, por conseguinte, atravessa e cauteriza
a dialética da realidade humana.
Passemos a discutir, em linhas gerais, estes pressupostos contidos na abordagem do
fenômeno técnico.
As características extrínsecas e independentes da técnica
A técnica transforma o reflexo em refletido, isto é, impede a reflexão. Embora de
fundamental importância às discussões trazidas no bojo deste esboço de racionalidade, o
fenômeno da reflexão requer extensos prognósticos existenciais, razão pela qual lançamos o
leitor a uma interessante discussão10
- no campo da subjetividade - em cujo cerne traz a lume
10 Vide (SARTRE, 2009, 208-231).
144
uma interessante constatação: “Refletido e reflexivo tendem, portanto, à „Selbsts-tandigkeit‟,
e o nada que os separa (...)” (SARTRE, 2009, p. 210).
Embora Ellul não descreva a unidade de ser aqui trabalhada, ele nos adverte que “há
uma espécie de programa mínimo que o homem realizou na história, e que agora está
ameaçado pela técnica” (ELLUL, 1974, p. 71), e que “não há maestro para a orquestra
tecnológica - a convergência é espontânea” (ELLUL, 1974, p. 65).
Ellul (1974, p. 68-69) conceitua a tecnologia no âmbito da materialidade da técnica
e, partindo de conceitos como automatismo, auto-acréscimo, indivisibilidade, universalismo e
autonomia, o autor descreve o impacto da técnica nos meandros políticos, econômicos,
sociais11
; aspectos relevantes da técnica, visto interferirem diretamente na retirada de sentido
da própria realidade humana em construção di si mesma e, por conseguinte, da reflexão.
Ninguém é responsável e, ao mesmo tempo, todos estão envolvidos em uma certa divisão do
trabalho12
.
A técnica, posto isto, interfere nesse acervo humano, subjazendo esse “ser em
facticidade” (que ao mesmo tempo é possibilidade de contingência do espírito, de aspiração
ao infinito, de transcendência, de preenchimento, de Deus, da natureza etc.), preenchendo-o
com um mundo totalmente racionalizado, construído.
A técnica e o afastamento do homem da fluidez da natureza, dos julgamentos
espirituais
Esse segundo aspecto é totalmente ligado aos primeiros, sendo consequência deles. A
perfeição do mundo técnico, razão em si mesma, afasta o homem do absoluto caótico que
representa a espiritualidade do seu ser, de sua liberdade perante a não-fluidez do mundo.
Nessa esteira de raciocínio, Ellul assinala que em “[U]ma sociedade tecnológica
obriga o indivíduo a fazer grandes sacrifícios - sacrifícios que, nas sociedades pré-
tecnológicas eram consideradas o melhor da vida: o agradável contato com a natureza (...)
(1974, p. 67)”. Outrossim, observa que o impacto psicológico de tal fenômeno como atuante
em muitos níveis, já que a técnica “[I]mpinge ao indivíduo todo um conjunto de padrões de
pensamento e ação que o fazem conformar-se a uma racionalidade técnica” (ELLUL, 1974, p.
66).
11 Remetemos nosso leitor a Ellul (1968).
12 Ellul em “A traição pela tecnologia”, Disponível em: jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/12/01/236/.
Acesso em 05/09/2012.
145
Pode-se, já preparando terreno para as considerações finais e para a abertura de
outros debates sobre o tema, complementar que a racionalização do mundo e a contínuo
interferente da realidade humana e esta, por possibilitar a transcendência de uma das faces da
realidade - dialética - humana, acabaria por cercar o homem em sua razão, como um animal
acuado, na jaula do racionalismo que ele mesmo criou, afastando a essência humana de si
mesma: Um abismo entre o nosso ser e o mundo.
Considerações finais
Cabe ao Direito impor os imperativos hipotéticos, abstratos e éticos, reguladores do
uso da técnica em todas as facetas da realidade humana.
Mas nunca na história da humanidade se presenciou tamanho disparate, tamanha
irresponsabilidade do homem para com ele mesmo. O fenômeno técnico vai muito além da
objetividade do mundo da máquina: influencia diretamente a unidade do ser.
O uso da técnica, que teria por função primordial assegurar a liberdade-ética humana,
parece cada vez mais aprisioná-la em sua própria realidade racional, num caminho que,
conforme Ellul, impossível seria de lhe traçar rota avessa.
O autor, ao avaliar a técnica no campo pragmático, demonstra a inserção do homem
em uma situação peculiar nunca antes vista. Ele clama espiritualidade à humanidade, um uso
espiritual da técnica, pois uma vez não se podendo voltar à historicidade de nossa construção
técnica, é no mínimo existente a obrigatoriedade humanística em subtrair dela a tamanha
grandeza de seu fenômeno.
A realidade técnica, materializada através da máquina, coloca o nosso estar-aí-no-
mundo como um estar-aí-no-mundo-técnico-tecnológico, anterior à dialética da consciência
cultural mesma, propiciando uma realidade a priori que afasta o ser de sua espiritualidade, de
sua essencialidade dialética, já que influencia a própria tese e a própria consciência em si
mesmas: A técnica passa a ser a síntese em si mesma.
A mensagem importante contida neste estudo é o chamado para que nos habilitemos
- discutindo a proposta que este autor deixa em aberto ao cabo sobre estudos mais profundos
de uma possível “cisão permanente da unidade de ser” pela dialética humana atual imposta
pela realidade técnica - a responder por onde irá caminhar a reflexão e a espiritualidade (as
teses, as antíteses e as sínteses constantes) da consciência humana quando o caos e o acaso
forem totalmente tomados pelo “mundismo” criado pela necessidade humana real e técnica de
146
mais e mais técnicas, e estes, parte da transcendência humana, deixarem de existir e forem
aprisionados pela objetividade material?
Quanto mais caminhamos, existindo aí no mundo rumo à razão e aos julgamentos
técnicos, mais abandonamos a nós mesmos. Quanto mais conhecemos o mundo, mais
desconhecemos a nós mesmos.
Tornamo-nos este ser-aí, sem sentido, da informação que nos entra pelos olhos, que
nos humilha a palavra (ELLUL, 1984), que nos transforma em homens técnicos; zumbis da
realidade material e objetiva.
A racionalização e a materialização da técnica na realidade objetiva do ser-aí
condicionam o homem a uma adaptação fora do seu mundo espiritual, contrariando a própria
natureza biológica, material e filosófica do ser humano inserido no mundo, rompendo
drasticamente e permanentemente (cisão?), ao menos em uma primeira análise - que
precisaria ser mais bem trabalhada - o fenômeno unitário já discutido.
Referências
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São Paulo. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 9, 2007, p. 237-273.
ELLUL, Jacques; TOYNBEE, Arnold, et al. O Preço do Futuro. São Paulo: Melhoramentos,
1974.
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Trad.: Roland Corbister. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1968.
_________________. A palavra humilhada. Trad.: Maria Cecília de M. Duprat. São Paulo:
Ed. Paulinas, 1984.
_________________. A traição pela tecnologia. Promoção: Rerun Productions. Amsterdã.
Disponível em: jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/12/01/236/. Acesso em 05/09/2012.
HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do espírito. Trad: Paulo Menezes. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 2ª ed, 1992.
147
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1960. (Trad. bras. de
Márcia Cavalcante, Ser e Tempo, Petrópolis-RJ, Vozes, 1993; volume I).
NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Além do bem e do mal. Trad: Márcio Pugliesi. São
Paulo: Hermus Livraria, editora e distribuidora, 2001, p. 1-230.
SARTRE, J.P. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad: Paulo Perdigão.
Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 18ª edição, 2009, p. 1-765.
___________. L’ Existentialisme est un humanisme. Trad: Rita Correia Guedes.
Paris: Les Éditions Nagel, 1970, p. 1-28.
148
MÍDIA COMO QUARTO PODER REDUCIONISTA VERSUS O
DEVIDO PROCESSO PENAL
Caroline Cerdeira Dia¹
Priscila de Souza Gonçalves²
Uelton Carlos Porto³
RESUMO
O presente estudo buscou analisar de modo geral, a influência da mídia no processo
penal, nos casos de grande repercussão. A crítica que se faz é relativa a uma mídia
antidemocrática que além de trair sua própria razão de ser, trai também a razão de ser do
devido processo penal. De forma específica, para compreendermos a influência reducionista
que a mídia traz, se fez necessário uma abordagem transdiciplinar, entre a sociologia, a
psicologia e o direito, tendo como obras bases o artigo Mídia e Democracia: o quarto poder
versus o quinto poder, de Guareschi; as obras de Jacques Ellul –“Técnica e o desafio do
século” e a “A palavra humilhada”, e posterior aprofundamento na área da psicologia -, por
ultimo o livro de Francesco Carnelutti “As misérias do processo penal”, trabalhando
juntamente com uma análise doutrinária do direito processual penal, especificadamente a
teoria geral e alguns de seus princípios.
Palavras chave: Mídia. Reducionismo. Devido processo penal.
Considerações iniciais
O cerne da problemática que trata o presente artigo é a mídia atuando como um
quarto poder ilegítimo, enquanto deveria trabalhar a favor da democracia, como um quinto
poder como defende Guareschi. Traindo sua própria razão de ser, e também a razão de ser do
processo penal, haja vista que traz o reducionismo ao homem, o fazendo um ser acrítico, e que
de forma sucessiva influencia de maneira drástica o devido processo penal formando um
verdadeiro tribunal de exceção (no sentido material, é claro).
O objetivo deste artigo será, da melhor maneira possível, apresentar aos leitores,
como a mídia deturpa os fatos ou os “agravam”, criando verdadeiros tribunais de exceção,
onde quem decide não é um juiz natural, mas sim, a população, completamente alienada e
reduzida.
149
Faz-se mister, em um primeiro momento, dar os conceitos iniciais de cada pensador,
e apresentar de forma clara a correlação entre eles. Posteriormente, deve-se revelar quais as
implicações da mídia dentro do estado democrático, baseado na crítica revelada por Guareschi
em seu artigo. Em um terceiro momento, deve-se voltar os olhos do leitor, à análise dada por
Jacques Ellul, sobre a propaganda e a publicidade, em suas obras, “Técnica e o desafio do
século” e a “A palavra humilhada”, aprofundando sua teoria com outras disciplinas do campo
da psicologia, psiquiatria, psicanálise e neurociência, tudo isso com o intuito compreendê-lo
de forma transdisciplinar. Por fim, fechamos com a análise feita por Francesco Carnelutti
discursando sobre a influência da mídia, que à sua época chamava de publicidade no processo
penal, baseando-se na obra “As misérias do processo penal”, ressalvando a necessidade de
trazer uma contextualização com o momento atual devido às limitações da época e,
conseguintemente, fazendo um paralelo com o devido processo penal e quais são as
consequentes interferências midiáticas nele.
O método utilizado na pesquisa foi análise de livros e artigos científicos, além de
vídeos e filmes sobre a temática.
Conceitos de mídia, publicidade e propaganda
É de suma importância advertir o leitor previamente as distinções adotadas entre os
autores sobre o que seria a mídia, posteriormente sua correlação com a propaganda e
publicidade no sentido sociológico e no sentido das ciências da área da comunicação, a
questão da publicidade no do direito e no sentido de Francesco Carnelutti.
De modo geral, cabe se destacar que a mídia é meio pelo qual é veiculado
informações, às vezes chamada também como imprensa. Pode ser: televisiva, radiodifundida,
por internet, jornal impresso etc. Tais informações possuem diversas naturezas, desde
mensagens para comercialização de bens de consumo, de ideologias políticas, quanto de
notícias de fatos de crimes ocorridos em nossa sociedade que é nosso foco no presente artigo.
Jacques Ellul utiliza o termo publicidade e propaganda, e os distingue nos
informando que a publicidade se refere sempre a bens de consumo, já a propaganda se refere a
ideologias e a política, tal sentido é do ponto de vista da sociologia e do direito, se
distinguindo de outras ciências como a publicidade e propaganda, bem como o jornalismo,
que adotam conceitos independentes, a conferir. Para as ciências da mídia como abordadas
hodiernamente publicidade consiste em tudo aquilo que é estático e a propaganda, por seu
150
turno, é tudo aquilo que é dinâmico. Cumpre ressaltar que este presente trabalho parte da
acepção sociológica conferida por Jacques Ellul, não sendo adotado o conceito das ciências da
área comunicação, sendo que tal definição consta apenas para a informação aos leitores.
Francesco Carnelutti, em sua obra “As misérias do processo penal”, traz a crítica
sobre a publicidade do processo penal em seu primeiro capítulo. Ele afirma que a ideia de
publicidade é no sentido de controle popular e, mais profundamente, de valor educativo.
A ideia de Carnelutti de controle popular ganha maior sentido do direito atual, onde
os atos do poder público devem ser revestidos de publicidade, afastando-se situações de abuso
de poder por meio da fiscalização popular; já o valor educativo (pedagógico) da publicidade,
auspicia contornos no sentido de mostrar para sociedade que tal ato é inaceitável perante o
Direito, e que se algum indivíduo o praticar, irá pagar com pena, tentando passar para a
sociedade uma informação educativa – no sentido mesmo de pedagógica – para aquilo que
não se deve fazer.
No Estado Democrático de Direito, a publicidade pode ser vista sob vários prismas,
tanto no direito administrativo, quanto no direito penal, dentre outros. O corte epistemológico
proposto neste estudo foca a publicidade no processo penal, que traz a ideia de acesso aos
julgamentos, audiências aos autos etc.
A correlação que podemos extrair de cada conceito apresentado é que todos eles
visam a transmissão de informações, pois, bem cita Guareschi (2007, p. 08) a ideia de
Thompson, que “vivemos hoje em uma sociedade midiada e uma cultura midiada, onde não
há instância que não tenha relação com a mídia, e que não esteja intrinsecamente contaminada
por ela”.
Quando falamos na mídia, estamos falando de um meio de comunicação, transmissor
de informações, que podem se referir tanto a ideia de propaganda e publicidade no sentido de
Ellul, quanto na transmissão de informações sobre processos penais, referindo-se a
publicidade dos atos públicos, quanto para Carnelutti que já nos revelava uma ideia antiga que
continua cada vez mais presente na problemática atual, que é a influência da mídia por meio
da publicidade no processo penal. Entendemos que tal (mídia) como elemento-poder que
opera a transmissão de informações possui o poder de persuasão para a valoração de um fato
como “bom” ou “mal”, e que de forma específica no processo penal, emprega-se uma
ideologia massificada do acusado, sendo que a publicidade de processos penais no sentido do
direito atual utilizada de forma inadequada, como já se fazia desde a época de Carnelutti.
Constata-se que tal problemática, hodiernamente, ganha um sentido muito forte, uma vez que
151
a mídia emprega de forma cada vez mais indissociada e simultânea o que foi chamado por
Ellul de técnicas mecânicas e psicológicas, sendo que estas se desenvolveram muito com o
passar destas últimas décadas, e segundo Thompson “vivemos em uma sociedade midiada”
(Guareschi, 2007, p. 08), que faz de certos processos penais um espetáculo público, mais
ainda dos que as referencias que Carnelutti já fazia, uma vez que os detentores do poder de
informação não buscam o real sentido da comunição social arrolada em nossa Constituição de
1988, mas sim o lucro, fazendo nossa Carta Magna como afirma Lassale, apenas um pedaço
de papel, onde o que realmente impera são os fatores reais do poder.
Mídia: quarto poder ilegítimo antidemocrático
Deve-se considerar, inicialmente, compreensões propedêuticas que devem ser
entendidas anteriormente das demais afirmativas que serão abordadas no decorrer deste
tópico. Torna-se imperioso compreender que a comunicação é um direito inerente à
democracia, pois esta pode se constituir em um meio de fiscalização do poder pelo povo, o
que não é – e talvez nunca foi – realizado e operacionalizado com vistas a esta intenção, mas
sim atendendo os interesses da minoria hegemônica, que busca uma alienação de grande
camada da sociedade para produção de atos condicionados dela e onde não há participação
dos cidadãos na comunicação, gerando o que se afirma denominar, segundo a teoria de
Lassale, um fator real do poder, que é a atual mídia.
Partirmos da ideia principal de Guareschi (2007, p. 07), que propõe uma melhor
compreensão do papel que a mídia exerce na sociedade, criticando as práticas que ela tem
empregado atualmente, mostradas por ele como antidemocráticas e propondo soluções para o
mesmo. Tal ideia traz a compreensão que segundo ele, os psicólogos sociais não conseguiram
compreender é que “depois da segunda grande guerra não foi mais possível como fora antes,
fundamentar a sociedade ou em crenças ou nas relações de trabalho: ela se fundamenta agora
na comunicação e na produção de conhecimento através da informação”, além da afirmação
que cita que segundo Herbert de Souza (2007, p. 11) “o termômetro que mede a democracia
numa sociedade é a participação dos cidadãos na comunicação”.
O que é a mídia atual e como ela poderia ou deveria ser?
152
Há que se falar em quatro afirmações mostradas por Guareschi (2007, p. 09) para se
conscientizar o que é atualmente a mídia; sendo a primeira é que a comunicação atualmente
constrói a realidade, o que significa dizer que, algo existe hoje ou não, se é midiado ou não,
tendo a mídia o poder de instituir o que é ou não real; a segunda é que a mídia dá conotação
valorativa à realidade existente, ou seja, ao dizer se algo existe, afirma-se se aquilo é bom ou
ruim, sendo também valoradas as pessoas que aparecem na mídia, sendo as boas e dignas de
respeito, critério muito importante quando se discute representações sociais; a terceira
afirmativa é que a mídia determina o assunto que deve ser falado e os limites de até onde deve
ser discutido, tendo o poder de incluir ou excluir determinados assuntos ou temas da pauta de
discussões; por derradeiro, a quarta afirmativa é a criação de pessoas que são receptivas a
informações de onde construímos “pensadores” com cultura midiada e reducionista,
contribuindo para a construção de seres acríticos e meramente receptivos a informações.
Uma pesquisa citada por Guareschi (2007, p. 13), realizada entre estudantes de nível
médio de superior, mostra que 97% dos que foram entrevistados desconheciam a existência
do direito da informação e de expressão, revelando a precariedade da mídia que tem acima de
tudo uma tarefa educativa, como consta no art. 221 da Constituição República Federativa do
Brasil.
Guareschi (2007, p. 09), se questiona “o que vem a ser democracia?” Respondendo
que tal implica na soberania popular e a distribuição equitativa de poderes, e que os meios de
comunicação fazem parte de tais poderes, afirmando que, para que haja democracia numa
sociedade, deve haver democracia no exercício de poder de comunicar.
Afirma também que a democracia representa valor ético e um conjunto de princípios
que precisam ser perseguidos, se caracterizando em cinco pontos fundamentais: a- igualdade:
todos os homens são iguais perante a lei; b- diversidade: no sentido de igualdade material, ou
seja, tratar os iguais igualmente, os desiguais desigualmente, na medida em que eles se
desigualam; c- participação: no que tange ter voz e vez para a contribuição de uma sociedade
comum, ou seja, ter uma sociedade construída por todos; d- solidariedade: consiste no
sentimento de ser solidário ao próximo; e- liberdade: seria uma conquista diária, sendo o
limite desta a liberdade do outro.
Referido autor enfatiza em sua obra que o exercício da democracia vem a ser “a
participação das pessoas na construção da cidade que se quer” (Guareschi, 2007, p. 13); sendo
direito à informação o de ser bem informado, isto é, sem parcialidade e de buscar informação
livremente; e o direito de comunicação, o mais importante, seria o de manifestar nosso
153
pensamento, de participação na construção na sociedade com nossa opinião, dizendo nossa
palavra por qualquer meio de expressão. Tal direito ganha conotação na Declaração Universal
dos Direitos dos Homens, mostrando que temos direito de difundir nossas opiniões sem
limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão.
Atualmente, chega-se à conclusão que a mídia é antidemocrática, uma vez que, no
que tange ao direito de informação ela não nos garante uma informação parcial, atua dizendo
o que é real, o que é bom, quem é legal e, além de tudo, retira de circulação informações que
seriam essenciais para tomada de rumo e conscientização do povo; já no tange o direito de
comunicação, não atinge os fins que lhe são elencados de participação para a sociedade que se
quer; e no caso da mídia eletrônica, tal não aparenta ser um serviço público concedido, mas
um oligopólio exercido, impedindo o direito de difundir as opiniões sem limites, com a
intenção de alienação, visando o lucro, veiculando o que bem lhe convier, e retirando de cena
o que não lhe convier. Sendo monopólios (ou oligopólios) de certas famílias como bem
afirma Guareschi, que faz um paralelo entre a mídia eletrônica e as capitanias hereditárias no
Brasil, vejamos:
É possível estabelecer um paralelo entre a colonização do Brasil e a implantação da
mídia eletrônica. Assim como nosso território foi loteado em capitanias hereditárias,
doadas a determinadas famílias, do mesmo modo há hoje um loteamento da mídia,
rádio e televisão entre algumas famílias privilegiadas. Há um estreito paralelismo
entre esses dois coronelismos: um tradicional, que se definia pelo poder e autoridade
dos proprietários das terras no controle político e outro moderno, que consiste na
posse da mídia eletrônica a serviço dos donos do capital, uma vez que é estreita esta
relação. (2007, p. 16)
Esclarece-se que referência que se faz da mídia como um quarto poder, não é
referência que ganha uma conotação explícita no ordenamento jurídico brasileiro, até porque,
se o mesmo fosse revelado de tal maneira, os tambores que fazem tocar as arbitrariedades
antidemocráticas já estariam estourando nossos tímpanos. Porém, como bem se sabe a mídia
está amparada legalmente e com certos limites (tais duvidosamente cumpridos, por causa do
monopólio exercido), entrando em nossas mentes de forma silenciosa, e envenenando-as dia-
a-dia de forma bem implícita, não perceptível a olhos nus. Ganha conotação de quarto poder,
por seu conteúdo fático, real, não por uma legitimação constitucional na divisão de poderes; e
como afirmamos anteriormente acreditamos que tal é atualmente fator real de poder. Tem
como principal finalidade a obtenção do lucro, e não o interesse social e a produção de uma
sociedade democrática; vejamos:
154
As TVs de canal aberto no Brasil não se constituem, na verdade, como opções
alternativas para a população. Comportam-se como se tivessem donos, e são
consideradas como uma propriedade privada. Em consequência disso passam a ter
como primeira finalidade o lucro, e não a educação das pessoas. Não há liberdade de
escolha. Agem como invasoras da vida e da privacidade das famílias e pessoas
(Guareschi, p. 23).
O oligopólio exercido pela atual mídia trai a razão de ser da mesma, não respeitando
qualquer idéia principiológica de construção do conhecimento, mas sim construção de robôs
que obedecem comandos condicionados por aqueles que detêm o poder.
Um prisma artístico
Pitty, cantora de Pop Rock nacional, enfatiza a ideia de atos condicionados pela
mídia, em sua canção “Admirável Chip Novo”, quando canta: “pense, fale, compre, beba,
leia, vote, não se esqueça, use, seja, ouça, diga, leia, more, gaste, viva” (SANTINI, 2010).
No mesmo diapasão, porém aprofundando um pouco mais, encontramos a letra da
canção “Terceira do plural” de autoria de Humberto Gessinger1, para a qual transcrevemos
lapidar comentário crítico encontra-se em post de André Guerra. Confira-se:
A música “Terceira do Plural” é um ataque aos “grandes ocultos”, referidos,
indeterminadamente, como “eles” – pronome muito corriqueiro em filosofadas de
boteco a respeito dos detentores do poder ou das teorias de conspiração que
governam o mundo.
Na primeira estrofe, fica clara a sequência lógica imposta pelo capitalismo
publicitário. Já na segunda, existe uma interessante imagem: “Cabeça pra usar boné
E professar a fé de quem patrocina”. Ou seja, há uma massa ignara que faz uso de
seu atributo intelectual apenas para dar valor às marcas que ostenta.
O que mais chama a atenção na letra é o refrão, que mostra como o consumidor, em
verdade, nada mais é do que um produto, assim como os que consome. Na passagem
“Eles querem te vender” pode ser feita a interpretação tanto como o desejo de
vender produtos ao consumidor, quanto como o de o próprio consumidor poder ser
vendido, usado como moeda de troca pelo consumismo. Trocando em miúdos, seria
mais ou menos como se os patrocinadores das corridas de carros vendessem seus
1 Corrida pra vender cigarro / Cigarro pra vender remédio / Remédio pra curar a tosse / Tossir, cuspir, jogar pra
fora / Corrida pra vender os carros / Pneu, cerveja e gasolina / Cabeça pra usar boné
E professar a fé de quem patrocina / Eles querem te vender... / Eles querem te comprar... / Querem te matar (a
sede) / Eles querem te sedar! // Quem são eles? / Quem eles pensam que são? / Quem são eles? / Quem eles
pensam que são? / Quem são eles? / Quem são eles? // Corrida contra o relógio / Silicone contra a gravidade /
Dedo no gatilho, velocidade / Quem mente antes, diz a verdade / Satisfação garantida / Obsolescência
programada / Eles ganham a corrida / Antes mesmo da largada /
Eles querem te vender... / Eles querem te comprar... Querem te matar (de rir) / Querem te fazer chorar // Quem
são eles? / Quem eles pensam que são? / Quem são eles? Quem eles pensam que são? / Quem são eles? / Quem
são eles? // Vender...comprar... / Vendar os olhos... / jogar a rede... / contra a parede
Querem nos deixar com sede, Não querem nos deixar pensar! // Quem são eles? / Quem eles pensam que são? /
Quem são eles? / Quem eles pensam que são? / Quem são eles? / Quem são eles?... (GESSINGER, 2004).
155
consumidores – os tele e os não tele espectadores – aos patrocinadores das indústrias
tabageiras, e estes, por sua vez, às indústrias de fármacos. Um ciclo perfeito,
fazendo rotar não os produtos, mas sim os consumidores.
A partir da quinta estrofe, é feita uma descrição da lógica consumista fútil e
irracional, implantada quase à força na sociedade. A expressão time is money,
sintetiza a ideia da “Corrida contra o relógio” dos tempos modernos.
Contra a televisão e à mídia se abate a passagem “Quem mente antes, diz a
verdade”; pois, na atualidade, com a velocidade instantânea da transmissão de
informação, qualquer fato que for divulgado massivamente, em pouco tempo vai ser
tido como verdadeiro por todo o mundo, mesmo sendo de conteúdo falacioso.
“Querem nos deixar com sede, Não querem nos deixar pensar!” aí o consumidor é
tratado como um fantoche, facilmente manipulável – inclusive por mensagens
subliminares – estando sedado para os acontecimentos, completamente passivo ao
que ocorre, um robô adestrado para consumir. (2009).
Dentro do processo penal, ciência que visa à resolução dos conflitos, das lides
penais, embasada, a mídia emprega o reverso da dignidade da pessoa humana, que é
fundamento da república, causando uma verdadeira tortura como apontado por Carnelutti e
um verdadeiro tribunal de exceção material, segundo nossas conclusões, ideia que
desenvolveremos de forma genérica nos tópicos seguintes do presente artigo, que ganhará
atenção em futuro trabalho, devido às limitações inerentes à confecção de um artigo.
Reducionismo midiático e sua análise psicológica
O que compreendemos por reducionismo é um processo de compactação de
informações. Em outro artigo de autoria de um dos coautores deste trabalho, “A informação e
a propaganda política - alcançando o poder político”2, mostra-se bem tal processo, pelo
destaque que faz Ellul sobre (i) a transição da doutrina política para o programa de governo,
(ii) passando posteriormente do programa de governo para o slogan e, após, (iii) passando do
slogan para a imagem. Em tal proceder configura-se uma espécie de reducionismo, uma vez
traz um processo de alienação em massa de toda camada social. Ele é o locus apropriado para
que contradições passem despercebidas ou até sejam utilizadas para reforçar a alienação3,
consoante explica Ellul (1968, p. 380).
Técnicas Mecânicas
2 Uelton Porto (artigo a ser publicado. No prelo).
3 Consoante Ellul a contradição é um recurso para o domínio das massas (1968, p. 380).
156
As técnicas mecânicas consistem em todo o meio, veículo, de transmissão de
informações TV, rádio, jornal impresso, revistas, internet, cinema, dentre outros. Essas
técnicas visam a transmissão de informações para uma grande massa com uma finalidade
comercial, ou seja, de lucro. O mercado é a razão e o fim último da criação e da maior ou
menor amplitude de utilização de um determinado meio de comunicação em massa. Por
incrível que pareça, estes meios conseguem falar para a massa, mas como se estivessem se
referindo individualmente a cada pessoa.
Estes meios de comunicação não representariam algo significativo para o mercado
sem o emprego conjunto e simultâneo de outras categorias de técnicas: as psicológicas e
psicanalíticas. De fato, Jacques Ellul ressalta que:
[s]e a imprensa se houvesse consagrado exclusivamente ao romance folhetim, se o
rádio transmitisse apenas música, não teria sido necessário fazer intervir os meios
psicanalíticos. E ainda assim não é certo: que há de mais inocente, na aparência, do
que os “comics strips”? No entanto, pode-se demonstrar rigorosamente sua profunda
influência na psicologia dos leitores e sua utilidade do ponto de vista sociológico.
(ELLUL, 1968, p. 372).
Técnicas psicológicas ou psicanalíticas
Ellul destaca as técnicas psicológicas e psicanalíticas com a finalidade de conhecer
as emoções e os sentimentos do coração humano, gerando um ser receptivo e reativo à
informação, assim afirmando que tais técnicas visam conhecer “com bastante exatidão as molas
do coração humano para agir sobre ele com grande segurança. Certo número de meios foram tão
aperfeiçoados que logram êxito quase infalível; sabe-se qual imagem produzirá quase
infalivelmente tal reflexo” (ELLUL, 1968, p. 372).
Para compreendermos tais técnicas, se faz necessário, compreender melhor o que vem a
ser os conceitos de memória, emoção, afeto, definir os tipos de emoção, o pensamento e as
manifestações das emoções.
A psicanálise explica que a memória é a faculdade de reproduzir conteúdos de forma
inconsciente (JUNG, 1991, p. 18). Ela é desencadeada por sinais recebidos por nossos
sentidos, os quais consequentemente despertam o que chamamos de atenção. Cabe destacar
segundo Fiorelli e Mangini (2010, p. 21) que sem atenção a informação que nos é transmitida
por meio dos sinais não se ativa a memória.
Há também que se falar em um componente cultural na formação da memória,
autores explicam que indivíduos de cultura oral, há uma maior tendência de se lembrarem das
coisas que ouvem.
157
Ao se analisar detidamente os recursos da mídia, de um modo geral, será possível
notar o esforço destas técnicas no sentido de, primeiro descobrir e, segundo utilizar/empregar
os meios mais eficazes para atrair e manter a atenção do sujeito passivo.
Segundo Fiorelli e Mangini (2010, p. 25) linguagem e pensamento estão diretamente
ligados; são funções mentais superiores, sendo certo que o indivíduo insere-se em determinada
sociedade em razão do aprendizado de uma linguagem que possibilita a representação do grupo
social e a integração do indivíduo neste. O mundo é representado pela linguagem, que
condiciona o registro de acontecimentos na memória, sendo as práticas, percepções e os
conhecimentos transformados quando são falados.
A linguagem influencia e sofre influencia do pensamento, gerando o que se chama de
ciclo de desenvolvimento, ou seja, à medida que a linguagem enriquece o pensamento evolui,
e à medida que o pensamento evolui a linguagem enriquece.
Mas, nos questionamentos, o que vem a ser o pensamento? Tem-se por pensamento a
atividade mental associada com o processamento, a compreensão e a comunicação da
informação (MAYERS, 1999, p. 216), tal abrange funções mentais como o raciocínio,
resolução de problemas e formação de conceito (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 25).
A propaganda e a publicidade trabalham muitas das vezes, plantando desejos e
emoções e sua realização da sensação de status de preenchimento maior e melhor, porém tais
sensações nunca passam do plano abstrato, são meras ideias, não há satisfação e
preenchimento verdadeiros, gerando uma consequente insatisfação posterior, e tal insatisfação
posterior, é tentada a ser preenchida por outro desejo, que a própria propaganda cria
novamente. Dá-se, aí, um ciclo vicioso vertiginante.
Cumpre destacar que o papel da emoção é o de estabelecer parâmetros para o
exercício da racionalidade.
Mencionados autores do campo da psicologia chegam a asseverar que sem a emoção
não é possível sequer comprar um peça de roupa, dado o quase ilimitado leque de opções tidas
por racionais. É exatamente no campo da emoção que os meios de comunicação como um
todo atuam, criando imagens de desejo, para que as pessoas possam perseguir com o intuito
de se sentirem melhores, superior, satisfazendo dessa forma seu ego.
Conclui-se que os meios de comunicação empregam as técnicas psicológicas e
psicanalíticas, utilizando a emoção como base do pensamento, impelindo qualquer tipo de
pensamento racional, uma vez que uma pessoa só é racional, quando está emocionalmente
estabilizada; boas palavras geram bons pensamentos, más palavras geram maus pensamentos.
158
Tudo isso visa mexer de forma avassaladora nos sentimentos nos sentidos, gerando ideias no
intelecto humano, tanto positivas quanto negativas.
Doze são os consequentes efeitos das emoções nas funções superiores (linguagem e
pensamento), revelados pelos estudiosos da psicologia, as quais não se abordará em razão das
limitações inerentes ao artigo. O emprego simultâneo das técnicas psicológicas e mecânicas,
trazem três consequências destacadas por Ellul (1968, p. 384): 1) a supressão do espírito
crítico, da formação da boa consciência social; 2) a disponibilidade das massas, para fazerem
o que for considerado adequado; 3) a criação de universo abstrato, criado no cérebro dos
indivíduos.
Comprova-se, portanto que tais técnicas empregadas alienam de uma forma ou de
outra. Constatam-se tais técnicas explícitas em revistas de grande circulação nacinal, em
diversos casos judiciais (i) o da menina Izabela Nardoni, (ii) o caso de Elisa Matshunag, (iii)
do goleiro Bruno etc, uma vez que geram todas as consequências acima arroladas.
Devido processo legal como princípio basilar do Direito Processual Penal
Neste tópico, pretende-se mostrar o que é a ciência do Direito Processual Penal, e
quais são seus fins perseguidos, demonstrando o que é o devido processo penal de forma
genérica. De forma específica, a influência que ela exerce no princípio base do devido
processo legal, e no princípio do juiz natural, mostrando a deturpação do princípio da
publicidade para a compreensão de como a mídia influencia os pontos basilares destes
princípios como um todo, prejudicando diretamente a efetiva aplicação da justiça, construindo
um direito penal do inimigo, que tem apenas o caráter retributivo da pena, deixando de lado o
caráter reeducativo.
O que é o direito processual penal? Para Antônio Alberto Machado é uma locução
polissêmica, e que a mesma desperta várias funções, nos preocupando com a ideia de ser um
mecanismo de apuração de crimes e imposição de penas e uma relação jurídica que disciplina
tais mecanismos (MACHADO, 2012, p. 01).
Machado (2012, p. 14) traz a ideia de a dupla instrumentalidade do processo, qual
chama de técnica e ética; a primeira se referindo como método de composição de lides penais,
e a segunda como método de afirmação de direitos constitucionais, revelando no valor ético a
atual teoria do processo penal, que demonstra que processo penal não é instrumento, mas sim
159
garantia, sendo tal afirmação resquício da atual teoria processual não adotada pelo Brasil um
atrasado de aproximadamente trinta anos na teoria do direito processual como um todo.
Para melhor compreensão, sobre o dado assunto, há que se compreender que para
Elio Fazzalari, o processo é procedimento em contraditório, sendo o mesmo tido também
como uma garantia, e não como uma relação jurídica. Machado já traz tal ideia do mesmo,
dando conceito de processo como procedimento em contraditório, porem não desenvolve o
mesmo como uma garantia, apenas a menciona. Compreende-se que quando o mesmo vem
afirmar a questão de dupla instrumentalidade ética, arrolada no parágrafo acima, o mesmo
vem contribuir também com a ideia do processo como garantia no ordenamento jurídico
brasileiro.
A nova teoria do processo será trabalhada de maneira mais aprofundada em obra
posterior, porém é imprescindível compreender o processo como procedimento em
contraditório e como garantia constitucional, assim como aponta tanto Machado, quanto
Fazzalari.
A ciência do Direito Processual Penal, possui princípios que a informam, sendo o
princípio do devido processo penal a base de todos os demais, uma vez que se um princípio é
contrariado, contraria também de forma sucessiva o devido processo penal. Como é princípio
matriz informa outros demais princípios como: o contraditório, a ampla defesa, juiz natural,
fundamentação das decisões, justa causa, processo acusatório, dentre outros subprincípios
como o da publicidade, ressalvando que estes são aqueles que possuem suas restrições. Nesta
obra desenvolver-se-á apenas a influência da mídia em três princípios específicos: o do devido
processo legal (princípio base), e um subprincípio da publicidade no processo penal, o
princípio do juiz natural. Lembrando que a influencia da mídia desrespeita todos os princípios
acima arrolados, porém os mesmos serão trabalhados em obra posterior, devido a grande
abrangência do tema.
O devido processo legal, segundo Machado (2012, p. 60) pode ganhar conotação pela
doutrina como: 1) em sentido material: como garantia constitucional, expressa na lei de que os
direitos e garantias fundamentais serão respeitados pelo estado no processo, e também que as
normas processuais serão interpretadas e aplicadas da melhor maneira possível; 2) em sentido
formal: representando as garantias processuais de que o processo penal observará as
formalidades previamente estabelecidas para a sua tramitação. Ele é previsto no art. 5º ° inc.
LIV da Constituição Federal e prevê que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988).
160
O princípio do juiz natural vem a ser aquele que diz que nenhum processo será válido
se constituído perante tribunal de exceção, ad hoc, tal tribunal deve ser constituído
previamente por lei, deve ter previsão constitucional antes da ocorrência do fato, está previsto
no art. 5º, XXXVII, da CRFB/1988: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, sendo que a
não observância deste princípio acarreta a nulidade do processo.
O princípio da publicidade é aquele que assegura que todos os atos do processo penal
devem ser públicos, na CRFB/1988 está expresso no art. 5º, LX, e no art. 93, IX, já no Código
de Processo Penal, consta no art. 792, estabelecendo a regra que as audiências, sessões e atos
processuais, produzidos pelos órgãos jurisdicionais serão públicos. Há uma distinção
apontada por Antonio Alberto Machado entre, a publicidade geral e a publicidade especial ou
restrita, sendo que a primeira é aquela que visa garantir um controle externo, e a segunda
aquela que visa garantir o controle dos eventuais interessados no processo provindo o
princípio do contraditório. Fala-se em uma restrição dessa publicidade, dando a possibilidade
ao magistrado aplicar publicidade restrita, quando o Código de Processo Penal dispõe que
quando a publicidade dos atos processuais puder provocar escândalo, inconveniente grave ou
perigo de perturbação da ordem, tendo em vista a defesa da intimidade ou o interesse social,
desde que não haja prejuízo para o interesse público no que ser refere ao direito à informação.
A contribuição da mídia que influencia diretamente o processo penal, para a
formação do Estado demagógico de Direito reducionista
Do estudo dos temas acima se constata que os meios de comunicação fazem com que
não sejam dadas garantias constitucionais básicas para quem é um mero indiciado, os
“julgando” como culpados sem qualquer tipo de respeito às garantias do devido processo,
contrariando todo esse construto de ciência complexa e dinâmica até então construída, de
afirmação ética dos princípios basilares da Carta Magna, e técnica. É de suma importância
resalvar neste dado momento, que a influência que a mídia exerce faz com que não haja a
observância de qualquer destes princípios, o mais curioso dado que podemos afirmar é de fato
a criação de espécies de “tribunais de exceção em sentido material”, ad hoc, onde se monta
um tribunal apenas para julgar um caso específico: aquele que a mídia tem exposto de forma
massacrante.
Deve-se advertir os leitores que, como se está falando em uma influência no direito
de punir do Estado, com pena de restrição de liberdade, falamos da pena mais grave que tem
161
em nosso ordenamento jurídico, devendo ser feita tal imposição, da melhor maneira possível,
de forma técnica científica, não deixando toda a sociedade alienada por um meio de
comunicação julgar quem é culpado ou inocente.
Dentro do Estado democrático o princípio da publicidade é essencial, haja vista que
nosso sistema processual, segundo a teoria dominante é acusatório, porém com a atual
influência da mídia há um desvio de finalidade da função, uma vez que a publicidade
processo não foi feita para possibilitar espetáculos públicos mas, sim, para garantir o
contraditório a ampla defesa.
Diante da deturpação de tal princípio, que se baseia no direito da informação, é, em
realidade, muito difícil fazer com que os órgãos jurisdicionais, julguem de forma imparcial,
que os promotores e advogados postulem de forma adequada, quando se fala da influência que
a mídia exerce no mesmo, fazendo do que se chama de princípio da publicidade e o direito de
informação, ideias degeneradas, que não atentem suas finalidades essenciais mas, sim, uma
ideia de massificação da informação que busca lucro. Francesco Carnelutti em sua época já se
preocupava com tal, vejamos:
A publicidade do processo penal, a qual corresponde não somente a ideia do
controle popular sobre o modo de administrar a justiça, mas ainda, e
profundamente ao seu valor educativo, está infelizmente degenerada em
motivo de desordem. Não tanto o público que enche os tribunais ao
inverossímil, mas a invasão da imprensa que precede e persegue o processo
com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém
ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar-se com aqueles
aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de julgar. As
Togas dos magistrados e dos advogados, assim, se perdem na multidão.
Sempre que mais raros são os juízes que têm a severidade necessária para
reprimir esta desordem. (CARNELUTTI, 1995, p. 20).
O autor humanista como era já se preocupava com a influência que a imprensa
exercia no processo penal, lembrando que a dificuldade de todas as funções exercidas no
processo, tanto da acusação e da defesa, quanto a do juiz, que tinha que fazer um tarefa divina
de julgar. A mídia toma lugar, vestindo a toga dos magistrados como se fossem vestes teatrais
à busca do entretenimento da grande massa.
Conclusão
Em sede de conclusão do trabalho, cumpre fazer uma advertência aos “juristas
midiáticos”, que a publicidade pode e deve (em determinados casos) sofrer restrições.
162
Restrições que devem ser empregadas com urgência, para que não haja um desvirtuamento de
toda ciência processual penal, dando a publicidade restritiva a processos que mereçam, e não
o tornando espetáculos públicos, feitos muitas vezes para acobertar maus feitos políticos.
Consta em nossos conhecimentos de ciências políticas, que toda democracia quando
não cumprida é tida como uma demagogia. Com a onipresença midiática podemos encarar
que a imprensa, como já dizia Carnelutti faz parte do que não foi arrolado por Lassale, mas
que segundo a atualidade, embasados em sua teoria, podemos afirmar que, a mídia hoje é um
dos fatores reais de poder, que constrói nossa constituição real, afirmando a tese, que nossas
leis apenas estão no papel, e não estão sendo concretizadas, construindo realidades falsas de
dualidade para diminuir o que Lassale chamou de poder intelectual, pois a maior tarefa em
nossa sociedade de democracia midiada reducionista que é igual a uma demagogia, é manter-
se crítico.
Há que se falar em um jogo que destaca Ellul no qual “quanto mais intensa for a
propaganda, mais utilizará os meios caros, mais tenderá a reduzir o jôgo da democracia à
oposição entre dois blocos” (ELLUL, 1968, p. 383).
Cumpre afirmar aqui uma crítica, onde podemos fazer a substituição do termo direito
para mídia, no provérbio em latim: ubi societas ubi jus (onde há a sociedade, há o direito),
ficando como, onde há a sociedade, há a mídia, em razão da “onipresença midiática”. Neste
diapasão, um dos objetivos do trabalho foi questionar quais as consequências dessa
onipresença midiática. A resposta apresentada neste artigo é que, aos olhos dos juristas (os
verdadeiros juristas, isto é, os que se matem críticos), enxerga-se um “encobrimento” do
direito pela mídia, onde as togas daqueles que tentam compor as lides penais são lançadas ao
vento, que consequentemente geram o que podemos chamar de uma espécie de tribunal de
exceção em sentido material quando se está diante de casos de grande repercussão na mídia, e
contribuindo de forma sucessiva a tortura, à vitimização secundária do agente, verdadeira
ofensa à dignidade da pessoa humana, prática que o Estado Democrático de Direito não
tolera.
REFERÊNCIAS
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163
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164
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CCsQ6AEwAA#. Acesso em 08/10/2012.
165
UMA ABORDAGEM PROPEDÊUTICA SOBRE A INTERVENÇÃO DA
TÉCNICA NO FENÔMENO HUMANO
Robson Henrique Oliveira1
Uelton Carlos Porto2
RESUMO: Partindo da premissa de que Jacques Ellul deixa em aberto a discussão
sobre a exegese do sistema técnico frente ao fenômeno humano, este trabalho procura levantar
reflexões sobre as hipóteses de explicitação sobre o fenômeno de ser, sobre a relação entre o
ser e o mundo em linhas gerais e abstratas, tendo como pressuposto a metodologia da
ontologia fenomenológica e a abordagem sobre o homem inserido na realidade técnica,
parafraseando Kant, Nietzsche, Heidegger e Sartre, a dialética da razão prática em Hegel, bem
como os escritos filosóficos de Henrique C. de Lima Vaz, Teilhard de Chardin. Nesse
diapasão, o que se pretende é uma abordagem introdutória, explanando, a priori, no limiar das
reflexões filosóficas trazer uma visão sobre ser que, em linhas gerais, corresponda a uma base
hermenêutica e metodológica para se discutir uma possível intromissão da técnica no
fenômeno de ser, e para, outrossim, servir de base teórica e metodológica a outros trabalhos
acadêmicos nesse âmbito da problemática.
Palavras-chave: ser. técnica. intervenção. exegese. fenômeno
Considerações iniciais.
Para fazer um julgamento moral, para dizer que o sistema técnico é
desumano, eu precisaria ter uma idéia exata do que é humano,
precisaria ter uma idéia segura do que é o homem. (...) Tudo que
posso dizer é que até agora ele conseguiu fazer sua própria história.
(ELLUL, 1974, p. 70-73).
Por meio da análise da dialética cultural da história humana, expõe Ellul que foi o
uso da técnica sem a ética coerente, sem os julgamentos espirituais necessários - e para isso
1 Bacharel em direito pela Faculdade do Alto São Francisco de Piumhi - Faspi.
2 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário. Autor e coautor de
obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros).
166
desce análise às culturas antigas, às instituições antigas, como Egípcios e Romanos - que
outorgou ao fenômeno técnico a sua essencialidade racional atual, levando-a a atingir
elevados níveis de eficiência, lhe imprimindo, outrossim, independência e autonomia.
O homem, que “conseguiu fazer” até então sua história, encontra-se frente a frente
com a técnica e esta lhe compele exatamente a não ser livre no mundo: “Portar julgamentos
éticos, julgamentos morais, julgamentos espirituais é realmente, a maior liberdade humana.
Com a técnica, somos privados de nossa maior liberdade” (Jacques Ellul em: A Traição pela
tecnologia3).
Todavia, entra-se aqui em uma linha tênue e paradoxal. Para ser “livre” e fazer sua
própria história o homem necessita portar julgamentos éticos e espirituais no mundo perante o
fenômeno técnico, mas para se alcançar necessariamente um julgamento espiritual frente à
técnica, precisa-se antes saber “exatamente” o que é humano e ter uma ideia segura do que é o
homem.
Conclui-se disto que sem saber o que é realmente o fenômeno humano, ou ao menos
lhe traçar características sólidas, não há liberdade humana possível no mundo. Encontrando os
dizeres de Hegel: “Compreender o que é, esta é a tarefa da filosofia, pois o que é, é a razão” 4.
Todavia, a busca pela essência do ser não é nem foi um episódio não conturbado e
não dramático no campo da filosofia, o que será melhor vislumbrado quando da abordagem
do pensamento de Lima Vaz, tal como será exposto em tópico à parte.
Assim, é refletindo - e lançando um ponto de vista - sobre o fenômeno humano que
responderemos a paradigmas atuais: Vivi potest quid liberum spirituale, et sic quod nulla in
mundo? Quod intercessiones ars in phaenomenon esse?5
Este trabalho visa levantar reflexões sobre as hipóteses de explicitação sobre o
fenômeno de ser, sobre a relação entre o ser e o mundo em linhas gerais e abstratas, tendo
como pressuposto a metodologia da ontologia fenomenológica e a abordagem sobre o homem
inserido na realidade técnica, parafraseando (apenas superficialmente, dada a complexidade
do tema e à concisão que se espera de um artigo acadêmico) Kant, Nietzsche, Heidegger e
Sartre, a dialética da razão prática em Hegel, bem como os escritos filosóficos de Henrique C.
de Lima Vaz, Teilhard de Chardin.
3 Documentário produzido pela BBC, disponível em jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/12/01/236/ , acesso
em 05/09/2012.
4 Trata-se de uma máxima de Hegel, amplamente conhecida no meio acadêmico.
5 “Que liberdade espiritual e que sentido de ser vivente é possível no mundo da técnica? Qual a
interferência da técnica no fenômeno de ser?”
167
Utilizou-se, na elaboração, a compilação de obras, artigos acadêmicos e sites de
internet que assistem ao tema.
Da antítese à síntese.
Como dito, a busca pela essência do ser não é e nem foi um episódio incontroverso
na larga história do caminho conhecimento humano.
A filosofia, para ser legítima, deve considerar e interpretar o fenômeno humano e o
mundo em uma perspectiva dialética, plena, sintética; objetivamente no mundo (ser-aí-no-
mundo) na relação interativa – subjetivista – consciência-mundo-das-experiências e,
espiritualmente, na relação “ser-mundo”, de forma que o ser reflita justamente o equilíbrio
entre o ser e a realidade.
No entanto, para atingir tais premências da síntese carecemos de refletir sobre a
teoria do conhecimento e sobre a dialética – e suas implicações.
Considerações históricas e factuais.
No âmbito das explorações da antropologia filosófica a essência dessa racionalidade
mesma está justamente na tentativa – e essa se esvai pela história afora – do homem em
buscar diminuir a distância entre dois mundos que refletem o seu ser.
As considerações aqui realizadas demonstram que o equilíbrio necessário foi violado
por uma adversatividade na interpretação da captação espiritual da liberdade caótica e
ocasional e a captação objetiva e livre dos atos humanos – a dicotomia: o ser natural ou o ser
cultural - ambas como modelos de liberdade humana.
Nessa medida, a ambiguidade referida atravessou a história da filosofia e a marcou
profundamente, inclusive nos debates relativos à antropologia filosófica dos últimos tempos.
Nos dizeres de Lima Vaz (2000, p.8, grifo no original), foi
Na tentativa de superação da crise que envolve a concepção do
homem na cultura ocidental, diversas tendências se manifestaram
desde o século passado, que podem ser enfeixadas em duas grandes
correntes: o naturalismo, que professa um reducionismo mais ou
menos estrito do fenômeno humano à natureza material como fonte
ultima de explicação. Entre os exemplos contemporâneos desse
naturalismo podem ser apontadas as obras do antropólogo C. Levi-
Strauss e do biólogo molecular J. Monod; e o culturalismo,que
168
acentua a originalidade da cultura em face da natureza, separando no
homem o “ser natural" e o “ser cultural”. O mais conhecido
representante dessa tendência e Wilhelm Dilthey (1833-1911) que
inspirou a distinção, tomada clássica, entre as ciências da cultura ou
do espirito (Geisteswissenschaften) e as ciências da natureza
[Naturwissenschaften). (...) [A] resposta a questão sobre o que é o
homem fica distendida entre os dois pólos da natureza e da cultura,
cada um exercendo poderosa atração sobre os conceitos com os quais
a Antropologia filosofica pretende explicar o homem.
Os conceitos, todavia, devem ser interpretados em unidade. Ora, é essa ambigüidade
interpretativa sobre o ser ocorrida na cultura ocidental racionalista e, por conseguinte, a
necessidade de se superar a experiência contida nos pressupostos de existência do fenômeno,
é que Lima Vaz exporá como o estopim do fenômeno do niilismo ético6, cuja análise reclama
pela unidade. Nesse sentido, Dowel (2007, p. 248) expõe que
Pelo contrário, [Lima Vaz] pretende demonstrar que foi justamente a
implacável dialética desta exigência [unidade do ser], interpretada
erroneamente no terreno da teoria da representação, que levou a
humanidade ocidental à dramática experiência do niilismo, como
absolutização da razão humana e, finalmente, da irracionalidade e
não-sentido, reverso dialético perfeito da experiência do Absoluto real
(ib.) (DOWEL, 2007, p. 248).
É cediço que nesse mundo racional e sem sentido, no mundo da razão, a
espiritualidade não tem domínio fértil! Nesse diapasão, comentando Teilhard de Chardin,
Lima Vaz resume o aspecto contemporâneo dramático vivido pela sociedade da razão da
seguinte forma: “[O] advento de uma cultura pós-teísta é, sem dúvida, um dos mais
dramáticos fenômenos de civilização que a história conhece” (LIMA VAZ, 1996, p. 7).
Nesse mesmo sentido, conclui Teilhard de Chardin (1955, p. 323) que
Aparentemente, a Terra Moderna nasceu de um movimento anti-
religioso. O Homem bastando-se a si mesmo. A Razão substituindo-se
à Crença. Nossa geração e as duas precedentes quase só ouviram falar
de conflito entre Fé e Ciência. A tal ponto que pôde parecer, a certa
altura, que esta era decididamente chamada a tomar o lugar daquela.
Ora, à medida que a tensão se prolonga, é visivelmente sob uma forma
6 Não será necessário adentrar aqui em minudências sobre este fenômeno, ou na obra de Lima Vaz, já
que ele será mais bem trabalhado - pois, reservar-se-á, contudo, um trabalho à parte - quando da abordagem da
“Influência da técnica na intersubjetividade do agir humano”, entrementes, tendo em vista a clareza e a
concisão inerentes a um artigo científico e à complexidade do tema tratado.
169
muito diferente de equilíbrio - não eliminação, nem dualidade, mas
síntese - que parece haver de se resolver o conflito.
Reflexões.
Na modernidade, Kant dividiu o conhecimento em sensível - percepção dos objetos
cognoscíveis - e a priori do entendimento, como o conhecimento do espaço e do tempo. Para
ele, todo conhecimento possível deve envolver tanto o entendimento quanto a sensibilidade
em uma perspectiva sintética e mutualística. Assim, uma coisa aparece no espaço e no tempo
somente na medida em que é sentida pela mente e, da mesma forma, os conceitos só se
aplicam às coisas na medida em que são sentidos pela mente.
Ora, uma Coisa em si é algo exterior à mente e pode não ter nada a ver com o espaço
ou o tempo ou qualquer outro conceito a priori do entendimento, motivo pelo qual as Coisas
em si, para ele, são incognoscíveis. Toda a teoria Kantiana reflete, em suma, dois mundos: O
mundo sentido e experimentado por nossos corpos e o mundo das Coisas em si, que não
podem ser racionalmente conhecidas.
Por conseguinte, a metafísica da razão em seus pressupostos éticos não possui
terreno fértil no campo da objetividade, já que pela ótica da fenomenologia do ser, a
atribuição de uma essência prévia ao ser humano (razão) acaba por encerrar um conceito de
ser humano em si mesmo, como ser que é o que é. Ora, como visto, o ser é construção de si
mesmo e até o momento atual encerra o seu conceito no fato de que “conseguiu fazer sua
própria história” (ELLUL, 1974, p.70).
Separados, pois, os dois mundos - o cognoscível e o incognoscível - afora a carga de
negatividade dessa tese por instituir o limite do próprio conhecimento humano, ela também
conduz a um lugar comum: a dialética. Se a essência da razão em si é conhecer o mundo das
experiências sensitivamente e intuitivamente, existindo em apartado o mundo das Coisas em
si, chega-se a duas conclusões: Primeiro que a razão é dialética e dinâmica em si mesma, se
ocupando em sentir o mundo pelo espaço e pelo tempo ao mesmo tempo em que abstrai dele
sua essência, racionalizando tudo isso e julgando - escolhendo - a todo tempo e, segundo, que,
a metafísica, residindo na relação razão-mundo como exporemos nas reflexões posteriores,
encontra-se igualmente na relação não razão-mundo.
Nesse diapasão, muito bem explicou a ontologia fenomenológica a relação
consciência-mundo. Não teríamos que acrescentar-lhe qualquer aperfeiçoamento, exceto
explorar melhor a interferência que a realidade material pode incutir no fenômeno de ser, pois
170
o ser determina a realidade através de suas escolhas no mundo e também é determinado por
ela, uma vez que a dialética da razão humana parte de uma realidade dada e esta influencia
diretamente o ser, e, como exporemos adiante, não poderemos determinar o ser nesses vieses
senão abordando a dialética em Hegel.
O ser esteve, está e sempre estará aí-no-mundo, existindo, engajado na eterna busca
pelo absoluto e na eterna transcendência de si, em sublime construção de si mesmo e do
mundo. Muito embora a ontologia não consiga explicar a Coisa em si7, ao menos traça as
características objetivas e subjetivas que lhe concernem em um primeiro momento; descreve o
ser como não sendo proprietário de essência previamente constituída, mas sim construção de
si, tanto no aspecto individual quanto coletivo, no sentido de que toda consciência é
consciência relacional e objetiva, motivo pelo qual não se pode negar a condenação do ser ao
juízo, ao mundo objetivo, à escolha de si mesmo e do outro.
Todavia, unicamente o Dasein não corresponde ao caráter transcendente, já que a
realidade humana é também o devir, o caos, o acaso, a mudança e a contingência das relações
mundanas.
É cediço que a tradução dos compêndios trazidos pelas discussões travadas ao longo
das explorações dialéticas mais profundas sobre a busca da verdadeira face do ser, ora
baseados nos estudos de Lima Vaz, Teilhard de Chardin, ou ainda mesmo Fritjof Capra - O
Tao da Física - a título de exemplificação, remontam a um paralelo entre a visão objetiva de
7 Sartre (2009, p. 761) explana que “esta questão da totalidade não pertence ao setor da ontologia”, mas
“as únicas regiões que podem ser elucidadas são as do Em-Si, do Para-si e da região ideal da “causa em si”; e
que “prescrições morais” não podem ser formuladas de per si pela ontologia. Entrementes, o mesmo autor relata
que “Deixa entrever uma ética que assumisse suas responsabilidades, em face de uma realidade humana em
situação” em p. 763. op. cit. Ora, mas não é possível, por este viés, responder como de fato poderíamos discutir
uma “ética em situação” sem discutir imperativos morais. Qualquer ética que se preze baseia-se na vontade
humana de unir-se ao absoluto, ao outro; pode-se citar o instituto da democracia (que reflete essa contingência
coletiva), por exemplo. Não há situação individual já que o ser-para-o-outro é parte integrante do nosso ser -
diferente do conceito do “nós” (ser com) (SARTRE, 2009, 287-512). Tem-se que a exegese do termo
“prescrições morais” proposta está totalmente equivocada. Ora, o imperativo está totalmente ligado à situação
objetiva do ser-no-mundo. Mas a razão, em sua perspectiva dialética, esboça justamente a ligação sintética entre
o caos e a nadificação racional do espírito situado necessariamente em uma objetividade real que revelam a
unidade. Este autor possui profundas convicções - e estas seguem no mesmo raciocínio associativo da análise da
unidade - de que o viés interpretativo pelo qual o vazio espiritual condiciona-se exatamente ao exame profundo
do Nada - já que este é a condição fundamental de ligação entre o ser e o mundo, entre o nada e o absoluto: Só
um vazio pode ser preenchido. O vazio de ser é eterna busca pelo seu próprio preenchimento e essa é a
característica fundamental da liberdade, da facticidade. Só um ser que se busca a si mesmo pode ser livre - o que
em nada contraria o aspecto espiritual do julgamento livre e ético, devendo se analisar mais a fundo a
intersubjetividade e esta poderá demonstrar a unidade do ser sobre esse aspecto (Vide Lima Vaz). Nem
tampouco contraria os termos tratados em Hegel (Fenomenologia do espírito) ou em Nietzsche, de forma que é
justamente nessas linhas é que será tratada a intersubjetividade humana nos moldes traçados inicialmente nesse
trabalho: A aproximação do real presente nos estudos da dialeticidade histórica do ser à visão espiritual
Theilhardiana, e ainda, da visão de Lima Vaz em seu ensaio de Antropologia Filosófica, quando da análise do
fenômeno do niilismo ético e das características presentes na intersubjetividade do agir e da vida ética.
171
mundo construída pela física ocidental e os caracteres do sentir espiritual presente no
misticismo oriental, aspectos que se desenvolvem em duas visões de mundo, divergentes, que
há pouco tempo encontraram seu lugar comum no tempo e na filosofia, revelando um fato
incontestável sobre o fenômeno humano: O ser contém em si mesmo essa dualidade - sintética
- objetiva e subjetiva, uma condição humana convertida em uma unidade inseparável em seu
âmago, ou como certa feita nos esposou Hegel, o conceito puro, a Coisa em Si.
Nessa medida, nem somente a conotação de liberdade e de facticidade trazida por
filósofos pré-socráticos, muito bem explorados por contemporâneos como Nietzsche, nem
somente a ontologia fenomenológica de per si, desconsiderando a metafísica - por não fazer
parte de suas investigações - não foram sozinhas capazes de trazer uma reflexão completa
sobre o fenômeno humano, pois, em si mesmas consideradas, não refletiram a síntese.
Dessa feita, toda a filosofia que tenha se imbuído em considerar o ser apenas em sua
relação consciência-mundo nasceu fadada ao insucesso porque a subjetividade em si não
encerra o ser humano e não é capaz de explicar o incognoscível; no mesmo sentido somente o
vontade de potência, o caos, o absoluto, não podem satisfazer a objetividade do homem no
mundo.
Da ambivalência sintética.
Por esse viés, pode-se dizer que a essência da liberdade na realidade humana passa
pela intersubjetividade e pela objetividade do mundo. É na escolha do Para-si que
encontramos a primeira face dessa liberdade. Ora, se é o homem aquele que dá finalidade para
aos existentes em bruto, como diria Heidegger, e se o homem em si mesmo não tem uma
finalidade prévia, logo ele é livre para se escolher. Note-se, contudo, que escolhendo a si
mesmo ele escolhe todos os outros homens, num contexto ético. Sartre (1970, p.5) assinala
que
Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer
que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que,
escolhendo-se, ele escolhe a todos os homens. De fato, não há um
único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não
esteja criando, simultaneamente, uma imagem de um homem tal como
julgamos que ele deva ser.
172
No entanto, como já frisado, essa liberdade ocasional - ética situacional - contida no
âmbito da razão dialética é, por conseguinte, apenas uma das faces desse processo. O outro, a
espiritualidade, advém do absoluto e não pode ser conhecida, como dito, agindo como se
fosse o combustível dessa racionalidade mesma.
Ora, é somente por existir um mundo que não pode ser conhecido é que a razão tende
a conhecer. Inventamos as ciências e as técnicas para descobrir aquilo que o olho nu não pôde
enxergar; fizemos experimentos, refutamos teorias e buscamos máximas do conhecimento na
tentativa de conhecer cada vez mais. Nessa busca pelo conhecimento, esquecemos que nem
tudo pode ser conhecido e como o não-conhecer é o anverso da moeda, igualmente
importante.
O ser é, portanto, uma ambivalência sintética; quanto mais existente é o absoluto em
si, o caos, mais a razão dialética tende a buscar uma explicação racional para o mundo e
quanto mais se conhece o mundo através da razão, menos o interior do homem é conhecido.
“Quanto mais se julga com a razão, menos se julga com o espírito” e quanto mais
“conhecemos” a realidade, menos conhecemos a nós mesmos. Hegel (1992, p. 43-44) assinala
que
[T]ambém no conhecimento filosófico o vir-a-ser do ser-aí como ser-
aí difere do vir-a-ser da essência ou da natureza interior da coisa. Mas,
primeiro, o conhecimento filosófico contém os dois, enquanto o
conhecimento matemático [exemplificando porque a idealização
racional em si não é suficiente] só apresenta o vir-a-ser do ser-aí, isto
é, do ser da natureza da Coisa no conhecer como tal. Segundo, o
conhecimento filosófico unifica também esses dois movimentos
particulares. O nascer interior, ou o vir-a-ser da subs-tância, é
inseparavelmente transitar para o exterior ou para o ser-aí; é ser para
Outro. Inversamente, o vir-a-ser do ser-aí é o recuperar a si mesmo na
essência. O movimento é assim o duplo processo e vir-a-ser do todo;
de modo que cada momento põe ao mesmo tempo o outro, e por isso
cada qual tem em si, como dois aspectos, ambos os momentos; e eles,
conjuntamente, constituem o todo, enquanto se dissolvem a si mesmos
e fazem momentos seus.
Ora, a transitoriedade, a facticidade e a falta de capacidade do homem em conhecer
tudo aquilo que a realidade material oferece que pode demonstrar algo que o qualifica
realmente, moldes em que a Coisa em si deve ser considerada.
Embora a razão tenha aspectos puros, como nos revelou Kant, é indiscutível que ela
opera por meio da realidade e a esta flui, assim como o ser, e essa fluidez é justamente o que
173
faz reaver a Coisa em si. Na síntese poética de Parmênides, “a maior obra prima da dialética
antiga, era tido como a verdadeira revelação e a expressão positiva da vida divina” (HEGEL,
1992, p. 31, grifo no original). “Tudo flui”. A natureza flui, modifica-se. O ser flui no tempo
(HEIDEGGER, 1993). É transitório, é transcendente, está-aí-no-mundo em facticidade (é o
que não é e não é o que é) (SARTRE, 2009, p.32). Hegel ainda reflete que “mesmo então
apesar das muitas preocupações que o êxtase produzia, de fato esse êxtase mal entendido não
devia ser outra coisa senão o conceito puro” (HEGEL, 1992, p. 31, grifo no original).
Assim, a dialética espiritual – de uma liberdade espiritual e ética – reclama que o
fenômeno humano deve ser entendido na história e em contexto, pois o ser se manifesta em
sua transitoriedade mesma e é essa a sua única característica em si.
Dessa feita, muito embora não possa ser conceituada de per si, a Coisa em si pode
ser auferida e abstraída da historicidade dialética humana. O fenômeno humano se situa então
entre o ser e o não ser, entre o nada e a busca pelo absoluto, entre o ser e a realidade material.
Ora, é esta busca mesma a única essência humana factível. É justamente o equilíbrio
entre ética espiritual e razão na dialética da racionalidade que possibilita o transcender;
fulcrada na existência de equilíbrio entre o ser e realidade.
Da importância destas reflexões.
Importa aqui abrir um pequeno espaço para colocar uma visão geral sobre as
complicações destas reflexões, trazendo para isso a transcrição do ponto de vista de Dowel
(2007, p. 247-248, grifo no original) sobre o autor Lima Vaz, sendo muito importante entrever
que
(...) [N]ão será possível superar os impasses da civilização moderna e
pós-moderna enquanto não se universalizar a experiência da inanidade
do não-sentido do humanismo antropocêntrico. Somente essa
experiência poderá dirigir as energias espirituais da civilização para o
reencontro da fonte transcendente do sentido ou para descobrir uma
nova estrutura da experiência do Transcendente que se torne princípio
inspirador de uma realização mais autenticamente humana dos
grandes ideais da modernidade (id. p. 174s). Ele está bem consciente
de que esse programa, que é o seu, soa como um ingênuo arcaísmo
aos ouvidos de uma cultura estruturalmente atéia, que se orgulha de
ter ousado o passo que levou a humanidade da idade infantil das
crenças para a idade adulta da Razão (id. p.175). Convencido, porém,
de que a exigência do Absoluto está inscrita na própria essência do
174
dinamismo mais profundo da razão humana, não se intimida diante do
clima infenso à realização da missão que se propõe.
Considerações finais.
Nesse diapasão, investigado - aqui - no âmbito do ser, do conceito puro, tem-se, nas
primeiras explanações, que o movimento interpretativo errôneo de seus meandros no campo
da investigação humana de si mesma foi o que conduziu a humanidade à falta de percepção
espiritual no trato com o mundo na contemporaneidade.
Discutiu-se, outrossim, a visão contraditória e conturbada sobre a antítese que
percorreu toda a história da filosofia, bem como os fundamentos de uma síntese, necessária a
orientar o exegeta em suas reflexões sobre o ser, desenhando a o ângulo de visão sobre o qual
recairá a discussão sobre a interferência da técnica no ser, cuja característica principal é o
equilíbrio - e este é encontrado nos meandros da intersubjetividade - entre o ser e a realidade
material.
Concluiu-se, pois, destas considerações, que a exegese sobre a unicidade do ser é
idônea para direcionar os estudos das ciências humanas no campo pragmático, de forma a
propiciar uma base hermenêutica sólida para se discutir o fenômeno da intervenção da técnica
no ser, isto é, no fenômeno humano.
REFERÊNCIAS
CHARDIN, Pierre Teilhard de. O Fenômeno Humano. (tradução e notas: José Luiz
Archanjo, Ph. D.). São Paulo: Editora Cultrix, 1955, p. 1-392.
DOWEL, João Augusto Mac. Ética e Direito no pensamento de Henrique de Lima
Vaz. São Paulo. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 9, 2007, p. 237-273.
ELLUL, Jacques; TOYNBEE, Arnold, et al. O Preço do Futuro. São Paulo:
Melhoramentos, 1974.
ELLUL, Jacques. A traição pela tecnologia. Promoção: Rerun Productions.
Amsterdã. Disponível em: jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/12/01/236/. Acesso em
05/09/2012.
175
HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do espírito. Trad: Paulo
Menezes. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2ª ed, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1960. (Trad. bras.
de Márcia Cavalcante, Ser e Tempo, Petrópolis-RJ, Vozes, 1993; volume I).
LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia V: Introdução à ética filosófica
2. Belo Horizonte-MG: Coleção dirigida pela Faculdade do Centro de Estudos Superiores da
Companhia de Jesus, 2000, p. 1-243.
_______________________ : Teilhard de Chardin e a questão de Deus. Rio de
Janeiro/RJ: Revista Magis Caderno de Fé e Cultura, nº 12, 1996, p. 1-27.
SARTRE, J.P. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad: Paulo
Perdigão. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 18ª edição, 2009, p. 1-765.
___________. L‟ Existentialisme est un humanisme. Trad: Rita Correia Guedes.
Paris: Les Éditions Nagel, 1970, p. 1-28.
176
A INFORMAÇÃO E A PROPAGANDA POLÍTICA: ALCANÇANDO O
PODER POLÍTICO.
Uelton Carlos Porto1
RESUMO
Este estudo buscou analisar a relevante questão do modo como a informação e a
propaganda política são utilizadas e como o uso da técnica visa possibilitar o máximo de
aproveitamento da informação e da propaganda política para fins de se alcançar o poder
político. O presente estudo foi feito com base na análise da obra do pensador Jacques Ellul,
mormente a obra “A técnica e o desafio do século” (p. 371/426) e a obra “A palavra
humilhada”. O autor deixa claro em suas análises que para se alcançar o poder nesta
sociedade ninguém pode abrir mão da propaganda, sendo a técnica o instrumento mais eficaz
para se atingir seus objetivos. Entrementes, não deixou o presente trabalho de fazer uma breve
abordagem sob os aspectos da psicologia tratando de temas como “memória”, “linguagem e
pensamento” e “emoções”, bem como uma abordagem sucinta acerca da palavra e da imagem
na propaganda.
PALAVRAS-CHAVE: Informação. Propaganda. Técnica. Psicanálise.
Reducionismo. Poder.
Considerações iniciais.
Enquanto o filósofo não ultrapassar os limites da verdade, não deverá ser acusado de ir longe
demais. Sua função é marcar o objetivo, devendo, pois chegar até ele. Se, durante o caminho, ousasse
levantar sua insígnia, ela poderia não ser verdadeira. O dever do administrador, ao contrário, é o de
combinar e graduar sua marcha, de acordo com as dificuldades. Se o filósofo não busca seu objetivo,
ele não sabe onde se encontra; se o administrador não vê o objetivo, não sabe para onde vai.
Emmanuel Joseph Sieyès.
1 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário na FASPI. Autor e co-
autor de obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros). Link para currículo
Plataforma Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4755360Y6
177
O presente artigo visa analisar a questão da informação e da propaganda como
mecanismos para se alcançar o poder político. Não deixará, todavia, de analisar a importante
questão da publicidade. Em que pese a busca, desde o início do trabalho, pela
transdisciplinariedade na abordagem dos aspectos que permeiam o tema proposto, este estudo
terá, como base, a obra do pensador Jacques Ellul.
De plano cumpre destacar que Jacques Ellul faz uma distinção entre propaganda e
publicidade. Essa, de um modo geral, aplica-se para o viés político. Já o termo publicidade é
empregado no que tange à forma de se anunciar produtos, mercadorias. Entrementes, no
decorrer deste artigo ver-se-á que outros autores – como Micah White, Emile Zola e Gilberto
Dupas – empregam o termo propaganda indistintamente tanto para a propaganda política
quanto para a publicidade de mercadorias. Em que pese a distinção acima, o objeto de estudo
deste artigo não é a distinção entre propaganda e publicidade, pois serão abordados ambos os
pontos, ainda que se pretenda dar maior ênfase na questão da propaganda como mecanismo de
obtenção do poder político.
Dessarte, tem-se que este estudo buscará analisar a questão da informação e da
propaganda como elementos cruciais para a obtenção do poder, especialmente o político.
Neste sentido, far-se-á necessário apresentar a divisão que Jacques Ellul apresenta
sobre técnicas mecânicas e técnicas psicológicas e psicanalíticas empregadas pela
propaganda.
Em virtude da relevância dos fatores psicológicos e psicanalíticos, mormente do
fenômeno da emoção será dedicado tópico especial para tratar destes temas, bem como de
todos os demais fenômenos que circundam a emoção, tais como: pensamento, palavra,
linguagem, sentimentos, memória e da fundamental relação entre consciente e inconsciente.
Tudo isso terá como objetivo dar suporte e embasamento teórico para a plena
compreensão da propaganda como técnica que visa, a bem da verdade, retirar o indivíduo sua
real liberdade de escolha, tornando-o apto tão somente a responder a reflexos condicionados.
Serão apresentadas, ao final, as consequências da propaganda – como é empregada –
no que tange aos indivíduos e, também, no plano sociológico, bem como desmascarado –
ainda que sucintamente – a real função do divertimento, do esporte, do cinema, enfim, de tudo
aquilo que Adorno chama de “indústria cultural” quando empregado como técnica pelo ser
humano.
178
Com vistas a cumprir os objetivos propostos neste estudo, empregar-se-á a pesquisa
teórica, com compilação e revisão de material bibliográfico acerca dos temas apresentados.
Categorias de técnicas empregadas na informação e propaganda.
Jacques Ellul principia sua análise acerca da propaganda revelando que este topos é o
mais complexo, uma vez que envolve técnicas de diversas naturezas, fazendo uso de um
processo que mescla o escalonamento com a síntese. O autor em comento ressalta que o termo
propaganda, em que pese suas limitações (visto que supõe apenas uma ação estatal e no caso
os fatos particulares devem também ser abordados), ainda é o que mais se aproxima.
Neste diapasão, o autor aborda o fenômeno da técnica na propaganda considerando a
conjunção entre duas categorias distintas de técnicas que possibilitam o surgimento da
propaganda, ou melhor dizendo, transformar o que se convencionou chamar de informação
naquilo que também se convencionou denominar propaganda.
Técnicas mecânicas:
Tais técnicas consistem na imprensa, rádio, cinema e, atualmente, na televisão e na
internet. Estes veículos permitem entrar em comunicação direta com grande número de
indivíduos, ao mesmo tempo em que transmite a sensação [falsa] de se dirigir individualmente
a cada um, ainda que este se situe em meio a uma grande massa.
Cabe ressaltar que entendemos que todos os meios de comunicação criados desde seu
nascedouro voltam-se, certamente, ao mercado. O mercado é a razão e o fim último da criação
e da maior ou menor amplitude de utilização de um determinado meio de comunicação em
massa. Outro ponto que se faz mister ressaltar: todo meio de comunicação seja a imprensa
escrita, o rádio, o cinema, a televisão ou a internet visam atingir uma massa populacional em
razão das próprias circunstâncias e exigências do mercado.
Mas estes meios de comunicação não representariam algo significativo para o
mercado sem o emprego conjunto e simultâneo de outra categoria de técnicas: as psicológicas
e psicanalíticas. De fato, Jacques Ellul ressalta que
(...) se a imprensa se houvesse consagrado exclusivamente ao romance
folhetim, se o rádio transmitisse apenas música, não teria sido
necessário fazer intervir os meios psicanalíticos. E ainda assim não é
179
certo: que há de mais inocente, na aparência, do que os „comics
strips‟? No entanto, pode-se demonstrar rigorosamente sua profunda
influência na psicologia dos leitores e sua „utilidade‟ do ponto de vista
sociológico. (1968, p. 372)
É nesse ponto que se passa para a análise da próxima categoria de técnicas.
Técnicas psicológicas e psicanalíticas:
É um conjunto de técnicas que visam estudar os mecanismos da emoção e dos
sentimentos para melhor atingir a motivação humana, gerando, dessarte, um ser não só
receptivo à informação e à propaganda, mas também reativo (do modo que entendem
adequado ou esperado) a esta mesma propaganda e informação. Estas técnicas visam conhecer
“(...) com bastante exatidão as molas do coração humano para agir sobre ele com grande
segurança. Certo número de meios foram tão aperfeiçoados que logram êxito quase infalível;
sabe-se qual imagem produzirá quase infalivelmente tal reflexo” (ELLUL, 1968, p. 372).
Neste diapasão faz-se imprescindível o diálogo com outras disciplinas, como a
psicologia, por exemplo, e com outros autores com a finalidade de enriquecer o estudo,
voltando a correlacionar o campo da psicologia com a análise procedida por Jacques Ellul e o
reflexo (psicológico) que a propaganda (política), a publicidade comercial e a informação (de
um modo geral) visam provocar nas mentes das pessoas.
Como já adiantamos, Jacques Ellul trabalha muito bem a questão do reflexo que a
imagem visa provocar nas pessoas, especialmente os chamados reflexos condicionados.
Ocorre que, para melhor entendermos as análises e conclusões de Jacques Ellul precisamos
passar pelos conceitos de memória, emoção, afeto, definir os tipos de emoção, o pensamento e
as manifestações das emoções.
2.2.1) Memória:
De acordo com Carl Jung a memória é “a faculdade de reproduzir conteúdos
inconscientes” (JUNG, 1991, p. 18) e é desencadeada por sinais – que nada mais são do que
informações recebidas pelos sentidos –, os quais despertam o que se chama de atenção
(FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 21). Segundo Fiorelli e Mangini (2010, p. 21), quando não
se dá a atenção a informação não ativa a memória. A memória, portanto, é um mecanismo na
180
mente que possibilita o reconhecimento do estímulo, sendo imprescindível, dessa forma, atrair
e manter a atenção.
Ao se analisar detidamente os recursos da propaganda e da publicidade, de um modo
geral, será possível notar o esforço destas técnicas no sentido de, primeiro, descobrir e,
segundo, utilizar/empregar os meios mais eficazes para atrair e manter a atenção do sujeito
passivo.
É neste aspecto que a emoção, que será analisada em maiores detalhes no próximo
tópico, segundo lecionam Fiorelli e Mangini (2010, p. 21), intervém de forma determinante,
formando composições, lacunas, distorções, ampliações, reduções dos conteúdos, afetando
diretamente o próprio reconhecimento mencionado no parágrafo anterior. Vejamos o exemplo
dado por Fiorelli e Mangini:
(...) reconhece-se de imediato (na rua, no shopping) uma música que
foi marcante em algum momento da vida; outras, que nada
significaram, nem mesmo são ouvidas (o estímulo é descartado).
Questões dolorosas tendem a ser „esquecidas‟. Essa tendência
contribui para que muitas pessoas não se recordem de detalhes
importantes de eventos ocorridos com elas ou com outras pessoas,
quando chamadas a testemunhar. Os mecanismos psíquicos protegem
a mente, embora possam ser um obstáculo para identificar a verdade
dos acontecimentos. (2010, p. 23)
Entretanto, no meio científico não há ainda (e tampouco cremos que poderá haver)
consenso no que diz respeito à questão de se esquecer ou não situações tidas por dolorosas.
Não se pode esquecer que sempre há um componente cultural na formação da
memória (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 23). Karen Huffman, Mark Vernoy e Judith
Vernoy (2003, p. 249) explicam que indivíduos em sociedades ou grupos familiares de cultura
oral (quando o conhecimento é passado de geração em geração por meio de relatos) há uma
tendência maior de se lembrarem melhor daquilo que ouvem em contraposição àquilo que
lêem. Neste diapasão, Fiorelli e Mangini explicam que
[O] uso de vários sentidos (visão, audição, tato) ao tratar de um
determinado assunto, ativa diferentes formas de memória. Daí a
conveniência (ou necessidade, em muitos casos) da reconstituição dos
fatos. Técnicas adequadas permitem enriquecer a memória, porém
recomenda-se que sejam utilizadas por especialistas, para que não
estimulem o surgimento de falsas lembranças. (2010, p. 23)
181
2.2.2) Linguagem e pensamento
De acordo com Fiorelli e Mangini (2010, p. 25) a linguagem e o pensamento
constituem funções mentais superiores que são diretamente ligadas, sendo certo que o
indivíduo insere-se em determinada sociedade em razão do aprendizado de uma linguagem
que possibilita a representação do grupo social e a integração do indivíduo neste.
Neste sentido, os autores acima mencionados asseveram que o mundo é
representado, em termos mentais, pela linguagem, condicionando “o registro dos
acontecimentos na memória” (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 25), uma vez que “as práticas,
as percepções, os conhecimentos transformam-se quando são falados” (LANE; GODO, 1999,
p. 32).
A linguagem influencia e, também, sofre influência do pensamento, criando o que
Fiorelli e Mangini (2010, p. 25) explicam denominar-se “ciclo de desenvolvimento”, sendo
que à medida em que a linguagem enriquece o pensamento evoluí e à medida em que o
pensamento evoluí a linguagem se enriquece.
Dessarte, tem-se que o pensamento é “a atividade mental associada com o
processamento, a compreensão e a comunicação de informação” (MAYERS, 1999, p. 216),
“abrangendo atividades mentais como raciocínio, resolução de problemas e formação de
conceitos” (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 25).
Partindo da análise de que “quase nunca pensamos no presente e, quando o fazemos,
é apenas para ver como [o pensamento] ilumina nossos planos para o futuro” (DAMÁSIO,
2000, p. 197) é que a propaganda e a publicidade trabalham plantando desejos e emoções que,
sua realização (adquirir o produto ou acreditar e nesta ou naquela ideologia), indicam mais
felicidade e sensação de status e preenchimento melhor e maior. Entrementes, tais sensações
quase nunca passam de um plano abstrato, de meras ideias; não há uma realização e
preenchimento verdadeiros e autênticos. A propaganda e a publicidade não conseguem
alcançar tais desideratos, gerando, assim, uma insatisfação posterior, que a própria
propaganda tenta se incumbir de preencher criando outro desejo (para o futuro, como sempre).
2.2.3) Emoção
Inicialmente cumpre traçar uma distinção objetiva e direta entre afeto e emoção.
Esse, consoante Fiorelli e Mangini (2010, p. 30), é a experiência da emoção de modo
182
observável que o indivíduo expressa, apresentando correspondentes no comportamento, tais
como: voz, gesticular, semblante etc.
Mencionados autores do campo da psicologia chegam a asseverar que sem a emoção
não é possível sequer comprar uma peça do vestuário dado ao quase ilimitado leque de opções
tidas por racionais. O papel da emoção é, portanto, estabelecer parâmetros para o exercício da
racionalidade. E é exatamente no campo das emoções que a propaganda e a publicidade mais
atuam, criando imagens de desejo [futuro, por lógico] para que as pessoas possam perseguir
com o intuito de se sentirem melhores, superiores, satisfazendo, dessa forma, o seu ego.
Confira-se:
Sem a emoção, não se consegue, nem mesmo, adquirir uma peça do
vestuário: as opções „racionais‟ são literalmente infinitas e o indivíduo
se perderia na avaliação técnico-econômica das possibilidades; a
emoção estabelece parâmetros dentro dos quais o exercício da razão
pode ser realizado com êxito.
Emoções não são entidades com significado próprio; elas „adquirem
seu significado do contexto de sua utilização‟ (SUARES, 2002, p.
190); portanto, são frutos da cultura; o que, em um local, causa
repugnância, em outro origina medo ou raiva. (FIORELLI;
MANGINI, 2010, p. 30)
Neste diapasão, Fiorelli e Mangini revelam a parte psicológica dos mecanismos
empregados pela técnica da propaganda e da publicidade, sendo complementado o conceito
nos próximos tópicos com as ideias lançadas por Jacques Ellul. Confira-se:
Boas palavras, boas imagens, produzem bem-estar e predispõem as
pessoas para relacionamentos construtivos porque deslocam as
emoções negativas e mudam a relação de figura e fundo nas
percepções; dessa maneira, gerarão emoções positivas (...).
(FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 30)
Neste sentido é que a propaganda e a publicidade buscam transmitir uma sensação de
bem-estar mediante o emprego de palavras prévia e meticulosamente escolhidas, todas com o
intuito claro de gerar boas imagens, alterar a relação entre o sujeito passivo (consumidor ou
cidadão [este quando se trata de propaganda de cunho ideológico, como no caso dos nazistas])
e o objeto (bem de consumo ou ideologia), gerando artificialmente a sensação de emoção
positiva. Tudo isso visa mexer de forma direta e avassaladora nos sentidos, provocando
desejos (de consumo ou de ideologias). Vale lembrar, entretanto, que se tratam de desejos
183
artificiais, pois nada mais são do que frutos de emoções artificialmente geradas por meio de
meras palavras ou imagens tidas, de um modo geral para a cultura do sujeito passivo, como
boas, que indicam a satisfação por meios e estímulos externos.
Neste sentido é que se torna necessário abordar, ainda que brevemente, os tipos de
emoções conhecidas e classificadas pela psicologia.
Assim, temos as chamadas emoções básicas, em número de 06, confira-se: a)
felicidade; b) surpresa; c) raiva; d) tristeza; e) medo e, por fim, f) repugnância (FIORELLI;
MANGINI, 2010, p. 31).
De outra banda, o estudioso da psicanálise Antônio R. Damásio, referentemente às
chamadas emoções sociais, aponta 13 (treze) tipos, veja-se: a) simpatia; b) compaixão; c)
embaraço; d) vergonha; e) culpa; f) orgulho; g) ciúme; h) inveja; i) gratidão; j) admiração; k)
espanto; l) indignação; e, por derradeiro, m) desprezo (DAMÁSIO, 2004, p. 54).
Com relação à tipologia das emoções, Antônio R. Damásio apresenta, ainda, o que se
chama de emoções de fundo; estas representam estados mentais e até corporais. Confira-se: a)
felicidade; b) tristeza; c) bem-estar e d) mal-estar (DAMÁSIO, 2000, p. 74).
Por outro viés – mais prático e objetivo – Fiorelli e Mangini (2010, p. 32), em que
pese apresentarem os demais tipos de emoções citados nos parágrafos anteriores, separam as
emoções em 02 (dois) grandes grupos, dada sua utilidade para o estudo da psicologia jurídica.
Veja-se: a) emoções positivas (que se relacionam com o prazer e b) emoções negativas (que
se relacionam com o desagrado ou a dor).
Outra noção importante é que sentimento se distingue de emoção. De acordo com o
estudioso da neurociência Antônio R. Damásio (2004, p. 35 e 72), que é considerado uma das
maiores e melhores referências do mundo neste campo, o sentimento se dá “no teatro da
mente”; já a emoção “é uma perturbação do corpo” mexendo com “as estruturas cerebrais que
suportam a criação de imagens e que controlam a atenção” provocando, nestas estruturas,
modificações.
Os estudiosos da psicologia e psicanálise asseveram que são notáveis os efeitos da
emoção nas funções mentais superiores (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 32), elencando 12
(doze) destes, quais sejam: 1) emoção altera a sensação e a percepção, atenuando ou
acentuando estímulos (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 32); 2) emoção causa o fenômeno da
predisposição preceptiva (MYERS, 1999, p. 129), que se dá, exemplificando, quando um
indivíduo tem convicção de que „viu algo‟ em virtude de acreditar que o autor da ação tivesse
propensão à sua prática (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 32); 3) emoção gera a denominada
184
atenção seletiva (MYERS, 1999, p. 205); 4) emoção atua sobre a memória, causando estímulo
ou inibição (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 33); 5) emoção interfere no pensamento e na
linguagem (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 34); 6) emoções fortes (representadas por grande
sofrimento) podem causar as chamadas “distorções cognitivas” (FIORELLI; MANGINI,
2010, p. 34); 7) emoção tem como ingrediente o pensamento, visto que é o pensamento que
estabelece a natureza da emoção gerada por um acontecimento (MYERS, 1999, p. 292); 8)
muitas vezes emoções são desencadeadas de modo inconsciente, surgindo de pensamentos ou
de estados do corpo não muito perceptíveis (DAMÁSIO, 2000, p. 135), gerando um círculo
no qual emoções criam pensamentos e pensamentos criam emoções, ocasionando o reforço
mútuo, tanto para o aspecto positivo quanto para o negativo (FIORELLI; MANGINI, 2010, p.
35); 9) percepção é empobrecida por emoções de cunho negativo (FIORELLI; MANGINI,
2010, p. 35); 10) um indivíduo está mais predisposto a enfrentar novos desafios quando
vivencia emoções de cunho positivo (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 35); 11) emoção
ocasiona seletividade no fenômeno da percepção (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 35); 12) a
emoção articula muitos mecanismos da razão, sendo que “o poder controlador da razão é com
frequência modesto” (DAMÁSIO, 2000, p. 83).
Analisando todos os 12 (doze) efeitos acima citados, Fiorelli e Mangini asseveraram
que “a emoção conduz, literalmente, o pensamento. Somente se consegue ser „racional‟ dentro
de parâmetros emocionalmente aceitáveis” (2010, p. 36), sendo certo que, neste sentido, a
razão age somente dentro das limitadas opções fornecidas pela emoção, tendo em vista o fato
de que as opções racionais são infinitas obrigando a utilização da emoção para a efetiva
tomada de decisão (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 36).
Torna-se, dessarte, um mito o chamado “racionalismo”, em virtude mesmo de
receber forte e determinante influência das emoções. Evidente que o ser humano possui
racionalidade, porém, dentro de margens aceitáveis (suportáveis, toleráveis) sob o ponto de
partida emocional.
Abrindo um parêntesis à abordagem dada até então, vale mencionar, sob outro ponto
de vista, a interessante “distinção que faz Kant entre o pensar – voltado para a busca do
significado – e o conhecer – ocupado com o rigor da cognição” (LAFER, 2004, p. 53).
Dessarte, temos que tal distinção “[É] uma dicotomia que é o produto, como diria Miguel
Reale, de uma dialética de mútua implicação e polaridade. Penso a partir daquilo que conheço
e conheço levando em conta aquilo que penso” (LAFER, 2004, p. 53-54). A experiência,
assim, encontra lugar na tentativa de por à prova o jogo entre o pensar e o conhecer (LAFER,
185
2004, p. 55). Nesta relação de dialética de mútua implicação e polaridade entre o pensar e o
conhecer encontra-se o mister da filosofia, tendo como lastro a experiência (LAFER, 2004, p.
73). Mesmo se se seguisse por este viés filosófico, ainda assim ter-se-ia uma relação
permanentemente cíclica na qual a emoção influencia o pensamento que, por seu turno,
influencia a percepção do que é conhecido (aquilo que se julga conhecer) o qual, por sua vez,
influencia a emoção humana que, por derradeiro, influencia o pensar e, por conseguinte,
aquilo que se conhece e a própria forma de conhecer.
De outra banda, vale citar o mestre de Viena o qual nos brindou com lapidar
explanação acerca do problema dos conflitos de valores. E toda a escolha que envolve a
política, a ideologia ou mesmo bens de consumo não envolve um juízo de valor? Confira-se:
O problema dos valores é, antes de tudo, o problema dos conflitos de
valores. E esse problema não poderá ser solucionado com os meios do
conhecimento racional. A resposta às questões que aqui se apresentam
é sempre um juízo, o qual, em última instância, é determinado por
fatores emocionais e possui, portanto, um caráter subjetivo. Isso
significa que o juízo só é válido para o sujeito que julga, sendo, nesse
sentido, relativo.
(...) De acordo com uma determinada convicção ética, a vida humana,
a vida de cada indivíduo isolado, é o valor maior. Em decorrência
dessa concepção, é absolutamente proibido matar um ser humano, seja
na guerra, seja através da pena de morte. Existe, todavia, uma
concepção contrária, igualmente ética, de acordo com a qual o
interesse e a honra da nação são o valor maior. Por conseguinte, cada
um tem o dever ético de sacrificar sua própria vida e de matar outros,
em guerra, como inimigos da nação, se o interesse e a honra da nação
assim o exigirem; e parece justificável aplicar a pena de morte em
casos de crimes nefandos. É pura e simplesmente impossível decidir
de modo racional-científico entre os dois juízos de valor em que se
fundamentam essas concepções contraditórias. Em última análise, é
nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento
emocional e não o racional de nossa atividade consciente que
soluciona o conflito. (KELSEN, 2001, p. 4/5).
Lendo o excerto acima fica suficientemente claro que toda escolha que envolva
qualquer tipo de propaganda ou de publicidade apresenta, em ultima ratio, uma questão de
juízo de valor, não se subsumindo meramente ao conhecimento racional e, sim, interagindo
com o fator emoção. O caráter subjetivo proveniente daí demonstra a evidente relatividade
dos juízos de valor. E a propaganda e a publicidade não fazem uso constante de uma ampla
margem de subjetividade? O juízo de valor não está presente em toda e qualquer escolha
humana? Mesmo situações de estado de necessidade ou de legítima defesa exigem um juízo,
186
ainda que mormente célere como um lampejo, de valor. O mestre de Viena segue expondo
que o juízo de valor é uma constatação válida somente para o indivíduo que julga, enquanto
que, v. g., a constatação de que os metais se expandem com o calor é um juízo de
racionalidade, posto que objetivamente constatável. Dessarte, enquanto a constatação das leis
da física são objetivas, os juízos de valores, dada sua inegável subjetividade, são, em larga
medida, relativos.
E é exatamente neste viés que a propaganda e a publicidade trabalham, buscando
tocar nas emoções dos indivíduos. A propaganda política, que visa a conquista do poder
político, procura sensibilizar as pessoas, vendendo a imagem do candidato como aquele que é
o único capaz de solucionar problemas que o “emocional coletivo” de uma nação apresenta
como prioritários. Por isso as pesquisas de opinião pública que abrangem posturas e,
sobremaneira, os anseios e medos da população, tais como: inflação, desemprego etc.
Utilizam-se do recurso de falar a “todos” (por meio da mídia de massa), mas de
forma “individual”, outra vez para empregar recursos que visam somente afetar a questão do
emocional, já sabedores de que a decisão compete à emoção e não à razão, em face mesmo da
infinidade de possibilidades que esta sempre oferece.
Neste diapasão, é que cabe mencionar a denominada Síndrome de Pirandello que
Fiorelli e Mangini (2010, p. 43) asseveram sintetizar os conteúdos trabalhados neste tópico.
Dizia em suas peças o dramaturgo siciliano: “assim é, se lhe parece”.
No que tange à obtenção do poder político por meio da propaganda – ou mesmo da
venda de bens de consumo por meio da publicidade – pode-se dizer, portanto, que a “verdade”
de um candidato – ou de um produto – é aquela “que lhe parece” ou, melhor dizendo, que
“nos parece” (FIORELLI; MANGINI, 2010, p. 44).
Assim, vê-se que a emoção dá a cara, ou melhor dizendo, define a aparência, os
contornos, estabelecendo a natureza dos pensamentos, sendo liame de definição onde a razão
– dada suas infinitas possibilidades – não consegue atuar como elemento definidor.
A esta altura do desenvolvimento deste trabalho, referentemente à influência da
emoção sobre a razão, mormente nas técnicas de propaganda e publicidade, vale citar Bob
Lutz (ex-CEO da Ford, GM e até BMW), o qual atualmente dirige a GM dos EUA, que disse:
“carro feio não vende” (MELO, 2011).
De fato, as opções estrita e meramente racionais, em qualquer mercado consumidor,
vendem menos do que aquelas opções que procuram trazer a sensação de status, beleza,
esportividade, pois todos esses atributos procuram gerar emoções de cunho positivas e o
187
indivíduo ao gastar seus recursos (geralmente obtidos de forma árdua, despendendo muito
tempo e energia de sua vida) para adquirir um bem de consumo durável (geralmente caro)
busca reforçar em si mesmo emoções que considera positivas, até mesmo para
contrabalancear a carga de emoções negativas que já suporta na vida, bem como
contrabalancear o tempo e energia já despendidos.
Neste ponto, o autor deste artigo toma a liberdade – ainda que sabidamente indevida
– de se atrever a ponderar que qualquer observação empírica procedida nos comportamentos e
reações das pessoas pode, perfeitamente, revelar que a psiqué humana trabalha sempre com
mecanismos de compensação. Tais mecanismos são ainda mais perceptíveis quando se
observa detidamente as questões de trabalho (com seu desgaste e alienação natural) e
consequente compra (aquisição) de bens de consumo e serviços e, também, quando se observa
atentamente pessoas que passaram por grandes sofrimentos sem conseguir vivenciar
momentos de felicidade posterior que compensassem o sofrimento vivenciado anteriormente;
qual seria a consequência? Provavelmente, uma depressão. O principal mecanismo de
equilíbrio interno da psiqué é a compensação. Explico: é como que se o inconsciente humano
fosse uma espécie de contador que, o tempo todo, imperceptivelmente, contabiliza (ou toma
nota) “em um lado da tabela” os fatos que geraram emoções negativas, contabilizando como
saldo negativo; o que quer o contador do inconsciente? Fazer a compensação com elementos,
fatos e emoções positivas, a serem postos do “outro lado da mesma tabela”. A depressão
surgiria em muitos casos – dentre outros fatores que devem ser analisados caso a caso – da
não realização (plena ou mesmo parcial) desta compensação interna, causando desequilíbrio
deste sistema da psiqué. O fenômeno da depressão pode decorrer, dentre outros fatores, deste
desequilíbrio (lógico que sendo associado a fatores químicos no cérebro, como a recaptação
da denominada “serotonina velha” etc.) que pode – em muitos casos – induzir o indivíduo a
buscar nas compras, no sobreconsumo – ou até mesmo em posturas equivocadas de rispidez
ou mal-tratar verbal ou fisicamente outras pessoas – uma forma de realizar essa compensação,
como que se o inconsciente buscasse restabelecer – ainda que por vias oblíquas e, não raro,
deturpadas e prejudiciais ao próprio indivíduo e às outras pessoas ao seu redor – o equilíbrio
perdido quando não ocorreu a compensação interna já mencionada.
Ocorre que os meios acima (sobreconsumo, rispidez, impaciência, arrogância etc.)
são meramente artifícios para compensar um desequilíbrio – que inevitavelmente ocasiona
uma baixa de auto-estima; como artifícios que são, geralmente, passam rápidos, com
espetacular efemeridade, conduzindo o indivíduo quase que inexoravelmente a um círculo
188
vicioso que – se não for interrompido o quanto antes – quase invariavelmente conduz aos já
conhecidos resultados negativos, acentuando ainda mais os problemas, como um buraco negro
cujo horizonte de eventos acaba por distorcer completamente o paradigma de vida do
indivíduo: sua luz natural (auto-estima) e percepção de tempo e lugar; assim como a física
demonstrou que o buraco negro ostenta uma gravidade tão intensa que em seu horizonte de
eventos tanto a luz quanto o tempo são distorcidos, com consequente alteração de realidade
naquela parte do “campo” (Teoria de Einstein), uma depressão profunda pode ter efeitos ainda
mais catastróficos sobre o indivíduo, afetando sentimentos, emoções, pensamentos,
linguagem e, claro, a poderosa relação inconsciente/consciente. Vale lembrar que as
observações deste parágrafo refletem apenas um posicionamento do autor deste artigo.
Certo é que a propaganda e a publicidade evidentemente trabalham de modo exato
sobre este mecanismo de compensação, não se importando com as nocivas e quase que
imprevisíveis consequências de seu efeito sabidamente efêmero no sistema de equilíbrio do
inconsciente.
E a citação do pensamento de Kelsen sobre a questão dos valores e sua relatividade,
sua imensa carga subjetiva, não ostenta a intenção de operar como emprego do denominado
“argumento de autoridade”, posto que outros estudiosos igualmente concluíram no mesmo
sentido, utilizando, todavia, recursos argumentativos variados e base conceitual distintos.
Confira-se:
A criação do universo concentratório no século XX, como se procurou
indicar nesta obra, veio demonstrar tragicamente a justeza da visão
ética kantiana.
Analogamente, a transformação das pessoas em coisas realizou-se de
modo menos espetacular, mas não menos trágico, com o
desenvolvimento do sistema capitalista de produção, como
denunciado por Marx.
O mesmo processo de reificação transformou hodiernamente o
consumidor e o eleitor, por força da técnica de propaganda de massa,
em meros objetos. E a engenharia genética, por sua vez, tornou
possível a manipulação da própria identidade pessoal, ou seja, a
fabricação do homem pelo homem. (COMPARATO, 2006, p. 459).
A fertilização in vitro requer a seleção de alguns zigotos para implante, permitindo
que os outros pereçam. Por esse motivo, alguns dos que se opõem ao aborto, que considerem
qualquer zigoto uma pessoa, condenam esse método. Quem não tem tal convicção, porém,
precisa novamente ser criterioso. Se – há quem diga quando – formos capazes de preparar um
189
abrangente perfil genético do zigoto somente depois de algumas divisões celulares, temos
justificativa para utilizar tal informação na escolha de qual implantar? Parece óbvio que se
identificarmos em um candidato a embrião um defeito genético tão grave que seria
moralmente permissível abortar um feto com esse defeito, então é moralmente permissível, e
talvez obrigatório, não escolher tal embrião. Todavia será que o contrário é verdade? Se for
errado abortar um feto porque é possível prever se não atingirá a altura normal ou porque não
é do sexo desejado, será, portanto, errado descartar embriões com tais qualificações?
(DWORKIN, 2005, p. 617).
Por evidente que não há a pretensão neste simples artigo, de análise ainda superficial
sob vários pontos de vista (sobremaneira nas bases conceitual e de construção argumentativa),
de se postular uma “ideia de verdade” sobre o tema posto. Ao contrário, colocamo-nos a todo
o momento diante da possibilidade de refutação – conceito de falseabilidade, apresentado por
Karl Popper, por confrontação com os fatos a fim de se atingir um nível mais elevado de
cientificidade (1994a) – ou, também, de novas ideias voltadas para o aperfeiçoamento ou
complementação do que aqui se expõe. Entendemos, como Popper, que a “verdade” é
inalcançável (pelo menos em uma concepção humana), mas precisamos buscá-la ao menos
pela tentativa (POPPER, 1994a). Tudo isso em razão do próprio caráter conjectural e
provisório de qualquer teoria que se pretenda científica, posto que nunca deixará de ser uma
“teoria” ainda não refutada pelos fatos (POPPER, 1994a).
Recomenda-se a leitura do livro “Televisão: um perigo para a democracia” de autoria
de Karl Popper, publicado pela editora Gradiva (Lisboa, 1995), a título de correlação com o
estudo sobre propaganda desenvolvido por Jacques Ellul, sendo que por motivo de limitação
de espaço típica de um artigo e complexidade da obra popperiana não iremos, por ora, nos
determos nesta obra, constando, entrementes do item 8 deste estudo (referências).
Retornando à questão fulcral deste estudo, pode-se perfeitamente verificar que
quando a propaganda política – ou a publicidade voltada para bens de consumo – trata de
algum aspecto tido por racional ela o faz com um apelo – de fundo – emocional, que busca
causar alguma reação no campo das emoções, causando a falsa sensação no indivíduo de que
sua decisão não é apenas emotiva, mas que ele também decidiu desta ou daquela forma em
virtude de um “convencimento” racional. Quando a propaganda (política) ou a publicidade
(de bens de consumo ou serviços) utiliza aspectos de cunho aparentemente racional, o faz
apenas visando um convencimento emocional, como que se pretendesse camuflar sob o manto
190
da racionalidade uma decisão que já foi tomada no campo da emoção. Neste diapasão, basta
lembrar o que já foi mencionado neste tópico de que as emoções geram pensamentos e que
pensamentos geram ou reforçam a mesma emoção, criando, dessarte, um círculo, ora de
aspecto positivo ora negativo (FIORELLI e MANGINI, 2010, p. 35), o que se convencionou
chamar de círculo virtuoso ou círculo vicioso.
O mesmo raciocínio acima, mutatis mutandis, pode e é empregado com relação à
propaganda que visa alcançar o poder político.
Tudo o que foi mencionado neste tópico acerca das emoções levam em consideração
a estrutura do psiquismo, com o intuito de atingir de modo mais rápido e fácil o poder do
inconsciente, trabalhando os mecanismos intrapsíquicos, mexendo no relacionamento (de
mão-dupla) do consciente e do inconsciente; tal relacionamento é fator determinante no
impulsionamento do comportamento humano (FIORELLI e MANGINI, 2010, p. 35).
Para não desviar do foco deste trabalho, passa-se a analisar as questões da palavra e
da imagem, como instrumentos na propaganda e, então, retorna-se aos textos da “Técnica e o
desafio do século” e da “Palavra humilhada”, ambos de Jacques Ellul, mostrando a
interrelação entre a emoção (desenvolvida neste tópico), a palavra e a imagem (objetos do
próximo tópico) com as técnicas de propaganda, publicidade e informação que o pensador
francês tão habilmente descreve.
Breves palavras sobre a palavra:
Para apenas falar brevemente sobre a palavra releva trazer à baila o pensamento de
Dupas em artigo denominado “O mito do progresso” sobre esse topos, confira-se:
Sobre o sentido das palavras, o gnomo irascível Humpty Dumpty, em
„Alice no país das maravilhas‟, de Lewis Carrol, afirma a Alice:
„Quando utilizo uma palavra, ela significa precisamente aquilo que eu
quero que ela signifique. Nada mais, nada menos‟. Alice contesta que
„o problema está em saber se é possível fazer que uma palavra
signifique montes de coisas diferentes‟. Ao que Humpty Dumpty, qual
hegemona de plantão, replica altivamente: „O problema está em saber
quem é que manda. Ponto final‟. (DUPAS, 2007, p. 74)
Em outro ponto da mesma obra Gilberto Dupas ressalta, como que concordando com
Jacques Ellul, que “é inútil tentar atribuir inocência à técnica”, confira-se:
191
O significado das invenções e novidades científicas só aparece quando
é construído como objeto histórico. Leonardo da Vinci parecia esperar
que o avião – conquista milagrosa da evolução tecnológica – fosse
capaz de buscar a neve nas altas montanhas e trazê-las para refrescar
as cidades sufocadas pelo verão. Susan Buck-Morss nos recorda, no
entanto, que os bombardeiros de hoje são a antítese da utopia de
Leonardo. É inútil tentar atribuir inocência à técnica, porém é preciso
buscar as razões pelas quais o desenvolvimento atual da tecnociência
permite descobertas revolucionárias que fundam o discurso
hegemônico do progresso mas, simultaneamente, apavoram a parte da
humanidade que se mantém lúcida e crítica. A tarefa mais difícil, no
entanto, é manter-se crítico. (DUPAS, 2007, p. 74)
E a respeito da palavra e da propaganda Gilberto Dupas ainda assevera:
Hoje, embalados pelas novas realidades, assistimos ao mundo urbano-
industrial-eletrônico ser cada vez mais reencantado com as fantasias
oníricas de „pertencimento‟ a redes [sociais], comunicação „plena‟ em
tempo real, compactação digital „infinita‟ – de dados, som e imagem –
, expansão cerebral com a implantação de chips e transformações
genéticas à la carte; centenas de bilhões de dólares são gastos
anualmente em propaganda global para transformar em objetos
irresistíveis de desejo os novos aparatos ou serviços. (DUPAS, 2007,
p. 74)
O pensamento acima, de Gilberto Dupas, encaixa como uma luva no que foi
estudado no tópico anterior acerca das emoções.
Vale lembrar: Tudo isso visando o lucro máximo. A exploração total. E qual é a
nossa verdadeira identidade nisso tudo? O Capitalismo prega que “você é o que você faz”.
Discordamos. Devemos fazer as coisas em razão daquilo que verdadeiramente somos. Seria
superficial, e insuficiente portanto, afirmar que “somos o que fazemos”.
Entretanto, neste mundo onde os recursos da técnica imperam, até mesmo a palavra –
vista por Ellul (1984, p. 07) como “as margens do sentido” que “evoca ecos, sentimentos
mesclados de idéias” – tem-se esvanecido diante dos novos meios de mídia destinados à
propaganda; trata-se da ampliação massiva das chamadas por Ellul (1968, p. 372) de “técnicas
mecânicas”, suplantando até mesmo a palavra e introduzindo a “imagem” que, como já
apregoa o jargão da publicidade de umas décadas para cá, “vale mais do que mil palavras”.
Confira-se:
Chegamos assim à maior mutação que o homem já conheceu desde a
idade da pedra. O equilíbrio sutil entre a vista e o ouvido, a palavra e o
192
gesto, rompeu-se em benefício do sinal e da vista. O homem ocidental
não ouve mais, tudo lhe adentra pelos olhos, não sabe mais falar: ele
mostra. Entretanto, somos tentados a considerar o desprezo ao
discurso, o ódio à palavra e à linguagem que tanto nos impressionou
como assunto exclusivo de intelectuais (ELLUL, 1984, p. 205).
O objetivo desta mutação, como chama Ellul, parece bem claro se pensarmos no que
foi abordado no tópico sobre as emoções: atingir mais rápida e facilmente a emoção humana.
E a imagem cai como uma luva a este propósito.
Será visto no próximo tópico que este processo de mutação iniciou-se justamente
com a alteração da percepção e da conotação de palavras-chave para as emoções e para a
compreensão humana, seguindo-se do emprego cada vez mais contundente da associação
dessas com a imagem.
4) Emile Zola, Micah White e o veneno da propaganda:
Micah White elaborou um vídeo postado no sítio “youtube.com” intitulado “bolha de
pensamento” no qual o autor afirma que no século XIV a palavra poluir
(...) significava profanar ou contaminar o que é sagrado, como a alma
de alguém ou sua sensibilidade moral. Só no século XIX a poluição
ganhou a conotação científica e materialista de hoje. Tragicamente,
com a mudança de significado da palavra „poluição‟, nos tornamos
cada vez mais preocupados com a contaminação de nosso ambiente
natural e externo, enquanto ignoramos a dessacralização de nosso
ambiente mental e interno. Embora não bebamos veneno
intencionalmente, muitos de nós continuam a consumir informações
tóxicas e poluição visual, todo dia, milhares de vezes por dia”
(WHITE, 2010).
O autor segue desenvolvendo a ideia de que “a propaganda é uma info-toxina, um
poluente simbólico que atinge nosso ambiente mental” (WHITE, 2010). Referido autor,
utilizando-se de uma linguagem aparentemente simples, porém direta, objetiva, segue seu
raciocínio afirmando que
(...) comer besteira nos faz obesos, pensar besteira pode nos prejudicar
ainda mais. Diferente da comida rápida, cujo consumo é intencional,
pensamentos rápidos nos pegam desprevenidos. Andando pelas ruas,
nossos olhos devoram outdoors, cujas imagens, cuidadosamente feitas
193
nos acertam em nível subconsciente e espiritual. Somos envenenados
por cada propaganda. (WHITE, 2010)
Referido autor prossegue ilustrando seu pensamento com a estória contada pelo
escritor francês Emile Zola:
A preocupação com o ambiente mental não é nova. Gerações atrás, o
escritor francês Emile Zola escreveu a seguinte estória como um
aviso: „deixe-me contar a estória de um homem morto pela
propaganda‟. Assim começa o „Morte pela propaganda‟, uma sátira
curta escrita em 1866. Ela descreve o declínio de Pierre Landry, um
homem ingênuo que acreditava no que dizia os anúncios. Pierre sofreu
porque comprava tudo o que os anúncios diziam que era melhor. Ele
pagou por uma frágil mansão num pântano. Ele perdeu seu cabelo por
causa de um tônico e teve problemas de saúde por tomar pílulas. O
mais trágico foi como a propaganda afetou sua mente. Pierre
organizava sua estante de livros baseado nos mais vendidos. Lendo
apenas as resenhas de jornal e textos de quarta capa [orelha] para
descobrir o que ele deveria pensar sobre eles, perdendo sua habilidade
de pensar criticamente. E, cheio de ideias mal formadas, herdadas dos
anúncios que ele via, Pierre, envenenado pela propaganda, morreu a
morte de um idiota. Hoje, somos todos Pierre Landry, a propaganda
envenenou nossas mentes, corrompeu nossa cultura e nos afastou da
busca nobre pela virtude, sabedoria e o cuidado com a natureza. Agora
buscamos os prazeres efêmeros do consumismo: novas bugigangas e
belas sacadas. A propaganda obscurece nossa visão, nos impedindo de
ver que, por causa de nosso sobreconsumo, nossa civilização está
marchando em direção do colapso ecológico. Agora, temos de
encontrar forças para lançar uma insurreição contra a comunicação
corporativa. Só aí um movimento para proteger nosso ambiente
mental vai se acender. (WHITE, 2010)
Vale a reflexão sobre o trabalho de Micah White, baseando-se na sátira de Emile
Zola. Mais importante, entrementes, é a pergunta: como nós podemos nos blindar ou nos
imunizar dos ataques diários da propaganda? Como nós podemos manter nosso senso crítico
aguçado e vivo? Como já afirmado por Dupas “a tarefa mais difícil, no entanto, é manter-se
crítico” (DUPAS, 2007, p. 74). Assim, perdoem a proposital ambivalência ou polissemia da
oração que se segue: Manter-se crítico é preciso! Este deve ser o lema do atual estágio do
desenvolvimento humano, sob pena de sermos reduzidos a meros autômatos que nada mais
fazem do que reagir a estímulos previamente condicionados pelas técnicas da propaganda, da
publicidade, do direito e até mesmo da diversão, do lazer e do esporte, frutos que são do que
Adorno e Horkheimer devidamente denominaram de indústria cultural.
194
Até mesmo o Direito, que há muito – senão desde o seu surgimento – está dissociado
da noção de Justiça, busca sua formação e estabelecimento no primado da técnica por meio do
emprego cada vez mais intenso da própria técnica, complementando o processo de alienação
causado pela técnica nos demais segmentos da vida humana, como o trabalho, o lazer, o
esporte, o próprio estudo e, também, a publicidade e a propaganda.
Apenas a título exemplificativo pode-se mencionar a propaganda nazista sobre as
denominadas “raças inferiores”: era possível distinguir claramente a convicção do
oportunismo?
Necessita-se da crítica e do desenvolvimento de um senso verdadeiro, autêntico, de
pertencimento para que se possa construir uma situação social de real emancipação das
mentes dos seres humanos, diante mesmo de todos os mecanismos de manipulação
psicanalíticos à disposição dos detentores do poder, seja este financeiro ou político ou até
mesmo ambos simultaneamente. Portanto, somente a crítica pode conduzir a uma gradual e
abrangente situação de emancipação.
Dessa forma, associando-se o raciocínio desenvolvido em todos os tópicos
anteriores, pode-se ver como a mutação do emprego da palavra para o maciço emprego da
imagem (muitas vezes associando-se à palavra, ainda que de forma mais breve) teve o nítido
intento de tornar mais rápido e fácil a penetração da propaganda na relação
consciente/inconsciente afetando diretamente a emoção, a memória e o pensamento, mais
específica e fortemente a emoção, fazendo com que esta crie pensamentos e estes, por seu
turno, criam e reforçam emoções no mesmo sentido, desaguando, tudo isso, em memórias. E é
exatamente neste sentido que a propaganda, utilizando-se cuidadosamente da palavra e,
atualmente, em maior intensidade, da imagem, tem atingido em cheio as emoções, que, como
visto no tópico 1.2.3, são responsáveis diretamente pela decisão, tornando o que se denomina
racionalidade um mito. Não há decisão racional, a emoção é que decide, pois, racionalmente,
sempre serão apresentadas infinitas possibilidades. Se a emoção é o fiel da balança no campo
da decisão, a propaganda e a publicidade – política e de mercadorias, respectivamente – visam
atingir este campo da psiqué humana da forma mais direta e fácil possível. Atingido este
objetivo, o próximo passo, segundo Ellul (1968, p. 373/381), será o “reforço”, por meio da
repetição, como já feito pelos nazistas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. O reforço
tem como objetivo criar reflexos condicionados.
5) Informação e propaganda política: o olhar de Jacques Ellul
195
Dando prosseguimento à linha de raciocínio desenvolvida até aqui, faz-se necessário
recorrer à asserção de que “[N]ão há informação puramente objetiva” (ELLUL, 1968, p. 372).
A informação é elemento essencial, substrato mesmo, da propaganda e da publicidade,
mormente no que tange à obtenção do poder político.
Neste viés, tem-se que a forma ou o modo como a informação é transmitida faz toda
a diferença. Por evidente que aqui não se está falando somente das técnicas mecânicas, mas,
sobremaneira, das técnicas psicológicas e psicanalíticas.
Jacques Ellul assevera que na publicidade comercial busca-se provocar um reflexo,
enquanto que na propaganda política busca-se, de fundo, provocar o surgimento de uma
convicção intelectual.
A propaganda política, explica Ellul (1968, p. 373), já fazia uso das técnicas
mecânicas desde 1910. Entrementes, a propaganda política utilizada em 1914 foi ineficaz em
virtude de não ter respeitado os fatores psicológicos (como os que estudamos no tópico 1
deste trabalho).
Em 1917, com a Revolução Russa, e depois, com o nazismo, é que se passou a
empregar cada vez mais elementos científicos da psicologia e da psicanálise para se chegar ao
atual sistema criado pela composição dos “conjuntos” técnicos na propaganda e na
publicidade (ELLUL, 1968, p. 373). Qual seja, passou-se a fazer uso da psicologia e
psicanálise no trato da informação para que esta atinja o emocional dos indivíduos, obtendo,
assim, a melhor e mais eficaz resposta.
Ellul (1968, p. 373) prossegue explicando que o sistema do reflexo condicionado
inicialmente estudou o método de redução da doutrina (política) ao programa (político), do
programa ao slogan e, por fim, do slogan ao desenho que, como imagem que é, visa provocar
um reflexo, qual seja: do discurso à palavra, da palavra à imagem. Tudo visando a eficácia
para atingir diretamente a emoção, para criar o citado círculo de emoção-pensamento-
memória-emoção. Há uma perseguição sistemática à criação de reflexos condicionados
(ELLUL, 1968, p. 373).
Neste diapasão, o autor deste artigo modestamente entende que “vivemos a era do
reducionismo”.
Em todo o texto Ellul (1968, p. 374) procura demonstrar que a propaganda política
visa se tornar algo natural para as pessoas, para que os indivíduos não a percebam e que as
196
técnicas aí envolvidas buscam trabalhar o tempo todo no plano da emoção, empregando
mecanismos de sugestão e não de choque.
Neste sentido, a propaganda aponta um inimigo pronto, passando o conflito para o
plano do bem e do mal, colocando toda a pluralidade de adversários num mesmo canto de um
ringe de luta, estimulando ressentimentos e o sentimento de que o “inimigo” é culpado de
todos os males, ultrapassando até mesmo a psicanálise e entrando no campo da fé (ELLUL,
1968, p. 375). Como visto, a racionalidade é posta totalmente de lado ou, quando é utilizada, é
como já mencionado antes como pretexto para o verdadeiro argumento atuar de modo ainda
mais sutil: o argumento da emoção. A visão crítica é posta completamente de lado e o que se
constata é a adesão fanática às conveniências do reducionismo. Por isso, em matéria de
ideologias (pelo menos para as massas), ousamos dizer que vivemos a era do reducionismo. E
todo reducionismo é, por natureza, acrítico.
É necessário expor a crítica de que o feminismo ou o machismo irracionais surgidos
no século XX impediam qualquer análise mais apurada ou detida, visto que qualquer
pensamento reflexivo ou divergente de plano já despertava reflexos preparados pela técnica. É
um reducionismo vulgar que, não raro, pretende colocar homens e mulheres em situação de
constante oposição em busca pelo próprio empoderamento e não de complementariedade
(ampla e livre) como é de se constatar nos sistemas da natureza.
E quais seriam as consequências de tudo isso? Jacques Ellul expõe 03 (três)
consequências no plano dos indivíduos e outras 02 (duas) consequências sociológicas, a
saber:
No plano dos indivíduos, a primeira e maior consequência ou faceta é a supressão do
espírito crítico, da formação da boa consciência social.
A segunda consequência é a criação de uma espécie de disponibilidade das massas,
para fazerem o que for considerado adequado; em razão de modificações na conjuntura
política criam-se várias predisposições sucessivas (ELLUL, 1968, p. 379).
A terceira consequência é a criação de um universo abstrato, totalmente criado no
cérebro dos indivíduos, conduzindo as pessoas a uma representação mental das coisas e
acontecimentos, gerando um universo verbal (ELLUL, 1968, p. 380) e até mesmo de imagens.
Ainda dentro das consequências no plano dos indivíduos cumpre ressaltar a presença
de 02 (duas) espécies de propaganda elencadas por Ellul. Confira-se:
Propaganda de profundidade: permanente e constantemente reforçada, visando as
massas em disponibilidade, operando fascinação;
197
Propaganda precisa e temporária: visa condicionar uma ação precisa, temporária e
com menor intensidade, não se preocupando com a coerência (ELLUL, 1968, p. 380), pois a
contradição é um recurso para o domínio das massas. E o reducionismo é o locus apropriado
para que as contradições passem despercebidas.
Ellul apresenta 02 (duas) consequências sociológicas, a saber:
A primeira delas é o bloqueio, a inibição do trabalhador em razão da relevante
atuação do fator psicológico. Destaca Ellul (1968, p. 382) que o trabalhador não sofre tanto
esta inibição quando se situa em um ambiente mais simpático. Neste ponto, o autor francês
expõe a atuação da propaganda na formação do universo verbal. Tanto o socialismo quanto o
capitalismo, dessarte, podem obter as mesmas reações, desde que os trabalhadores sejam
suficientemente envolvidos pela propaganda no notável mecanismo das public relations. Tal
mecanismo se desenvolve de modo rápido e é, na verdade, “um sistema de propaganda
aplicado a todas as relações humanas, tão generalizado que cada ação individual acaba sendo
por ele inspirada” (ELLUL, 1968, p. 382).
A segunda consequência é a “desvalorização da democracia” em razão da
propaganda. Daí é preciso retirar alguns mitos, dentre eles o mais elementar: de que a
propaganda é a defesa de uma ideia e, como há vários partidos políticos com ideias
contraditórias, a propaganda é favorável à democracia; fica evidenciado que “a propaganda
não consiste na defesa de uma idéia, mas na manipulação do subconsciente das multidões”
(ELLUL, 1968, p. 382), empregando, evidentemente, as técnicas psicanalíticas e psicológicas
que foram apresentadas no início deste trabalho, com o fim de atingir de modo eficaz as
emoções dos indivíduos, “trabalhando” a poderosa relação consciente/inconsciente. Vale a
pena conferir o que Jacques Ellul diz a respeito:
Assim sendo, a esperança depositada nas contradições da propaganda
se reduz ao seguinte: um homem recebe um sôco no rosto, vibrado
pelo seu vizinho da direita; felizmente êsse murro será compensado
por um segundo sôco no rosto, desferido pelo seu vizinho da
esquerda... Se a propaganda fôsse a exposição tranqüila de teorias
políticas, entre as quais o homem pudesse escolher com conhecimento
de causa, exposições contraditórias seria com efeito fecundas e
deixariam o homem livre. Mas, o problema não pode apresentar-se
nesses têrmos a partir do momento em que se possuem os meios
materiais de ação sôbre as multidões, em que conhecem as molas
secretas do coração do homem. De fato, aquêle que defende uma
teoria política a considera boa. (Imagino o caso mais favorável,
quando o político está convencido, e não age por interêsse pessoal).
Tentará fazê-la penetrar, da melhor maneira possível, na opinião de
198
seus concidadãos. Tentará conquistar a adesão de maior número de
indivíduos. E, para isso, utilizará os meios mais eficazes. Procederá
como um totalitário, no estupro das multidões. E não é pelo fato de
que êsse estupro seja realizado dez vêzes, por dez partidos diferentes,
que deixará de ser o que é. Não é porque as formas diferem que o
fundo se modifica. Se pensarmos nas paradas, por exemplo, na
Alemanha hitlerista, serão sombrias cerimônias, fanáticas, da terra e
do sangue. Nos Estados Unidos, são os desfiles de „girls‟
abundantemente despidas; o que aqui se verifica é apenas uma
adaptação ao temperamento, pois o objetivo psicológico permanece o
mesmo. Ora, isso é efetivamente ruinoso para todo o sistema
democrático. [Sic.] (ELLUL, 1968, p. 382/383)
A transcrição acima por si já demonstra as razões pelas quais foi procedido um
estudo à parte e um pouco mais detido – logo no começo deste trabalho – acerca dos fatores
psicológicos e psicanalíticos da emoção, do subconsciente, do pensamento, da palavra e da
imagem.
Ainda que distintos os métodos de abordagem e argumentação, reforçamos que vale
a leitura, dentre vários outros, da obra “Televisão: um perigo para a democracia” de autoria de
Karl Popper, publicado pela editora Gradiva (Lisboa, 1995), a título de correlação e
complementação com o estudo sobre propaganda e desvalorização da democracia
desenvolvido por Jacques Ellul.
Ellul prossegue explicando que “[Q]uanto mais intensa for a propaganda, mais
utilizará os meios caros, mais tenderá a reduzir o jôgo da democracia à oposição entre dois
blocos” (1968, p. 383). Percebe-se que o reducionismo desta era opera-se tanto qualitativa
quanto quantitativamente (no jogo do poder). Este sistema é o que se vê nos EUA no jogo
entre Republicanos, de um lado, e Democratas, de outro; vê-se também, em menor proporção,
no Brasil das últimas duas décadas: a chamada direita, de um lado (representada pelo PSDB)
e a intitulada esquerda, de outro (representada, mormente, pelo PT). Neste diapasão, o
estudioso em comento complementa explicando que “[A]quele que tem uma idéia original,
válida, verdadeira, mesmo que tivesse tôdas as chances de êxito junto aos seus concidadãos,
mas que não dispõe das centenas de milhões necessários para difundi-la em todo o país, não
entra em linha de conta” (ELLUL, 1968, p. 383).
Neste sentido, Ellul (1968, p. 383) aborda a questão de que quando a propaganda
desvaloriza a democracia – das formas explicitadas acima – esta técnica influencia igualmente
o homem [comum], que se torna incapaz de preservar sua liberdade de escolha, sendo
sumariamente eliminado do jogo político. Quanto mais contraditória for a propaganda melhor,
199
mais alienado será o indivíduo [comum]. Neste sentido, tem-se que o indivíduo apenas vota
de acordo com o grupo sociológico que pensa estar integrado (ELLUL, 1968, p. 384).
Confira-se:
(...) na medida em que propaganda é uma técnica, tem sua identidade
própria, sua especificidade. Funciona sem que o fim procurado altere
seu jôgo. Quando se pretende distinguir uma técnica boa ou má de
acordo com o fim perseguido, observa-se ao vivo a inanidade de
semelhante tentativa: que a técnica funcione em proveito de um
ditador ou em benefício de uma democracia, a propaganda utiliza as
mesmas armas, atua do mesmo modo sôbre o indivíduo, manipula do
mesmo modo o subconsciente e leva a formar o mesmo tipo de
homem. Que vote 99% das vêzes a favor do ditador ou 99% pela
democracia a forma política pode ser aparentemente diferente, os
homens que são triturados, os homens sôbre os quais se assentam um
e outro regime, tornam-se, pelo funcionamento da técnica,
progressivamente iguais. [Sic.] (ELLUL, 1968, p. 384).
Em ambos os casos, a questão moral foi totalmente suprimida, tornando o ser
humano “um animal adestrado que obedece a reflexos condicionados” (ELLUL, 1968, p.
384). Conclui o pensador francês que “os efeitos humanos da técnica são independentes do
fim sociológico ao qual é aplicada” (ELLUL, 1968, p. 384).
O divertimento, o esporte, o teatro, o cinema, a televisão e a internet (estas duas
últimas sobremaneira) e até a música seriam apenas outras formas (outras técnicas) de
“preencher” os “vazios” deixados pela propaganda, somente corroborando com esta na tarefa
de persuasão permanente e contínua (ELLUL, 1968, p. 385/386), dando prosseguimento ao
trabalho já iniciado no campo das emoções, causando afetações profundas na relação
consciente/inconsciente (sendo que o inconsciente constitui na mais poderosa força do ser
humano), mantendo – conforme os interesses das elites dominantes – o permanente ciclo de
emoção-pensamento-memória-emoção, só que com vistas a induzir o indivíduo a ser um robô
que apenas atende a reflexos condicionados (por uma elite). Neste diapasão, cumpre
mencionar que “[O] homem tem a ilusão de se ter libertado do medo quando já não há mais
nada de desconhecido” (ADORNO; HORKHEIRMER, 1999, p. 32).
No que tange à dominação ideológica e influência dos meios de comunicação (pela
propaganda e publicidade na televisão, jornais, rádio, internet etc.) a análise crítica da
realidade fática revela que o sistema capitalista de produção desenvolveu a forma mais
adequada de se evitar revoluções ou qualquer tipo de transformação profunda e real na
sociedade. Somos escravos do consumo (quem está inserido nele) e mesmo essa mal
200
denominada “onda verde” (atitudes das empresas, instituições e pessoas no sentido do
“politicamente correto” no aspecto ambiental) nada mais seria do que o capitalismo se
“reinventando” para prolongar sua exploração sobre o meio ambiente e as pessoas,
coisificando (reificando [transformando em coisas, meros objetos]) os seres humanos e
transformando cada vez mais a natureza em mercadoria (mercantilização dos recursos
naturais). O mesmo raciocínio pode ser empregado com relação aos dissimulados mecanismos
de distribuição de renda e a busca constante das pessoas em “subir” de classe social: essa
constante e permanente “expectativa” de melhora social não passaria de uma “válvula de
escape” para as tensões pessoais e sociais (criadas por esta própria expectativa típica do
modelo capitalista), evitando assim qualquer transformação profunda inconveniente ou
indesejada pelo sistema e pelos donos do capital.
Tudo isso está voltado para a constante manutenção de um status quo de dominação
e nunca de emancipação. Exemplo facilmente constatável no plano fático é que quando se
“distribui renda” a inclusão de massas em estratos mais densos de consumo ocasionam o
enriquecimento e empoderamento ainda maior para aqueles que se encontram no topo da
pirâmide de poder gerada pelo sistema capitalista de produção. É como se duas pirâmides se
sobrepusessem em sentidos inversos: quanto maior a distribuição de renda, maior o consumo,
maior a dependência financeira destes estratos inferiores da pirâmide e, consequentemente,
maior a concentração de riqueza e poder do fino estrato superior. Uma pirâmide representa a
tradicional divisão dos estratos sociais e a outra, em sentido inverso (como que “de cabeça
para baixo”), mas sobreposta, representaria a concentração/distribuição da riqueza e do poder
(ideia das “pirâmides/triângulos inversamente sobrepostas”). Por isso, o autor deste estudo
denomina de “dissimulados” os mecanismos de distribuição de renda, pois – em razão do
incremento do próprio consumo (gerado pela propaganda e publicidade, bem como aos
elementos psicológicos e psicanalíticos comentados nos tópicos anteriores) inerente a esta
“distribuição” – não afetam a real concentração da riqueza e do poder. Convém agora repetir a
ideia de modo direto: a chamada distribuição de renda não altera a real concentração de
riqueza e poder na sociedade. A distribuição de renda não passa de uma dissimulação do
sistema, um engodo, uma falácia. Tal dissimulação nunca será perceptível se vista somente
sob um prisma reducionista no qual a imensa maioria da sociedade encontra-se
inexoravelmente inserida e, ainda, em um ambiente de sutil, porém, massiva e reiterada
“desvalorização da democracia” pela própria propaganda e suas técnicas mecânicas e
201
psicológicas/psicanalíticas aliadas. Por tudo isso, reafirmamos que vivemos a era do
reducionismo.
Ressalte-se que não se está aqui refutando os evidentes benefícios trazidos pelo
sistema capitalista de produção, mas, apenas, fugindo de um reducionismo acrítico (perdoem
a proposital redundância) que lança pesadas nuvens sobre os olhos da sociedade, cegando-a,
como um todo, à percepção clara do real. Tal percepção clara do real pode auxiliar a uma
melhor utilização destes mesmos benefícios, geralmente de caráter tecnológico, para a efetiva
emancipação dos indivíduos e estratos sociais em nível, agora, global, trabalhando o
verdadeiro pertencimento à raça humana e ao planeta, resultando em um cuidado efetivo de
todos os seres vivos e do meio ambiente. Entretanto, é imperioso afastar-se de concepções
reducionistas, duais, dos sistemas de produção e organização da sociedade, tendo em vista a
própria complexidade das realidades sociais e planetária, entrelaçando os elementos de
dominação e emancipação. Vale dizer: não há modelo ou alternativa pronta. A construção de
qualquer modificação deve, antes, surgir das próprias circunstâncias e necessidades da
sociedade humana em compasso com a realidade do planeta.
Entrementes, como visto, no modelo ora vigente, a técnica da propaganda faz uso
amplo e profundo, simultaneamente, das técnicas psicológicas e psicanalíticas – bem como
associando estas sempre aos meios mecânicos – para obter, da forma mais rápida, o domínio
sobre as emoções e sobre o inconsciente dos indivíduos, tornando-os robôs que somente
respondem a reflexos previamente condicionados, concedendo como prêmio de consolação a
ilusória sensação de pertencimento a um grupo ou uma “rede” [social], sendo que, a bem da
verdade, tal sensação nada mais é do que um elemento dessa técnica para melhor “adestrar” a
imensa maioria dos indivíduos.
6) Redes Sociais: a ilusão do “pertencimento”
À guisa de abertura deste tópico, ressalta-se que não se despreza o valor e as
inúmeras vantagens que todo o sistema de comunicação digital pode proporcionar para as
pessoas, de um modo geral. Comunicação instantânea com qualquer parte do globo é
extremamente útil para o desenvolvimento da ciência, da tecnologia, do comércio, da
indústria, das artes, para a defesa dos Direitos Humanos, para salvar vidas etc. A chamada
“Primavera Árabe” – ainda que suas consequências não possam ser amplamente avaliadas
dada a proximidade temporal dos eventos – começou pelo twitter. As “redes sociais” e os
202
demais recursos da internet possuem o potencial de trazer inúmeros benefícios para os
indivíduos. Como toda criação humana possui em latência duas forças que, simultaneamente,
entrelaçam e conflitam entre si: a primeira é emancipadora e libertadora das mentes; a
segunda gera dependência e é dominadora.
Ocorre que a realidade humana é tão complexa que não comporta uma acepção
simplesmente maniqueísta de qualquer de suas criações. Os potenciais emancipador e
dominador entrelaçam-se, formando uma tessitura complexa, na prática irredutível a
dualismos simplistas. Isto não deve ser desconsiderado. O que será feito nos próximos
parágrafos, portanto, é uma análise crítica das “redes sociais” sob o viés de elemento da
técnica para “preencher vazios” em um ciclo vicioso de persuasão permanente e contínua das
emoções.
Assim, neste breve tópico apresentaremos o exemplo das “redes sociais” digitais
como elemento da técnica na persuasão permanente. Logo, cumpre questionar: o que faz com
que uma dada “rede social” – que recentemente colocou suas ações para venda no mercado de
valores – atinja cifras quase astronômicas? Um bom começo para a resposta seria o fato de tal
“rede social” ter alcançado, em um período curto de tempo, a espetacular quantidade de
aproximadamente um bilhão de membros. Isso mesmo: um bilhão de membros! Tais fatos
foram amplamente discutidos por todos os meios de comunicação. Estes números nos dias em
que este artigo está sendo redigido; imaginem em um futuro próximo. Mas, não sejamos
ingênuos. Pode-se dizer que a adesão de um bilhão de pessoas digital e socialmente incluídas
em um sistema socioeconômico voltado para o consumo (seja de ideias ou de mercadorias)
como o atual – que faz amplo uso de técnicas psicológicas e psicanalíticas para produzir
“reflexos condicionados” – é verdadeiramente um poder imenso. A velocidade das trocas de
informações e da influência de uma pessoa social e digitalmente incluída é, sem a menor
sombra de dúvidas, sem qualquer precedente na história. Nenhuma religião, ideologia
socioeconômica ou partido político jamais sonhou com um crescimento tão espantoso e com
uma troca tão rápida de informações e uma possibilidade de formar e transmitir opiniões e
conceitos como as das atuais “redes sociais”. Repita-se: É um fenômeno sem precedentes. Em
que pese este imenso poder demandar um estudo aprofundado – o qual não tem lugar no curto
espaço deste artigo –, vale apresentar, ainda que de modo sucinto, alguns de seus elementos.
De início vale recordar a ideia apresentada no tópico anterior de que “[N]ão há
informação puramente objetiva” (ELLUL, 1968, p. 372), bem como o pensamento trazido à
baila no tópico 3 de que “é inútil tentar atribuir inocência à técnica” (DUPAS, 2007, p. 74).
203
Neste sentido, no universo de manipulação das técnicas da propaganda e da publicidade vale a
máxima de que “informação é poder”. Esta assertiva revela-se de três formas:
Primeiramente, para se cadastrar em qualquer “rede social” as pessoas devem
fornecer informações pessoais o mais completamente possível, como data de nascimento,
sexo, estado civil, profissão, hobbies, lazer, esportes etc. Não seria, e.g., extremamente útil –
para o fim de traçar uma estratégia de trabalho que vise atingir o emocional – saber quantas
pessoas do sexo feminino, solteiras, com idade entre quinze e vinte e cinco anos tem o hábito
de ler livros de romance ou mesmo preferem este ou aquele estilo musical (para fins de se
promover tal estilo nestas “redes”)?
Em segundo lugar, tem-se que os próprios políticos, agentes de propaganda e
publicidade, bem como as empresas diretamente fazem uso de um poderosíssimo recurso
psicológico: a “indicação”. Por exemplo: se um determinado produto ou loja ou promoção é
indicado por um “amigo” seu nesta “rede social” há uma grande chance de você se convencer
de que tal produto ou loja ou promoção pode ser bom ou boa para você também. É claro: um
dos processos mais elementares da aprendizagem é a observação e imitação. Se é bom para
meu amigo, por que não seria bom para mim também?
Em terceiro lugar, e por derradeiro, estão os formadores de opinião digitais. O
processo pode ocorrer de duas maneiras: uma o próprio agente político, por exemplo, coloca
suas opiniões – como “verdades absolutas”, evidentemente – em blogs, no twitter ou por
“pensamentos” publicados em suas “redes sociais”. A outra se dá quando partidos políticos ou
empresas pagam e treinam pessoas para divulgarem suas “ideologias” ou produtos e atacarem
as demais “ideologias” ou produtos de certos adversários. Tudo isso com o intuito de atingir
direta e continuamente o emocional dos indivíduos, criando e reforçando cotidianamente os
chamados “reflexos condicionados”. E melhor: são os próprios indivíduos que vão atrás
destas técnicas diariamente. Desculpem a ironia que se segue, mas “e aí, curtiu?”
O ponto focal é psicológico, sem dúvida: quem não quer se “exibir” relevando
prioritariamente e quase que invariavelmente apenas seu lado bom e de sucesso para os
demais? Quem não quer mostrar um bem de consumo caro que adquiriu ou uma viagem que
fez? Quem não quer, também, despertar certa “inveja” nos outros? O elemento central do
aspecto psicológico envolvido é a emoção. As pessoas necessitam de reconhecimento, ainda
mais nesta sociedade de massas. Qualquer pessoa quer construir uma “auto-imagem” positiva
de si mesmo, sendo admirado pelos seus pares. É da própria natureza humana e não há como
lutar contra isto. Ocorre que esta “auto-imagem” na imensa maioria das vezes (e não poderia
204
ser diferente) é meramente fabricada, irreal, como uma síndrome de Pirandello globalizada:
“assim é se lhe parece”. As pessoas “seguem” uma às outras nestas “redes sociais” como
cegos guiando cegos rumo a um abismo de artificialidade e falsidade, simplesmente não
pensando em profundidade em nenhum problema, agindo de modo acrítico e à despeito de
qualquer racionalidade. É o reducionismo.
A sensação de pertencimento é algo recorrente na espécie humana, idiossincrático
mesmo em virtude de sua natureza de animal social (animal político, asseverou acertadamente
Aristóteles). Entrementes, a sensação de “pertencimento” proporcionada pelas “redes sociais”
ainda é algo superficial e, no mais das vezes, ilusório, podendo gerar sensação de
deslocamento e/ou de perda da identidade, tornando os indivíduos ainda mais vulneráveis aos
ataques psicológicos da propaganda e da publicidade.
Critica-se o reducionismo que pode ser perigoso e enfraquecer as “teias
emancipadoras” que as “redes sociais” ostentam, em potencialidade; “teias” estas em um
incrível estado de semi-latência.
7) Considerações finais
O presente trabalho abordou os temas da informação e da propaganda política sob o
prisma da obtenção do poder político. Para se fazer uma adequada abordagem do tema tratado
foi empregado uma pesquisa transdisciplinar, visando uma abordagem ampla dos fatores que
envolvem a informação e a propaganda, especialmente na seara política.
Dessarte, como Jacques Ellul constatou a presença de 02 (duas) categorias de
técnicas presentes na propaganda e na informação (técnicas mecânicas e técnicas psicológicas
e psicanalíticas, sendo que ambas são empregadas simultaneamente em linha de
complementariedade), procurou-se fazer uma análise transdisciplinar.
Ellul deixa suficientemente claro que quando a propaganda emprega técnicas
mecânicas o faz com o emprego simultâneo e complementar das técnicas psicanalíticas e
psicológicas, visando atingir de modo fácil e rápido as emoções dos indivíduos.
Neste sentido é que se buscou no campo da psicologia e da psicanálise elementos
para uma melhor compreensão dos fenômenos da emoção, do pensamento, da palavra, da
linguagem, dos sentimentos, da memória e da forte e importantíssima relação entre consciente
e inconsciente. O trabalho demonstrou que, dada a infinidade de opções fornecidas pela razão
esta, não fornece ao indivíduo a escolha, pois todas as possibilidades, para a razão, são
205
igualmente válidas. Dessa forma, o presente estudo procurou demonstrar que as escolhas e o
processo de tomada de decisão é feito – quase que invariavelmente – no campo da emoção –
que é encarregado de atribuir a natureza e o valor dos pensamentos.
Assim, a emoção é encarregada pela tomada de decisão. A emoção decide e a
propaganda e a publicidade visam dominar exatamente este fenômeno.
Compreendendo-se melhor o fenômeno da emoção pode-se entender mais
adequadamente o que Jacques Ellul apresenta acerca da propaganda e da informação como
técnicas que possibilitam chegar ao poder político.
Dominando as emoções dos indivíduos, falando e, sobremaneira, trazendo imagens
diretamente ao campo da emoção é que a propaganda inibe o trabalhador – em seu próprio
ambiente de trabalho – e, também, desvaloriza a democracia.
Por fim, restou evidenciado que a propaganda e a publicidade ao empregar
conjuntamente técnicas mecânicas (rádio, televisão, cinema, internet etc.) e técnicas
psicológicas e psicanalíticas exerce domínio sobre as emoções e inconsciente dos indivíduos,
tornando-os robôs que somente respondem a reflexos condicionados previamente e que a
sensação de pertencimento – a determinado grupo ou rede social – nada mais é do que uma
ilusão que se presta a atender os propósitos da propaganda de dominação da emoção e do
inconsciente dos indivíduos, retirando destes sua liberdade de escolha. Neste diapasão, os
meios de diversão, o esporte, o lazer, o teatro, o cinema, a televisão (em larga medida) e,
também, a música, qual seja, nas palavras de Adorno, toda a “indústria cultural” nada mais
são do que outras técnicas de “preenchimento” de “vazios” deixados pela propaganda,
fechando um ciclo de persuasão permanente e contínua com um único intuito: deixar o
indivíduo sem capacidade crítica para fazer qualquer escolha em sua vida, à mercê de um
reducionismo mutilante (da consciência, da percepção do real etc.); assim, a propaganda
(política) e a publicidade (de bens de consumo) acabam por operar um condicionamento a
toda a sociedade, por meio do reducionismo.
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RESUMOS EXPANDIDOS
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TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
SUSTENTÁVEL
Eliane Regina Dandaro
RESUMO: Visa primeiramente o presente artigo, evidenciar o papel importante da
tecnologia que sempre esteve presente na evolução histórica do desenvolvimento econômico,
bem como, ulteriormente buscar demonstrar de forma breve que o tempo não reduziu sua
importância na configuração de um desenvolvimento econômico sustentável no mundo
contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia. Técnica. Desenvolvimento econômico
sustentável.
O presente ensaio tem por objetivo apresentar de forma sintética a compreensão
sobre a inovação tecnológica e seus impactos sobre o desenvolvimento econômico
sustentável.
Verifica-se que o expansionismo europeu desde o século XVI, marcado pela abertura
das linhas de navegação transoceânicas e pela ampliação dos circuitos comerciais, somente foi
possível em razão da utilização do conhecimento científico (FURTADO, 1999, p. 57-58).
Esse fato tornou-se mais evidente no século XIX, com a Revolução Industrial, pois
ocorreu uma verdadeira revolução tecnológica, com a mecanização e a descoberta de novas
fontes de energia, as quais contribuíram para o aumento considerável na produtividade, a
intensificação do investimento e a diversidade dos padrões de consumo (FURTADO, 1999,
p.63).
É certo que a eficiência produtiva e o avanço da técnica constituem nesse sistema
econômico a própria fonte de lucro do empresário, o qual aplica o conhecimento científico
para aumentar o sistema produtivo (FURTADO, 1968, p.134). Portanto, o desenvolvimento
industrial propicia um aumento espetacular na produção, resultando em inúmeras vantagens e
benefícios ao setor empresarial.
Impende esclarecer, que há uma dificuldade de se definir “o conceito de empresa”.
Não há vários conceitos, contudo, o conceito se apresenta de maneira diferente em cada
realidade, mas a ideia de empresa é única.
210
Empresa é um instrumento de produção e de geração de riqueza e tem interesse de
maximização de recursos. Esta empresa é o reflexo da sociedade capitalista, onde o homem
em sua escolha de consumo (homem coisificado) de sujeito tornou-se predicado e a
mercadoria tornou-se sujeito.
Mas o cerne da questão é como a empresa, através da utilização constante do avanço
da técnica em busca da maximização da riqueza e produção, deva ao mesmo tempo, preservar,
garantir e satisfazer a efetividade dos direitos e efeitos sociais e desenvolver uma política
sustentável de forma a configurar o que poderemos chamar de uma verdadeira sociedade
evoluída e harmônica.
Imprescindível estabelecer limites na utilização dos recursos naturais para a
exploração tecnológica, vez que, para preservar a vida humana, será preciso conservar a vida
dos animais e das plantas, será necessário, assim, haver uma perfeita harmonia com a
natureza. (MACHADO, 2008, p. 59-60).
É preciso que o desenvolvimento seja feito de forma sustentável, a fim de que o uso
natural dos recursos vá ao encontro das necessidades do presente, sem comprometer as
necessidades das gerações futuras (MACHADO, 2008, p.123-124).
Assim, o desenvolvimento sustentável visa a conciliar a preservação dos recursos
ambientais e o desenvolvimento econômico, sem o esgotamento desnecessário de seus
recursos objetivando assegurar uma vida mais digna e humana (ANTUNES, 2002, p.18).
Portanto, deve ser utilizada a própria técnica para garantir o desenvolvimento
sustentável, visando compatibilizar o desenvolvimento econômico com a qualidade de vida e
contribuir positivamente para o meio ambiente.
Como exemplo da importância da técnica pode-se citar a agricultura que necessita do
emprego de tecnologias para utilização eficiente da irrigação, pois o manejo inadequado pode
ocasionar a erosão, a escassez da água e a poluição do solo. De fato, interessante a abordagem
feita por Jacques Ellul (1968, p.4) no sentido de que a técnica integra a própria sociedade,
pois penetra em todos os seus domínios e no próprio homem. Deixa de ser objeto para o
homem a fim de se tornar sua própria substância, já que nele se integra e o absorve
progressivamente.
Assertivo, também, quando este mesmo autor esclarece que existe no homem uma
tendência à técnica, pois ele a utiliza para o desenvolvimento de suas atividades cotidianas e
essa adoração surge exatamente da necessidade concreta de resolver as questões apresentadas,
de maneira extremamente precisa e eficiente (ELLUL, 1968, p.24-25).
211
E com o desenvolvimento da sociedade percebe-se que é primordial criarem-se mais
meios, de forma a ordenar o mundo mediante a aplicação da técnica a todos os domínios,
objetivando sempre facilitar a vida dos homens, de forma a proporcionar-lhes mais conforto,
garanti-lhes mais simplicidade em seu trabalho e maior qualidade de vida (ELLUL, 1968,
p.43).
Com efeito, num mundo em rápida mudança tecnológica, vemos que o crescimento
sustentado requer uma ascensão permanente pelos degraus da tecnologia, além do
desenvolvimento de um sistema para o aprendizado coletivo.
Na obra de Jacques Ellul “A Técnica e o desafio do século”, de forma precisa,
também nos ensina que o desenvolvimento sustentável pode ser atingido mediante a utilização
da técnica, com a conciliação da preservação do meio ambiente e do desenvolvimento
econômico, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, a fim de assegurar
uma vida mais digna e humana, mediante uma ações e projetos cada vez mais conscientes da
geração presente de forma a preservar as gerações futuras.
Ademais, a técnica contemporânea provoca as mudanças sociais, políticas e
sobretudo, econômicas da sociedade. Todavia, “a sociedade técnica” não é somente o produto
do desenvolvimento de certas técnicas, mas também a surgimento de uma nova disposição
frente a processos e métodos que é a busca racional da eficácia máxima em toda ordem de
coisas.
Já nos anos trinta do século passado, Ellul compreendia a técnica como um “procédé
général” e não simplesmente um meio da indústria simbolizado pela mecanização. Para ele, o
progresso técnico engendra um fenômeno de proletarização generalizada, que concerne todos
os homens e todos aos aspectos da vida deles, superando a dimensão puramente econômica
analisada por Marx (TROUDE-CHASTENET, 2005, p.130).
Através da seguinte abordagem, Ellul buscou denominar a ambivalência da técnica
(1990, p. 388, tradução nossa), seja através das medidas políticas ou legislativas, colocaremos
a técnica ao nosso serviço:
Assim se completa o edifício desta civilização que não é um universo
concentracionário, uma vez que não há atrocidade, não há demência, tudo é níquel e
vidro, tudo é ordem – e as arestas das paixões dos homens são cuidadosamente
aparadas. Não temos mais nada a perder e mais nada a ganhar, nossos mais
profundos impulsos, nossas mais secretas pulsações do coração, nossas mais íntimas
paixões são conhecidas, publicadas, analisadas, utilizadas.
CONCLUSÃO
212
Vivemos uma época de avassaladoras mudanças técnicas que mudam de maneira
irreversível o fundo do trabalho, da educação, da política, do lazer, da saúde, da gestão e de
outras esferas da atividade humana. Segundo Ellul, a técnica é um fator influente da nossa
sociedade, mesmo que sopesada a sua ambivalência, sua adequada observância é determinante
para o desenvolvimento econômico sustentável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, P. de B. Direito ambiental. 6. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002.
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1968.
______.La technique ou l’enjeu du siècle. Collection dirigée par Hervé Coutau-Bégarie.
Paris: Economica, 1990b. (Classiques dês sciences sociales).
FURTADO, C. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1999.
______. Teoria e política do desenvolvimento econômico. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional,
1968.
MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
TROUDE-CHASTENET, P. Lire Ellul: introduction à L‟oeuvre sócio-politique de Jacques
Ellul. Bodeuax: Pesses Universitaires de Bordeaux, 1992
213
AMBIVALÊNCIA DA TÉCNICA E A QUESTÃO AMBIENTAL
Fernanda Defourny Corrêa1
Jorge Barrientos-Parra2
RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade destacar o pensamento do
estudioso Jacques Ellul quanto à ambivalência da técnica e os impactos que esta causa ao
meio ambiente.
Inicialmente, o artigo aborda sobre o que é a ambivalência da técnica. Esta que se
caracteriza por ser uma combinação intrínseca de elementos positivos e negativos, e se
diferencia do termo “ambiguidade”, cuja qual tem como significado o confuso e o
indeterminado, estes que não caracterizam a ambivalência, que pelo ao contrário, traz a ideia
de que no mesmo objeto há duas orientações precisas com valores opostos. Além disso, o uso
da técnica não pode ser entendido por possuir efeitos “perversos”, justamente por possuir
tanto efeitos bons e maus intrinsecamente ligados.
Com base nisso, são discutidas as consequências do progresso técnico, que não só
propiciou à humanidade um enorme conforto com o surgimento de saneamento básico,
medicamentos e até mesmo os eletrodomésticos, como trouxe também efeitos negativos, que
não só atingiu o ser humano, mas atingiu principalmente o meio ambiente. Portanto, Ellul
questiona que todo progresso técnico se paga, e para o meio ambiente, paga-se ao considerar:
a baixa qualidade do nosso ambiente (com a poluição); o êxodo rural, que deixa as
propriedades expostas às empresas industriais, ou ainda, permitem incêndios catastróficos
causados pelo descuidado às terras, de quando eram habitadas; e o “desaparecimento” de
produtos, que foram substituídos por outros, por questões de rentabilidade, causando em
contrapartida uma maior poluição, por em alguns casos os produtos serem dificilmente
reciclados.
Outro aspecto abordado é que o progresso técnico suscita problemas mais difíceis
que aqueles que ele resolve. No caso do meio ambiente são os problemas de poluição, ameaça
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara). Membro do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq). 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
214
da falta de água, florestas desmatadas, entre muitos outros, que são problemas tão complexos
que não se sabe se podem ser reduzidos a um problema técnico, este que poderia ser resolvido
pela técnica.
Por fim, é abordado sobre influência que muitas empresas sofrem pela questão
ambiental nos dias de hoje, pois perceberam que enfrentar essa questão seria uma estratégia
para fortalecer suas posições no mercado e sua imagem corporativa, além de ser um estímulo
à inovação de tecnologia.
Palavras-chaves: Jacques Ellul. Ambivalência da técnica. Questão ambiental.
1 Introdução
Este artigo objetiva discutir as ideias do pensador Jacques Ellul sobre a ambivalência
da técnica e o impacto que a mesma causa no meio ambiente.
“A ambivalência é entendida como o desenvolvimento da técnica que não é bom,
nem mau, nem neutro, mas que é uma mistura complexa de elementos positivos e negativos
inerente à técnica” (ELLU, 1988, p. 262)3, independentemente do seu uso.
É errado dizer que tudo depende do uso que fazemos da técnica para ter efeitos bons
e maus. Ellul mostra em outras obras que a técnica carrega consequências em si, e que,
acreditar que tudo depende de seu uso é pensar que a técnica é neutra.
Jacques Ellul diferencia a ambivalência de duas outras noções. Primeiro, da noção de
ambiguidade, a qual caracteriza o confuso e o indeterminado, enquanto a ambivalência traz a
ideia de que no mesmo objeto há duas orientações precisas com valores opostos. Segundo, da
noção do “efeito perverso”, que precisamos rejeitar, pois lembra um uso da técnica que seria
“perverso”. Porém, precisamos entender que os efeitos bons e maus estão intrinsecamente
ligados em toda a técnica.
A técnica passou por um grande processo de desenvolvimento a partir do século
XIX, e esse progresso técnico nos propiciou uma vida com maior conforto. Desde o
surgimento da morfina, da vacina contra a febre amarela e da penicilina, até o surgimento do
saneamento básico e de máquinas, estas que pouparam grandes esforços braçais pelos homens
nas indústrias.
3 Tradução livre de Débora Kommers Barrientos e Jorge Barrientos-Parra, das páginas 89 a 139 do livro Le bluff
tecnologique, publicado pela editora francesa Hachette em 1988. Cf. Ellul, 1988, p 89-139.
215
Inúmeros são os lados positivos que esse progresso trouxe à humanidade. Porém
Ellul nos mostra que esse progresso técnico também trouxe consequências desastrosas, como
uma das principais vítimas o meio ambiente.
2 Questão Ambiental e o Progresso Técnico
Segundo Almeida e Gomes (2012), com o crescimento descontrolado das atividades
produtivas, do consumo e da população, houve uma veloz degradação de ambientes naturais,
seja para a geração de recursos produtivos, seja pelo acúmulo de poluentes. E isso levou Ellul
a expressar algumas das consequências do progresso técnico ao meio ambiente, sendo uma
delas o preço a se pagar por ele, além dos problemas extremamente difíceis que é preciso
resolver por causa desse progresso.
Um exemplo é a baixa qualidade do nosso ambiente, ao considerar as externalidades
destes, como a poluição, a piora da saúde, e outros danos de toda ordem.
Outro preço a pagar é que, com o progresso técnico, houve o êxodo rural, e as
propriedades rurais passaram a ser um lugar de lazer para os moradores da cidade. Com isso,
além dessas propriedades ficarem expostas aos interesses das empresas industriais, elas
deixaram de ser tratadas como quando eram habitadas, causando a destruição da natureza e
incêndios catastróficos, que ocorrem pelas folhagens e galhos secos sobre o solo (camada
inflamável).
Portanto, além de causar incêndios catastróficos, por um lado, o êxodo rural
propiciado pelo progresso técnico criou nas propriedades camponesas um lugar de lazer e
permitiu uma produção agrícola acentuada com enormes máquinas. Por outro lado, criou um
afluxo de mão de obra na cidade que só fez aumentar o desemprego, além de uma produção
agrícola tão considerável, graças às máquinas e os produtos químicos utilizados, que não
podia ser mais vendida por um preço rentável, pois precisava cobrir a depreciação. Por fim,
criou uma “quebra” da sociedade rural, ao propiciar um capitalismo no campo com uma
concentração da propriedade rural. A propriedade rural, então, nunca estará “protegida”
contras as empresas industriais.
Devo colocar em pauta um outro aspecto discutido por Ellul, e que às vezes não
damos conta, que é o “desaparecimento” de produtos, que são substituídos por outros. Por
exemplo, os têxteis, que hoje em dia são compostos mais por materiais artificiais, como o
poliéster, além de outros como o algodão e a lã, do que antigamente, que era composto por
216
materiais mais duráveis, o linho e o cânhamo. Outro grande exemplo é a substituição sofrida
pelas garrafas de vidro, aquelas que normalmente armazenavam refrigerantes ou leite, e hoje
vemos em grande maioria sendo armazenados por garrafas PET (polietileno tereftalato) e por
caixas de leite longa vida, respectivamente.
O PET é um polímero termoplástico da família do poliéster que iniciou sua trajetória
justamente na indústria têxtil, apresentando como um excelente substituto às fibras de linho
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DO PET, 2012), como já foi citado.
Quanto às caixas de leite longa vida, apresentam em sua composição seis camadas, dentre elas
o papel, o polímero e o alumínio, cada uma com sua finalidade de proteger o produto, e para
serem reciclados, o processo exige uma demanda muito maior de energia e dinheiro. Por isso,
essa substituição de produtos causou uma maior poluição do meio ambiente, por justamente
ser mais caro de reciclá-los.
Vários produtos dos países de terceiro mundo, como minérios, açúcar e madeira
poderiam ser totalmente eliminados se os países de primeiro mundo desenvolvessem a
produção de matérias artificiais, e isso arruinaria a produção dos que mais precisam. Porém, é
possível um dia que se consiga parar com o progresso técnico? Acredito que seja pouco
provável que se consiga parar, pois também precisamos da técnica para a nossa sobrevivência,
por sempre ter nos proporcionado uma vida com maior conforto.
Segundo Ellul,
É evidente que a técnica aporta valores consideráveis, indiscutíveis.
Mas ela destrói outros dos quais é impossível dizer se são mais ou
menos importantes que as anteriores. Não podemos chegar a um
verdadeiro progresso (sem compensação), ou negá-lo, e menos ainda
quantifica-lo.” (ELLUL, 1988, p. 272) 4
Jacques Ellul também mostrou que o progresso técnico suscita problemas mais
difíceis que aqueles que ele resolve. Poluição, produção de novos elementos químicos, o
esgotamento incalculável dos recursos naturais, a temível ameaça de falta de água, florestas
desmatadas, o desperdício dos solos cultiváveis, etc. Esse é o resultado do crescimento
descontrolado das atividades produtivas e a aplicação das técnicas. São problemas tão
complexos que poderão um dia ser resolvidos? Ellul disse que para cada perigo ou
dificuldade, encontramos forçosamente a resposta técnica adequada, ou seja, que tudo pode
ser reduzido a um problema técnico. Porém, esses problemas ecológicos são tão mais
4 Tradução livre de Débora Kommers Barrientos e Jorge Barrientos-Parra, das páginas 89 a 139 do livro Le bluff
tecnologique, publicado pela editora francesa Hachette em 1988. Cf. Ellul, 1988, p 89-139.
217
complexos do que qualquer um daqueles resolvidos nos séculos XIX e XX. Os governos
fazem o possível para negar o problema. E aqueles que realmente se importam, consideram
que o perigo é tão grande que é preciso tomar medidas imediatas.
2.1 Questão Ambiental e sua influência sobre as empresas
As sociedades, que foram fundadas no industrialismo, nasceram e se desenvolveram
despreocupadas com os problemas ambientais que causavam. Tudo era feito em nome do
progresso, do crescimento e do desenvolvimento econômico. Os questionamentos ambientais
não chegavam a perturbar as ações dos condutores destas sociedades, nem a desafiar esta
forma de organização social. Os comandantes da indústria e dos negócios não estavam
preparados para enfrentar o questionamento ambiental (ALMEIDA;GOMES, 2012).
No entanto, muitas empresas perceberam que enfrentar as questões ambientais é uma
estratégia para fortalecer suas posições de mercado por meio da redução de custos de
produção, do desenvolvimento de novos produtos, e da melhoria da imagem corporativa. As
questões ambientais tornaram-se, em algumas empresas, um estímulo para a inovação
tecnológica. Elas também se tornaram estímulo para o aprimoramento de técnicas de
gerenciamento de imagem, como bem afirmaram Almeida e Gomes (2012).
Umas das formas das organizações mostrarem respeito ao meio ambiente são por
meio dos rótulos verdes (selos verdes), que se tornaram um elo de comunicação entre o
fabricante e o consumidor, este cada vez mais consciente com as questões ecológicas,
tornando os atributos ambientais um dos diferenciadores na escolha de produtos.
Esses rótulos verdes visam dar informações ao consumidor a respeito do produto,
caracterizando-se por identificar os produtos que causam menos impacto ao meio ambiente
em relação aos seus similares. Porém essas informações nem sempre são verdadeiras quando
esses rótulos partem do próprio fabricante que procura demonstrar os aspectos ambientais
positivos do produto, buscando a conquista do consumidor.
Diversos países criaram seus próprios selos, passando a ser um diferencial
competitivo. Contudo, essa proliferação de rótulos ambientais gerou vários problemas, pois os
parâmetros eram pessoais. Essa situação levou a ISO 14000 a criar normas e critérios gerais
para a rotulagem ambiental. Esta que de modo geral, é campo de estudos do Subcomitê 03 da
ISO (International Organization for Standardization), que no Brasil é representada pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), de acordo com Biazin e Godoy (2000).
218
Por outro lado, há empresas que ignoram essas questões ambientais, talvez por
acreditarem que um investimento numa tecnologia ambientalmente menos danosa não traga
benefícios financeiros a elas. E um grande exemplo do resultado do progresso técnico, que
não respeita os limites ambientais é a “Ilha de Lixo” que se formou no Oceano Pacífico. São
aproximadamente quatro milhões de toneladas de garrafas e embalagens, que foram
empurradas para lá pelas correntes marítimas e formam um amontoado próximo de 700 mil
km² (duas vezes o estado de São Paulo). Desse lixo, 80% tem origem dos continentes, e 20%
são jogados por navios. (VERLI, 2010)
Conclusão
Para o nosso tempo não podemos pensar no conforto sem pensarmos na ordem
técnica, um conforto ligado à vida material e no aperfeiçoamento das máquinas. Antigamente
o homem sequer imaginava que pudesse sofrer qualquer influência da técnica. (ELLUL,
1968) Com um autocrescimento, esta chegou atualmente a um patamar em que progride quase
sem intervenção do homem.
Porém, este progresso da técnica, como foi discutido ao longo do artigo, ao mesmo
tempo em que trouxe consequências boas ao homem, por outro lado trouxe consequências
catastróficas ao meio ambiente. Por isso que a técnica é considerada ambivalente.
É sempre importante estabelecer a razoabilidade na utilização dos recursos naturais,
não bastando à vontade de utilizar esses bens ou a possibilidade tecnológica de explorá-los,
pois o homem não deve ser a única preocupação do desenvolvimento, mas também a própria
natureza, já que, para preservar a vida humana, será preciso conservar a vida dos animais e
das plantas, será necessário, assim, haver uma perfeita harmonia com a natureza, segundo
Machado (2008).
Bibliografia
ALMEIDA Jr, Antônio Ribeiro; GOMES, Helena L. R. M. Gestão Ambiental e Interesses
Corporativos: Imagem ambiental ou novas relações com o ambiente? Ambiente &
Sociedade, São Paulo, v. XV, n. 1, p. 157-177, jan.-mai. 2012.
219
BARRIENTOS, D. K.; BARRIENTOS-PARRA, J. A Ambivalência das Técnicas. In:
SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE O PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL, 1., 2008,
Piracicaba. Anais...Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista, 2009, p. 259-294.
BIAZIN, C. C. O selo verde: uma nova exigência internacional para as organizações.
Maringá, 2000. Disponível em <
http://xa.yimg.com/kq/groups/15828919/1822358654/name/ENEGEP2000_E0131.pdf >.
Acesso em 5 de set. 2012.
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Trad. Roland Corbisier. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1968.
MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
VERLI, L. A Ilha de Lixo. Superinteressante, São Paulo: Abril, nº 284, nov. 2010.
220
O PROCESSO DE TECNIZAÇÃO DE TODAS AS PARCELAS DA VIDA
(OU “SOBRE ESPERANÇAS PERDIDAS E DESFEITAS”)
Júlia Lenzi Silva1
Ao longo da história da humanidade, o vocábulo trabalho e a sua valoração sofreram
drásticas modificações2. Do vínculo inicial existente entre a ideia de trabalho e as concepções
de desonra e degradação - presente tanto na tradição judaico-cristã quanto em sociedades
antigas escravagistas - até a inversão valorativa semântica consolidada no sistema capitalista -
operada a partir da construção ideológica que elevou o trabalho assalariado alienante ao posto
de “fonte de realização do ser” - constata-se a perpetuação de uma relação tensional entre
trabalho e ócio no âmbito das sociedades historicamente construídas, relação essa
intensificada na atualidade em virtude do aprofundamento do processo de tecnização de todas
as parcelas da vida.
A partir dessas premissas teóricas, com fundamento nos conceitos de adaptabilidade
e de processo de confluência desenvolvidos na obra de Jacques Ellul – notadamente em sua
obra A técnica e o desafio do século (1968), capítulo V, que trata das técnicas aplicadas ao
homem - intentar-se-á problematizar o atual fenômeno de interação do trabalho humano
(trabalho vivo) com a ciência e com a tecnologia (domínios autênticos da Técnica). Busca-se,
em princípio, demonstrar que, muito embora houvéssemos acreditado na possibilidade de que
a evolução tecnológica propiciaria maior tempo livre (e, por conseguinte, maior liberdade) ao
homem-trabalhador para o desenvolvimento de suas potencialidades, a atual sistemática de
precarização e flexibilização das condições de trabalho tem nos feitos constatar que, em
verdade, o progresso científico tem objetivos e limites condicionados á lógica de reprodução
do Capital, e não da vida humana e de suas necessidades. E, mesmo quando focamos a análise
naquilo que Jacques Ellul categorizou como técnicas do homem – que deveriam, em sua
origem, defendê-lo dos horrores advindos da ambivalência da Técnica (a arte, a cultura, o
lazer e o esporte, por exemplo) – constata-se que o referido fenômeno da tecnização de todas
1 Bacharel em Direito e mestranda no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Estadual Paulista
“Julio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca-SP, com orientação da Profa. Dra. Juliana Presotto Pereira Netto.
Bolsista FAPESP.
2 Desde o mundo antigo e sua filosofia, o trabalho tem sido compreendido como expressão da vida e
degradação, criação e infelicidade, atividade vital e escravidão, felicidade social e servidão. Trabalho e fadiga.
Momento de catarse e vivência de martírio. Ora se ocultava seu lado positivo, ora se acentuava seu traço de
negatividade. (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 2009. p. 259)
221
as parcelas da vida já logrou alcançar inclusive as esferas do tempo de descanso, do “tempo
livre”, não havendo espaços que permitam o aflorar da subjetividade de cada ser, em cada
tempo, pois tudo deve estar orientado pelos valores do sistema produtor de mercadorias.
Desta forma, vislumbra-se que as interações entre lazer e trabalho, tanto no âmbito
da dinâmica social, quanto no desenrolar do processo produtivo, encontram-se engendradas
por critérios e fins técnicos, o que as torna continuidades dos processos de dissociação e
controle dos homens. A ilusão do “tempo livre”, do descanso, do momento de liberdade para
desenvolvimento das potencialidades humanas constitui retórica esvaziada de concretude,
argumentos falaciosos que buscam tornar imperceptível e “silencioso” o fenômeno de
totalização da Técnica.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.
BARRIENTOS-PARRA, Jorge. (Org.) Anais do I Seminário Brasileiro sobre o Pensamento
de Jacques Ellul. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, 2009.
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução Clovis
Gorczevski. 1ª ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. 2010.
________. Encantos y desencantos de lós derechos humanos: de emancipaciones, liberaciones
y dominaciones. Barcelona: Icaria Editorial, 2011.
222
TÉCNICA MODERNA: AS CARACTERÍSTICAS DE ACORDO COM O
PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL
Beatriz Perez de Moraes Sarmento1
Jorge Barrientos-Parra2
Resumo: O presente artigo compreende um estudo a respeito das características da
técnica moderna desenvolvidas por Jacques Ellul. Ademais, será tratada a relação destas para
com a sociedade contemporânea, isto é, as mudanças verificadas entre o período retratado
pelo autor e atualidade dos fatos. Apresentam-se em cinco as características apontadas por
Ellul: o universalismo técnico, a unicidade, o automatismo, o autocrescimento e a autonomia
da técnica. O estudo faz uso de método dedutivo, estabelecido suporte bibliográfico e dados
disponíveis em meios eletrônicos.
Palavras – Chave: Técnica, autonomia, unicidade, automatismo, autocrescimento,
universalismo e contemporânea.
1 Introdução
Jacques Ellul (1968) no seu livro “A técnica e o desafio do século” reflete acerca das
técnicas usadas nos diversos tipos de entretenimento, analisando também o comportamento
das pessoas envolvidas nesse meio. Ademais, usa de análise histórica para justificar todo o
processo da técnica a qual será descrita em sua obra.
A técnica data início posterior a 1750, com necessidade de uma produção mais
rápida por meio do uso de máquinas. Inicialmente, a produção era superior ao consumo e a
fim de solucionar tal entrave à produção, Cartwright promove o encadeamento das máquinas.
A produção se complexa, no século XIX o que marcou foi a combinação do maquinário no
interior de uma mesma empresa. Dessa maneira, ocorre a necessidade de novos métodos
comerciais, encontrarem capitais, homens, fabricantes e consumidores. Requer-se então uma
organização internacional, com sistemas das grandes companhias de seguros, crédito e
sociedade anônima. Ademais, os sistemas financeiros e comerciais precisam de alto
rendimento, ou seja, rápido, regular e seguro transporte das mercadorias. Ainda no século
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara). Membro do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq). 2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
223
XIX, a sociedade transforma-se e surgem com isso técnicas das distrações tal como o cinema
inventado na França do século XIX pelos irmãos Louis e Auguste Lunière, caracterizado o
período por paleotécnico em que há a exploração do homem pelo homem.
2 Universalismo Técnico
Esta primeira característica apresenta-se sob dois aspectos: geográfico e qualitativo.
Em diversos países fazem uso das mesmas técnicas, independentemente do modo
civilizatório, seu efeito é sempre produzido. A expansão da técnica acontece pelo comércio e
a guerra. Esta ultima, trazem povos considerados atrasados para o mundo de forma que
promove brusca adaptação à máquina.
O comércio faz a conquista de mercados para a técnica e a indústria. Quanto à
guerra, ocorre a exploração dos povos invadidos pelas técnicas administrativas e industriais.
No período de Ellul, havia duas grandes potências: EUA e URSS. A expansão se deu pela
intensa comunicação por meio de exportação dos técnicos; adição de novos valores aos
antigos; infusão de técnicas industriais somadas à propaganda o que resultou em abandono da
religião. A expansão promovida por essas potências alcançou todo o mundo, em principal o
continente asiático.
Diante disso, teve-se a fundação da UNESCO em 1945 para contribuir com a paz e
segurança do mundo mediante educação, ciência, cultura e comunicações. Preservação das
entidades culturais e tradições orais. Sua principal atividade era redução do analfabetismo
com financiamento de professores, sua atividade mais antiga é a criação de escolas em regiões
de refugiados.
Segundo a UNESCO, não trazemos meio de civilização, nenhum valor aceitável
capaz de substituir o que se destrói. Anteriormente às invasões nesse período, a sociedade
asiática como outras eram estáveis, porém, ao ter contato com a técnica o homem perde o
senso comunitário, torna-se objeto da ciência.
Não obstante, no cenário atual é possível dizer que ocorreu certa inversão nos papéis.
A China encontra-se em rápido crescimento econômico e político, grande número de países
abre seus mercados aos produtos chineses, tais como montadoras, eletrônicos e afins. Na
contemporaneidade é a China que busca minérios na Oceania. Tornou-se uma potência quanto
o setor bélico também de forma que nesse mesmo continente há pouco mencionado ocorre
embargo de armas em troca de exploração.
A técnica se define como meio de apreensão da realidade, de ação sobre o mundo,
despreza diferença individual.
224
3 Unicidade
A unicidade técnica ocorre sempre por ter os mesmos caracteres. Ellul exemplifica
pela semelhança dos caracteres de uma organização de um escritório e a construção de um
avião. Trata-se do fenômeno técnico sobre diferentes formas em que as partes são ligadas e o
uso inseparável do ser destinado à adaptação homem – máquina.
Na técnica, tudo é interligado, ocorre interferência de fatos de orientação como
ocorreu com esforços estatais em pesquisas atômicas que seria interrompido, sem distinção
entre uso pacifico e bélico. Para a história, toda aplicação técnica decorre de efeitos mais
desastrosos que a situação anterior, ao lado que os previstos são validos e positivos.
4 Automatismo
“The one Best way” (ELLUL, 1968, p. 82): a técnica estabelece-se ao método
determinado ser superior que os demais. Busca-se sempre o aperfeiçoamento do método em
que a melhor opção é buscar pelo processo mais eficaz, mais recente e mais técnico. Uma
exemplificação disso é no século passado a distinção de capitalismo e comunismo. Neste
primeiro ocorre a inviabilidade de substituição das maquinas junto à invenção técnica. A
solução capitalista para isso é a compra de patentes das novas maquinas o que não assume o
automatismo já que não absorveu tudo o que foi oferecido pela técnica. O processo técnico
acontece com a renúncia do controle do automatismo.
5 Autocrescimento
O progresso da técnica ocorre com a somatória de aperfeiçoamentos juntos à
participação reduzida do homem.
“É a soma dos pormenores aperfeiçoando o conjunto que é decisivo, mas que uma
intervenção do homem que reunindo novos dados a eles, acrescenta um elemento que
transforma a situação”. (ELLUL, 1968, p. 110).
Resultam do autocrescimento as invenções técnicas idênticas em vários países.
Novas técnicas condicionam outras. Com estas se reduz o uso das maquinas, alem do numero
de empregados e despesas.
Diz-se então que o progresso técnico tende a crescer em progressão geométrica. A
Lei do Autocrescimento trata a desigualdade da técnica que progride mais rápido em um ramo
do que em outro, motivo de desequilíbrio e dificuldades sociais provocadas pela técnica.
6 Autonomia da Técnica
225
A técnica não é limitada, a autonomia ocorre quanto valor moral e espiritual, mas
não é quanto leis físicas, ao contrario, as utiliza. O homem é reduzido catalisador da técnica,
não é ativo como ocorre no setor industrial, substituição do operário.
Alegrias e sofrimentos humanos são entraves à sua aptidão técnica. Para ela não há
sagrado, nem mistério, nem tabu, o que provem de sua autonomia.
A técnica transforma tudo em meio e o homem torna-se uma operação da mesma.
Porém, ele não vive sem o sagrado, transfere este senso para a técnica a qual se torna o seu
mistério essencial.
Para o proletário, esta também é sinônima de libertação, basta que ele progrida.
Trata-se na crença no sagrado na técnica por esta ser expressão comum de poder humano e
sem ela, ele voltaria a ser pobre.
7 Conclusão
Dessa forma, é notória a transformação na sociedade civil provocada pelo
crescimento da técnica. Cada vez mais essa promove evolução de maneira contínua e
incessante. Durante o passar dos tempos provocou mudanças ao homem como o desemprego,
alienação do processo produtivo. Por outro lado, o que marca sua característica de ser
ambivalente, gerou ao proletário o sentido de libertação na qual seria o meio encontrado por
ele de ascensão econômica. Assim, finaliza-se de forma que na vida contemporânea a técnica
é somada ao ato de labuta humana sempre se intensificando.
Bibliografia
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Tradução e prefácio de Roland Corbisier: Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1968. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-
this-office/> 10 de outubro de 2012.
MELBOURNE. Demanda menor por minério faz Rio Tinto reduzir investimentos. Estado de
São Paulo. São Paulo, 10 de outubro de 2012.
226
A TECNIFICAÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DO ENTRETENIMENTO
E DOS ESPORTES
Víctor Matheus Ramineli1
Jorge Barrientos-Parra2
Introdução
Jacques Ellul, em sua obra A Técnica e o Desafio do Século, caracterizou e descreveu
como o homem contemporâneo se encontra em sociedade. Neste resumo, utilizaremos a visão
de Ellul para tratar de como a técnica influencia e altera os preceitos do entretenimento, do
divertimento e dos esportes.
Desenvolvimento
O homem vive sob constantes pressões da sociedade em seu dia a dia, além de viver
numa imutabilidade onde ele não realiza escolhas e nem mudanças, apenas aquelas que são
impostas pela organização. Quando o homem retorna à sua casa, as pressões continuam, já
que o ambiente familiar está cada vez mais frio e distante, aumentando as pressões
psicológicas que esse homem sofre.
Diariamente o homem recebe informações por diversos meios, muitas vezes sem
filtros, então o homem se vê em meio a um mundo caótico, onde tragédias precedem mais
tragédias, sem que as anteriores sejam totalmente digeridas, já que a cada dia são sepultadas
informações, vindo à tona outras informações que precisam ser processadas por esse homem.
Com isso o homem foge. Foge de suas angústias, das pressões, das infelicidades. Ele se
entrega e se aliena a um mundo artificial criado pelo próprio homem para suprimir essa
angústia. É nesse momento onde aparecem o entretenimento e os esportes.
O Entretenimento
Ellul analisa que as técnicas utilizadas no divertimento são, materialmente, as
mesmas que são utilizadas na propaganda, no cinema, no jornal, na televisão e na internet. Ele
ainda diferencia a técnica do divertimento em relação à técnica da propaganda. Segundo Ellul,
1 Aluno do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
227
o divertimento se pauta por ser uma técnica espontânea e voluntária, já a propaganda se pauta
por ser uma técnica calculada e voluntária (ELLUL, 1968, p. 385).
A civilização técnica sofre com um grave defeito, ainda não coseguiu suprir a morte.
O homem só aceita a morte quando a vida tem um sentido, quando o homem tem o poder de
realizar mudanças em seu mundo, ou quando ele resolve tirar sua própria vida. Quando não se
encontra nessas situações, o homem considera a morte a maior das injustiças, e busca fugir
dessa condição inexorável que é imposta a todos os seres. Para realizar essa fuga, o cinema
aparece como uma importante válvula de escape na época em que Ellul escreveu sua obra
(ELLUL, 1968, p. 386). Hoje, observamos as redes sociais da internet – como o Twitter e o
Facebook – aparecendo como tal válvula.
No filme, a vida do homem ganha um sentido, onde ele vivencia as aventuras do
herói, deita com a heroína, derrota o traidor, domina as aflições que o incomodam no mundo
real. Ele foge do fantasma da morte e da sociedade e encontra os fantasmas projetados na tela
que o libertam para uma vida fictícia perfeita. Os DVDS e a Internet fizeram com que essa
técnica se expandisse mais ainda na vida dos homens, já que ele não precisa mais se deslocar
ao cinema para vivenciar tal experiência, ele pode receber suas doses diárias de ilusões e
emoções em seu próprio lar, no trabalho, na escola ou na faculdade.
Hoje a internet possibilita ao homem a fuga para diferentes mundos e sociedades,
através das redes sociais e dos jogos online em rede mundial. Uma dessas redes sociais que
podemos salientar é o Second Life, criado pela Linden Lab em 1999 e desenvolvido pela
mesma em 2003. O Second Life é literalmente uma segunda vida que o homem pode ter
dentro do universo virtual, criando um personagem que pode ser semelhante ao real ou
completamente diferente de si. Nesse mundo, o personagem realiza ações semelhantes às do
homem, trabalhando, se comunicando com outros usuários, construindo objetos e ganhar
dinheiro. Os jogos online se massificaram junto à expansão dos computadores potentes, onde
usuários podiam explorar com maior voracidade as potencialidades do aparelho. Jogos como
Word of Warcraft, Call of Duty, entre outros, onde o usuário participa de partidas online com
diversos jogadores espalhados pelo mundo, tomaram uma abrangência muito rápida ao redor
do mundo.
A fuga para esses mundos é tamanha que muitos indivíduos, principalmente jovens e
crianças estão ficando dependentes do entretenimento proporcionado pelo computador e pela
televisão. Muitos trocam suas vidas reais pelas virtuais, devido à facilidade de comunicação e
de interação entre os usuários. Os pais também pouco se importam em controlar a frequência
228
de uso dessas tecnologias pelos filhos, já que os pais se sentem mais seguros com os filhos
navegando pela rede virtual em casa do que vivendo as inseguranças da realidade da rua em
grandes cidades (CARVALHO; BARRIENTOS-PARRA, 2009).
O Divertimento
O divertimento aparece para o homem como um contraveneno para as suas angústias.
Conforme dito anteriormente, o ambiente familiar está cada vez mais frio e constrangedor, e é
nesse momento que a televisão aparece, reunindo fisicamente os indivíduos no espaço, porém
sem interação entre eles. Os sons da televisão, através de seus programas, novelas e filmes
preenchem o ambiente silencioso e constrangedor onde a família se encontrava.
Na sociedade contemporânea, o consumismo se tornou uma máquina de sonhos,
materializada nos shoppings centers onde o homem fica enclausurado durante horas em um
ambiente cheio de lojas por todos os lados, sendo induzido a adquirir produtos que não são
necessários ou que serão descartados rapidamente. Ir a esses lugares tornou-se um dos
principais divertimentos para indivíduos de diversas classes, onde ele, após as compras,
sentirá uma breve sensação de realização.
O Esporte
O esporte, originalmente, foi criado para que o homem pudesse praticá-lo de forma
livre e espontânea, em contato com os elementos naturais e sem precisar se utilizar de técnicas
apuradas para realizá-lo, já que a própria prática em si gera o prazer e a alegria (UIEDA;
BARRIENTOS-PARRA, 2009).
O esporte moderno tem origem nas cidades inglesas, acompanhando o processo de
industrialização que o mundo passava. O esporte pode ter duas formas distintas, o esporte
amador e o esporte profissional. O primeiro é aquele que é praticado ao ar livre, sem
obrigações com recordes e resultados, é fruto da vontade do homem de sentir um bem estar,
uma liberdade, objetivando o divertimento. Já o segundo é aquele que visa resultados e
recordes, onde há cobrança por eficácia em torno do indivíduo.
O Esporte Amador
O esporte amador é aquele em que o homem se liberta das constantes sufocações que
a sociedade e a organização lhe impõem, ele harmoniza e acalma seu espírito por conta de
uma atividade prazerosa onde seu único objetivo é desfrutar desse descompromisso para com
os resultados. A prática amadora pode ser realizada em diversos locais, especializados ou não,
como por exemplo, bosques, praças, campos e clubes. Tal prática aumentou nos últimos anos,
já que o homem se viu em uma situação de sedentarismo que poderia colocar sua saúde em
229
risco, ocasionando, frequentemente, problemas respiratórios e circulatórios. O maior exemplo
desse aumento das práticas esportivas amadoras é a corrida de rua. Essa prática aumentou por
conta da facilidade que existe em realizá-la, já que o indivíduo pode correr na rua ou em
parques, por exemplo, além de não exigir horários de treinos tão longos, podendo conciliar as
corridas com os horários de trabalho e de estudos. Além disso, vários estudos apontam que a
prática de corrida tem benefícios para a saúde do corpo e da mente.
O Esporte Profissional
A realidade do esporte profissional sofreu profundas alterações no período posterior
ao fim da Segunda Guerra Mundial. A quantidade de modalidades que surgiram e o número
de praticantes aumentou consideravelmente, somando a isso o salto de popularidade que o
futebol ganha em todo o mundo.
O esporte, visto sob a ótica do profissionalismo, não se pauta pelos mesmos ideais e
objetivos do esporte amador. No profissionalismo, o atleta é treinado e condicionado por
resultados, metas e rendimentos. Perde-se, de certa forma, a alegria e o prazer, em detrimento
dos recordes e dos títulos.
Os Jogos Olímpicos são uma exemplificação dessa magnitude do esporte
profissional. Nos Jogos dos anos 1960 já podia ser percebida uma mudança na mentalidade
que permeava os Jogos, avançando nessa mudança até os anos 90, onde essa evolução se
consolidou de fato (PRONI, 2008). Somado a essa profissionalização, a mercantilização dos
Jogos também se consolidava, através de patrocínios milionários, sejam a equipes ou a atletas
individualmente, e os contratos também milionários de direitos de transmissão televisiva dos
Jogos, além do apoio financeiro do Estado até as Olimpíadas de Moscou, em 1980. A partir
das Olimpíadas de Los Angeles, em 1984 o evento passou a ser organizado pela iniciativa
privada, o que acabou gerando um aumento da lucratividade para empresas patrocinadoras e
para o Comitê Olímpico Internacional. Além da mercantilização, a exigência de
profissionalização dos atletas que disputam os Jogos Olímpicos fez com que o Olimpismo,
que é, basicamente, o ideal olímpico do amadorismo (PRONI, 2008) entrasse em crise, já que
não era mais possível sustentar os antigos ideais com os novos financiamentos e os
treinamentos se tornando cada vez mais científicos. Além disso, duas vertentes incluídas na
Carta Olímpica divergiam entre si, colaborando para a crise do Olimpismo. Uma defendia que
as Olimpíadas deveriam valorizar as qualidades nobres do ser humano e a outra vertente
defendia o esporte de resultados, a superação dos limites.
230
Essa obsessão por resultados originada pelo profissionalismo fez com que alguns
países investissem grandes quantidades de dinheiro no desenvolvimento dos esportes em seus
países, melhorando as infraestruturas de práticas de esportes, financiando e patrocinando
atletas e treinadores, ampliando o número de praticantes de diferentes esportes no país. É
inegável que esse projeto de massificação dos esportes tem um ganho social gigantesco,
fazendo com que jovens que não teriam uma oportunidade de crescer socialmente ou
humanamente tenham uma oportunidade de se engrandecer. Entretanto tal obsessão gerou
alguns fatos desvirtuosos recentemente no cenário esportivo. Nos últimos Jogos Olímpicos,
em Londres, a China obteve um ótimo desempenho, ficando em segundo lugar na
classificação geral de medalhas dos Jogos, com 88 medalhas no total, sendo 38 delas de ouro,
atrás somente dos Estados Unidos, que ganhou 104 medalhas no total, sendo 46 de ouro.
Além do tradicional sucesso no Tênis de mesa, um dos esportes mais populares do país, a
China ficou em primeiro lugar, com quatro medalhas de ouro, na ginástica artística,
modalidade que era até então dominada pelos Estados Unidos. Com o fim dos Jogos
Olímpicos, foi divulgada uma reportagem pelo jornal Daily Mail onde crianças chinesas
recebiam um treinamento muito duro e doloroso em um campo de treinamento em Nanning.
Nas fotos divulgadas é possível ver crianças chorando de dor com treinadores pisando em
suas pernas e forçando alongamentos até o limite de seus corpos frágeis. Esse fato mostra
como o homem desvirtuou os princípios esportivos, usando o esporte como entretenimento
para gerar resultados esportivos e, consequentemente, maior lucratividade.
Essa exigência por resultados e por eficiência fez com que o número de casos de
doping no esporte aumentasse. O doping é o ato do atleta de se utilizar de substâncias
químicas artificiais para melhorar seu desempenho. O caso do atleta de atletismo canadense
Ben Johnson durante as Olimpíadas de Seul, em 1988, foi um dos mais marcantes, já que o
atleta foi recordista mundial dos 100m rasos, uma das competições mais valorizadas nos
Jogos.
Conclusão
O entretenimento e o divertimento são partes integrantes da vida do homem, já que é
sua fuga, mesmo que ilusória, dos desprazeres que a vida da grande cidade impõe sobre ele.
Os esportes aparecem como a harmonização do homem com sua mente e seu corpo, porém
sua profissionalização, e consequentemente a busca por resultados e eficiência, fez com que
se perdesse tal harmonia.
231
Referências
BLAKE, M. Torture or training? Inside the brutal Chinese gymnasium where the country‟s
future Olympic stars are beaten into shape. Daily Mail, Londres, 1 ago. 2012. Disponível em:
<http://www.dailymail.co.uk/news/article-2182127/How-China-trains-children-win-gold--
standing-girls-legs-young-boys-hang-bars.html>. Acesso em: 08 out. 2012.
ELLUL, J. A Técnica e o Desafio do Século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p.384-393.
PRONI, M. W. A Reinvenção dos Jogos Olímpicos: um projeto de marketing. Esporte e
Sociedade, Rio de Janeiro, n.9, 2008.
232
A SUPERIORIDADE DA TÉCNICA SOBRE A TRADIÇÃO NO MUNDO
MODERNO
Délis Isabelle Magalhães1
Jorge Barrientos-Parra2
Resumo: No mundo moderno, a técnica vem tomando um grande espaço e cada vez
mais fazendo parte da vida da população. Para explicar melhor como a técnica entra na vida
das pessoas, desde o início dessa, é necessário deixar claro o conceito de simbolização. Para
isso, tomei base no artigo escrito por Willen H Vanderburg: “ The desymbolization of human
life”. Willen é director da universidade de tecnologia e desenvolvimento social de Toronto, e
escreveu o livro “Our war on Ourselves”, no qual trata de como nós nos prejudicamos,
iniciando uma guerra causada pela ênfase às novas abordagens trazidas pela técnica, e
também se há alguma forma de mudar isso. Tendo completado um doutorado em engenharia
mecânica, Willen continuou seus estudos sobre tecnologia por meio das ciências sociais e
humanas na universidade de Bordeaux, com um pós doutorada direcionado pelo próprio
Jacques Ellul. Dessa forma, por meio de conceitos de ambos busca-se mostrar a influência da
técnica na sociedade desde sua introdução. A simbolização se caracteriza pelo ato de
transformar em símbolos as experiências sociais, ou seja, transformar algo que é inicialmente
natural em algo cultural. O resultado dessa simbolização, portanto, se torna a própria
linguagem, principal forma de interação entre os seres humanos. Foi dessa forma que o
conhecimento foi passado de geração em geração, pela criação de símbolos nas diferentes
culturas. A simbolização, portanto, garante o sustento do indivíduo em suas necessidades
próprias e coletivas, e é através dela que ele começa a encontrar sentido no mundo. As
crianças chagam ao mundo sem uma noção de onde estão e de o que fazer nesse novo lugar
desconhecido. É através da simbolização que as crianças iniciam um processo de fazer sentido
nesse novo mundo em que entram, e começam a formar suas estruturas cerebrais mais
importantes. Pelas suas novas experiências, e também pelo universo de orientação criado pela
cultura em que vivem, elas vão aos poucos encontrando uma direção para sua vida. Porém,
1 Aluna do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
233
com o Renascimento, iniciou-se uma busca por uma ciência mais racional e uma visão
também mais racional das relações humanas. A industrialização trouxe a introdução da
tecnologia na vida das pessoas, impondo que a simbolização não era mais suficiente pra
sustentar os avanços tecnológicos que se seguiriam. Foi a partir dessas mudanças históricas
que o comportamento direcionado pela tradição transformou-se em um comportamento
direcionado por um objetivo técnico. Dessa forma, o ser humano passou a direcionar todo seu
conhecimento para aprimorar a eficiência e o poder da técnica e seus produtos tecnológicos,
mas, ao mesmo tempo, esqueceu de garantir que essa técnica pudesse existir em harmonia
com as entidades vivas, sejam essas a própria sociedade, os indivíduos por si só e também o
meio ambiente.
Palavras Chave: Simbolização, técnica, tecnologia, cultura
A substituição da simbolização pelos valores técnicos no início da vida
Com a passagem das sociedades antigas para as atuais sociedades denominadas “de
massa”3, houve uma ruptura no processo de transferência das tradições culturais, formadoras
da base do processo de simbolização. Essa ruptura foi causada pela entrada da técnica na vida
dos indivíduos, permitida pelo que Ellul chama de “plasticidade do meio social”, ou seja, as
sociedades tradicionais foram aos poucos perdendo a rigidez de suas estruturas sociais e
religiosas, criando de certa forma um ambiente viável à introdução da técnica. Dessa forma,
com a técnica introduzida nas sociedades, o modo de vida da população sofreu uma grande
alteração, iniciada desde os primeiros estágios da vida.
[...] um condição decisiva da técnica: é, com efeito, a ruptura dos
grupos sociais que permitirá os imensos deslocamentos de homens no
começo do século XIX, deslocamentos esses que asseguram a
concentração humana exigida pela técnica moderna. [...] tudo isso só é
possível quando o homem não é mais do que um elemento
inteiramente isolado, quando não há mais literalmente meio, família,
grupo que possa resistir à pressão do poder econômico. (Ellul, 1954,
p. 53)
3 Segundo Ellul, uma sociedade de massas se caracteriza por aquela que é composta de aglomerações de
indivíduos que utilizam sua organização mental de forma a “ir com o fluxo”, ou seja, criam um fenômeno no
qual a opinião pública substitui a opinião inidividual.
234
Antes, as crianças ao entrarem no mundo formavam suas primeiras ideias do que era
a vida a partir dos elementos culturais da comunidade em que viviam. As experiências pelas
quais passavam eram a forma pela qual adquiriam conhecimento do mundo em que entravam.
Porém, com a entrada da técnica nessa parte da vida, as crianças passaram a se deparar com
experiências diferentes das quais estavam acostumadas, como ver televisão, brincar no
computador e na internet, estudar ciências na escola... Essas novas experiências, na maioria
das vezes, eram diferentes das bases culturais da sociedade em que viviam, e as crianças
acabavam formando seu conhecimento a partir das informações que adquiriam por esses
meios.
Um exemplo disso é a entrada das imagens no dia a dia de toda população, e também
das crianças, principalmente com a televisão e a internet. Por serem mais chamativas do que
um texto, prendem a atenção das crianças, mesmo que seu conteúdo educativo seja nulo. A
propaganda presente na mídia e na internet dá aos membros da sociedade todos os costumes e
tradições que devem seguir para conseguir um bom futuro. As crianças ao se depararem com
isso logo no início de sua formação passam a não apenas receber essas informações, mas
também precisar delas para sustentar seu modo de vida e cultura. Assim, as crianças no
mundo moderno passam muito mais tempo em frente a uma televisão e um computador, em
contato também com programas e jogos violentos, do que passavam antes brincando
(atividade com alta simbolização).
Uma das características principais dos objetos simbolizados é o fato
de eles serem criados, logo, de eles manterem o caráter da ilusão de
criar o mundo em que se vive. Esse aspecto criativo relaciona-se com
a atividade do brincar espontâneo. Se, por um lado, é no brincar que o
indivíduo encontra a si mesmo – É no brincar, e somente no brincar,
que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua
personalidade integral; e é somente sendo criativo que o indivíduo
descobre o eu (self). (Winnicott, 1971, p. 80)
Segundo Winnicott, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na
verdade, constitui seu fundamento. A cultura, no seu sentido amplo, é o lugar, na saúde, deste
encontro mútuo entre o si-mesmo e a vida com o outro;(1967/1975b, p. 137-138), a cultura
corresponde ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem
contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que
encontramos.
235
Dessa forma, as crianças no mundo contemporâneo passam por experiências muito
mais desimbolizadas do que antes, sem passar pela fase da criatividade, pois as imagens já são
dadas as crianças prontas, sem instigar esse processo de criação.
A programação dos seres humanos
Com o crescimento e desenvolvimento das crianças criadas na atualidade, já é visto
que a nova abordagem técnica toma lugar em suas mentes. Isso se inicia com a entrada da
técnica nas disciplinas escolares, de tal forma que cada disciplina passa a ser analisada
separadamente, ou seja, as relações que existem na realidade entre elas são colocadas de lado
em seu estudo. Assim, essa nova abordagem trazida pela técnica se torna limitada quando
situações estudadas separadamente se relacionam na pratica, mostrando a parte falha da
técnica em construir relações vivas entre as situações e os indivíduos.
Já no mercado de trabalho, os especialistas criados não conseguem relacionar suas
experiências profissionais com outras coisas fora de seu domínio, ou seja, são incapazes de
verem efeitos de suas ações que vão além de suas disciplinas, tornando-os incapazes de
consertar esses efeitos quando necessário. Mas a questão principal para a técnica é a
aprimorar a performance de tudo por suas partes, ou seja, ela é incapaz de prover soluções
novas. Isso acaba intervindo no processo de simbolização de modo que passou-se a se estudar
as áreas separadamente para torná-las melhores tecnicamente, e a experiência, tradição e
cultura passaram a perder sua influência.
Ellul já dizia no que ele chamava de uma das características da técnica: a autonomia
da técnica, que essa funciona segundo a lei: “não importa que a ação seja legal desde que ela
seja eficaz”. A autonomia se manifesta em relação à moral e aos valores espirituais, sendo que
a técnica não aceita julgamento ou limitação alguma. Dessa forma, transforma-se em
construtora de uma nova moral, desempenhando seu papel de criadora de uma civilização. A
técnica tem o objetivo de levar o homem a enquadrar-se nela, deixando de experimentar os
sentimentos e as reações que lhe seriam pessoais.
Dessa forma, Ellul também se refere ao fato de que o homem passa a ser trabalhado
pela técnica, de forma positiva ou negativa, e acaba perdendo a chance de escolher seu
destino, uma vez que a técnica impõe o jeito pelo qual as coisas devem ser feitas.
A técnica entra na sociedade transformando todo comportamento que antes era
baseado na cultura em um comportamento direcionado pelo objetivo técnico. O ser humano
236
passa a ser programado pela técnica a apenas tomar decisões que favoreçam ela. Além disso,
torna apenas aquilo que é relevante na obtenção de um objetivo técnico merecedor de ser
levado em consideração. Tudo passou a depender da eficiência. Isso trouxe a grande mudança
da sociedade atual, que fez com que a vida humana não dependesse mais da estrutura
simbólica construída e desenvolvida pela cultura, levando a um estágio no qual a ordem
técnica supera a cultural.
Consequências trazidas pela nova ordem técnica e possíveis soluções
Como já foi dito, a prioridade dada à eficiência da técnica em detrimento de seus
reais efeitos na vida da população acabou criando profundas consequências nas sociedades
atuais. Uma vasta má adaptação a essa técnica vem criando índices mais altos de ansiedade e
depressão, além do consumo de álcool, remédios, drogas, terapia, etc. Uma grande ocorrência
de problemas relacionados a dificuldade de aprendizado, uma vez que as crianças e bebês se
depararam com inúmeras experiências desimbolizadas que tornam a integração delas muito
difícil.
Os seres humanos passaram a acreditar numa onipotência da técnica, certos de que o
culto a eficiência beneficiará a todos. Dessa forma, utilizam sem restrição tudo que é
tecnológico e oferecido pela técnica, e deixam que a mídia tome cada vez mais conta de suas
vidas. Não se interessam em saber se esse uso intenso acabará nos fazendo simples imitações
de máquinas sem vida, uma vez que eufóricos com suas inúmeras expectativas, esquecem de
analisar as relações que terão com suas próprias criações.
A entrada da técnica na política deu ao “estado nação” a habilidade e o poder para
organizar tudo sem limites. Na vida pública, tudo passou a depender da ordem técnica,
fazendo com que a grande massa populacional seguisse um único caminho histórico
condizente com seus objetivos. Isso vem fazendo com que os indivíduos percam cada vez
mais sua identidade e sua opinião própria para fazerem parte de uma grande massa na qual
uma única opinião guia todos.
A tecnificação [...] ao penetrar no contexto das velhas culturas, opera
como se fosse um explosivo, cujo impacto destrói tudo que há de
tradicional nessas culturas, religião, filosofia, arte, instituições,
costumes, etc. [...] as culturas são totalidades, constituídas de
elementos interdependentes, orgânicamente articulados uns com os
outros , de tal sorte que qualquer mudança introduzida em um desses
237
elementos provoca ou tende a provocar repercussões em todos os
demais.[...] a máquina deflagra um processo em cadeia que,
progressivamente, contamina todos os elementos da totalidade, até
destruí-la para, em seguida, refazê-la à sua imagem e semelhança.
(Corbisier, p. Prefácio)
Em face disso, pensa-se se há uma possibilidade de re-simbolização, ou seja, voltar
ao estágio no qual a técnica não era superior as outras estruturas sociais. Porém, deve se ter
em mente que a técnica está em seu estágio triunfante. Para que as pessoas percebam que a
técnica vem criando uma crise sistemática humana, social e ambiental, seria necessário uma
crise além da de 2008.
Referências Bibliográficas
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século (1954). Tradução e Prefácio: Roland
Cobisiere. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
VANDERBURG, William H. Our war on ourselves: rethinking science, technology, and
economic growth. Toronto: University of Toronto, 2011.
FULGENCIO, Leopoldo. A constituição do símbolo e o processo analítico para Winnicott.
Paidéia, Ribeirão Preto, v. 21, n. 50, Dec. 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
863X2011000300012&lng=en&nrm=iso>.
238
MUDAR DE REVOLUÇÃO: ASCENÇÃO E QUEDA DO COMUNISMO
NA RÚSSIA
Leonardo Antônio Orloski1
Jorge Barrientos-Parra2
Resumo: O Comunismo foi a tentativa elaborada pelos líderes russos que levou à
realização da Revolução de 1917 na Rússia, derrubando o poder do tsar e instaurando um
modelo socialista no país. Um pouco mais de sete décadas depois, esse sistema era
abandonado e a União Soviética deixava de existir. Este trabalho procura realizar uma análise
do ponto de vista social sobre as razões da falha do Comunismo na Rússia, utilizando-se do
ponto de vista de Jacques Ellul sobre o socialismo marxista, considerando-se principalmente a
forma com que a técnica foi tratada e utilizada pelo governo soviete, e seu impacto na
população trabalhadora.
Palavras-chave: União Soviética, Comunismo, socialismo, técnica.
INTRODUÇÃO
Utilizando-se das concepções definidas por Marx, Jacques Ellul faz uma análise das
revoluções comunistas sob a ótica desenvolvida por ele mesmo englobando a técnica e sua
evolução ao longo do desenvolvimento da sociedade.
Ellul começa, em primeira instância, definindo os conceitos marxistas de proletário e
socialismo. Muito se diz sobre a denominação errônea de determinada classe de
trabalhadores, que se diz proletária sem realmente o ser. É necessário investigar, primeiro, a
origem de tal classe, suas razões e seu impacto sobre o sistema econômico. Dada a definição
de socialismo definida por Marx, Ellul também aponta diversos erros interpretativos
relacionados às revoluções, dizendo onde há contradições e, em última instância, indicando a
razão de tais revoluções não terem sido tão bem sucedidas (ou parcialmente bem sucedidas).
1 Aluno do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
2 Doutor em Direito pela Université Catholique de Louvain, Mestre pela Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Administração Pública da UNESP, Campus
de Araraquara e do Programa de Mestrado em Direito da UNESP, Campus de Franca. Pesquisador do Grupo de
Estudos sobre Jacques Ellul (Diretório CNPq).
239
Se tratando da Revolução Russa em específico, Ellul passa a analisar os pormenores
do sistema, trazendo à tona os indicativos falhos da teoria socialista que foi aplicada e sua
comparação com o sistema capitalista vigente, considerado grande rival do sistema
originalmente proposto por Marx. Aqui ele discute detalhes específicos da técnica de
gerência, que ele chama de burocracia, e das técnicas de gestão, que serviam então de base
para todo o funcionamento da sociedade.
Antes de avançar, porém, é necessário definir alguns pontos para garantir o
andamento linear trabalhado por Ellul em seu livro Mudar de Revolução: O Inelutável
Proletariado.
O VERDADEIRO PROLETARIADO
Ellul argumenta que, segundo a teoria marxista, o proletário não é o pobre. Ele diz
que o proletário real é aquele “espoliado pela totalidade de seus meios de vida pelo
crescimento do capital” (ELLUL, 1982 , p. 13) e que não teria outra opção a não ser vender
sua força de trabalho. Logo então se desmistifica o verdadeiro sentido da palavra “proletário”,
atribuindo a ela o mesmo valor que tinha na sociedade inglesa do século 19. Partindo deste
ponto, argumenta-se que o proletário não é uma vítima do sistema, e nem é produto de
maquinações capitalistas, mas sim uma classe trabalhadora que surge ao mesmo tempo em
que o capitalismo como é conhecido se forma.
Como o próprio Ellul diz (1982, p. 17), “o proletariado não é produto da avareza ou
do espírito de exploração do capitalista, mas da inelutável necessidade histórica de
desenvolver as forças produtivas”, ou seja, é algo que existe intrinsecamente ao sistema. O
funcionamento do sistema exige que a produção se desenvolva mais e mais, e este
desenvolvimento leva à necessidade de uma classe baixa de trabalhadores, que não tem outra
escolha senão se sujeitar aos caprichos do próprio sistema. Os proletários são o resultado do
desenvolvimento da técnica de produção em massa, que teve sua grande aplicação e origem
durante a Revolução Industrial. Afinal, “o proletariado não é produto direto do capitalismo,
mas da industrialização” (1982, p. 86).
Graças ao surgimento do proletário é possível acontecer a apropriação da mais-valia
pelos capitalistas. No entanto, este também é um movimento intrínseco ao sistema, necessário
para que haja o progresso neste meio. Um capitalismo sem proletários não produziria mais-
240
valia; sem a mais-valia, não haveria investimentos, e sem investimentos não aconteceria o
desenvolvimento industrial.
No entanto, conforme o sistema capitalista se aperfeiçoou, esta classe trabalhadora
passou a ganhar benefícios, tais como jornada de trabalho reduzida e bônus financeiro para
trabalho além do expediente ou em horários incomuns, e daí vem a complexidade em se
definir quem é o proletário atualmente: como dizer quem é o equivalente a uma classe social
que surgiu dois séculos atrás, em uma época de grandes avanços?
Percebe-se, porém, que após o sucesso da Revolução Russa houve um certo
“retrocesso” da classe trabalhadora daquela época, uma tentativa de mímica da evolução
capitalista que culminaria na sociedade comunista.
Isto é dito baseado na própria interpretação dada por Ellul, tanto à Revolução Russa
quanto ao papel desempenhado pela classe trabalhadora no país, e às razões que mantinha
essa classe exercendo seu papel, mesmo sob um regime teoricamente igualitário. Afinal,
“como poderia haver proletariado num país comunista onde a revolução foi feita para suprimir
a condição proletária!” (1982, p. 65).
O PAPEL DO PROLETÁRIO
Segundo o próprio pensamento elaborado por Ellul (1982, p. 33), “a passagem ao
socialismo só se pode fazer quando a classe operária é suficientemente numerosa e forte para
impor sua vontade” e, além disso, “quando certas condições econômicas e objetivas são
realizadas”. Aqui é dito que, para que o socialismo seja possível, é necessário que uma grande
parcela da população seja explorada, além de que se desenvolva uma sociedade produtiva
autossustentável. A necessidade da auto sustentação vem do fato de que, em uma sociedade
socialista, não haveria competitividade ou busca por um maior mercado através de uma maior
produção, sendo necessário então que esta produção já esteja com seu potencial maximizado
para que seja possível sustentar o sistema. O progresso, seja produtivo, industrial ou
econômico, seria esquecido em prol do bem-estar da população. Por outro lado, apesar da
aparente contradição, a necessidade de um grande contingente proletariado se dá por outra
razão: o proletário, sendo o trabalhador explorado, é considerado um não-homem; apenas
mais uma máquina criada para executar uma função, e sua crescente insatisfação com seu
estado o levaria a se rebelar. Como o próprio Ellul coloca:
Certamente, ele não quer dizer que os proletários vão inventar, por sua
reflexão ou suas reinvindicações, uma forma satisfatória de economia.
241
Mas que o ser, a condição do proletário, faz com que ele
espontaneamente desempenhe o papel histórico que lhe cabe.
Sofrendo a totalização das alienações, sendo reduzido à negação de
tudo que faz uma vida humana, o proletário só pode negar a própria
condição, e daí desempenhar seu papel histórico, que é a supressão
daquilo que está na origem de sua desumanização: o capitalismo.
Assim, o movimento histórico não é a negação do capitalismo porque
ele seria injusto, etc., mas, isto sim, a negação, no proletário, daquilo
que faz dele uma ausência do homem. (1982, p. 15)
Porém, a evolução histórica natural que deveria levar o socialismo ao poder, e esta
deveria ser mundial. Proletários do mundo todo deveriam se unir para negar a sua não-
existência e impor uma mudança de sistema, realizar a passagem do capitalismo para o
socialismo. Revoluções isoladas nunca seriam capazes de trazer o verdadeiro socialismo,
imagino por Marx, à realidade.
Sendo necessária uma população proletária numerosa e um nível de industrialização
alto o suficiente para se auto sustentar, nota-se um fato interessante: o Império Russo, na
época de sua revolução, não possuía nenhum dos dois. Este foi um fator que influenciou
diretamente a forma com que o comunismo foi aplicado em sua extensão.
O DESENVOLVIMENTO DO COMUNISMO NA RÚSSIA
Lênin e Stálin sabiam dos problemas que enfrentariam para implantar e manter o
comunismo funcionando a plena capacidade na Rússia. A baixa industrialização do país na
época de sua revolução (que, por consequência, significava um número inexpressivo de
proletários) e a alta quantidade de camponeses significavam desafios a serem vencidos pelo
regime.
A propaganda (outro artifício da técnica) foi a maior aliada nessa época de
“transição” entre o sistema praticamente feudal que existia para uma tentativa de forçar uma
industrialização repentina no país, que foi bem sucedida até certo ponto. O maior artifício
utilizado foi a divulgação dos valores que o trabalho possuía e o bem que ele trazia à
sociedade. Era uma justificativa moral, fundada no aspecto revolucionário de que agora o país
pertencia a todos, e todos deveriam trabalhar juntos para erguê-lo e transformá-lo no tão
sonhado regime igualitário. Como aponta Ellul (1982, p. 50), nesta época “fala-se de quê? De
produtividade, de progresso técnico, de crescimento da riqueza coletiva”, de um trabalho
dignificante que torna o homem melhor. Esta foi a ideia mais difundida entre os trabalhadores
da época.
242
Porém, havia o problema da industrialização. Este foi resolvido de maneira um tanto
mais simples: pelo Estado ser agora detentor de todo o sistema de produção, bastava começar
a investir na construção de fábricas. Os camponeses que viriam a se tornar proletários seriam
trazidos do campo para a cidade, onde uma ideia de uma nova vida seria oferecida, e seriam
treinados para realizar suas funções na determinada indústria. Este foi um sistema que
basicamente deu certo pelos primeiros anos do regime, mas ficava claro que ele não iria se
sustentar; não havia um proletário real, apenas trabalhadores que, mesmo sob determinadas
condições “benéficas”, realizavam suas funções num ritmo mais lento que um proletário real,
e gozavam de certa liberdade no trabalho que o verdadeiro proletário não teria. Como diz o
próprio Ellul (1982, p. 54), “dessa vez não é mais o proletário provindo do livre jogo do
capital, é o proletariado voluntariamente instituído para a realização da utopia totalitária”. Foi
então durante o governo de Stálin que a ideia dos campos de trabalho ganharam força.
“Se o trabalho é o bem absoluto, a recusa ou negligência no trabalho é o mal
absoluto” (ELLUL, p. 55), e era com essa justificativa que a quantidade de campos de
trabalho passou a aumentar. Era necessária a construção de grandes obras para que o regime
soviético pudesse mostrar seu poder, e a descoberta de grandes fontes de minérios na Sibéria
era o que iria permitir suas realizações. Devido a baixa industrialização e aos territórios
inóspitos que deveriam ser explorados, os campos de trabalho ganharam um valor social.
Durante o regime de Stálin não eram apenas os criminosos que eram enviados para estes
locais, mas sim qualquer pessoa que fosse acusada de negligenciar o trabalho (e, por
consequência, a própria pátria-mãe e seu povo). Este era justificado como o maior dos
pecados para o povo, e a pessoa deveria mostrar seu valor trabalhando pra engrandecer o país.
Milhares de pessoas foram enviadas aos campos de trabalho forçado, e vários destes campos
não eram fixos. Fosse necessária a aplainagem de uma grande área para construção de uma
fábrica ou a extração de minérios em uma região inóspita, lá estava a presença deste
trabalhador forçado, não recebendo nada em troca de seu esforço (pois estava pagando sua
dívida com a sociedade), e sendo brutalmente explorado. Estes trabalhadores eram pagos
diariamente em ração, não tinham acesso a locais com boa higiene e eram obrigados a dormir
amontoados uns com os outros, e quando era necessário mover a mão-de-obra, eles eram
simplesmente jogados de um lado para o outro no território do país. Tem-se aqui, então, a
criação de um real proletariado na Rússia. Como diz Ellul, os campos de trabalho “são a
expressão da necessidade econômica de ter uma mão-de-obra que não custe praticamente
243
nada, reduzida ao estrito mínimo vital e totalmente disponível, isto é, um proletariado” (1982,
p. 60).
A TÉCNICA DO TRABALHO FORÇADO
Muitos dos trabalhadores que estavam inclusos no meio social ainda eram um tanto
relapsos em suas atividades. Baixo índice de produtividade e a falta de competitividade não
levava ao desenvolvimento e progresso que era necessário para a sociedade comunista
acompanhar a capitalista. “No regime capitalista, o meio de pressão é o desemprego. No
regime soviético, é a eventualidade da condenação ao campo” (ELLUL, p.73), e através deste
medo é que a população continuaria a executar suas atividades corriqueiras. O
condicionamento para o trabalho não era receber dinheiro (ou ser punido deixando de recebê-
lo), mas sim acabar chamando a atenção das autoridades e ser condenado a trabalhar em um
dos campos da Gulag3.
A mão-de-obra nos campos de trabalho era descartável; sempre haviam remessas
novas de trabalhadores chegando. A pouca segurança dos locais de trabalho, aliada as
atividades pesadas que eram executadas e ao regime de semiescravidão eram garantia de que
muitas pessoas pereceriam, principalmente aquelas enviadas para regiões mais inóspitas,
como o norte da Sibéria.
Eis aí, então, a volta ao proletariado definido por Marx, aquele sem escolha, que era
explorado pelo sistema. Como o próprio Ellul diz,
A coação na URSS torna-se imediata, administrativa e não deixa
margem a escolhas. Quer dizer, os métodos são estritamente os
mesmos, tendendo a transformar os operários ordinários em
proletários, segundo o processo que o próprio Marx analisara:
reagrupamento, autoridade, hierarquia, especialização, parcelização,
divisão entre os trabalhos, subordinação aos vigias, coações, sanções e
ameaças (mas aqui não é mais o desemprego que é a ameaça suprema,
e sim a deportação) (1982, p. 65).
E conforme ele afirma logo depois,
Dissemos que a população dos campos era um autêntico proletariado,
no sentido técnico do termo, mas é óbvio que a administração
soviética não quis, intencionalmente, criar, fabricar um proletariado.
Não é para produzir essa condição que os campos foram feitos!
Exatamente como com os capitalistas! Estes também, como vimos,
3 Gulag era a agência que administrava os campos de trabalho na União Soviética.
244
não tinham a intenção de produzir essa classe desapropriada, alienada;
isso foi feito obedecendo a outros motivos (1982, p. 77).
Houve, inadvertidamente, uma mimese do sistema capitalista. Os líderes comunistas
sabiam da necessidade de atravessar um período de industrialização para atingir uma
sociedade autossuficiente, capaz de sustentar um regime socialista. Ao tentar forçar a
passagem de um tipo de sociedade para outra, sendo já dito que o processo deveria ocorrer
naturalmente, criou-se um equivalente do sistema capitalista, aquele cujo comunismo
pretendia suplantar. Técnicas foram desenvolvidas para tentar atingir um determinado
objetivo a longo prazo, mas a ambivalência existente neste meio fez com que o resultado
fosse um sistema propenso a falhas, que acabou por se distanciar de seu objetivo inicial.
CONCLUSÃO
Percebe-se que, após o colapso da União Soviética, o regime que realmente existiu
foi um capitalismo de Estado. O funcionamento era idêntico ao capitalismo ocidental
(levando-se em consideração determinados poréns, como a diferença no próprio surgimento
do proletário), diferindo-se apenas em um ponto (e talvez o mais importante): não havia
indústria privada, tudo pertencia ao Estado. Talvez este ponto seja o mais relevante, pois foi o
que permitiu ao Estado exercer controle absoluto de sua população, trabalhando com
pretensões diferentes àquelas originalmente imaginadas, agindo como um regime totalitário
que tentava executar uma mudança social em seu meio.
Este é o fator principal que indica a ambivalência da técnica, principalmente ao ser
aplicada em larga escala.
Criou-se inesperadamente um proletário equivalente àquele existente na sociedade
ocidental, cujas condições de trabalho eram extremas e ele não possuía outra opção. A
diferença era que, ao invés de vender sua força de trabalho, ele era obrigado a “doá-la” para o
Estado através do serviço obrigatório no campo de trabalho. Estes campos causavam prejuízo
financeiro ao Estado, mas sem eles teria sido impossível manter o funcionamento do regime
comunista em sua tentativa de passar pela industrialização rumo a uma sociedade socialista.
Utilizando-se dos conceitos trabalhados por Ellul em A Técnica e o Desafio do
Século, conclui-se que não é possível passar pela sociedade técnica sem passar antes pela
industrialização (que acaba gerando a classe proletária). Dada a necessidade de uma sociedade
socialista ser autossuficiente, pode-se dizer que é necessário uma grande evolução da técnica
245
e seu progresso, tal qual se atinge hoje em dia. Como o próprio Ellul diz, “a tecnicização não
se pode dar sem a industrialização. Esta não se pode realizar sem capital. O capital não se
pode constituir sem o processo de acumulação primitiva” (1982, p. 86).
A tentativa de aceleração industrial causada pelo regime comunista se tornou
dispendiosa demais, tanto socialmente quanto economicamente, e foi seu próprio uso,
seguindo uma ideia cuja aplicação visava o bem social, que terminou por causar o colapso da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, eliminando o sonho de um sistema econômico
que não dependa da exploração de uma classe trabalhadora.
REFERÊNCIAS
ELLUL, J. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
ELLUL, J. Mudar de revolução: o inelutável proletariado. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
246
MÍDIA: QUARTO PODER REDUCIONISTA EM FACE DO DUE
PROCESS OF LAW
Caroline Cerdeira Dia1
Priscila de Souza Gonçalves2
Uelton Carlos Porto3
O presente estudo buscou analisar de modo geral, a influência da mídia no processo
penal, nos casos de grande repercussão. A crítica que se faz é relativa a uma mídia
antidemocrática que além de trair sua própria razão de ser, trai também a razão de ser do
devido processo penal.
Há que se ressalvar em um primeiro momento, a análise de tal trabalho a correlação
entre os conceitos apresentados de publicidade e propaganda no sentido de Jacques Ellul,
publicidade no sentido de princípio do direito e no sentido de Francesco Carnelutti.
Quando se fala em mídia fala-se de um meio de comunicação, transmissor de
informações, que podem se referir tanto a ideia de propaganda e publicidade no sentido de
Ellul, quanto na transmissão de informações sobre processos penais, referindo-se a
publicidade dos atos públicos no sentido do direito atual, quanto para Carnelutti que já
revelava uma ideia antiga da problemática atual, que é a influência da mídia por meio da
publicidade no processo penal.
Entende-se que a mídia como poder detentor de transmissão de informações possui o
poder de persuasão para a valoração de um fato como bom ou mal, e que de forma específica
no processo penal, emprega-se uma ideologia massificada do acusado, sendo que a
publicidade de processos penais no sentido do direito atual utilizada de forma inadequada,
como já se fazia desde a época de Carnelutti. Há que se afirmar que tal problemática,
atualmente, ganha uma conotação muito forte, uma vez que, os meios de comunicação que
utiliza o que foi chamado por Ellul de técnicas mecânicas e psicológicas, se desenvolveram, e
segundo Thompson “vivemos em uma sociedade midiada”, que faz de certos processos penais
1 Estudante de direito da Universidade Estadual de Minas Gerais.
2 Estudante de direito da Universidade Estadual de Minas Gerais.
3 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário. Autor e co-autor de
obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros).
247
um espetáculo público, mais ainda dos que as referencias que Carnelutti já fazia, uma vez que
os detentores do poder de informação não buscam o real sentido da comunição social arrolada
em nossa Constituição Federal, mas sim o lucro, fazendo nossa Carta Magna como afirma
Lassale, apenas um pedaço de papel, onde o que realmente impera são os fatores reais do
poder.
Deve-se compreender que a comunicação é um direito inerente a democracia, pois
esta é a base para a evolução de uma sociedade, o que não é garantido de forma correta, mas
sim atendendo os interesses da minoria, que busca uma alienação de grande camada da
sociedade.
Guareschi bem cita Thompson, onde afirma que a sociedade atual se fundamenta
agora na comunicação e na produção de conhecimento através da informação”, além da
afirmação que cita que segundo Herbert de Souza “o termômetro que mede a democracia
numa sociedade é a participação dos cidadãos na comunicação”.
Para uma reflexão do que vem a ser a mídia fática, devemos arrolar quatro
afirmações que Guareschi faz, sendo tais: 1) comunicação atualmente constrói a realidade; 2)
mídia da conotação valorativa a realidade existente; 3) a mídia determina o assunto que deve
ser falado e os limites de até onde deve ser discutido, tendo o poder de incluir ou excluir
determinados assuntos da pauta de discussões; 4) a mídia cria pessoas que são receptivas a
informações.
Referido autor enfatiza que o exercício da democracia vem a ser “a participação das
pessoas na construção da cidade que se quer”; sendo direito à informação o de ser bem
informado sem parcialidade e de buscar informações livremente; e o direito da comunicação,
o mais importante, seria o de manifestar nosso pensamento, de participação na construção da
sociedade com nossa opinião.
Percebe-se que a mídia é antidemocrática, e é compreendida como um quarto poder,
não por uma legitimação na divisão constitucional de poderes, mas por seu conteúdo fático e
real, uma vez que, esta não garante à população uma informação imparcial, atuando dizendo o
que é real, o que é bom, quem é legal e além de tudo retira de circulação informações que
seriam essenciais para a conscientização do povo, sendo o que sugestionamos como novo
fator real de poder embasando na teoria de Lassale. No que tange o direito de comunicação,
não atinge os fins que lhe são elencados de participação para a sociedade que se quer, e no
caso da mídia eletrônica, não aparenta ser um serviço público concedido, mas um oligopólio,
248
com a intenção de alienação e tendo como principal finalidade a obtenção de lucro e não o
interesse social.
O que se compreende por reducionismo é um processo de compactação de
informações. Em outro trabalho de autoria de um dos coautores deste resumo, “A informação
e a propaganda política - alcançando o poder político”, mostra-se bem tal processo, pelo
destaque que se faz Ellul sobre a transição da doutrina política para o programa de governo;
que posteriormente passou do programa para o slogan, e atualmente passou do slogan para a
imagem. Tal fato para constitui o que se chama de reducionismo, uma vez traz um processo
de alienação em massa de toda camada social. Ele é o locus apropriado para que contradições
passem despercebidas ou até sejam utilizadas para reforçar a alienação, consoante explica
Jacques Ellul.
Para que ocorra a transmissão de informações para uma grande massa é necessário o
uso das técnicas mecânicas, que consistem em todo meio utilizado para a veiculação das
informações como, radio, TV, jornal impresso, dentre outros e o uso das técnicas psicológicas
ou psicanalíticas que Ellul destaca com a finalidade de conhecer as emoções e os sentimentos
do coração humano, gerando um ser receptivo e reativo a informação. Afirmando ainda, que
as técnicas psicológicas e psicanalítica visam conhecer os mecanismos que movem o coração
humano, atingindo êxito quase infalível, conhecendo-se com exatidão qual imagem pode
produzir determinado reflexo.
Ellul ainda destaca três consequências causadas pelas técnicas que são: a supressão
do espírito crítico, da formação da boa consciência social, a disponibilidade das massas para
fazerem o que for considerado adequado e a criação de universo abstrato criado no cérebro
dos indivíduos. Comprovando que tais técnicas empregadas alienam de uma forma ou outra,
trazendo pensamentos positivos ou negativos aos indivíduos, os fazendo valorar até sob
aspecto crucial, se um homem matou ou não, vemos tais técnicas explicitas em revistas de
grande circulação, em diversos casos como exemplo o caso da menina Isabela Nardoni, do
goleiro Bruno etc.
Compreende-se que o Direito Processual Penal, segundo Antônio Alberto Machado,
é uma locução polissêmica, e que a mesma desperta várias funções, e que o Direito Processual
penal é fenômeno complexo e dinâmico, vez que, é composto por uma dimensão normativa
(formal) e uma dimensão material, sendo elas fatores políticos, sociais, econômicos, éticos e
culturais; e dinâmico, pois é construído no decorrer da história e também por meio de
conflitos dialéticos, impulsionados por interesses e lutas sociais. Machado traz a dupla
249
instrumentalidade, a técnica, se referindo como método de composição de lides penais, e a
ética, como método de afirmação de direitos constitucionais, revelando no valor ético a atual
teoria do processo penal, que demonstra que processo não é um instrumento, mas sim
garantia, sendo tal informação resquício da atual teoria processual de não adotada pelo Brasil.
Vem a ser um mecanismo de apuração de crimes e imposição de penas e uma relação jurídica
que disciplina tais mecanismos.
O devido processo legal, segundo Machado pode ganhar conotação pela doutrina
como: 1) em sentido material: como garantia constitucional, expressa na lei de que os direitos
e garantias fundamentais serão respeitados pelo estado no processo, e também que as normas
processuais serão interpretadas e aplicadas da melhor maneira possível; 2) em sentido formal:
representando as garantias processuais de que o processo penal observará as formalidades
previamente estabelecidas para a sua tramitação. Ele é previsto no art. 5º ° inc. LIV da
Constituição Federal e prevê que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”.
O princípio do juiz natural vem a ser aquele que diz que nenhum processo será válido
se constituído perante tribunal de exceção, ad hoc, tal tribunal deve ser constituído
previamente por lei, deve ter previsão constitucional antes da ocorrência do fato, está previsto
no art. 5º XXXVII, dizendo que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, sendo que a não
observância deste princípio acarreta a nulidade do processo.
O princípio da publicidade é aquele que assegura que todos os atos do processo penal
devem ser públicos, na Constituição Federal está expresso no art. 5º, LX, e no art. 93, IX, já
no Código de Processo Penal, consta no art. 792, estabelecendo a regra que as audiências,
sessões e atos processuais, produzidos pelos órgãos jurisdicionais serão públicos. Há uma
distinção apontada por Antonio Alberto Machado entre, a publicidade geral e a publicidade
especial ou restrita, sendo que a primeira é aquela que visa garantir um controle externo, e a
segunda aquela que visa garantir o controle dos eventuais interessados no processo provindo o
princípio do contraditório. Fala-se em uma restrição dessa publicidade, dando a possibilidade
ao magistrado aplicar publicidade restrita, quando o Código de Processo Penal dispõe que
quando a publicidade dos atos processuais puder provocar escândalo, inconveniente grave ou
perigo de perturbação da ordem, tendo em vista a defesa da intimidade ou o interesse social,
desde que não haja prejuízo para o interesse público no que ser refere ao direito à informação.
Do estudo dos temas acima se constata que temos técnicas mecânicas e psicológicas,
influenciando de forma direta o devido processo penal, o fazendo perder sua verdadeira razão
250
de ser, chega-se às seguintes conclusões: 1) há uma deturpação da ideia de publicidade do
processo penal; 2) quando o povo passa a julgar, previamente um mero indiciado como
culpado, há que se falar em tortura e tribunal de exceção em sentido material; 3) quanto a
ciência processual, que segundo a teoria mais atual vem como instrumento técnico e ético,
não há que se falar em nenhum deles, pois acontece uma total impossibilidade da aplicação do
direito, havendo uma supressão do mesmo pela mídia; 4) impossibilidade de verdadeira
aplicação de uma democracia, que consequentemente se transforma em uma verdadeira
demagogia.
Consta em nossos conhecimentos de ciências políticas, que toda democracia quando
não cumprida é tida como uma demagogia. Com a onipresença midiática podemos encarar
que a imprensa, como já dizia Carnelutti faz parte do que não foi arrolado por Lassale, mas
que segundo a atualidade, embasados em sua teoria, podemos afirmar que, a mídia hoje é um
dos fatores reais de poder, que constrói nossa constituição real, afirmando a tese, que nossas
leis apenas estão no papel, e não estão sendo concretizadas, construindo realidades falsas de
dualidade para diminuir o que Lassale chamou de poder intelectual, pois a maior tarefa em
nossa sociedade de democracia midiada reducionista que é igual a uma demagogia, é manter-
se crítico.
251
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTERVENÇÃO DA TÉCNICA NO
FENÔMENO HUMANO
Robson Henrique Oliveira1
Uelton Carlos Porto2
RESUMO: A liberdade humana, em sua face objetiva, consiste na possibilidade
material de o ser humano dar finalidade às coisas no mundo, por que o ele, em si mesmo
considerado, não é finalidade pré-constituída: Ele é aquilo que ele constrói. Da mesma forma,
a realidade material é o contexto pelo qual a pragmática dessa liberdade deve ser avaliada e,
como é cediço, tal realidade exerce dominação existencial (Marx). Eis a dupla face da eterna
contradição humana, como bem alinhavou Hegel. Ora, o ser, historicamente e dialeticamente
considerado, é apenas um fenômeno circunstancial na história do todo (Teilhard Chardin) e
esse aspecto em particular da exegese humana conceitua a Coisa em si: a espiritualidade. Por
isso, Ellul conclui que só podemos ser verdadeiramente livres julgando espiritualmente.
Assim, tudo o que é existente no mundo e que, em tese, interfere na espiritualidade factual do
homem, interfere diretamente no fenômeno humano. Em outros trabalhos apresentados a este
seminário pretendeu-se abordar como o fenômeno da técnica na midiática contemporânea
interfere no limiar entre o ser e o fazer da realidade humana e como se processa a
interferência da técnica na intersubjetividade do agir humano. Esses trabalhos trazem uma
ideia inicial da problemática que delineia o objetivo deste artigo, qual seja, o de demonstrar
que a técnica exerce uma interferência direta no fenômeno humano.
Palavras-chave: ser. técnica. intervenção. paradigmas. dialética.
Considerações iniciais
Ó sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado
e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal
prodígio. Quão claro, livre, fácil e simples conseguimos tornar tudo
quanto nos rodeia! Quão brilhantemente soubemos. Deixar que nossos
1 Bacharel em direito pela Faculdade do Alto São Francisco de Piumhi - Faspi.
2 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário. Autor e coautor de
obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros).
252
sentidos caminhassem pela superfície e conspirar a nosso pensamento
um desejo de piruetas caprichosas e de falsos raciocínios! Quanto nos
esmeramos para conservar intacta nossa ignorância, para lançar-nos
aos braços de uma despreocupação, de uma imprudência, de um
entusiasmo e de uma alegria de viver quase inconcebíveis, para gozar
a vida! E sobre esta nossa ignorância edificaram-se as ciências
baseando a vontade de saber em outra ainda mais poderosa, a vontade
de permanecer na incógnita, na contra-verdade, não sendo esta
vontade o contrário da primeira, mas sua forma mais refinada.
(NIETZCHE, 2001, p. 24, grifo no original).
Restou consignado e discutido a ambiguidade sintética do ser, a face subjetiva e a
face objetiva - na intersubjetividade - de sua condição: Por um lado a condenação do ser ao
juízo e às escolhas, pelo outro, a projeção do ser a ele mesmo, ao absoluto, à experiência do
não sentido, pois “a exigência do Absoluto está inscrita na própria essência do dinamismo
mais profundo da razão humana (DOWEL, 2007, p. 247, 248, grifo no original).
Transcendência esta mesma que falta à modernidade “à medida que a tensão se
prolonga, é visivelmente sob uma forma muito diferente de equilíbrio - não eliminação, nem
dualidade, mas síntese - que parece haver de se resolver o conflito” (TEILHARD DE
CHARDIN, 1955, p. 323).
Nessa mesma esteira de raciocínio, Dowel (2007, p. 247, 248, grifo no original)
assinala que
Somente essa experiência [unidade] poderá dirigir as energias
espirituais da civilização para o reencontro da fonte transcendente do
sentido ou para descobrir uma nova estrutura da experiência do
Transcendente que se torne princípio inspirador de uma realização
mais autenticamente humana dos grandes ideais da modernidade.
Posto isto, cabe refletir que o homem é a finalidade de si, mas não pode ser
considerado em seu fenômeno um fim em si mesmo. Individualmente considerado ele não é,
pois nasce e somente a posteriori constrói o seu ser. Da mesma forma, a coletividade também
não é; cada sociedade e cada cultura possuem em um determinado contexto histórico aspectos
que lhe concernem, características e atributos próprios a serem analisados .
Muito embora não possa ser conceituada de per si, a Coisa em si da realidade
humana pode ser auferida e abstraída da historicidade dialética, existindo por si. Hegel (1992,
p. 72) assinala que
253
A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do espírito só
pode ser mínima [o espírito existe por si]. Assim ele deve esquecer-se,
como já o implica a natureza da ciência [natureza técnica]. Na
verdade, o indivíduo deve vir-a-ser [pois ele não é em si], e também
deve fazer, o que lhe for possível; mas não se deve exigir muito dele
[ética no trato com a ação em si], já que tampouco pode esperar de si e
reclamar para si mesmo.
Relativamente ao ser humano, finalidade e fim são coisas diversas. O homem não
encerra um conceito: O Para-si “não é o que é e é o que não é” (SARTRE, 2009, p. 121).
Na intersubjetividade, o homem utiliza as coisas existentes no mundo na medida em
que necessita satisfazer a sua condição objetiva isto é, é ele quem dá finalidade às coisas
existentes no mundo: Uma montanha lhe serve, tanto como objeto para a exploração mineral e
lucrativa quanto para uma escalada de fim de semana, exemplo que pode ser estendido a
qualquer outro existente em bruto . Obviamente, cabe ressaltar que essa explanação inicial em
nada interfere nos ideais do neokantismo, pois claro e evidente é o fato de que a normatização
hipotética deve impor o preceito da dignidade da pessoa humana (art. 1º c/c art. 5º da CF de
1988) na intenção de nortear o agir humano na realidade, porque a finalidade do homem,
como dito, é ele mesmo .
Assim, o fato de que o homem possui casuisticamente a liberdade por optar entre
uma ou outra maneira de utilizar as coisas do mundo, na busca de sua essência, esboça, no
aspecto subjetivo, sua liberdade fundamental. A técnica em si mesma interfere subitamente
nesse aspecto, pois é um fenômeno alheio ao ser e tem leis próprias de manifestação e de
existência, como será exposto adiante.
Em sendo o homem aquele que dá finalidade às coisas do mundo, tendo como
finalidade última ele mesmo, ser-e-mundo devem “fluir” em facticidade. O caos, o absoluto, o
não sentido - a outra face do fenômeno do ser - carece de uma realidade mutável. Para Hegel,
(1992, p. 31, grifo no original) a síntese poética de Parmênides, foi “a maior obra prima da
dialética antiga, era tido como a verdadeira revelação e a expressão positiva da vida divina”:
“Tudo flui”: A natureza flui, modifica-se; o ser flui no tempo (HEIDEGGER, 1993); é
transitório, é transcendente, está-aí-no-mundo em facticidade. Hegel (1992, p. 31, grifo no
original) assinala que “mesmo então apesar das muitas preocupações que o êxtase produzia,
de fato esse êxtase mal entendido não devia ser outra coisa senão o conceito puro”.
Mas o “tudo flui” deve ser considerado em seu tempo (Antiguidade Clássica) e,
quanto a este segundo aspecto do ser, tem-se que nos dias de hoje as coisas do mundo fluem
em ritmo próprio, alheias a ele ser, tamanha a grandeza da realidade técnica, impondo ao
254
homem a dialética de suas leis, interferindo também nesse segundo aspecto, tal como será
exposto adiante.
Nesse diapasão, é a ação humana na realidade que materializa a transcendência do
ser. Conhecer o ser é, entrementes, conhecer o processo histórico-dialético que o
circunscreve.
Ora, da implicação da situação humana no mundo moderno infere-se que uma
realidade que não transcende na história e que possui essência própria, é de certa forma
antagônica ao fenômeno de ser, porquanto o ser-no-mundo em construção carece de um ser e
de uma realidade, ambas em construção. O fenômeno humano, situando-se no equilíbrio entre
o ser e o não ser, entre o nada e a busca pelo absoluto, entre o ser e a realidade material, é
deturpado pelo fenômeno da técnica.
Paradigmas
Posto isto, se o devir, a aspiração ao todo, o sentido do todo, à beleza, à arte (etc),
integram a possibilidade de o ser humano transcender a si mesmo no mundo, seja
intuitivamente, seja sensivelmente, possibilitando o fluir das suas escolhas no mundo, da
construção de sua história por uma consciência historicamente mutável, quando colocada face
a face com uma realidade essencialmente racionalizada - um fim em si - o resultado é a
caracterização de um verdadeiro óbice ao transcender e uma direta influência no ser, seja na
intersubjetividade, seja na objetividade de seu agir.
Aliás, é esta mesma a característica fundamental da “[T]écnica”: Existência em si
mesma, autonomia frente ao homem que a criou (ELLUL, 1968, Intróito). Modificação
permanente e irreversível da realidade que aprisiona o homem fora da natureza [fora do
absoluto, fora de si mesmo, fora do conceito puro da Coisa em si] (ELLUL, 1974, p.68).
Necessário é ressaltar que nos ateremos apenas à obra de Ellul para explicitar
algumas características - fundamentais - da técnica, concernentes à essência do fenômeno
técnico, trazendo um presságio ao devir (a segregação do ser pela realidade técnica).
Levar-se-á em consideração o exposto em sua obra sobre todos os fatores que
desencadearam a consciência técnica , as quais serão mais que suficientes aos propósitos
desse trabalho, pois este, como dito, é conciso e não almeja esgotar o tema, mas apenas abrir
espaço para novas e outras discussões, como será ao fim colocado.
255
O trabalho em pauta requereu pesquisa técnica, revisão bibliográfica e compilação de
obras e trabalhos acadêmicos que assistem ao tema.
Este estudo tem por proposta trazer os pressupostos da influência da realidade
técnica na essência humana. Deixa-se ao fim, entrementes, aberta a hipótese de se investigar
em ulteriores estudos, mais completos, a essencialidade deste fenômeno e qual o seu alcance
pragmático.
A interferência da realidade técnica
Com o advento da técnica, a síntese , fulcrada no equilíbrio entre o ser e a realidade
material foi violada. Se o ser é a síntese - ambígua - objetiva e contingente que reclama a
unidade, necessita-se refutar toda e qualquer teoria ou práxis que pregue ou empregue
fundamentalmente algo exterior ao alcance ser, que lhe tenha influência direta.
Ora, nesse sentido assinala Ellul (1974, p. 73) que
O fenômeno da técnica tornou-se independente da Máquina (Ellul em
“A traição pela tecnologia”). A técnica pensará para si, não para o
homem: A ordem que ela [a técnica] criou destinava-se a ser um pára-
choque entre ele e a natureza, mas evoluiu de maneira autônoma e fez
suas próprias leis, que não são as do homem ou da natureza [unidade]
(...).
Assim, a técnica, que teria por objetivo fundamental instrumentalizar a liberdade
humana no mundo, parece concretizar uma deturpação silenciosa no âmago da unidade
dialética do ser.
A influência da técnica na dialética
Por conseguinte, o ser se determina conforme essa realidade e essa realidade mesma
é, inclusive, anterior à cognoscibilidade.
Com efeito, deve-se colocar em debate a reflexão sobre a modernidade da influência
da realidade técnica, em tese desconhecida em vida por Hegel.
Entra em jogo, pois, um ponto especial, qual seja, o de rediscutir a influência da
realidade nos aspectos dialéticos relacionais e reflexivos da tese, da antítese e da síntese (na
consciência histórico-dialética).
256
Toda tese baseia-se em uma realidade dada; a antítese por sua vez é uma
manifestação interior do ser que revela a síntese. Esta, por sua vez, transforma-se em nova
tese. Ocorre que quando essa realidade flui, um movimento dialético acaba por ser imposto na
essência humana, o que absolutamente não ocorre quando da análise da realidade técnica pois
a técnica não flui pelo ser humano, mas por si mesma.
A realidade técnica é diferente de tudo o que já se viu antes. A era da tecnologia, da
rapidez, dos jingles, destroça a realidade contingente e, por conseguinte, atravessa e cauteriza
a dialética da realidade humana.
Passemos a discutir, em linhas gerais, estes pressupostos contidos na abordagem do
fenômeno técnico.
As características extrínsecas e independentes da técnica
A técnica transforma o reflexo em refletido, isto é, impede a reflexão. Embora de
fundamental importância às discussões trazidas no bojo deste esboço de racionalidade, o
fenômeno da reflexão requer extensos prognósticos existenciais, razão pela qual lançamos o
leitor a uma interessante discussão - no campo da subjetividade - em cujo cerne traz a lume
uma interessante constatação: “Refletido e reflexivo tendem, portanto, à „Selbsts-tandigkeit‟,
e o nada que os separa (...)” (SARTRE, 2009, p. 210).
Embora Ellul não descreva a unidade de ser aqui trabalhada, ele nos adverte que “há
uma espécie de programa mínimo que o homem realizou na história, e que agora está
ameaçado pela técnica” (ELLUL, 1974, p. 71), e que “não há maestro para a orquestra
tecnológica - a convergência é espontânea” (ELLUL, 1974, p. 65).
Ellul (1974, p. 68-69) conceitua a tecnologia no âmbito da materialidade da técnica
e, partindo de conceitos como automatismo, auto-acréscimo, indivisibilidade, universalismo e
autonomia, o autor descreve o impacto da técnica nos meandros políticos, econômicos, sociais
; aspectos relevantes da técnica, visto interferirem diretamente na retirada de sentido da
própria realidade humana em construção di si mesma e, por conseguinte, da reflexão.
Ninguém é responsável e, ao mesmo tempo, todos estão envolvidos em uma certa divisão do
trabalho .
A técnica, posto isto, interfere nesse acervo humano, subjazendo esse “ser em
facticidade” (que ao mesmo tempo é possibilidade de contingência do espírito, de aspiração
257
ao infinito, de transcendência, de preenchimento, de Deus, da natureza etc.), preenchendo-o
com um mundo totalmente racionalizado, construído.
A técnica e o afastamento do homem da fluidez da natureza, dos julgamentos
espirituais
Esse segundo aspecto é totalmente ligado aos primeiros, sendo consequência deles. A
perfeição do mundo técnico, razão em si mesma, afasta o homem do absoluto caótico que
representa a espiritualidade do seu ser, de sua liberdade perante a não-fluidez do mundo.
Nessa esteira de raciocínio, Ellul assinala que em “[U]ma sociedade tecnológica
obriga o indivíduo a fazer grandes sacrifícios - sacrifícios que, nas sociedades pré-
tecnológicas eram consideradas o melhor da vida: o agradável contato com a natureza (...)
(1974, p. 67)”. Outrossim, observa que o impacto psicológico de tal fenômeno como atuante
em muitos níveis, já que a técnica “[I]mpinge ao indivíduo todo um conjunto de padrões de
pensamento e ação que o fazem conformar-se a uma racionalidade técnica” (ELLUL, 1974, p.
66).
Pode-se, já preparando terreno para as considerações finais e para a abertura de
outros debates sobre o tema, complementar que a racionalização do mundo e a contínuo
interferente da realidade humana e esta, por possibilitar a transcendência de uma das faces da
realidade - dialética - humana, acabaria por cercar o homem em sua razão, como um animal
acuado, na jaula do racionalismo que ele mesmo criou, afastando a essência humana de si
mesma: Um abismo entre o nosso ser e o mundo.
Considerações finais
Cabe ao Direito impor os imperativos hipotéticos, abstratos e éticos, reguladores do
uso da técnica em todas as facetas da realidade humana.
Mas nunca na história da humanidade se presenciou tamanho disparate, tamanha
irresponsabilidade do homem para com ele mesmo. O fenômeno técnico vai muito além da
objetividade do mundo da máquina: influencia diretamente a unidade do ser.
O uso da técnica, que teria por função primordial assegurar a liberdade-ética humana,
parece cada vez mais aprisioná-la em sua própria realidade racional, num caminho que,
conforme Ellul, impossível seria de lhe traçar rota avessa.
258
O autor, ao avaliar a técnica no campo pragmático, demonstra a inserção do homem
em uma situação peculiar nunca antes vista. Ele clama espiritualidade à humanidade, um uso
espiritual da técnica, pois uma vez não se podendo voltar à historicidade de nossa construção
técnica, é no mínimo existente a obrigatoriedade humanística em subtrair dela a tamanha
grandeza de seu fenômeno.
A realidade técnica, materializada através da máquina, coloca o nosso estar-aí-no-
mundo como um estar-aí-no-mundo-técnico-tecnológico, anterior à dialética da consciência
cultural mesma, propiciando uma realidade a priori que afasta o ser de sua espiritualidade, de
sua essencialidade dialética, já que influencia a própria tese e a própria consciência em si
mesmas: A técnica passa a ser a síntese em si mesma.
A mensagem importante contida neste estudo é o chamado para que nos habilitemos
- discutindo a proposta que este autor deixa em aberto ao cabo sobre estudos mais profundos
de uma possível “cisão permanente da unidade de ser” pela dialética humana atual imposta
pela realidade técnica - a responder por onde irá caminhar a reflexão e a espiritualidade (as
teses, as antíteses e as sínteses constantes) da consciência humana quando o caos e o acaso
forem totalmente tomados pelo “mundismo” criado pela necessidade humana real e técnica de
mais e mais técnicas, e estes, parte da transcendência humana, deixarem de existir e forem
aprisionados pela objetividade material?
Quanto mais caminhamos, existindo aí no mundo rumo à razão e aos julgamentos
técnicos, mais abandonamos a nós mesmos. Quanto mais conhecemos o mundo, mais
desconhecemos a nós mesmos.
Tornamo-nos este ser-aí, sem sentido, da informação que nos entra pelos olhos, que
nos humilha a palavra (ELLUL, 1984), que nos transforma em homens técnicos; zumbis da
realidade material e objetiva.
A racionalização e a materialização da técnica na realidade objetiva do ser-aí
condicionam o homem a uma adaptação fora do seu mundo espiritual, contrariando a própria
natureza biológica, material e filosófica do ser humano inserido no mundo, rompendo
drasticamente e permanentemente (cisão?), ao menos em uma primeira análise - que
precisaria ser mais bem trabalhada - o fenômeno unitário já discutido.
REFERÊNCIAS
259
DOWEL, João Augusto Mac. Ética e Direito no pensamento de Henrique de Lima Vaz. São
Paulo. Revista Brasileira de Direito Constitucional, nº 9, 2007, p. 237-273.
ELLUL, Jacques; TOYNBEE, Arnold, et al. O Preço do Futuro. São Paulo: Melhoramentos,
1974.
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Trad.: Roland Corbister. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1968.
_________________. A palavra humilhada. Trad.: Maria Cecília de M. Duprat. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1984.
_________________. A traição pela tecnologia. Promoção: Rerun Productions.
Amsterdã. Disponível em: jacquesellulbrasil.wordpress.com/2011/12/01/236/. Acesso em
05/09/2012.
HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Fenomenologia do espírito. Trad: Paulo
Menezes. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2ª ed, 1992.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer, 1960. (Trad. bras.
de Márcia Cavalcante, Ser e Tempo, Petrópolis-RJ, Vozes, 1993; volume I).
NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Além do bem e do mal. Trad: Márcio Pugliesi.
São Paulo: Hermus Livraria, editora e distribuidora, 2001, p. 1-230.
SARTRE, J.P. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Trad: Paulo
Perdigão. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 18ª edição, 2009, p. 1-765.
___________. L‟ Existentialisme est un humanisme. Trad: Rita Correia Guedes.
Paris: Les Éditions Nagel, 1970, p. 1-28.
260
RESUMOS
261
TÉCNICA, TRANSPARÊNCIA E CIDADANIA NA ERA DIGITAL
Daiene Kelly Garcia1
Silvio Marques Garcia2
Ante a revolução tecnológica representada pelo advento da internet e considerando-
se a necessidade de transparência da Administração Pública no Estado Democrático de
Direito, pretende-se analisar as consequências da utilização de novas técnicas para a
divulgação de informações governamentais, citando-se, como exemplo, o Portal da
Transparência. Tal questionamento ganha importância a partir da Lei de Acesso à Informação,
Lei nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011, que determina a transparência da atuação dos
órgãos públicos. Cumpre indagar se as novas técnicas representam, assim, a superação da
tecnicização – compreendida como um processo em que a solução para os problemas
advindos da Técnica estaria nela própria –, pela harmonização entre a Técnica e os interesses
da sociedade, uma vez que, nesse modelo, as novas técnicas impulsionariam, em vez da
automatização, a atividade reflexiva, única que foge dos domínios da Técnica. É necessário
também investigar se, com isso, seria possível alcançar uma aproximação entre o cidadão e o
Estado, com a consequente humanização das políticas públicas.
1 Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estadual
Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca-SP.
2 Procurador Federal. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP/Franca-SP.
262
AS EMOCÕES E A TÉCNICA: UM DIÁLOGO ENTRE O
PENSAMENTO DE JACQUES ELLUL E BERTRAND RUSSEL
Daniela Aparecida Barbosa Rodrigues3
O presente trabalho propõe um diálogo entre a filosofia crítica que encontramos na
obra “A técnica e o Desafio do Século” de Jacques Ellul e o pensamento cético de Bertrand
Russel em relação a máquina e as emoções humanas, exteriorizado no texto intitulado “As
máquinas e as Emoções” que pode ser encontrado na coletânea Ensaios Céticos, lançada pela
L&PM no começo de 2008, integrando-os à contemporaneidade.
É evidente que vivemos em uma sociedade tecnicista, cujo objetivo primordial é
buscar a otimização de tudo. Através da técnica foi possível a expansão econômica e cultural
da sociedade, foram criadas formas de locomoção que possibilitam a integração mundial além
de novos meios de comunicação através dos computadores, telefones, internet. A técnica
modificou também os meios de produção, incrementou a produção em larga escala e
possibilitou ao homem acesso a produtos tecnológicos inimagináveis até poucos anos.
Mas, ao mesmo tempo que proporcionou benefícios incontáveis ao homem, a técnica
também o aprisionou em suas entranhas e lhe roubou as emoções, revelando sua principal
característica: a ambivalência, o que foi revelado pelos autores já no início dessa revolução
tecnicista.
Bertrand evidencia em sua obra que não é de imediato que conseguimos fazer a
oposição entre a técnica e as emoções humanas, já que num primeiro momento, a técnica
apresenta-se de forma aprazível e nos confere poder, seduzindo-nos através do seu lado
agradável. O lado obscuro conhecemos apenas com o passar do tempo.
Claro exemplo pode ser visto nas crianças ao receberem um presente: entre dois
brinquedos, a escolha será sempre aquela que tiver maior tecnologia. A emoção da criança ao
se deparar com um videogame de última geração chega a ser comovente, o que não acontece
quando ela se depara com uma simples bola de futebol ao abrir o embrulho.
Contudo, ao acompanharmos a relação entre a criança e seu videogame, podemos
enxergar claramente que a máquina roubou sua emoção. Cada dia que passa ela fica
3 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP (Campus de Franca).
263
aprisionada ao seu brinquedo. A criatividade já não existe, a emoção inicial traduz-se apenas
em reações programadas. Ele responde aquilo que a máquina lhe pede numa busca
desenfreada por superar os obstáculos proporcionados pelos jogos eletrônicos, enquanto sua
capacidade de enfrentar os desafios reais da vida é sugada pela técnica.
Esse cenário pode ser considerado um tanto quanto tenebroso, mas não foge à nossa
realidade. De tempos em tempos a mídia noticia a morte súbita de adolescentes e até mesmo
adultos causada por longos períodos diante de um computador.
A capacidade de armazenar informações e a criatividade também foram eliminadas
pela técnica. Antigamente o acesso às informações era mais restrito e por esta razão as
pessoas tinham que manter em sua memória o máximo de dados possíveis, ao contrário da
geração atual, que possui o “Google” como seu “HD externo”. O que vemos como resultado
são jovens que não possuem capacidade de armazenar informações ou criar algo novo,
limitando-se a repetir aquilo que encontram na internet ou assistem na televisão. Os trabalhos
escolares e até mesmo universitários traduzem muito bem essa nova realidade e causam
preocupação aos professores que precisam lidar com o plágio encontrado na produção
acadêmica dos discentes.
Segundo Jacques Ellul, a técnica foi apresentada ao homem como aquela que traria
sua libertação através da racionalização e especialização das atividades, mas o que se vê é
justamente o contrário: a técnica dominou o homem e isso aconteceu em vários aspectos,
inclusive no âmbito das emoções humanas, como observado por Bertrand, sendo as situações
descritas no presente trabalho como pequenos exemplos dessa realidade.
264
OS DIREITOS HUMANOS E A RELEVÂNCIA DO PENSAMENTO DE
JACQUES ELLUL NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
Adriana Ferreira Serafim de Oliveira1
Os direitos humanos sofreram novas interpretações na linha do tempo e da história,
quanto ao que sejam efetivamente, desde quando foram considerados direitos humanos no
século XVIII na Declaração de Independência dos Estados Unidos até este início do século
XXI. (Hunt, 2007, p.14)
Novas declarações de direitos humanos foram elaboradas, reescritas, transcritas, mas
em trezentos anos a humanidade não positivou um direito humano sequer que seja aplicado
universalmente, no que pese as atrocidades cometidas no período das guerras mundiais e a
depressão em que mergulharam as nações envolvidas. Por regra, o que conhecemos como
direitos humanos acompanha o pensamento judaico-cristão-ocidental e, portanto, excludente
de parte da humanidade.
Jacques Ellul já denunciava uma sociedade tecnicista e imediatista e percebe-se que
no decorrer desses séculos a ânsia de positivar normas que na verdade correspondem apenas à
parte dos anseios da sociedade mundial, imaginando-se que os conflitos cessem, a bem da
verdade, eles apenas serenam porque essas normas não atingem o âmago das questões
humanas, apenas a superficialidade.
Nosso planeta é multicultural e urge o respeito e a valoração de cada cultura como
única. Acompanhamos o pensamento de Herrera Flores, o qual enxerga os direitos humanos
como um produto cultural, construídos de acordo com as necessidades de cada povo. (Herrera
Flores, 2009, p.95)
Considerar que somos sujeitos de direitos humanos universais é uma imediata
tentativa de solucionar conflitos que não valoram o respeito, porque não se dá a oportunidade
de conhecer os valores éticos e morais que transitam em cada comunidade formadora da
sociedade internacional e sim ditam regras que reprimem e punem ações, contudo não
conscientiza.
Estaríamos negando o determinismo de Kant quanto ao meio, se considerarmos que
os direitos humanos são universais, porque o meio em que o ser humano nasce e habita exerce
1 Aluna do PPGD da UNIMEP Piracicaba – Bacharel em Direito - Pós Graduada em Política e Relações
Internacionais – Advogada.
265
influência sobre o seu eu desde a natureza (clima, solo, ar, etc) até os aspectos culturais
(hábitos, linguagem, etc). E esse eu reconhece seus iguais naquele meio e a sua maneira de
ser. É importante para cada um o reconhecimento do seu “eu sou” dentro de um contexto
social.
No que pese a globalização e a capacidade de adaptação humana ao meio ambiente,
numa linha evolutiva, vemos uma mistura dentro da sociedade internacional, onde temos
cidadãos totalmente integrados a todas as culturas e técnicas, alguns despertando para o todo
e outros ensimesmados. A verdade é que todos padecem em suas angústias por um ou todo o
tempo e usam as técnicas para satisfazerem seus anseios ou esvaírem-se por um determinado
período. O direito para legislar a favor ou contra um incômodo social, o crédito para o
consumo em massa a fim de sentirem-se pertencente a um grupo que pode ou o modismo para
terem esse mesmo sentimento de poder e pertencer.
Jacques Ellul aponta como solução para os conflitos humanos o despertar, a
revolução pessoal, a reflexão, uma nova versão do “conhece-te a ti mesmo” dos gregos. O
movimento é de introversão, de adentrar à floresta para então sair da caverna.
A relevância do pensamento de Jacques Ellul no início do século XXI vem de
encontro com a mesma importância em reconhecer a impossibilidade de direitos humanos
universais e a urgência de valorar o respeito às unidades culturais que formam o todo.
266
O ESTABELECIMENTO VIRTUAL NA SOCIEDADE TÉCNICA: A
NECESSÁRIA BUSCA DE SEGURANÇA JURÍDICA NAS
TRANSAÇÕES COMERCIAIS
Osvaldo Balan Júnior1
O presente trabalho buscará trazer uma profunda reflexão sobre o avanço técnico na
sociedade moderna do instituto denominado estabelecimento virtual, assim como seus
reflexos nas mais variadas searas. Buscar-se-á compreender este fenômeno através do estudo
da técnica, tudo com base nas obras do pensador Jacques Ellul, que trilhou sobre as mais
diversas áreas do conhecimento no século passado, com extremo brilhantismo, podendo, além
disso, ser considerado um visionário. Mostrar-se-ão os problemas que o avanço tecnológico
vem trazendo, os quais complicam o ser humano em sua vida particular, criando neuroses,
fruto da adaptação deste ao mundo moderno. Para tanto e de forma mais analítica estudar-se-
ão as características da técnica moderna, as quais permitem entender como se dá o
desenvolvimento da técnica. Buscar-se-á compreender também o que vem a ser a informação,
a principal técnica da atualidade, e as diferentes concepções sobre a sociedade
contemporânea. Além disso, analisar-se-á a influência da imagem na sociedade técnica e sua
predominância em relação à palavra. Necessária também se mostrou a análise do que vem a
ser o comércio eletrônico, o novo modelo de realizações negociais, que se apresenta em
franco crescimento. Assim, o estabelecimento virtual surge dentro deste contexto, não
permitindo a criação de obstáculos, se encontrando atualmente em todo o mundo, sem
enxergar as diferenças culturais e as menosprezando, trazendo uma uniformidade ao mundo,
tanto pela forma de comercializar, como pelos produtos que expõe. Mas não são todas as
pessoas do globo que tem acesso a este, sendo este outro grande problema apresentado pelo
estabelecimento virtual: a exclusão digital. Por conseguinte, demonstrar-se-á neste trabalho a
necessidade de se desenvolver determinadas balizas para o avanço desta técnica virtual,
balizas estas que deverão ser resultado de uma postura crítica e reflexiva do ser humano que
se encontra em falta na atualidade. Unido a isto, este trabalho se baseará na comparação do
estabelecimento tradicional com o estabelecimento virtual, analisando-se as características
destes e as influências, para que se possa analisar a partir disto se o estabelecimento virtual
1 Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2011).
267
pode ser considerado uma nova categoria jurídica ou não. Buscar-se-á demonstrar também as
ramificações que o estabelecimento virtual possui e as implicações na seara do Direito do
Consumidor que esta propicia e como se deve dar a atuação deste. Trabalhar-se-á com a
questão prático-jurídico de como vem se fazendo o registro do empresário virtual e de quais
normas este, na atualidade está tendo de obedecer para ver seu estabelecimento em pleno
funcionamento. Analisar-se-ão os reflexos que o estabelecimento virtual trouxe para o campo
trabalhista e econômico, dois dos setores mais atingidos por este instituto, como forma de se
obter uma consciência mais ampla do que se mostra necessário, para desenvolver de forma
controlada e compreensiva este fenômeno técnico. Portanto, buscar-se-á trazer no presente
trabalho uma análise crítica da sociedade técnica, com foco especial no estabelecimento
virtual e na necessidade urgente de controlar seu avassalador desenvolvimento, através das
normas legais, pois este tema não foi alvo de discussões jurídicas e precisa ser devidamente
analisado.
268
REFLEXÕES SOBRE ESTADO E TÉCNICA EM JACQUES ELLUL
Vinícius Reis Barbosa1
A relação entre Estado e técnica é um dos momentos privilegiados no pensamento de
Jacques Ellul, como se pode verificar do estudo da obra “A técnica e o desafio do século”. Já
de início Ellul identifica três grandes setores de ação da técnica moderna: a técnica
econômica, a técnica do homem e a técnica da organização, sendo que a atividade do Estado
estaria englobada nesse último setor, já que Ellul afirma que tudo que está inserido no
domínio jurídico é tributário da técnica da organização. Pode-se considerar tal afirmação
como verdadeira, já que a nota característica do Estado Moderno em relação às formas
estatais que lhe antecederam é justamente o fato de ser um Estado de Direito, o que significa
dizer que as mediações entre a sociedade civil e o Estado e sua atuação prática se dão através
do direito, ou seja, do domínio jurídico. Sendo assim, o Estado Moderno – que é a base sobre
a qual se erigiu o Estado contemporâneo – tem sua atuação limitada por aquilo que é
juridicamente prescrito. O próprio surgimento do Estado Moderno é a prova cabal do
surgimento e início do triunfo da técnica moderna: trata-se do momento histórico de
racionalização do direito através da positivação, cujo maior exemplo é o Código Civil Francês
e a normatização das relações jurídicas privadas, ante circunscritas às partes envolvidas; é
também o momento da extinção definitiva do ius commune que predominou durante a Idade
Média. A partir desse momento histórico a técnica organizacional do Estado vai atingir o
início de seu ponto de maturação com o direito administrativo, surgido no fim do século XIX
e que dá as reais diretrizes de atuação do Estado até os dias de hoje, como facilmente
verificável através da observação direta da atuação estatal. Trata-se, como afirma Ellul, do
surgimento de “regras de organização e de ação administrativa muito mais técnicas”. Essas
reflexões ellulianas permitem a formulação de um diagnóstico que de fato corresponde à
realidade contemporânea: a atuação do Estado está subordinada a um emaranhado de normas
administrativas que impõem critérios técnicos para a ação e que desnaturalizam, no curso do
processo de atuação estatal, a política e o próprio direito, já que este também acaba submetido
à técnica em nome da eficiência. Ellul afirma inclusive que a técnica, ao agir diretamente
sobre as próprias estruturas do Estado, promove um falseamento da democracia, podendo-se
1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da UNESP, campus de Franca/SP. Membro do Núcleo
de Estudos de Direito Alternativo da UNESP/Franca (NEDA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
269
falar em uma tendência a uma nova aristocracia, independentemente das teorias
governamentais dominantes em um dado momento político. O diagnóstico feito a partir do
pensamento elluliano leva à necessidade de tomada de posição em relação a esse dado de
realidade, de modo a tentar reverter esse falseamento democrático, o que se dá através da
busca incessante pela realização material dos direitos fundamentais, núcleo duro do chamado
Estado Democrático de Direito.
270
CHINA: O EMERGENTE DAS OLIMPÍADAS, UMA ANÁLISE A
PARTIR DE JACQUES ELLUL.
Djalma Roberto Larocca Junior1
RESUMO
Este resumo tem como finalidade expor, de modo introdutório, o pensamento do
consagrado sociólogo e jurista francês Jacques Ellul, no que diz respeito, especificamente, à
Técnica no âmbito do esporte, dentro do contexto do que ele denomina de Sociedade Técnica,
e, a partir desse ponto utilizar as ideias do autor para analisar a evolução da China nas
olimpíadas.
Segundo Ellul, a Técnica preenche todos os domínios no qual o homem pode se
expandir: Economia, política, direito, educação, comunicação, saúde, esporte e
entretenimento.
O esporte moderno, de acordo com o autor, está condicionado à organização da
grande cidade e sua invenção não se concebe fora dela. Os seus verdadeiros caracteres
apresentam-se no momento em que as nações européias aceitam a influência da
industrialização inglesa e quando o centro industrial se desloca para os Estados Unidos (séc.
XIX).
Para o autor, o trabalho na máquina desenvolveu certo tipo de musculatura,
justamente a que é necessária à prática esportiva, além da rapidez, da precisão dos gestos e
dos reflexos, garantindo, dessa maneira, que os melhores esportistas saíssem dos meios
operários.
O esporte amador revela-se uma prática feita com prazer, alegria, sem compromissos
e cobranças, e, sobretudo, uma atividade gratuita, enquanto o esporte analisado por Ellul tem
características densas, que impõe ao indivíduo que o pratica uma disciplina rígida de
treinamentos, fazendo-o um aparelho eficaz. Sendo assim, esse homem da sociedade técnica,
submete-se à eficácia e ao princípio da busca por novos recordes, ignorando, dessa forma, os
limites de seu próprio corpo, buscando, constantemente, o aperfeiçoamento técnico.
O autor deixa claro que a mecanização dos movimentos é decorrente do controle que
os aparelhos esportivos impõem ao homem, tornando técnica a sua atividade.
1 Graduado em Administração Pública pela FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
271
Neste ponto, utilizaremos a China, para ilustrar uma possível visualização, prática, da
teoria de Ellul, no que diz respeito ao esporte moderno.
Atualmente, a China vem se consolidando como uma das maiores potências
econômicas e políticas no mundo.
Neste ponto, é interessante analisar o novo papel que a China vem assumindo: a de
grande potencia olímpica, tomando por base a sua crescente posição nos rankings de
medalhas olímpicas, crescimento este, que se deve justamente a práticas questionadas por
Ellul.
Essa posição de destaque no mundo esportivo, grande parte é devido à disciplina
rígida e a eficácia dos métodos na preparação dos atletas.
No país, desde a infância, são aplicadas rigorosas técnicas de preparação e
aperfeiçoamento do corpo, através das quais crianças são “fabricadas” por escolas esportivas
para competições olímpicas. Segundo os jornalistas Mário Simas Filho e Francisco Alves
Filho, o salto da sétima posição para o segundo lugar (1988-2008), mantendo a segunda
posição em 2012, no ranking olímpico, é resultado de um planejamento feito há 24 anos e
executado com disciplina chinesa. Em 1984, o país transformou o desafio de conquistar a
supremacia esportiva em política de Estado, e as escolas formadoras de atletas foram
incrementadas e multiplicadas e à juventude foi colocada a idéia de que se tornar campeão
olímpico é nacionalismo.
Na China existem por volta de 200 escolas esportivas, e a Escola de Esporte
Shichahai, em Pequim, é a que mais se destaca no papel de produzir atletas de ponta, por
meio de treinamentos rígidos. Desde a década de 1980, a missão de instituições como essa é a
de formar atletas para fazer da China a maior potência olímpica, sendo formados para
defenderem o país e a bandeira.
Desse modo, é interessante observar como a postura do país nos possibilita
compreender melhor o sentido desse esporte moderno, tal qual propõe a visão elluliana, cuja
principal característica é a eficácia e a quebra de limites; como também é interessante notar
que a China apresenta uma das características mais coincidentes à tecnicização do esporte: a
disciplina típica dos regimes totalitários.
Concluímos, então, que há muitos pontos que se dialogam entre a visão elluliana, no
que diz respeito ao esporte moderno, e o destaque, crescente, da China nas Olimpíadas.
Palavras-Chave: Jacques Ellul. Esporte moderno. Sociedade técnica.
272
A CIDADE E O CAMPO, NO CONTEXTO DA CIVILIZAÇÃO
TÉCNICA
Jorge Henrique de Oliveira Silva1
A brusca aceleração do progresso, a partir dos séculos XVIII e XIX, não modificou
apenas a essência das relações de produção e consumo, como também transformou os valores
humanos, subordinando-os a novos critérios e produzindo o que Jacques Ellul denominou
Civilização Técnica – uma sociedade hipnotizada pelos avanços do fenômeno que consiste na
busca pelo melhor meio, o mais eficaz, em todos os domínios do homem.
No final do século XIX, em A cidade e as Serras, o escritor português Eça de
Queirós ilustrou brilhantemente a idolatria à Técnica nos novos tempos. No romance, ele nos
apresenta Jacinto, um bem-afortunado herdeiro de fazendeiros portugueses que, nascido e
criado na França da segunda metade do século XIX, é um grande entusiasta do progresso,
especialmente durante a juventude, nos anos de 1870, momento em que viveu cercado, em sua
mansão parisiense, das mais recentes conquistas humanas à época: eletricidade, elevador,
máquinas, telégrafo, torneiras de água quente, etc. Para o jovem Jacinto, a felicidade do
homem encontrava-se intrinsecamente associada aos avanços da modernidade. Nas suas
palavras, “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”, ideia da
qual compartilham os seus amigos e companheiros “largamente preparados a acreditar que a
felicidade dos indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado desenvolvimento da
mecânica e da erudição”.
Com o passar dos anos, no entanto, o protagonista, a despeito de todo o progresso
que o cerca, vai se revelando cada vez mais insatisfeito no nível pessoal, não só pela
consciência que adquire acerca da exclusão e superficialidade das relações que a sociedade
moderna engendra, como também pelas frustrações advindas das falhas e consequências das
próprias tecnologias nas quais a personagem depositou sua felicidade. Há um episódio
simbólico desta incompletude que corresponde ao momento em que Jacinto, ao oferecer um
jantar no qual estão presentes vários membros ilustres da sociedade parisiense, se vê em
situação extremamente humilhante e embaraçosa: o jantar não poderá ser servido porque os
1 Aluno do curso de Administração Pública da FCLAr (UNESP – Campus de Araraquara).
273
equipamentos da mansão de Jacinto não funcionam como consequência de uma queda no
fornecimento de energia.
Tal sensação de incompletude e frustração ilustra uma das principais características
da Técnica a que Jacques Ellul chamou a atenção: a ambivalência. Este atributo nos revela
que todo progresso técnico tem um preço; pressupõe também efeitos negativos; imprevisíveis;
e sucessórios (no sentido de que a cada etapa, o progresso técnico levanta problemas maiores
do que os resolvidos). No caso de Jacinto, a felicidade resultante das tecnologias que
dispunha transformou-se pouco a pouco num profundo pessimismo, à medida em que ele foi
reconhecendo sua condição de escravo do progresso, incapaz de executar por si mesmo ações
simples, como oferecer um jantar a convidados.
Diante da sua frustração, o protagonista queirosiano é motivado a fazer um retiro nas
serras de sua propriedade em Tormes, Portugal, e lá, ele “brotará”, ao identificar na vida
simples e imaculada de “civilização”, a verdadeira felicidade. No campo, os costumes
tradicionais, as pessoas simples e acolhedoras, o ar puro da serra e o contato com a natureza
despertam em Jacinto a sensação de liberdade real em oposição à artificialidade do mundo
urbano.
Ora, neste ponto, Jacques Ellul é menos otimista do que Eça de Queirós: enquanto o
português apresenta o campo como alternativa ao modo de vida da cidade, retratando-o como
um refúgio intocado pelo sistema de progresso, Ellul entende que, no limite, é impossível
fugir à Técnica, uma vez que, para ele, além da ambivalência, outras de suas características
essenciais são: o universalismo, o autocrescimento e a autonomia, através das quais ela se
expande indefinidamente e sem resistências, de acordo com sua lógica própria que submete o
homem. Neste sentido, a expansão universal da Técnica e dos valores que ela impõe
configuram uma civilização que, no limite do seu avanço, é global, de modo que o ambiente
rural e seu estilo de vida, mais cedo ou mais tarde, serão submetidos.
Hoje, as consequências do fenômeno da Técnica sobre o campo têm se revelado
desastrosas e alcançam, inclusive, o mundo urbano. Isso se traduz, por exemplo, no êxodo
rural, que cria uma massa de miseráveis inadaptados ao ambiente da cidade, e que gera, ou
uma forte dependência em relação ao Estado ou um aumento dos índices de violência (na
ausência de políticas públicas capazes de atender este grupo da população).
Desta forma, embora a cidade seja o espaço da Sociedade Técnica por excelência, a
história revela que os seus avanços não poupam o campo, como na visão queirosiana, e,
consequentemente, os desafios que o fenômeno impõe atingem a todos, inevitavelmente, e
274
mais cedo ou mais tarde hão de nos atingir enquanto indivíduos, seja na forma da violência
urbana, seja pelo excesso de demanda por políticas sociais, pelos transgênicos dos quais nos
alimentamos, etc.
275
O FENÔMENO TÉCNICO NO LIMIAR DO SER E DO FAZER DA
REALIDADE HUMANA.
Robson Henrique Oliveira1
Uelton Carlos Porto2
RESUMO: O fenômeno da técnica tende a coexistir no mundo moderno juntamente
com as práticas humanas. O engajamento do homem, que antes pertencia somente aos seus
esforços e qualidades, agora se encontra refém da realidade técnica. Ellul afirma que a técnica
evoluiu de tal forma que passou a ser autônoma ao homem e aos seus ideais e finalidade,
passando a ser independente dele. Outrossim, segundo o autor, o fenômeno da técnica possui
leis próprias, que não são as da natureza nem as do homem. O pensamento de Darwin, cuja
acepção remonta aos compêndios da evolução biológica humana, demonstrou que o ser não
transcende no mundo de forma formidável quando afastado da natureza. Nessa mesma esteira
de raciocínio, Fritjof Capra, levando em consideração os caminhos seguidos, de um lado pela
cultura oriental – o misticismo e a contemplação do mundo – e de outro pela cultura ocidental
– o cientificismo e a absolutização da razão – demonstrou que, embora em caminhos opostos,
ambos encontraram na modernidade a mesma visão da matéria e da energia do mundo
(atualmente tem-se inexistente a menor partícula, pois a aceleração a elevadíssimos níveis e
distâncias demonstrou a desintegração da matéria em energia). Assim, biologicamente, o ser é
evolução e matéria, e, assim como a natureza, flui. Doravante, temos em renomados autores,
como Nietzsche e Hegel, relativamente à espiritualidade, que o ser também é transcendente no
mundo. Os valores mudam constantemente, juntamente com os ideais de uma determinada
individualidade/coletividade em um determinado contexto histórico e cultural. Nesse sentido,
a técnica encontra-se entre o ser e o fazer da realidade humana, que, se por um lado não se
pode escoimar de julgar, de realizar seus atos e suas escolhas no mundo, pelo outro também
se encontra atada ao fenômeno técnico. Assim, a realidade técnica condiciona o homem ao
fazer técnico, afastando-o da sua essência cognitiva, biológica e espiritual.
1 Bacharel em Direito pela Faculdade do Alto São Francisco de Piumhi - Faspi.
2 Mestrando no Programa de Pós-graduação/Mestrado em Direito da UNESP (Universidade Estadual Paulista) –
Câmpus Franca (SP). Especialista em Direito Público. Graduado em Direito pela UFU (Universidade Federal de
Uberlândia /MG). Atualmente Professor de Direito Penal da UEMG-FESP (Passos) dentre outras atividades. Já
atuou, também, como Professor de Direito Processual Civil, Ambiental e Previdenciário na FASPI. Autor e
coautor de obras jurídicas (capítulos de livros e artigos em revistas) e de ficção (livros).
276
Logo, a pesquisa a que se pretende empreender a partir deste resumo simples terá
como objeto o estudo da técnica como condicionante do ser humano em seu fazer técnico,
conseguindo distanciar a criatura humana de sua essência de conhecimento, de biologia e de
espírito.
Com vistas a cumprir os objetivos propostos neste estudo, empregar-se-á a pesquisa
teórica, com compilação e revisão de material bibliográfico acerca dos temas apresentados.