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A repressão chega ao rolezinho A violência no Brasil é alarmante, causa apreensão social e vitima principalmente a juventude Lilian Carmona DIREITO À DIVERSÃO -  Jovens fazem rolezinho em shoppinh do Tatuapé, bairro de classe média da capital paulista, no inicio de 2014. Crédito: APU Gomes/FolhaPress Em 7 de dezembro, cerca de 6 mil adolescentes e jovens tomaram os corredores do Shopping Metrô Itaquera, na zona leste de São Paulo, correndo nas escadas rolantes, cantando músicas e fazendo bagunça. Lojas fecharam com medo de furtos, a administração do shopping chamou a polícia e acabou fechando as portas uma hora e meia antes do horário. Assim o rolezinho, que já existia antes, debutou no noticiário, e uma das razões foi sua impressionante dimensão: 6 mil jovens reunidos é praticamente uma “rave” no shopping. Nos fins de semana seguintes, os rolezinhos continuaram a ser marcados por meio de redes sociais e voltaram a acontecer em shoppings de outras regiões da capital, e se estenderam para mais cidades. O rolezinho dividiu opiniões. Para os críticos, era uma invasão de um lugar considerado seguro por jovens “desencaminhados” cujo objetivo seria tumultuar, furtar e depredar. Para seus defensores, era a juventude excluída das áreas periféricas da cidade, buscando inclusão social, indo ao shopping para se afirmar como parte da sociedade de consumo. Para os jovens envolvidos, era simplesmente um “rolê”: um encontro para fazer amigos, conhecer ao vivo pessoas com quem se relacionam pelas mídias sociais, paquerar... A reação imediata dos administradores dos shoppings foi continuar chamando a polícia para impedir os rolezinhos, com o argumento de que havia perigo de furtos e baderna. O pior momento foi em 11 de janeiro, no mesmo Shopping Metrô Itaquera, quando a Polícia Militar chegou a usar bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os cerca de 3 mil participantes. A partir daí, os shoppings Itaquera, Campo Limpo e JK Iguatemi para os quais também estavam marcados rolezinhos conseguiram liminares na Justiça para restringir o acesso dos jovens. Para os juízes, os shoppings seriam um espaço privado e esse tipo de manifestações impediria seu bom funcionamento. As liminares aumentaram a polêmica, com acusações de discriminação. Associações e juristas apontaram que as liminares vão contra os direitos de livre manifestação, de reunião pacífica e de ir e vir, garantidos na Constituição, e que o Código de Defesa do Consumidor proíbe que um estabelecimento comercial recuse clientes. Mais para o fim de janeiro, os shoppings obtiveram novas liminares, já com outro tom: a ênfase foi na falta de segurança e estrutura dos prédios para abrigar manifestações com tantas pessoas. Ao mesmo tempo, com intermediação do Ministério Público, os organizadores dos rolezinhos e os shoppings começaram a discutir maneiras de realizar os encontros. Violência Abuso Policial ameaça jovens do rolezinho de Itaquera, durante a evacuação do shopping Crédito: Robson Ventura/FolhaPress Os rolezinhos causaram apreensão, principalmente em razão da violência social no Brasil, que é elevada, crescente e envolve os jovens. A violência é a principal causa de morte entre brasileiros na faixa etária de 15 a 24 anos e a terceira na população em geral. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), causas violentas (acidentes de trânsito, suicídios e homicídios) foram responsáveis por 29.797 das 47.080 mortes de jovens entre 15 e 24 anos em 2012 (63,3%). Pelos dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, em 2011 pouco mais de metade de todos os assassinados no Brasil eram jovens, dos quais 93% do sexo masculino e 71,4% negros. O número de assassinatos no Brasil é o maior do mundo. Em 2012, houve 50.081 mortes decorrentes de homicídio doloso (com intenção de matar), roubo seguido de morte e lesões seguidas de morte. São mais de 137 vítimas diárias. É claro que a violência não se restringe a mortes. Inclui roubos, sequestros, estupros, acidentes de trânsito e até brigas de rua. Mas a

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A repressão chega ao rolezinho

A violência no Brasil é alarmante, causa apreensão social e vitima principalmente a juventude

Lilian Carmona

DIREITO À DIVERSÃO -  Jovens fazem rolezinho em shoppinh do Tatuapé, bairro de classe média da capital paulista, no inicio de 2014. Crédito: APU Gomes/FolhaPress

Em 7 de dezembro, cerca de 6 mil adolescentes e jovens tomaram os corredores do Shopping Metrô Itaquera, na zona leste de São Paulo, correndo nas escadas rolantes, cantando músicas e fazendo bagunça. Lojas fecharam com medo de furtos, a administração do shopping chamou a polícia e acabou fechando as portas uma hora e meia antes do horário. Assim o rolezinho, que já existia antes, debutou no noticiário, e uma das razões foi sua impressionante dimensão: 6 mil jovens reunidos é praticamente uma “rave” no shopping. Nos fins de semana seguintes, os rolezinhos continuaram a ser marcados por meio de redes sociais e voltaram a acontecer em shoppings de outras regiões da capital, e se estenderam para mais cidades.

O rolezinho dividiu opiniões. Para os críticos, era uma invasão de um lugar considerado seguro por jovens “desencaminhados” cujo objetivo seria tumultuar, furtar e depredar. Para seus defensores, era a juventude excluída das áreas periféricas da cidade, buscando inclusão social, indo ao shopping para se afirmar como parte da sociedade de consumo. Para os jovens envolvidos, era simplesmente um “rolê”: um encontro para fazer amigos, conhecer ao vivo pessoas com quem se relacionam pelas mídias sociais, paquerar...

A reação imediata dos administradores dos shoppings foi continuar chamando a polícia para impedir os rolezinhos, com o argumento de que havia perigo de furtos e baderna. O pior momento foi em 11 de janeiro, no mesmo Shopping Metrô Itaquera, quando a Polícia Militar chegou a usar bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha contra os cerca de 3 mil participantes.

A partir daí, os shoppings Itaquera, Campo Limpo e JK Iguatemi – para os quais também estavam marcados rolezinhos – conseguiram liminares na Justiça para restringir o acesso dos jovens. Para os juízes, os shoppings seriam um espaço privado e esse tipo de manifestações impediria seu bom funcionamento. As liminares aumentaram a polêmica, com acusações de discriminação. Associações e juristas apontaram que as liminares vão contra os direitos de livre manifestação, de reunião pacífica e de ir e vir, garantidos na Constituição, e que o Código de Defesa do Consumidor proíbe que um estabelecimento comercial recuse clientes.

Mais para o fim de janeiro, os shoppings obtiveram novas liminares, já com outro tom: a ênfase foi na falta de segurança e estrutura dos prédios para abrigar manifestações com tantas pessoas. Ao mesmo tempo, com intermediação do Ministério Público, os organizadores dos rolezinhos e os shoppings começaram a discutir maneiras de realizar os encontros.

Violência

Abuso Policial ameaça jovens do rolezinho de Itaquera, durante a evacuação do shopping Crédito: Robson Ventura/FolhaPress

Os rolezinhos causaram apreensão, principalmente em razão da violência social no Brasil, que é elevada, crescente e envolve os jovens. A violência é a principal causa de morte entre brasileiros na faixa etária de 15 a 24 anos – e a terceira na população em geral. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), causas violentas (acidentes de trânsito, suicídios e homicídios) foram responsáveis por 29.797 das 47.080 mortes de jovens entre 15 e 24 anos em 2012 (63,3%). Pelos dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, em 2011 pouco mais de metade de todos os assassinados no Brasil eram jovens, dos quais 93% do sexo masculino e 71,4% negros.

O número de assassinatos no Brasil é o maior do mundo. Em 2012, houve 50.081 mortes decorrentes de homicídio doloso (com intenção de matar), roubo seguido de morte e lesões seguidas de morte. São mais de 137 vítimas diárias. É claro que a violência não se restringe a mortes. Inclui roubos, sequestros, estupros, acidentes de trânsito e até brigas de rua. Mas a

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quantificação dos assassinatos, o ponto máximo da violência, é o indicador mais forte da falta de segurança. A maneira mais precisa de se avaliarem esses dados é pela sua relação com o número de habitantes de um país, cidade ou região.

A taxa brasileira em 2011 é de 27,1 homicídios por grupo de 100 mil habitantes, mas a de jovens é quase o dobro disso: ela foi de 53,4, com 18.436 jovens assassinados no ano segundo o Mapa da Violência de 2013. O Mapa é um balanço anual independente, que cruza os dados de segurança do Ministério da Justiça com os da área da Saúde, e revela números de violência maiores que apenas os da Justiça.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que uma taxa acima de 10 homicídios por 100 mil habitantes já indica uma situação de violência epidêmica. Nos comparativos entre países, o Brasil aparece sempre entre os 20 piores. Com a quinta maior população mundial, sua taxa é inferior à de países que têm menos habitantes, mas passam por situações de extrema violência – como Honduras, que em 2011 registrou 7.104 assassinatos, mas teve a pior taxa do ano, 91,6 mortes por 100 mil habitantes.

Mudança de Perfil

Desde 2003, a taxa brasileira varia pouco, ficando em torno de 26 por 100 mil habitantes. Mas isso não é uma boa notícia. Primeiro, porque é um patamar muito elevado de mortes. Segundo, porque essa aparente estabilidade disfarça mudanças significativas no perfil da violência no país.

Uma delas diz respeito à distribuição geográfica: há uma interiorização dos homicídios, dos grandes conglomerados para capitais menores e destas para cidades do interior. Muitos estados que tinham taxas baixas em 2001 registraram aumentos bem superiores à média brasileira. Alagoas é o pior caso, com 72,2 homicídios por 100 mil habitantes em 2011. Pelo menos dois estados – Bahia e Paraíba – tiveram crescimento superior a 200%. O equilíbrio no indicador geral do país só ocorre porque a Região Sudeste, a mais populosa, obteve quedas significativas – em especial São Paulo e Rio de Janeiro, por causa de políticas específicas de segurança pública.

O número de vítimas juvenis mostra o mesmo ritmo, mas intensificado. Segundo o Mapa da Violência 2013, as maiores taxas de homicídios juvenis em 2011 foram de Alagoas, com 156,4 por 100 mil jovens, e Espírito Santo, com 115,6. No caso de jovens negros (soma das pessoas autodeclaradas de cor preta ou parda, usadas pelo IBGE), os números são alarmantes. Em Alagoas chega a 201,2 homicídios por 100 mil jovens negros. As taxas de homicídios de Espírito Santo, Paraíba, Distrito Federal, Pernambuco e Bahia estão todas acima dos 100 homicídios por 100 mil jovens negros.

O aumento da violência contra o conjunto da população negra é outra mudança escondida na taxa média e estável do país. Entre 2002 e 2011 o número de homicídios teve queda acentuada entre brancos e aumentou na população negra. Nesse período, a porcentagem de brancos assassinados sobre o total cai de 41% para 28,2%. A de negros sobe de 58,6% para 71,4%. Na faixa de 15 a 24 anos, o número de homicídios de brancos cai de 36,7% para 22,8%, enquanto o de jovens negros cresce de 63% para 76,9%.

Depósitos de Presos

Pedrinhas (MA) Detentos amontoados no presídio em que a violência entre gangues deixou dezenas de mortos entre 2013 e 2014 Crédito: Marlena Bergano/FolhaPress

A violência não faz parte do cotidiano da juventude só pelo lado do número de vítimas. Mais da metade de todos os presidiários do Brasil, 54,8%, tem entre 18 e 29 anos. E também aí, há a marca de desigualdades sociais e vulnerabilidade: 60,8% dos detentos são negros e 57,8% não completaram o ensino fundamental.

Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2012 a população carcerária chegou a 515.482. É o maior número da história e, em termos mundiais, o país só fica atrás de Estados Unidos (2,24 milhões), China (1,64 milhão) e Rússia (681.600).

O problema é que o total de vagas disponível no sistema penitenciário no mesmo ano era de 303.741. Em outras palavras, há 1,7 preso para cada vaga.

E o excedente de detentos só cresce, com o aumento das prisões provisórias – realizadas antes do julgamento e condenação – na última década. Em 2012, havia no Brasil 195.036 presos em situação provisória (sem julgamento), 35,6% do total. Para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que produz o Anuário da Segurança Pública, os números elevados de encarceramento resultam da política de guerra às drogas em vários estados e da morosidade judicial – há acusados que respondem a todo o processo presos, às vezes por dois anos ou mais.

Apesar de a taxa média de superlotação no país ser de 1,7 preso por vaga, ela é maior que isso em 15 estados. Essa defasagem de vagas são mais graves nas regiões mais pobres: o Nordeste e o Norte, com espantosos 3,7 presos por vaga em Alagoas, 2,6 no Amazonas, 2,5 em Pernambuco, 2,4 no Amapá , 2,3 no Rio Grande de Norte, 2,2 na Bahia (veja gráfico na pag. ao lado).

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A superlotação agrava a precariedade de boa parte das penitenciárias. Celas lotadas, em que os presos têm de se revezar para dormir, e falta de condições sanitárias contribuem para disseminar doenças, para a violência interna e o crescimento das facções criminosas. Um dos horrores recentes foram os assassinatos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, em 2013 e início de 2014.

Crise Penitenciária

A tragédia em Pedrinhas envolveu as péssimas condições de aprisionamento (a média no estado é de 1,9 preso por vaga) e a perda de controle das autoridades sobre o local. A crise foi gerada por uma guerra entre as facções Primeiro Comando do Maranhão (PCM), do interior do Estado, e Bonde dos 40, de São Luís. A crise chocou o mundo com vídeos de decapitações e corpos esquartejados. No início de março deste ano, a contagem de mortos chegava a 66. Para o conflito, o governo estadual enviou tropas da Polícia Militar e reforços da Força Nacional de Segurança Pública. Os líderes das facções reagiram, ordenando ataques a ônibus e delegacias em São Luís. Uma criança morreu queimada no incêndio de um ônibus. No início de 2014, 17 dos líderes foram transferidos para presídios federais em outros Estados, num acerto entre o governo maranhense e a União.

A Força Nacional de Segurança Pública, criada em 2004, é formada por integrantes da Polícia Federal e das polícias militares (PMs) de vários Estados. Ela também foi usada no Rio de Janeiro, para ajudar no programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e em Santa Catarina, que no começo de 2013 sofria uma onda de ataques a ônibus e delegacias. Mas essa ajuda federal com tropas é só para momentos de crise. O efetivo combate à criminalidade exige políticas de médio e longo prazo, adequadas a cada Estado.

Programa das UPPs

Pelourinho? Jovem negro é acorrentado nu a um poste no Rio de Janeiro: a violência é maior entre a população negra Crédito: Yvone Bezerra de Mello

Considerada uma das mais bem-sucedidas iniciativas na área, as UPPs começaram a ser implantadas no Rio em 2008, mas pode-se dizer que estão em xeque com acontecimentos recentes de violência. O ponto de partida é uma ação conjunta entre Polícia Militar, Marinha e Exército para retirar das favelas líderes do tráfico de drogas e armas. Depois, o Estado instala a UPP – uma base de policiamento fixa, que segue o conceito de polícia comunitária e conta com a ajuda da população. Essa política inclui levar para a comunidade serviços públicos, como coleta de lixo e postos de saúde.

O governo do Rio instalou 37 UPPs até fevereiro de 2014, com 9.293 policiais, abrangendo 257 comunidades. O projeto melhorou a qualidade de vida dos moradores e ajudou na redução dos homicídios no estado: 34% menos entre 2007 e 2012.

Mas em 2013 o programa das UPPs sofreu reveses, com abusos e mesmo crimes cometidos por policiais, e também a volta de tiroteios. O desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, morador da favela da Rocinha, virou uma das bandeiras dos protestos do meio do ano no Rio.

Amarildo sumiu em 14 de julho, após ser levado para averiguação por policiais militares. O inquérito concluiu que Amarildo foi levado para a UPP da Rocinha e torturado até a morte. Seu corpo nunca foi encontrado. Depois disso, relatos de comportamentos abusivos de policiais continuaram a aparecer. Desde novembro, os tiroteios se tornaram frequentes na Rocinha e no conjunto de favelas do Alemão, e várias sedes de UPPs sofreram ataques. Em fevereiro deste ano, uma policial da UPP do complexo do Alemão foi morta a tiros em um desses ataques.

O desgaste das corporações se liga a fatos e números. Ações violentas, como a desocupação do Pinheirinho em São José dos Campos (SP), em 2012, a repressão às manifestações em todo o país em junho de 2013, e mesmo o uso de gás lacrimogêneo para dispersar o rolezinho do Shopping Itaquera reforçam a imagem de truculência da polícia. A isso se somam situações nebulosas ou claramente ilegais, como o caso Amarildo, e chacinas praticadas por policiais. Também existe uma percepção de ineficiência do trabalho policial, alimentada pela baixa resolução de crimes. Pesquisas indicam que o índice de elucidação dos crimes de homicídio no Brasil varia entre 5% e 8%. Esse percentual é de 65% nos EUA e de 90% no Reino Unido.

Polícia Civil versus Militar

Foram os governos da Ditadura Militar (1964-1985) que adotaram uma política de separação de funções das polícias. As polícias militares passaram a fazer todo o policiamento das ruas, enquanto o trabalho da polícia civil foi restrito à investigação e apuração de crimes. Essa separação é considerada por muitos como uma das principais causas da violência policial. A Constituição de 1988 manteve essa separação.

Esse formato militarizado de policiamento é apontado como a principal causa da violência policial no Brasil, embora dimensionar essa violência não seja uma tarefa simples. O Anuário de Segurança Pública aponta a falta de critérios para determinar se a força empregada em determinada situação foi apropriada e de estatísticas confiáveis sobre as mortes provocadas por policiais em serviço. Esse tipo de ocorrência costuma ser registrada como “resistência seguida de morte” ou “auto de resistência”, ou seja, pressupõe previamente que o policial sempre atirou para se defender. Para diminuir ao menos essa distorção, em dezembro de 2012 a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal publicou uma resolução para

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que esses dois termos sejam substituídos por “homicídio decorrente de intervenção policial”, uma recomendação imposta à Polícia Federal, mas que já foi aceita também por algumas polícias estaduais.

Segundo o anuário, em 2012, 1.890 pessoas foram mortas em confronto com policiais militares ou civis. Isso significa que pelo menos cinco pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias. Para efeito de comparação, nos EUA esse número foi de 410 no mesmo ano.

Atualmente, tramitam no Congresso três Propostas de Emenda à Constituição (PECs) para alterar o modelo das polícias. A PEC 102 e a PEC 430 preveem a desmilitarização das PMs, e sua unificação com uma polícia civil.

A PEC 51 propõe que cada estado tenha autonomia para decidir. Os defensores da mudança argumentam que é preciso unificar as polícias sob uma única hierarquia civil, com o julgamento dos policiais por civis.

Matéria publicada em março/2014.

Violência

Brasil

O Brasil é o país com o maior número de assassinatos no mundo, mais de 52 mil em 2011. A taxa se mantém estável, mas num patamar muito elevado. O homicídio é a principal causa de mortes entre os jovens dos 15 aos 24 anos. Causas violentas (acidentes de trânsito, suicídios e homicídios) são o terceiro maior fator na população em geral.

Diferenças Regionais

Nas últimas décadas, a taxa de homicídios caiu fortemente na Região Sudeste, a mais populosa do país, pela adoção de políticas de segurança. Mas a taxa nacional continua em torno de 27 mortos por 100 mil habitantes porque todas as demais regiões registraram altas acentuadas.

Cor

Entre 2002 e 2011 cresceu muito a diferença entre assassinatos de brancos e negros (soma das categorias Preta e Parda usadas pelo IBGE). A porcentagem de brancos assassinados sobre o total caiu de 41% para 28,2%. E a de negros subiu de 58,6% para 71,4%. Na faixa de 15 a 24 anos, o número de homicídios de jovens negros chega a 76,9%.

Sistema Penitenciário

Em 2012 o país tinha 515 mil presos para apenas 303 mil vagas em penitenciárias. Os detentos estão amontoados nas penitenciárias superlotadas, ou em cadeias públicas e delegacias, onde só deveriam ficar temporariamente. Pouco mais de 35% do total têm apenas prisão provisória decretada, sem julgamento ou condenação.

UPP

Programa adotado em 2008 no Rio de Janeiro, instala bases fixas de policiamento e oferta serviços públicos nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas e armas. Em fevereiro de 2014, havia 37 UPPs, com 9.293 policiais. Mas seu êxito sofreu um abalo com o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, após ser levado para averiguação por PMs da UPP da Rocinha – o inquérito concluiu que ele foi torturado e morto. No fim do ano, tiroteios voltaram a ser frequentes na Rocinha e no complexo do Alemão.

Saiu na Imprensa

A cada três homicídios no Brasil, dois são contra negros, diz Ipea

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a cada três homicídios, dois são contra pessoas negras (...).

Segundo o levantamento, que considerou a população dos 226 municípios com mais de 100 mil habitantes, a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior em comparação com os brancos. A probabilidade de o negro ser vítima de homicídio é oito pontos percentuais maior, mesmo quando se comparam indivíduos com escolaridade e características socioeconômicas semelhantes.

O estudo ainda aponta que os negros são mais agredidos por policiais do que os brancos. Segundo a Pesquisa Nacional de Vitimização, 6,5% dos negros que sofreram uma agressão em 2009 tiveram como agressores policiais ou seguranças privados. O índice de pessoas brancas agredidas foi de 3,7%.

Correio Braziliense, 17/10/2013

A violência contra a Mulher - Estupros no Brasil (2012)

Os números da violência contra a mulher no Brasil superam o do total de homicídios. Em 2012 foram registrados 51.101 estupros, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013. A violência contra a mulher é recorrente e cotidiana. Também há mais dificuldade em quantificá-la, pois nem sempre a vítima apresenta queixa, seja por vergonha, seja porque seu agressor é membro da família ou amigo dos familiares.

O Mapa da Violência 2013, que contabiliza os registros de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e não apenas os dados de segurança pública, registra que em 2011 foram atendidas 70.270 mulheres vítimas de alguma violência física. A

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maioria tinha entre 15 e 37 anos. Do total de agressões, 71,8% ocorreram no local de residência da mulher. O agressor foi o parceiro ou ex-parceiro em 43,4% dos casos, e os pais em 19,8% dos casos.

A Lei Maria da Penha, que impõe punições rigorosas para a violência contra as mulheres no âmbito doméstico, entrou em vigor em setembro de 2006, e em 2007 o número de homicídios de mulheres caiu 7,6%. Mas desde 2008 esse número voltou a subir e permanece elevado

O Mais Médicos e a saúde brasileira

O Programa Mais Médicos, do governo federal, duramente criticado por alguns setores sociais, é apenas uma das medidas necessárias para sanar os problemas da saúde pública brasileira

HOSTILIDADE - O médico Cubano Juan Delgado e mais 78 colegas são vaiados no Ceará: profissionais Brasileiros protestam contra o Mais Médicos. Crédito: Jarbas Oliveira/ Estadão Conteúdo

O Programa Mais Médicos é a mais recente medida adotada pelo governo federal para enfrentar os problemas de saúde pública no Brasil. Gerido pelos ministérios da Saúde e da Educação, o programa foi implantado em julho de 2013 com o objetivo de melhorar o atendimento em saúde básica na periferia das grandes cidades e nos municípios mais isolados do país. As providências englobam a contratação de médicos brasileiros e estrangeiros, investimentos da ordem de 15 bilhões de reais nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e mudanças nos cursos de graduação de Medicina.

As propostas criaram grande polêmica. Para os críticos, por melhores que sejam as intenções anunciadas pelo governo federal, o Mais Médicos dribla normas trabalhistas e não resolve o precário estado da saúde pública no país. O ponto mais forte da crítica está na contratação de médicos estrangeiros.

Mais Médicos

O Mais Médicos prioriza a contratação de médicos brasileiros, mas traz ao Brasil milhares de profissionais do exterior para ocupar as vagas que os brasileiros não ocupam. A maior parte deles é de cubanos, vindos por meio de convênio firmado entre o governo federal e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Os estrangeiros vêm ao Brasil em intercâmbio, com bolsa de 10 mil reais (o mesmo valor recebido pelos brasileiros). Recebem treinamento para se familiarizar com a língua portuguesa, com o Sistema Único de Saúde (SUS) nacional e com os protocolos adotados na atenção básica. São dispensados da revalidação do diploma (Revalida, o exame feito para revalidar diplomas de medicina obtidos no exterior), passam por avaliações periódicas e têm registro temporário, por três anos, para desenvolver atividades apenas no programa.

A maioria dos profissionais vindos para o Mais Médicos é de Cuba: do total de 9.500 médicos inscritos no programa, 7.400 são cubanos, e pouco menos de mil, brasileiros. Diferentemente do que ocorre com profissionais vindos de outros países, os cubanos não são autorizados a trazer a família e recebem menos que o valor integral da bolsa. O restante é entregue diretamente ao governo de Cuba, conforme previsto no convênio firmado entre os dois países e a Opas. Os termos desse convênio estão sob questionamento do Ministério Público Federal.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), entidade representativa dos médicos brasileiros, critica a contratação de estrangeiros. Para o conselho, profissionais vindos do exterior enfrentam dificuldades não só com a língua como também com o diagnóstico das doenças mais comuns em nosso país. O CFM questiona, também, a qualificação desses profissionais e considera errada a dispensa do Revalida. Por fim, segundo a entidade, o número de médicos formados no Brasil não é o maior problema da saúde. Para suprir o SUS de profissionais, o conselho considera imprescindíveis investimentos na infraestrutura das unidades de saúde, bem como a criação de uma carreira nacional de médico no serviço público.

Estudo ou Trabalho

Na área de educação, o programa prevê a abertura de 11,5 mil vagas de graduação em Medicina até 2017, e outras 12 mil em cursos de especialização – é a residência médica, período de até quatro anos em que o estudante se prepara para se tornar um especialista, com atividades práticas. Entre as mudanças anunciadas, está a obrigatoriedade de que escolas ofereçam ao menos três programas de residência médica em especialidades prioritárias na saúde pública, como ginecologia e obstetrícia, pediatria e medicina de família e comunidade. Além disso, a partir de 2015, o graduando terá de cumprir dois anos de estágio em unidades do SUS. Para entidades de classe e alguns juristas, essa exigência pode ser interpretada como exploração de mão de obra barata.

A remuneração dos médicos também está sob questionamento. Como recebem uma bolsa, e não salário, os contratados não têm os direitos trabalhistas definidos na legislação brasileira, como o 13º salário e o adicional de férias. O Ministério Público do Trabalho considera a relação dos médicos do programa com o Ministério da Saúde uma relação normal de trabalho. Assim, todos – incluindo os cubanos – deveriam ter o conjunto de direitos e garantias trabalhistas respeitado. No início de 2014, 89 médicos abandonaram o programa, a maioria deles, brasileiros.

Saúde Pública

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A virtude do Programa Mais Médicos é que incide em um problema real da população brasileira: a insuficiência do atendimento em saúde. Criado pela Constituição de 1988, o SUS tem o objetivo de garantir acesso universal, igualitário e gratuito à saúde pública no Brasil. Por suas regras, o Ministério da Saúde formula as políticas públicas e repassa a administração e a execução dos serviços a estados e municípios. Além disso, inclui instituições públicas e privadas, às quais repassa verbas. O SUS é o maior sistema de saúde pública do mundo, elogiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, de fato, não dá conta das necessidades da saúde pública brasileira, e parte da população sofre com um atendimento muito precário.

Segundo o CFM, o país conta com 19,4 médicos a cada grupo de 10 mil habitantes. Estatisticamente, deveria estar razoável, pois, para a OMS, o mínimo aceitável são 17,6 médicos a cada 10 mil pessoas. Mas a taxa brasileira é bem menor do que a registrada nas nações europeias. Na França, há 33 médicos a cada 10 mil pessoas; na Suíça, 40; e na Áustria, 48. A falta de especialistas é maior nas unidades do SUS. Segundo o Ministério da Saúde, quase 80% dos hospitais do SUS enfrentam dificuldades para contratar pediatras, e mais da metade deles não conta com neurologistas.

Quando chegamos à distribuição dos médicos pelas regiões brasileiras, fica mais evidente a concentração de riqueza no país. Enquanto no Sudeste um médico tem, potencialmente, 365 pacientes, no Norte um profissional tem mais de 900 pessoas que, em tese, dependem dele para atendimento (veja o gráfico na pág. 111).

O cenário piora na questão da disponibilidade de leitos, ainda mais que o número vem caindo, ano a ano. Segundo dados oficiais de 2013, o Brasil conta com 452 mil leitos hospitalares, somando instituições públicas e privadas. São mil a menos do que em 2009. Com a população crescendo e o número de leitos hospitalares caindo, o número de leitos por habitante despenca. A média do país, segundo o IBGE, caiu de 3 leitos a cada mil habitantes em 1999 para 2,3 leitos em 2009 – uma redução de quase 25% em dez anos. A OMS recomenda que a taxa fique entre 3 e 5 leitos a cada mil habitantes. O número de leitos em hospitais públicos ou nos privados conveniados ao SUS também está em queda: 321,4 mil em 2013, contra 338,5 mil em 2009.

Diferenças Regionais

Espera Longa Hospital em Salvador (BA): atendimento público sofre com falta de recursos e estrutura Crédito: Raul Spinassê/Agência Tarde/AE

A saúde brasileira teve importantes avanços nos últimos anos, principalmente em medidas de combate e prevenção a algumas doenças. A taxa de mortalidade por aids no país caiu de 7,6 para 6,4 óbitos a cada 100 mil pessoas entre 1997 e 2010. E o número de casos de infecção pelo HIV variou pouco, de 17,1 para 17,9 a cada 100 mil habitantes no mesmo período. Os especialistas atribuem esse desempenho à bem-sucedida campanha de prevenção, que alia informação a distribuição ampla de preservativos e, aos infectados, de medicamentos. No entanto, as discrepâncias regionais ainda são gritantes: a redução na incidência da doença ocorreu apenas na Região Sudeste, a mais desenvolvida e populosa. Nas demais, cresceu (veja na pág. 25).

Uma melhora fundamental foi a queda na mortalidade infantil. Caiu o número de crianças que morrem com menos de 5 anos de idade. Entre 1990 e 2010, a mortalidade média no país despencou vertiginosamente de 53,7 para 18,6 a cada mil nascidos vivos. Esse valor chega perto de um dos Objetivos do Milênio da ONU assumidos pelo Brasil: 17,9 mortos por mil nascidos vivos, até 2015. Aqui também há diferenças regionais. Enquanto no Sudeste a taxa em 2010 já estava em 15,5, no Nordeste morriam 22,1 crianças a cada mil nascidas vivas, e no Norte, 25.

A taxa de mortalidade de crianças com menos de um ano também desabou nesse período, de 47,1 para 16,7 a cada mil nascidos vivos. As diferenças regionais se mantêm: 12,6 bebês a cada mil nascidos vivos no Sudeste, contra 21 e 23 no Norte no Nordeste, respectivamente. A queda na mortalidade de crianças está associada a uma melhoria geral nas condições de vida no Brasil: melhoria na educação e na atenção às mães, bem-sucedidas campanhas de vacinação, e, principalmente, um avanço significativo no saneamento básico, ou seja, na qualidade da água consumida pelos brasileiros.

Doenças do Brasil

O saneamento é condição fundamental para a saúde pública. Sem acesso a água de qualidade e sem tratamento de esgoto, a população fica vulnerável à contaminação por microrganismos causadores de doenças infecciosas. A situação melhorou, mas ainda é preciso avançar bastante. Segundo o IBGE, mais de 99% dos municípios brasileiros contam com rede geral de água. Há regiões, porém, em que mais de 20% dos municípios distribuem água sem tratamento. O alcance da coleta de esgoto é menor: só 55% das cidades têm rede coletora, e em só 27% delas o esgoto é tratado.

Apesar das deficiências, a incidência de doenças infecciosas cai no país, seguindo uma tendência mundial. Hoje, elas são responsáveis por menos de 5% do total de mortes. Em meados do século XX, respondiam por metade delas. Por outro lado, cresce a taxa de morte por doenças não transmissíveis, como problemas cardiovasculares e câncer (à medida que a população fica mais velha). Segundo a OMS, esse tipo de doença é responsável por 74% do total de mortes registradas no Brasil em 2010. As que têm maior impacto sobre o SUS são as doenças crônicas não transmissíveis (como diabetes), que demandam grande número de leitos e respondem por 75% dos gastos do sistema público.

Perversidade Econômica

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Desde a década de 2000, o governo federal incentiva a produção nacional de genéricos de largo uso e distribui alguns medicamentos essenciais de graça. No entanto, mesmo essas medidas são insuficientes. Dados do IBGE mostram que as famílias pagam mais da metade do que se gasta com serviços e bens de saúde; o poder público responde por apenas 44%. Essa porcentagem está abaixo da registrada nos países mais ricos, em que os serviços públicos cobrem 70% dos gastos.

Segundo o Ministério da Saúde, uma família brasileira gastava em 2009 mais de 7,5% do orçamento com a compra de serviços e bens de saúde, como medicamentos, exames, internações e consultas médicas e odontológicas. As famílias mais pobres, que constituem a grande clientela do SUS, gastam menos com remédios, consultas dentárias e cirurgias, por exemplo. Mas destinam uma fatia maior do orçamento familiar com exames e consultas médicas. Os 40% de famílias com menor renda despendem mais de 4% da renda mensal com consultas e outros 5% com exames. Em comparação, os 10% de famílias com maior renda gastam 3% e 1,5% do orçamento nesses itens, respectivamente.

Essa diferença mostra, de um lado, as deficiências na cobertura do SUS: as precárias condições de atendimento, seja por falta de médicos ou de equipamentos, força os mais pobres a recorrer a serviços privados. Por outro lado, uma parcela crescente da população adere a convênios de saúde privados. De fato, as famílias de maior renda gastam recursos com planos ou seguros de saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar, mais de 68 milhões de brasileiros – quase um terço da população – paga algum convênio médico.

Matéria publicada em março/2014.

Saúde

Mais Médicos

Engloba a contratação de médicos brasileiros e estrangeiros para localidades isoladas e a periferia das grandes cidades, investimentos na infraestrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), abertura de novos cursos de medicina e mudanças nas diretrizes curriculares da graduação. O programa conta no início de 2014 com 9.500 médicos, a maioria vinda de Cuba. O programa é alvo de críticas de entidades de médicos e do Ministério Público do Trabalho, que questionam a qualificação dos estrangeiros, as alterações nos cursos e os termos das contratações.

SUS e infraestrutura

Além da carência de especialistas (como pediatras), o SUS sofre com a precariedade de equipamentos e instalações. O número de leitos disponíveis caiu de 453,7 mil em 2007 para 448,9 mil em 2013. Em 1999, o Brasil tinha 3 leitos para cada mil habitantes. Em 2009, caiu para 2,3 leitos. Para a Organização Mundial da Saúde, o mínimo aceitável fica entre 3 e 5 leitos a cada mil habitantes. As doenças crônicas não transmissíveis, que requerem o maior número de leitos, são responsáveis por 75% dos gastos do SUS.

Avanços

A incidência de aids se mantém estável entre 1997 e 2010, e a taxa de mortalidade da doença caiu nesse período. Cai também a incidência de doenças infecciosas no Brasil, devido, principalmente, à melhoria no saneamento básico. Entre crianças de menos de 5 anos, a taxa de mortalidade despencou de 53,7 para 18,6 a cada mil nascidos vivos em duas décadas. Entre os bebês com menos de 1 ano, a queda foi maior ainda: de 47,1 para 16,7 mortes a cada mil nascidos vivos, de 1990 a 2010.

Disparidades

Regiões mais pobres, como Norte e Nordeste, têm proporcionalmente menos médicos, piores condições de saneamento e taxas mais altas de mortalidade infantil. As famílias mais pobres, que não têm planos de saúde, destinam fatia maior do orçamento para consultas e exames médicos.

Saiu na Imprensa

Governo cancela registro de cubana que deixou o Mais Médicos

O governo publicou no Diário Oficial da União o cancelamento do registro da médica cubana Ramona Matos Rodriguez, que deixou o Programa Mais Médicos. Com o cancelamento, ela não vai poder exercer a medicina no país, a não ser que revalide o diploma.

Ramona se mudou para o Brasil em outubro e começou a trabalhar na cidade de Pacajá (PA) no início de novembro. Ela deixou a cidade em 1º de fevereiro e foi para Brasília. A médica alega que deixou o programa após descobrir que outros estrangeiros recebiam bolsa de R$ 10 mil, enquanto os cubanos, segundo ela, recebem US$ 400 (cerca de R$ 965). A cubana pretende ficar no país e pediu refúgio ao governo brasileiro.

O ministro da Saúde, Arthur Chioro, informou que 24 cubanos já deixaram o Programa Mais Médicos e que outros três não apareceram para trabalhar e ainda não foram localizados pelo governo (...) Em entrevista, o ministro considerou que o número é “insignificante”, frente ao universo de 9.549 médicos participantes do programa no país, dos quais cerca de 7.400 vindos de Cuba. (...)

12/2/2014, site G1

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Desafios e riscos da rede mundial de computadores

ONIPRESENTE - Usuária do Facebook na Alemanha: as redes socias ganharam popularidade e a adesão de milões de pessoas Crédito: Michael Dalder/Reuters

Em nome da segurança, o Estado se torna onipresente e passa a vigiar a todos. Nada acontece sem que se saiba, ninguém consegue escapar da vigilância constante. Para obter mais poder, a estratégia das autoridades é fazer guerras e usar a paz como propaganda. O cenário descrito é o tema do livro 1984, de George Orwell, publicado em 1949. Mas, desde que a imprensa internacional denunciou o governo dos Estados Unidos (EUA) pela coleta indiscriminada de dados telefônicos e das atividades individuais em sites populares e serviços da internet, a linha entre a realidade e a ficção tornou-se mais tênue. Na vida real, uma lei aprovada em 2001, a Lei Patriótica (Patriot Act), abriu uma brecha para que o governo norte-americano pudesse espionar não só o que acontece no seu território mas também no resto do mundo.

A descoberta acirrou uma discussão sobre privacidade, neutralidade e segurança na rede mundial de computadores que já vinha ganhando terreno em vários países. Mas, ainda que existam questões a serem debatidas, não há dúvida de que a internet se firmou como ferramenta fundamental de comunicação para organizações, governos e pessoas. Desde sua abertura comercial, em 1988, até hoje, a internet provocou uma verdadeira revolução: exerceu enorme impacto sobre como lidamos com informações, ampliou os recursos educativos, transformou a economia e os modos de produção, além de ter trazido uma nova dimensão à vida social, modificando-a.

A Organização das Nações Unidas (ONU), percebendo o enorme poder e potencial presente na rede, declarou, em maio de 2011, o acesso à internet como direito fundamental do ser humano, por promover a liberdade de expressão e o acesso de direitos civis como a cultura e a educação. Mas há outro lado: a conexão mundial em rede abre caminho para novas formas de guerra comercial, espionagem e monitoramento de adversários políticos e violação de privacidade.

Espionagem pós-moderna

Documentos secretos revelados pelo jornal norte-americano The Washington Post e pelo britânico The Guardian, em junho de 2013, mostraram que o governo dos Estados Unidos espiona na rede a vida dos cidadãos comuns desde 2007. Por meio de um programa secreto chamado Prism, ele monitora sistematicamente os computadores servidores de nove companhias gigantes da tecnologia: Microsoft (Hotmail), Yahoo!, Google (Gmail), Facebook, Skype, YouTube, America Online (AOL), Apple e PalTalk. A justificativa é a segurança nacional dos Estados Unidos.

O governo alega que o esquema é necessário para rastrear indivíduos suspeitos de terrorismo e evitar ataques. De acordo com os documentos, o Prism permite que dois órgãos do governo, a Agência Nacional de Segurança (NSA) e a Polícia Federal (FBI) tenham acesso a e-mails, conversas em chats, tráfego de voz, arquivos baixados, comentários, fotos e vídeos em redes sociais, entre outros dados, de todas as pessoas que usam algum dos produtos dessas companhias. Segundo o The Washington Post, 98% dos conteúdos do Prism são extraídos do Yahoo, do Google (Gmail) e da Microsoft (Hotmail).

Um dos pontos mais preocupantes em relação ao esquema de espionagem on-line é que ninguém saberia da existência do Prism não fosse por um cidadão: o norte-americano Edward Snowden, 30 anos, um ex-técnico da Agência Central de Inteligência (CIA) e colaborador terceirizado da NSA. Responsável pelo vazamento dos documentos secretos para a imprensa internacional, tornando-os públicos, afirmou que esperava que a ação levasse os governos a uma maior transparência. Ele está sendo acusado de espionagem e roubo de propriedades do governo.

Quando sua identidade foi revelada, em junho de 2013, ele estava em Hong Kong, território chinês no Extremo Oriente. Nas semanas seguintes, tornou-se um apátrida fugitivo em busca de um lugar seguro. Em setembro de 2013, conseguiu um asilo temporário na Rússia, porém, sua situação é ainda precária diante das ameaças do governo norte-americano. Chegou-se a falar que pode pedir asilo ao governo brasileiro.

Ao vazar os documentos secretos para a imprensa, Edward Snowden colocou-se em sério risco. Promotores norte-americanos acusaram-o de "roubo", "comunicação não autorizada de informação de defesa nacional" e "comunicação voluntária de informação sigilosa de inteligência para pessoa não autorizada" - que podem levá-lo a uma pena de prisão de até 30 anos. Caso ele seja preso em algum lugar do mundo e repatriado para os EUA, ainda corre o risco de ser acusado de crimes mais graves, como o de ™traição∫ e o de ™entrega de informação de defesa para governo estrangeiro∫: ambos são passíveis de pena de morte.

Democracia e privacidade

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Sob Vigilância Dilma com manifestantes a favor do asilo no Brasil a Snowden, protestando contra a espoonagem que sofreu dos Eua Crédito: Paulo Whitaker/Reuters

A privacidade é um direito civil fundamental para qualquer pessoa. É um pressuposto para a liberdade de expressão, para a liberdade de reunião e para a liberdade de organização política. É preciso estar livre do monitoramento do Estado para falar com liberdade, se reunir com liberdade e se organizar politicamente com liberdade. É por esse motivo que as primeiras leis de direitos civis criadas na Inglaterra no século XVII para limitar os poderes do governo absolutista proibiram o Estado de interceptar correspondência e invadir domicílios. É nessa longa tradição de proteção aos fundamentos das liberdades que as revelações de Snowden se inserem.

Não é por acaso que, para justificar suas atitudes, Snowden recorreu aos princípios do tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes do nazismo em 1945, logo após a 2„ Guerra Mundial. Um desses princípios estabelece que indivíduos têm o dever de violar as leis de um país quando se trata de prevenir crimes contra a humanidade.

O governo dos Estados Unidos tenta justificar a caça a Snowden e a legalidade da espionagem através da Lei Patriótica (USA Patriotic Act), aprovada em 2001, depois dos ataques terroristas de 11 de setembro às Torres Gêmeas, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington. Com objetivo oficial de ™unir e fortalecer a América, fornecendo instrumentos apropriados requeridos para interceptar e obstruir o terrorismo∫, a lei permite que o governo tenha acesso à comunicação eletrônica dos seus cidadãos. Ocorre que o esquema permite vasculhar a vida e violar direitos de pessoas nos Estados Unidos e em todo o mundo. Isso porque a maioria dos serviços de redes sociais e de correios eletrônicos norte-americanos usados mundialmente tem seus servidores no território norte-americano (veja o infográfico acima) e estão submetidos às leis nacionais. Portanto, qualquer um que tenha um perfil no Facebook, em qualquer país, pode ter seus dados vasculhados pelo governo dos EUA.

Snowden também revelou que uma das maiores empresas de telecomunicações dos Estados Unidos, a Verizon, tem entregado à NSA dados telefônicos, como os números discados e a duração das chamadas, de dezenas de milhares de norte-americanos. A justificativa é a mesma: proteger o país contra ataques terroristas. O presidente Barack Obama admitiu o monitoramento, dizendo: ™Você não pode ter cem por cento de segurança, cem por cento de privacidade e zero de inconveniência∫.

Várias empresas de tecnologia se defenderam dizendo que foram forçadas a entregar as informações à NSA. Algumas se juntaram à coalizão Digital Due Process, encabeçada pelo Centro para a Democracia e Tecnologia (CDT), para instituir a exigência de um mandato para obtenção de e-mails e conteúdo da internet, até então desnecessária. Até mesmo um órgão de estado dos EUA, o autônomo Conselho de Supervisão de Liberdades Civis e Privacidade, divulgou relatório no qual considera ilegal o monitoramento em massa de ligações de norte-americanos: o documento levanta indícios de violação à Constituição e aos direitos civis e recomenda o término imediato da coleta diária e do armazenamento dos dados telefônicos. O conselho afirma que, após revisar 12 casos, não encontrou evidências de que o programa Prism tenha abortado ameaças terroristas ou contribuído de forma eficiente para a conclusão de investigações na última década.

Crise diplomática

Sob Vigilância A alemã Angrla Merkel protesta contra a espionagem que sofreu dos Eua Crédito: fabrizo Bensch/Reuters

As revelações de Snowden deixaram governos indignados em diversos países. Na Alemanha, que teve a primeira-ministra Angela Merkel espionada, a ministra da Justiça, Sabine Leutheusser-Schnarrenberger, disse que ™quanto mais uma sociedade monitora, controla e observa seus cidadãos, menos livre ela é∫. Os documentos revelam também que milhões de chamadas telefônicas e e-mails de brasileiros foram monitorados pelo programa de vigilância norte-americano. A denúncia causou um sério mal-estar entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, pois a violação fere os princípios de não intervenção e respeito à soberania nacional brasileira.

Em seguida, estourou uma grave crise diplomática, quando se revelou que a espionagem norte-americana teve como alvo as comunicações privadas da própria presidente Dilma Rousseff, além do Ministério da Cultura. Em resposta, o governo brasileiro cancelou a viagem que a presidente faria a Barack Obama em outubro de 2013. Seria uma visita de Estado, o mais importante contato diplomático entre duas nações, quando um país recebe seus parceiros estratégicos para assinar acordos políticos e econômicos. A ida de Dilma era a única visita de Estado prevista nos EUA em 2013, e a primeira de um brasileiro desde a realizada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995.

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A relação entre os dois governos ainda piorou quando se soube que as comunicações da Petrobras e do Ministério das Minas e Energia também tinham sido vasculhadas, o que configura uma espionagem econômica. As informações foram interceptadas no período anterior ao leilão do Campo de Libra, no pré-sal, levantando a suspeita de que as informações coletadas visavam a beneficiar empresas norte-americanas na disputa acirrada e de interesse mundial pelas reservas de petróleo do Brasil.

Como parte de sua resposta diplomática, a presidente Dilma, em seu discurso na Assembleia Geral anual da ONU, defendeu que a organização passasse a ™desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias∫, e o governo brasileiro cobrou do governo norte-americano explicações sobre as denúncias, por escrito e formais, além de um pedido de desculpas e o compromisso de que os fatos não se repetirão. O governo dos EUA deu explicações vagas, mas não atendeu aos pedidos.

PERSEGUIDO - Julian Assange, na embaixada do Equador em Londres: com seu site, WikiLeaks, divulgou documentos secretos do governo dos EUA Crédito: Carl Court/AFP

Matéria publicada em março/2014

Internet

Rede Mundial

No final dos anos 1980, surge a internet com fins comerciais: a rede mundial de computadores envolve hoje 1/3 da humanidade, cerca de 2,4 bilhões de pessoas. Presente no cotidiano das pessoas e na economia, a web está profundamente entranhada na sociedade contemporânea.

Espionagem on-line

Agências de segurança do governo dos Estados Unidos mantêm, desde 2007, um programa de vigilância e espionagem de comunicações, incluindo a internet. O governo dos EUA se ampara numa lei de exceção contra o terrorismo, aprovada em 2001. A revelação da espionagem foi feita por Edward Snowden, ex-técnico da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA).

Marco Regulatório

Faltam leis que tratem exclusivamente da internet. No Brasil, o principal projeto nesse sentido é o Marco Civil da Internet, em debate no Congresso Nacional.

Globalização

A internet causou profundas mudanças no mundo dos negócios e do trabalho. Aumentou a quantidade de transações comerciais e permitiu às multinacionais transferirem o processo produtivo para países nos quais o custo de produção é menor.

Política

Manifestações em países como Irã, Tunísia, Egito, EUA, Espanha e Brasil mostraram o poder da internet na formação de grupos sociais e suas possibilidades para a ação política.

Redes Sociais

Tornaram-se um fenômeno mundial os portais como Facebook, que permitem ao usuário criar um perfil público e montar uma lista articulada de relacionamentos. Os principais já reúnem mais de 1 bilhão de usuários.

Desigualdade

A maior parte das populações com pouco acesso à internet se situa na África e na Ásia. Cerca de 88 milhões de brasileiros acessavam a rede em junho de 2012.

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A voz das ruas e a reforma política

Manifestações mostram um fosso entre os anseios da população brasileira e as instituições de Estado, sobretudo o Congresso Nacional, deputados e senadores

SOB PRESSÃO - Manifestantes no Congresso Nacional, em 17/6/2013: os políticos foram os grandes alvos dos protestos nas ruas Crédito: Ueslei Marcelino/Reuters

O Brasil foi palco, em junho de 2013, da maior onda de manifestações desde 1992, no Fora Collor. Milhões de pessoas foram às ruas em centenas de cidades. Iniciados por um motivo simples, o aumento das tarifas de ônibus, os protestos rapidamente agregaram um mosaico de reivindicações e deixaram patente uma profunda insatisfação com os rumos do país.

Nos gritos e cartazes pedindo melhores condições sociais, ou protestando contra a corrupção e os gastos com a Copa do Mundo, o principal alvo dos manifestantes foram os políticos e os partidos. Em parte das manifestações, chegou a haver hostilidade a bandeiras partidárias. O movimento deixou claro que há um fosso entre os anseios de milhões de brasileiros e a realidade dos seus representantes legais, sobretudo os eleitos para o Congresso Nacional.

Cinco Pontos

A força do movimento levou as autoridades a se manifestarem, incluindo a própria presidente Dilma Rousseff (PT). Em pronunciamento em 24 de junho, ele deu uma resposta às ruas na forma de cinco propostas, por áreas: educação (destinação de recursos da exploração do petróleo), saúde (investimentos na estrutura e o Programa Mais Médicos), transporte urbano (ampliação das redes de metrô e ônibus) e controle de gastos públicos, para conter a inflação. O quinto ponto de Dilma era a proposta de realizar um plebiscito popular para criar uma Constituinte exclusiva para fazer uma reforma política nacional. A lógica dessa proposta é que, se a população não confia nas instituições existentes nem em seus atuais representantes no Congresso Nacional, teria a possibilidade de eleger outros representantes especificamente para reformar as instituições. As quatro primeiras propostas prosperaram – umas mais, outras menos –, e até empurraram o Congresso Nacional a votar com rapidez algumas de suas medidas, mas a quinta provocou uma chuva de reações na cúpula política brasileira e não andou. Rapidamente, após a fala da presidente, os partidos no Congresso Nacional, incluindo os aliados do governo, rejeitaram a ideia, alegando que não há previsão legal para um plebiscito e uma Constituinte, que a proposta atropela a autonomia do Legislativo (a quem cabe convocar plebiscitos) e que a reforma política poderia ser feita pelo próprio Congresso. A ação para barrar a proposta começou com o próprio vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, partido que preside as duas casas legislativas e é o principal partido aliado do PT na coalizão de governo.

A proposta, porém, teve eco popular: uma pesquisa do DataFolha, realizada em 27 e 28 de junho, mostrou que 73% dos entrevistados apoiavam a ideia de um plebiscito para convocar uma Constituinte específica para a reforma política. Pela proposta, os eleitores aprovariam ou rejeitariam a realização de uma Constituinte, e, se fosse aprovada, seus participantes seriam eleitos para mudar a legislação que organiza as instituições políticas do país.

No jogo institucional, Dilma se viu sem apoio e recuou da proposta, passando a defender que o Congresso decidisse sobre as mudanças mais urgentes já para as eleições de 2014, realizando então um plebiscito sobre elas ainda em 2013. Mas essa proposta tampouco avançou, por falta de apoio na oposição e também na base governista. A alegação dos parlamentares foi que não havia tempo hábil para que as decisões valessem para 2014 – pela lei, mudanças eleitorais têm de entrar em vigor um ano antes do pleito, ou seja, até o início de outubro. Além disso, boa parte dos parlamentares preferia que a consulta popular fosse um referendo. Em um plebiscito, a população escolhe entre diversas propostas. Já num referendo, apenas responde se aceita ou não uma determinada matéria – ou seja, o Congresso aprova a reforma completa e os eleitores votam a favor ou contra.

Em 9 de julho, os líderes dos partidos na Câmara Federal trocaram a nova proposição da presidente pela criação de um grupo de trabalho para preparar uma proposta de reforma política, com um referendo posterior. Essa reforma não valeria para as eleições de 2014, só para as seguintes. Os resultados, apresentados em novembro, foram transformados numa Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para tramitação no Congresso Nacional. Sua votação pode ocorrer em 2014.

O que muda

Durante a tramitação, o projeto ainda pode ser modificado no Congresso, pois os parlamentares podem apresentar emendas com novas propostas ou com a supressão do que está colocado.

Em sua forma inicial, uma das principais mudanças previstas é tornar o voto facultativo, em lugar de obrigatório, como é hoje. É uma medida democrática, já que o voto é um direito que o cidadão tem, e que pode escolher se exercita ou não. Outro ponto é o fim da reeleição no poder Executivo, ou seja, para presidente da República, governadores e prefeitos. A PEC propõe ainda que, a partir de 2018, haja coincidência de datas nas eleições em todos os níveis – municipais, estaduais e federal. Para isso começar, prefeitos e vereadores a serem eleitos em 2016 teriam mandato de apenas dois anos, em vez de quatro. Nas coligações, deixaria de ser obrigatória a vinculação entre as candidaturas em nível nacional, estadual e municipal. Mas os partidos que se coligassem para vereadores e deputados estaduais e federais não poderiam sair, até o fim da legislatura, do bloco parlamentar pelo qual seus candidatos se elegessem. O polêmico financiamento de campanhas eleitorais teve poucas mudanças propostas. Cada partido poderia optar entre financiamento privado (contribuições de

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indivíduos ou empresas), público (recursos do Estado distribuídos segundo a lei) ou misto. As doações, que passariam a ter um teto, só poderiam ser feitas para partidos e não para candidatos individuais. Fica ainda estabelecido um teto para os gastos com campanhas.

No que se refere à fidelidade partidária, parlamentares que se desfiliarem do partido pelo qual foram eleitos perderão seus mandatos.

Apesar de manter a eleição por voto proporcional – pelo qual cada partido ocupa as vagas proporcionalmente a seu total de votos –, a PEC traz uma novidade: os candidatos a deputado não seriam mais eleitos por todo o Estado, como é hoje, mas apenas em uma das regiões em que cada Estado será dividido. O grupo de trabalho diz que isso reduz custos e aproxima os deputados dos eleitores. Se for aprovado, São Paulo, por exemplo, que tem 70 deputados federais, poderia ter dez regiões com sete vagas cada. A proposta é uma aproximação do voto distrital, pelo qual o país é dividido em distritos eleitorais e é eleito o candidato mais votado de cada distrito. Assim, a eleição deixa de ser proporcional, e passa a ser majoritária (na qual ganha o mais votado no distrito, como na eleição para prefeito). O voto distrital valoriza políticos com força regional, prejudica os que têm força eleitoral dispersa e os partidos menores (que podem ficar sem representação). Além disso, não favorece o debate dos grandes temas nacionais, mas sim a defesa de interesses regionais.

Um ponto que não foi discutido é o uso da lista fechada nas eleições proporcionais. Nesse modelo, os partidos definem a ordem dos candidatos e, de acordo com as vagas obtidas pelo número de votos, elegem seus parlamentares por essa lista. Nele, o eleitor vota nos partidos, e não mais nos candidatos. Seria o fim do voto nominal.

Partidos

Os partidos com poucos votos sofrerão restrições se a PEC for aprovada. O texto prevê que só terão direito a receber recursos do Fundo Partidário – verba destinada por lei aos partidos – e espaço de propaganda gratuita no rádio e na TV aqueles que nas últimas eleições tiverem conseguido pelo menos 5% dos votos válidos para a Câmara Federal, distribuídos em no mínimo um terço dos estados.

Ao mesmo tempo, a PEC facilita a criação de novos partidos: a exigência de assinaturas de apoio para sua legalização cai de 0,5% para 0,25% dos eleitores. Se já estivesse em vigor, a ex-senadora Marina Silva, possível candidata a presidente pelo PSB, teria conseguido criar seu partido: a Rede Sustentabilidade teve o registro negado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em outubro de 2013, por não ter obtido as 492 mil assinaturas necessárias. Com isso, Marina filiou-se ao PSB para poder disputar as eleições.

Outros dois partidos conseguiram registro em setembro de 2013, após coletarem assinaturas por cerca de dois anos: o Partido Republicano da Ordem Social (Pros) e o Solidariedade (SDD). Assim, o Brasil terminou o ano com 32 partidos legais. O Fundo Partidário distribuiu cerca de 360 milhões de reais a eles em 2013. O Pros e o SDD passaram a receber sua parte em outubro.

Três poderes

Os três Poderes Os presidentes Renan Calheiros (Senado), Dilma Rousseff (Executivo), Henrique Eduardo Alves (Câmara) e Joaquim Barbosa (Judiciário) Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

Ao recusar a Constituinte e optar pela elaboração de uma emenda constitucional, os parlamentares mostraram que não abrem mão de seu poder de legislar, sobretudo em assuntos que dizem respeito diretamente a seus interesses. A definição das instituições que dão forma ao Estado brasileiro está na Constituição de 1988, elaborada após o fim do regime militar. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes, mas interferem uns nos outros, limitadamente. O Legislativo, que faz as leis, pode destituir o presidente da República, chefe do Executivo. O Judiciário pode considerar inconstitucional e anular uma lei criada pelo Legislativo.

O Executivo arrecada e aplica os recursos públicos no ato de governar o município, os estados e o país. Além disso, pode criar leis, como as medidas provisórias, e pô-las em prática ao enviá-las ao Congresso para apreciação. Isso desequilibra a relação em seu favor. Muitos parlamentares aderem a coligações para conseguir cargos e recursos para projetos em seus redutos eleitorais. Esse comportamento favorece alianças chamadas fisiológicas entre partidos com programas políticos bem diferentes. É o caso de muitas das 22 legendas da ampla coalizão liderada por Dilma, como o PP, de Paulo Maluf; o PSD, de Gilberto Kassab; o PTB, de Fernando Collor; ou o PMDB, de Temer.

Mesmo assim, hostilizar a própria ideia de partidos, como ocorreu em algumas manifestações de junho, é como se insurgir contra o modelo contemporâneo da democracia, nascido com a Revolução Francesa, em 1789. Na sociedade, a defesa de propostas que digam respeito aos destinos da nação se faz por grupos de pessoas que propõem um programa que atenda aos interesses de sua classe ou ao seu segmento social, defendendo um projeto para o país. Essa é a ideia de um partido político. Pela via eleitoral, o povo escolhe as propostas e elege representantes para implementá-las no governo e no Legislativo, nas esferas municipal (Câmara de Vereadores), estadual (Assembleia Legislativa) e federal (Congresso Nacional).

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O Congresso Nacional é bicameral, formado pelo Senado e pela Câmara. O Senado representa a Federação, e nele os Estados estão em pé de igualdade: três senadores para cada um, de forma a impedir que os mais ricos e populosos se imponham sobre os menores. Já a Câmara Federal, com 513 deputados, representa os cidadãos. Por isso, sua composição deveria ser proporcional ao número de eleitores, de modo que o voto de todos tivesse peso idêntico (o que não ocorre hoje em dia, pois há distorções na representação). O equilíbrio no Congresso Nacional está no fato de que as leis devem ser aprovadas necessariamente pelas duas Casas.

Matéria publicada em março/2014.

Reforma política

PEC Proposta de Emenda à Constituição, tramita no Congresso para mudar a legislação sobre partidos e eleições. Entre seus pontos, está o fim do voto obrigatório e da reeleição para cargos no Executivo, a realização de todas as eleições ao mesmo tempo e a fixação de um teto para gastos de campanha.

Manifestações

Em junho de 2013, milhões de manifestantes foram às ruas. Os primeiros protestos eram contra aumentos nas tarifas de transporte. Depois, avançaram para temas políticos, mostrando forte desconfiança das instituições de Estado e dos políticos. A pressão fez a presidente Dilma Rousseff propor um plebiscito para uma Constituinte da reforma política. O Congresso rejeitou a ideia e elaborou a PEC que está em tramitação.

Divisão de poderes

No regime democrático, o sistema político é dividido em três poderes: Executivo (que governa), Legislativo (que cria as leis) e Judiciário (que julga e assegura o cumprimento das leis). Os poderes de Estado são independentes, mas interferem entre si. O Legislativo fiscaliza o Executivo e pode destituir o presidente da República. O Judiciário pode anular uma lei considerada inconstitucional. O Executivo cria leis por medidas provisórias.

Legislativo

Nos municípios, são as Câmaras de Vereadores. Nos estados, as Assembleias Legislativas, formadas pelos deputados estaduais. No federal, é o Congresso, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

Executivo

Presidente, governadores e prefeitos. É a quem cabe governar. Arrecada e distribui os recursos nacionais.

Câmara dos Deputados

Representa o cidadão e tem 513 membros. Os deputados têm mandatos de quatro anos.

Senado Federal

Representa os estados da Federação e tem 81 membros, três por estado e o DF, com mandato de oito anos.

Saiu na Imprensa

As manifestações de rua e a reforma política

por Doacir Gonçalves de Quadros

As séries de manifestações contra a Copa que ocorreram dias atrás são mais uma página das que ocorreram em várias cidades espalhadas pelo Brasil ano passado (…) contra a inoperância do Estado em atender às demandas sociais. (…)

Além de manifestações nas ruas, outra via de reivindicação política e pública dos direitos sociais e políticos são os plebiscitos, referendos e iniciativas populares (...). Entretanto, estas ações dependem da autorização do Congresso Nacional – e, neste quesito, o Congresso nada aprova.

Acreditamos que o ideal é que se fizesse uma reforma política em que essas consultas populares fossem independentes da autorização do Legislativo, de modo que a sociedade civil participe de maneira mais atuante em processos decisórios (…).

Por enquanto, nos deparamos novamente com aquilo que as manifestações de junho de 2013 mostraram: a necessidade cada vez mais urgente de se fazer a reorganização do sistema político e eleitoral brasileiro através de uma reforma política.

Gazeta do Povo (Curitiba), 10/2/2014

Cientistas reafirmam a responsabilidade humana

O novo relatório sobre o aquecimento global aumenta a certeza de que é preciso diminuir as emissões de gases que agravam o efeito estufa

Martha San Juan França

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DEVASTAÇÃO - Tragédia provocada pelo Tufão Haiyan, nas Filipinas, em 2013. o pior a atingir o país: fenômenos que estão se agravando Crédito: Noel Celis/AFP

Os eventos climáticos recentes estão mesmo assustadores. Em novembro de 2013, o tufão Hayan, com ventos de até 315 km/h, foi o mais violento a atingir as Filipinas, deixou 5,7 mil mortos e quase 100 mil desabrigados. Em dezembro, chuvas torrenciais e contínuas causaram a maior enchente registrada em 30 anos no Espírito Santo, enquanto a pior seca em 50 anos flagelava o semiárido. Em janeiro, temperaturas em torno dos

40 ºC castigaram o Sudeste brasileiro e chegaram a quase 50 ºC na Austrália. Nos Estados Unidos e no Canadá o frio baixou a 35 ºC negativos e congelou até as cachoeiras de Niágara, no estado de Nova York.

Os cientistas mais convictos de que está ocorrendo um contínuo aquecimento global elevaram de 90% para 95% sua margem de certeza de que isso é resultado da ação humana e afirmam que esses extremos são parte do processo de mudanças climáticas em curso e que eles podem se tornar cada vez mais frequentes e intensos. Essa afirmação está na primeira parte do 5º Relatório do Painel Intergovernamental sobre a Mudança no Clima (IPCC, sigla em inglês), entidade que reúne cientistas sob o guarda-chuva da Organização das Nações Unidas. Essa primeira parte do relatório foi divulgada na Suécia, em 27 de setembro do ano passado, e é uma reavaliação do que está ocorrendo na atmosfera e nos oceanos, e de como ela poderá evoluir. Outras duas partes devem ser publicadas em 2014, com previsão dos impactos do que pode ocorrer e formas de minimizar os problemas.

Assim como nos relatórios anteriores, o IPCC afirma que são as ações humanas que estariam reforçando o efeito estufa e provocando um aumento do aquecimento global. Essas ações são principalmente as que resultam na emissão, e no acúmulo na atmosfera, de gases como o dióxido de carbono (CO2), produzido pela queima de combustíveis fósseis (especialmente carvão mineral e derivados de petróleo, como óleo cru, diesel e gasolina); metano (gás natural, CH4), gerado pela decomposição de lixo, digestão do gado, plantações alagadas (principalmente de arroz); e óxido nitroso (N2O), que advém, entre outros meios, do tratamento de dejetos de animais, do uso de fertilizantes e de alguns processos industriais. Além disso, ao alterar o uso da terra por meio do desmatamento e de atividades agrícolas, o ser humano está lançando no ar, por apodrecimento ou queima, CO2 que estava acumulado nas plantas e no solo.

Como isso acontece? É preciso relembrar que o efeito estufa é um fenômeno natural. Ele permite à atmosfera da Terra reter parte do calor que o Sol envia ao planeta, o que mantém a temperatura média em torno de 14 °C, essencial para boa parte das formas de vida. Se não houvesse o efeito estufa, a temperatura média no planeta seria de 17 ºC negativos. Quando os cientistas falam em mudança do clima e em aquecimento global, estão se referindo ao aumento intenso da capacidade da atmosfera e dos oceanos de reter calor. Essa mudança explicaria o aumento de 0,85 ºC na temperatura média do planeta verificado no último século.

Debates Científicos

Extremos Catarara de Niágra congelada em janeiro de 2014. Crédito: AAron Harris/Reuters

Grandes mudanças no clima já ocorreram antes na história da Terra, motivadas, por exemplo, por alterações na atividade do sol e outras variáveis astronômicas, ou por grandes erupções vulcânicas, que jogam enorme quantidade de gases na atmosfera. Por isso, há cientistas que duvidam que o aquecimento atual confirmado pelo IPCC seja consequência de ações humanas. Esses cientistas argumentam que não há dados suficientes para sustentar essa teoria. A falta de consenso, aliás, têm estimulado o IPCC a realizar estudos mais precisos. Em 2007, o quarto relatório do IPCC apresentou certos erros – uma de suas previsões defendia, por exemplo, que a Cordilheira do Himalaia perderia todo o seu gelo até 2035, o que se mostrou um exagero. Dois anos depois, um hacker invadiu as contas de e-mails de cientistas envolvidos no painel e divulgou conversas comprometedoras, que indicavam acertos entre eles para ajustar os dados científicos a fim de aumentar as previsões quanto ao aquecimento global.

As investigações posteriores inocentaram os cientistas envolvidos, mas o escândalo ficou conhecido como Climategate e contribuiu para dar força à corrente dos céticos quanto ao aquecimento global. Esta reúne pesquisadores, mas também os que atuam no lobby de interesses das indústrias que vivem do petróleo e governos que seriam afetados pelas medidas necessárias para conter o aquecimento. Por exemplo, substituir os combustíveis de transporte por outros mais limpos, combater a poluição industrial, promover o uso de fontes de energia renováveis, fiscalizar e punir o desmatamento e fazer mudanças no cultivo de alimentos e criações animais.

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O papel dos Oceanos

O relatório reconhece que houve uma pausa no aquecimento global na última década. Mas afirma que essa pausa é circunstancial e não significa uma mudança de curso no processo. Os pesquisadores atribuem essa pausa a uma maior absorção de calor pelas águas mais profundas dos oceanos e à maior frequência de fenômenos como o La Niña, o esfriamento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico. O IPCC chama a atenção para o papel dos oceanos no equilíbrio do clima, pois eles absorvem cerca de 90% de toda a energia recebida do Sol. A previsão anterior era de um aumento do nível médio do mar de até 59 cm até o ano de 2100 na perspectiva mais grave. Agora, esse cenário mais pessimista subiu para até 82 cm de elevação.

Segundo o IPCC, o aumento do nível dos oceanos já registrado nos últimos 100 anos ocorreu principalmente devido ao aquecimento provocado pela absorção de 30% das emissões de dióxido de carbono do ar, que faz a água se expandir (a água se expande quando aquecida ou congelada). O processo também contribuiu para diminuir sua alcalinidade e acidificar, ou seja, baixar seu Potencial de Hidrogênio (pH).

A acidificação, dependendo de sua intensidade, pode ser letal para toda a vida nas áreas de corais. Outra parte desse aumento foi provocada pelo derretimento de geleiras e nos polos.

Protocolo de Kyoto

Extremos Durante verão causticante em setembro de 2013, no estado da Califórnia Crédito: Noah Berger/Reuters

As conclusões do quinto relatório servirão de referência para as próximas negociações políticas entre os países para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Elas ocorrem em conferências anuais dos signatários do Protocolo de Kyoto, e dos 194 países participantes da Convenção Sobre a Mudança do Clima das Nações Unidas. É um desafio e tanto. Já foram realizadas quase duas dezenas das chamadas Conferências das Partes (COPs). O protocolo aprovado na COP-3, em Kyoto, entrou em vigor em 2005 e estabeleceu metas obrigatórias e voluntárias dos países para reduzir as emissões até 2012. Como não houve um novo acordo, as metas de Kyoto foram mantidas até 2020, e estão sendo negociadas novas metas e medidas que a ONU pretende aprovar em 2015, na COP-21, em Paris, para vigorar a partir de 2020.

Mas as perspectivas não são otimistas. A última conferência, em novembro de 2013, a COP-19 em Varsóvia, foi considerada um fracasso. Em vez de avançar em metas e compromissos para reduzir as emissões, os países aprovaram apenas contribuições voluntárias – promessas que podem não ser cumpridas. Ficou claro que países emergentes fortes, como China e Índia, temem se comprometer com metas que podem afetar suas economias nas mesmas bases que as metas dos Estados Unidos e a Europa. Os Estados Unidos, por sua vez, continuam a não aceitar assinar um acordo que poderia tornar o país menos competitivo.

De positivo, a COP-19 trouxe apenas um pacote de regras que interessa particularmente ao Brasil. São as normas técnicas para o funcionamento do mecanismo chamado Redd (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), um sistema que garante que países com grandes extensões de florestas recebam recursos financeiros caso comprovem que reduziram o desmatamento em seu território. Também foi aprovada a criação de um mecanismo que futuramente pode ajudar os países mais pobres que sofrerem perdas com eventos climáticos extremos – um alento no caso de tragédias como a das Filipinas, devastada pelo furacão Hayan.

Metas Brasileiras

No Brasil, a lei que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima, sancionada pelo presidente Lula em 2010, estabelece a meta de reduzir as emissões de CO2 entre 36% e 39% até 2020, usando como parâmetro as emissões que estavam calculadas para ocorrer nesse período. O último inventário nacional mostra que o país alcançou 62% dessa meta, com queda de 38,7% nas emissões entre 2005 e 2010. A queda foi impulsionada pela redução de 76,1% no desmatamento em florestas, principalmente na Amazônia, atividade que deixou de ser a de maior emissão de gases do Brasil (veja gráfico acima). Segundo o inventário, as emissões diretas de energia (principalmente usinas termelétricas e transporte) devem subir ao topo das emissões até 2015.

Em setembro de 2013, foi divulgado o primeiro Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. O painel é uma organização científica dedicada a estudar o impacto das mudanças do clima em nosso país. Segundo as projeções, o aumento de temperatura média no Brasil poderá ser de 2 ºC a 3 ºC nos próximos 50 anos. Esse aquecimento deverá ser mais intenso no Norte e Nordeste e um pouco mais brando no Sul. Devem ocorrer também alterações nos padrões de chuva, mudanças na vazão de rios, de secas e inundações, impactos em manguezais e falésias litorâneas e deslizamentos em áreas ocupadas. Segundo o relatório, para que possa manter o crescimento econômico e o bem-estar da população, o Brasil precisará adotar medidas preventivas e de adaptação, principalmente nas zonas costeiras, onde vivem 85% da população. •

Fique de olho

Prevista para novembro de 2014, em Lima, Peru, a COP-20 poderá trazer novidades que caiam nos vestibulares no início do novo ano.

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Para ir Além

O documentário Refugiados do Aquecimento Global, de Michael Nash (2010), investiga as migrações causadas por mudanças do clima no mundo.

Matéria publicada em março/2014.

Aquecimento Global

Definição

É o aumento indesejável do efeito estufa, fenômeno natural que mantém a Terra aquecida. A maior parte dos cientistas acredita que esteja sendo reforçado pela ação humana, com a emissão na atmosfera de gases como o dióxido de carbono (CO2), o metano (gás natural, CH4) e o óxido nitroso (N2O). O aquecimento global provoca mudanças climáticas, pois eleva a temperatura dos oceanos, modifica o regime de chuvas e ventos, o que pode levar a extremos de calor e de frio.

IPCC

Sigla do Painel Intergovernamental Sobre a Mudança do Clima, órgão das Nações Unidas que reúne estudos de cientistas e formuladores de políticas públicas dos países participantes da Convenção Sobre a Mudança do Clima e seu Protocolo de Kyoto. Seu quinto relatório aumentou para 95% a probabilidade de que o aquecimento global resulte das ações humanas.

Protocolo de Kyoto

É o único acordo internacional para diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Sua primeira fase de metas de redução terminou em 2012, mas foi estendida até 2020. A ONU espera fechar um novo acordo em 2015, na reunião internacional de Paris (COP-21). Na última reunião (COP-19), em Varsóvia, foram aprovados apenas cortes voluntários.

Emissões no Brasil

Na maioria dos países, as maiores emissões resultam da queima de combustíveis fósseis. No Brasil as maiores emissões são lideradas pela agropecuária (35%), seguidas por energia (32%). O desmatamento na Amazônia, que era a maior causa, caiu para o terceiro lugar.

Desafios

O Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, divulgado em 2013, afirma que um aquecimento contínuo também afetará o Brasil, com mudanças nos ciclos de chuva e a necessidade de medidas de prevenção e adaptação para inundações, deslizamentos e secas.

O que diz o IPCC

O IPCC baixou um pouco suas previsões de aquecimento global para este século. Segundo a entidade, isso ocorreu com o uso de modelos climáticos de meteorologia que trazem informações mais precisas e comprovadas.

• No século XX e até 2010, a temperatura média na Terra subiu 0,85 grau Celsius, mas em algumas regiões o aumento foi de até 2,5 graus, o que inclui o Brasil (veja mapa das alterações na pág. 150). O nível médio da água dos oceanos subiu 19 cm.

• O IPCC elevou de 90% para 95% a probabilidade de certeza de que são as ações humanas que causam o aquecimento, no todo ou em parte.

• Desde 1998, o ritmo de aquecimento do planeta diminuiu para +0,05 grau Celsius por década, mas essa queda se dá em um período muito curto para ser conclusivo (14 anos) e há indicações de que pode ser um hiato passageiro no processo.

• A concentração de CO2 na atmosfera hoje é 40% maior do que no período anterior à Revolução Industrial, principalmente por causa da queima de combustíveis fósseis.

• Até o final do século, a temperatura média pode subir de 0,3 a 4,8 graus Celsius, dependendo do sucesso em reduzir a concentração de CO2 na atmosfera.

• O aumento no nível médio do mar resultante do aquecimento global poderá ser de 26 a 82 centímetros até 2100.

• O derretimento de geleiras continuará e é fortemente provável que o gelo do Ártico continue a diminuir até o final do século. Nos verões, a cobertura de gelo pode perder de 43% a 94% de sua área.

Saiu na Imprensa

Cada vez mais quente

por Raquel Beer

O quinto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) demorou seis anos para ser preparado, contém 1.900 páginas, levou em consideração 9.200 artigos científicos publicados nesse período e foi exaustivamente checado antes de ser divulgado. O cuidado extra teve por objetivo recuperar a boa imagem do órgão das Nações Unidas responsável por estudos do clima, cuja integridade foi abalada por falhas vexatórias descobertas no relatório anterior, de 2007.

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O quinto relatório do IPCC, divulgado na sexta-feira passada, em Estocolmo, é taxativo nas suas conclusões: as mudanças climáticas continuam e a atividade humana é a principal responsável. A possibilidade de o homem ser o maior causador do aquecimento global é estimada em 95%. Nesse aspecto, a cada edição o relatório se torna mais severo. O primeiro, em 1990, responsabilizava sobretudo a natureza. Em 2001, a probabilidade de responsabilidade humana subiu para 66%, e chegou a 90% em 2007. Todos os relatórios foram coerentes, contudo, em prever consequências catastróficas caso se mantenha o aquecimento. Uma das precauções no preparo do relatório de 2013 foi só considerar pesquisas publicadas em revistas respeitadas pelos cientistas, como Science e Nature. (...) Rajendra Pachauri, presidente do IPCC, certificou: sessenta por cento dos 259 autores não participaram da edição anterior e trazem novas perspectivas.

VEJA, 2/10/2013

Fonte: As matérias foram extraídas do Almanaque Abril 2014