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A responsabilidade do Presidente da república pela prática de crimes comuns
Suzana Maria Fernandes MendonçaMestranda em Ciências Jurídico-Políticas Especialidade em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa. Pós-graduada em Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogada.
Resumo: o Presidente da república, como expressão máxima da vontade popular, revelada através da escolha democrática, apresenta-se como uma figura que inspira confiança e credibilidade. Entretanto, o chefe de Estado e de governo pode vir a romper com a respeitabilidade decorrente do seu ofício a partir do momento que comete crimes, associados ou não à sua função. Para tanto, mostra-se necessário o regime de responsabilidade do Presidente, que regula justamente tais situações, seja pela prática de crimes de responsabilidade ou de infrações comuns. A possibilidade de atuação que enseje a configuração de crime comum praticado pelo ocupante da Presidência da república carrega consigo variadas questões e problemáticas, algumas abordadas no presente trabalho.
Palavras-chave: responsabilidade. Presidente da república. Crimes comuns.
Sumário: introdução – 1 A responsabilidade do Presidente da república – 1.1 Aspectos – 1.2 Breve contextualização histórica – 1.3 Constituições brasileiras – 2 Crimes de responsabilidade – 2.1 Enquadramento – 2.2 Características – 2.3 Hipóteses – 2.4 Processo e julgamento – 3 Crimes comuns – 3.1 Conceito – 3.2 Atos estranhos ao exercício de suas funções – 3.2.1 irresponsabilidade penal relativa – 3.2.2 Conduta anterior ao início ao mandato – 3.3 In officio e propter officium – 3.4 outras questões problemáticas – 3.4.1 instauração de inquérito – 3.4.2 Linha sucessória presi-dencial – Conclusão – referências
introdução
o tema da responsabilidade do Presidente da república é de extrema rele-
vância tendo em vista a expressividade de tal cargo político, não apenas pela le-
gitimidade carregada pelo principal representante da vontade popular expressada
por meio de voto, mas também como figura que inspira confiança e credibilidade.
Ademais, a magnitude e a amplitude dos poderes associados à sua posição reve-
lam a necessidade de um contraposto que traga equilíbrio ao sistema.
Além disso, por se tratar de um regime presidencialista, a configuração do
titular da Presidência da república envolve maior atenção e cobrança por parte
dos cidadãos, uma vez que se constitui como detentor da chefia de Estado, de
governo e da Administração Pública. Logo, é essencial que o texto constitucional
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apresente dispositivos que reproduzam medidas adequadas para a preservação
da estabilidade do Estado em caso de prática de ilícitos por parte do chefe do
poder Executivo.
A responsabilidade do Presidente da república, portanto, reproduz justa-
mente a necessidade de se trazer ao sistema estabilidade e equilíbrio. tendo o
princípio da separação de poderes como fundamento, a responsabilidade inclui o
Legislativo e o Judiciário no processo e julgamento – a intensidade de participação
de cada um varia a depender do procedimento em questão – como forma de se
manter a harmonia da estrutura política do Estado.
Configura-se, nesse sentido, como um mecanismo que visa impedir que
o ocupante de tal cargo venha a exercê-lo de maneira indevida e imprudente.
Entretanto, caso essa conjuntura venha a realizar-se, a possibilidade de respon-
sabilização do chefe do poder Executivo indica precisamente que nem mesmo o
detentor do mais alto cargo da república deixa de estar sujeito às normas que
regem o Estado.
A possibilidade de ser o Presidente responsável pela sua atuação é matéria
tratada em todas as constituições da república, sofrendo pequenas e significa-
tivas alterações ao longo dos anos. Já a constituição do império, por se tratar
de uma monarquia constitucional, dispunha o inverso, sobre a irresponsabilidade
absoluta e irrestrita do imperador, já que era considerada como uma figura sobe-
rana, incapaz de deslizes e desvios.
A versão atual da responsabilidade por atos praticados pelo Presidente
da república, prevista na Constituição Federal, enquadra-se em dois cenários
possíveis: crimes de responsabilidade e crimes comuns. os primeiros sendo os
constantes do texto constitucional e da legislação específica que versa sobre a
matéria, já os últimos configuram-se como aqueles abrangidos pela legislação
penal.
Por se tratar do chefe de Estado e de governo, o procedimento associado
à prática de ilícitos é especial e singular, tanto nos crimes de responsabilida-
de, como nas infrações comuns. As prerrogativas vinculadas ao Presidente da
república, nesse sentido, especialmente no tema de responsabilidade, visam
resguardar e preservar a posição de respeitabilidade emanada do cargo, ocupado
por uma determinada pessoa em decorrência da escolha democrática.
A responsabilização do Presidente, seja no âmbito de crimes de responsa-
bilidade ou de infrações comuns, retrata a importância de existir um instrumento
de contrapartida em casos excepcionais, de modo a apresentar detalhes e es-
pecificidades que elevam o tópico a uma posição extraordinária. Como a respon-
sabilidade coloca-se como uma matéria de extremo destaque no cenário político
e constitucional, está sempre envolvida de questões controversas e polêmicas;
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algumas delas serão abordadas neste trabalho, em especial aquelas relacionadas
às infrações comuns que podem ser praticadas pelo Presidente da república.
1 A responsabilidade do Presidente da república
o Presidente da república é uma figura de extrema relevância para o ade-
quado andamento das opções políticas de um Estado e, em níveis diversos de
importância conforme o regime vigente. Entretanto, há algo em comum entre to-
das as chefias de Estado: o exercício de uma função constitucional, tanto no
sentido de estabelecer ligações harmônicas, como de preservar e promover a
funcionalidade.1
Em um sistema presidencialista como é o caso brasileiro, não apenas a
chefia de Estado cabe ao Presidente da república, mas também a de governo.
Nesse sentido, o titular do ofício presidencial caracteriza-se como detentor de
amplos e variados poderes, o que indica precisamente a magnitude da influência
política de suas decisões.
Logo, não poderia a titularidade da Presidência envolver tantas atribuições
e poderes sem um instrumento de contraposição capaz de evitar situações ad-
versas. Ademais, por se tratar de um sistema de governo orientado pelo princípio
democrático, a autoridade associada ao poder político deve estar de certa forma
ligada a uma disposição constitucional de responsabilidade,2 que representa jus-
tamente um mecanismo de equilíbrio para o sistema.
1.1 Aspectos
o princípio da separação de poderes, que identifica três funções no Estado,3
distribui competências não exclusivas entre seus respectivos órgãos, de modo
a traduzir um método de disposição da própria estrutura política do Estado4 ou,
ainda, um princípio que descreve a estrutura orgânica presente na Constituição.5
Ademais, é fonte de controle recíproco, não apenas como forma de salvaguarda
do apropriado andamento da atividade estatal, mas também da preservação das
garantias individuais.6
1 CANotiLHo, José gomes; MorEirA, Vital. Os poderes do Presidente da República (especialmente em matéria de defesa e política externa). Coimbra, 1991, p. 31.
2 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa, 2013, p. 508.
3 FErrEirA FiLHo, Manoel gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo, 2012, p. 134.4 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 1952.5 CANotiLHo, José gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra, 1993, p. 73.6 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 1953.
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Logo, tal sistema foi originariamente concebido como um mecanismo de pre-
venção de casos em que os titulares dos poderes poderiam vir a praticar abusos,
uma vez que a divisão de atribuições configuraria a construção de uma estrutura
de colaboração,7 o que forneceria justamente limites mútuos aos poderes. A cria-
ção de um poder para limitar outro ou a divisão do poder em outros diversos,8 con-
cepção emanada da separação, é uma ferramenta eficaz de limitação recíproca.
tal controle recíproco é essencial no sentido de impedir atuações arbitrárias,
como a concentração de poder por parte de uma autoridade ou a invasão de com-
petências designadas para uma função diversa do Estado.9 Nesse sentido, não
podem os titulares de cada poder interferir em incumbências cuja execução suce-
de na área de atuação exclusiva de outro, até como forma de se preservar a leal-
dade institucional.10 igualmente, e também em razão do sistema presidencialista,
não é possível que o chefe do poder Executivo venha a colocar fim ao mandato
de parlamentares, nem tem o Legislativo o arbítrio de destituir o Presidente me-
ramente por força de desconfiança,11 hipóteses que, inclusive, viriam a ferir não
apenas a separação de poderes, mas também o próprio princípio democrático.
A distribuição de funções, decorrente da separação de poderes, acaba por
conferir ao Presidente da república atribuições diversas e de extrema relevância,
previstas na Constituição. Cabe ao chefe do poder Executivo no Brasil, portanto,
o exercício da chefia de Estado e de governo.12 Ademais, detém a direção admi-
nistrativa do Estado,13 de modo a estarem as suas atividades carregadas de um
elevado grau de importância política. Diferentemente, por exemplo, do caso portu-
guês em que o Presidente da república é chefe de Estado, enquanto o Primeiro-
Ministro é responsável pela chefia de governo.
Assim, em razão da acumulação de tantos poderes e da magnitude de in-
fluência que seus atos e suas decisões podem tomar para a administração de
um Estado, é necessário um instrumento de compensação que possibilite uma
via de neutralização de suas ações,14 caso seja necessário. Não haveria sentido,
portanto, conferir ao Presidente da república tantas atribuições e funções sem
um mecanismo de contrapartida que viabilizasse um reequilíbrio em caso de even-
tuais excessos ou abusos.
7 rEiS NoVAiS, Jorge. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra, 1987, p. 83.8 MirANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. rio de Janeiro, 2007, p. 56.9 otEro, Paulo. Direito Constitucional português, organização do poder político. v. ii, Coimbra, 2017, p. 11.10 CANotiLHo, José gomes; MorEirA, Vital. Os poderes do Presidente da República (especialmente em
matéria de defesa e política externa). Coimbra, 1991, p. 71.11 FErrEirA FiLHo, Manoel gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo, 2012, p. 134.12 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1246.13 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.14 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.
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tal ferramenta é justamente a responsabilidade do Presidente da república,
ou seja, a legitimidade conferida à função presidencial não o exime de responder
pela prática de atos ilegais que constem do texto constitucional e da lei específica
sobre a matéria. Da responsabilidade deriva a possibilidade de afastamento do
cargo, bem como o cenário de processo e julgamento em virtude da prática de de-
litos relacionados à função, sem descartar a punição pelo cometimento de crimes
comuns, conforme seja este o caso, como consta dos seguintes dispositivos da
Constituição Federal: art. 52, i; art. 86, caput; art. 102, i. Assim, os atos do titular
da chefia do Executivo não podem ser revestidos de imprudência e ilegalidade,
uma vez que estão sujeitos à responsabilização.
o texto constitucional prevê determinadas imunidades e prerrogativas ao
Presidente no campo da responsabilidade, que, entretanto, não podem ser con-
sideradas como vantagem ou isenção por determinada conduta, mas sim como
garantias constitucionais que derivam justamente da separação de poderes. tais
prerrogativas são, na realidade, um instrumento de preservação do mais alto car-
go do Executivo em hipótese de eventuais interferências dos demais poderes.
A previsão constitucional de responsabilização do Presidente em caso de
prática de atos ilegais apresenta, ainda, uma outra vertente, de modo a ter como
uma de suas consequências, o efeito pedagógico. Produz a ideia de que não há
cidadão que esteja acima da lei, uma vez que, se até mesmo o ocupante do mais
alto cargo da república responde por seus atos, também os demais membros de
uma nação são responsáveis por suas condutas.
1.2 Breve contextualização histórica
A concepção de responsabilidade do chefe do Executivo é um mecanismo
que confere um certo grau de equilíbrio ao sistema, de modo a evitar excessos
e remediar desvios. tal instrumento mostra-se necessário e pertinente devido
à amplitude de poderes atribuídos ao Presidente da república, já que qualquer
desvio em sua conduta pode vir a gerar circunstâncias extremamente danosas à
população e ao Estado.
Diferentemente, por exemplo, do que ocorria quando se tratava de uma
monarquia,15 já que em tal hipótese, o rei, como detentor de poderes supremos,16
era considerado como uma pessoa incapaz de agir contra a lei,17 de modo a
não responder por qualquer de seus atos justamente por se tratar de uma figura
15 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.16 VEigA, Paula. O que faz de um Presidente da República um presidente republicano? Coimbra, 2014, p.
158. 17 CriStÓBAL, rosário Serra. Las responsabilidades de um Jefe de Estado. Revista de Estudios Politicos,
n. 115, 2002, p. 162.
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soberana e, como consequência, suas condutas jamais seriam passíveis de ques-
tionamento e responsabilidade. Seu reinado era revestido por uma regra de inviola-
bilidade, que lhe conferia imunidade em caráter perpétuo.18 tal conceito, inclusive,
foi transportado às monarquias atuais, embora seguido por um distanciamento do
monarca de funções políticas.19
Entretanto, quando se trata de uma república, o chefe de Estado está sujei-
to à responsabilização por seus atos. Em contraste com os valores monárquicos
que concediam imunidade pessoal ao rei em um verdadeiro regime de irresponsa-
bilidade, o princípio republicano trouxe consigo não apenas a renovação periódica
da titularidade de cargos públicos,20 mas também a possibilidade de responsa-
bilização daqueles que venham a se utilizar indevidamente de tais postos, em
detrimento do Estado e da própria população.
Contudo, houve um momento na história brasileira em que a disposi-
ção referente à responsabilidade do chefe de Estado sequer constava do tex-
to constitucional, ou em uma construção mais adequada, o registro quanto ao
tema era nomeadamente no sentido da irresponsabilidade total e irrestrita do
chefe do Executivo. Quando o regime em vigor no Brasil era a monarquia cons-
titucional, a primeira Constituição, outorgada em 1824, conferia ao imperador
não apenas a titularidade do poder Executivo, mas também do Moderador.
tal disposição já era suficiente para mostrar a assimetria entre os pode-
res. Além disso, e para acrescentar à desarmonia, havia um dispositivo –
art. 99 – que pontuava a irresponsabilidade do imperador.
o conteúdo do artigo ainda enunciava a inviolabilidade da pessoa do
imperador, bem como a impossibilidade de ser ele responsável pelo exercício de
qualquer de seus atos. Logo, o imperador, detentor da chefia de dois dos quatro
poderes, não era sujeito à responsabilidade alguma, o que é a adequada repre-
sentação do desequilíbrio e da desarmonia desse sistema.
Entretanto, quando se trata de regimes democráticos, não há governante
que seja irresponsável por seus atos. A democracia, nesse sentido, não se con-
some com o fim das eleições, de modo a serem os representantes, escolhidos
legitimamente pelo povo, passíveis de responsabilização por qualquer conduta
indevida decorrente do uso de seus cargos21 e, caso reste comprovado o ilícito,
que respondam devidamente por tal prática.
18 DELPÉrÉE, Francis. La responsabilité du Chef de l’État. Révue Française de Droit Constitutionnel, Presses Universitaire de France, n. 49, 2002/1, p. 31-41.
19 CriStÓBAL, rosário Serra. Las responsabilidades de um Jefe de Estado. Revista de Estudios Politicos, n. 115, 2002, p. 155-181.
20 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa, 2013, p. 481.
21 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.
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1.3 Constituições brasileiras
o tema da responsabilidade do Presidente encontra-se presente em todas
as constituições da república,22 de modo a sofrer alterações diversas ao longo do
tempo, seja quanto às hipóteses previstas e penas, seja em relação à forma de
processo e julgamento. A constante disposição sobre a matéria reflete justamente
sua relevância para o equilíbrio do sistema e influência para a estabilidade do
governo.
Conforme mencionado anteriormente, a primeira constituição brasileira foi
outorgada pelo imperador no ano de 1824, dois anos após a independência, de
modo a lhe conferir uma densidade de poderes que representam adequadamente
a sua intenção em mantê-los concentrados em sua figura. Exemplo disso era a
previsão de que, caso houvesse queixas contra os juízes, poderia o imperador
suspendê-los,23 bem como a criação do poder Moderador que lhe atribuía o título
de chefe supremo da nação.
Ademais, relativamente à sua responsabilização, o imperador deixou expres-
sa a sua completa inviolabilidade, não estando sujeito à responsabilidade em
qualquer ordem. tais pontos são suficientes para se constatar, assim, que a
forma como se deu a gênese da organização da estrutura do Estado, há pouco
independente, revestida de cargas autoritárias e antidemocráticas,24 acabou de-
sencadeando consequências ao longo da história brasileira, marcada por diversos
golpes de Estado, entre outras diversas tentativas.
Já a constituição de 1891, a primeira republicana, inaugurou a forma federa-
tiva e, em razão dos eventos ocorridos durante o período em que a monarquia era
vigente, propunha como um de seus objetivos formais minimizar o poder pessoal
de membros do governo,25 de modo a deslocar e distribuir competências entre os
poderes. A demasiada concentração de poderes no imperador, assim, gerou um
senso de empenho para alcançar a ruptura com o antigo sistema, de modo a in-
fluenciar não apenas na distribuição de competências entre as funções do Estado,
mas também na matéria da responsabilidade do chefe do Executivo. A previsão de
responsabilização do Presidente, portanto, constou pela primeira vez justamente
deste texto constitucional.
o Presidente, conforme previsto no art. 53, após declaração da Câmara de
que a acusação é procedente, seria submetido a processo e julgamento perante
o Senado, em casos de crime de responsabilidade e perante o Supremo tribunal
22 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2527.
23 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 11.24 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 11.25 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 249.
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Federal, em hipótese de cometimento de crimes comuns. Dispunha, ainda, que
se houvesse a decretação da procedência da acusação, ficaria o Presidente sus-
penso de suas funções.
Nesse sentido, o primeiro rascunho do que viria a ser a atual concepção de
responsabilidade do Presidente sucedeu justamente nos dispositivos presentes
na primeira constituição promulgada após o fim da monarquia. As hipóteses de
responsabilização, assim, bem como a forma de processo e julgamento são pró-
ximas à estruturação atual, prevista na Constituição de 1988. Ponto interessante
deste texto constitucional é a divisão dos possíveis delitos a serem cometidos
pelo chefe do Executivo em crimes comuns e crimes de responsabilidade.
A constituição de 1934 foi promulgada após conturbações decorrentes de
revoluções de 1930 e 1932 e, em razão disso, as preocupações de cunho social26
refletiram no conteúdo da Carta, de modo a representar a inauguração do consti-
tucionalismo social.27 Exemplo disso é a disposição, pela primeira vez, de que as
mulheres poderiam votar para Presidente.28
Quanto à responsabilidade do titular da chefia do Executivo, algumas mudan-
ças substanciais foram acrescentadas, especialmente em relação ao julgamento.
Quando se tratava de crimes comuns, a previsão do art. 58 também atribuía à
Corte Suprema a incumbência de julgar o Presidente; entretanto, relativamente
aos de responsabilidade, o processo e julgamento seriam de competência de
um tribunal Especial. Comporiam este tribunal três ministros da Suprema Corte,
três membros do Senado Federal e três membros da Câmara dos Deputados, de
modo a ter como presidente o da Suprema Corte. Da mesma forma, caso fosse
decretada a acusação, ficaria afastado de imediato.
A composição de tal tribunal traduz a conjugação dos poderes Judiciário e
Legislativo para análise de delitos e, posteriormente, processo e julgamento, do
chefe do Executivo. Seria um mecanismo claro do controle e da limitação de um
poder pelos demais,29 justamente como forma de responsabilizar o Presidente por
eventuais atos ilegais que pudesse ter cometido. Ademais, a presença ativa do
Judiciário no julgamento de hipóteses de crimes comuns e de responsabilidade
também foi uma alteração considerável em relação à Carta anterior.
Já a constituição de 1937, outorgada por getúlio Vargas após o golpe, tinha
como objetivo primário a manutenção do Presidente no poder. A Carta preservava
os três poderes, entretanto não havia qualquer harmonia ou equilíbrio entre eles,
não apenas devido à prática ditatorial, mas também em razão do próprio conteúdo
26 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 319.27 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 99.28 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 38.29 MirANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. rio de Janeiro, 2007, p. 56.
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de seu texto, que designava ao Presidente da república o papel de autoridade
suprema do Estado.30
Na temática da responsabilidade, processo e julgamento seriam de compe-
tência do Conselho Federal, que era uma espécie de Senado, com dois represen-
tantes de cada estado e do Distrito Federal; após declaração de procedência de
acusação pela Câmara dos Deputados, conforme previsto no art. 86. A novidade
que acompanhou as disposições quanto à responsabilização foi a possibilidade
de pena de inabilitação para o exercício de qualquer função pública por até cinco
anos, sem prejuízos de eventuais ações criminais e cíveis adequadas.
Ademais, outra alteração constituiu na impossibilidade de ser o Presidente
da república responsabilizado enquanto estiver no exercício de suas funções,
por atos estranhos às mesmas. tal modificação é nomeadamente compreensível
dado o momento em que foi acrescentada à Carta, uma vez que se tratava de
uma constituição outorgada por um regime ditatorial, de modo a preservar a figura
do Presidente de eventuais processos durante o período de vigência de suas
atividades.
A constituição de 1946, resultado do fim da ditadura, foi promulgada com
um cunho restaurador.31 o texto trouxe de volta o equilíbrio entre os poderes, de
modo a restabelecer as forças do Legislativo e do Judiciário,32 por anos reprimidas
pelo excesso de autoridade atribuída e praticada pelo chefe do Executivo.
A responsabilidade do Presidente, prevista nos art. 88 e art. 89, não sofreu
alterações drásticas, ainda sendo preservada a forma de processo e julgamento
tanto no caso da prática de crimes de responsabilidade, cuja competência era do
Senado Federal após declaração de procedência pela Câmara dos Deputados;
como em circunstância de conduta que configure crime comum, cuja apreciação
seria conduzida pelo Supremo tribunal Federal. Em caso de declaração de proce-
dência pela Câmara, como em constituições anteriores, também ficaria o chefe
do Executivo suspenso de suas funções. inclusive, em 1954, houve um pedido de
impeachment de getúlio Vargas pela União Democrática Nacional, entretanto não
obteve o número necessário de votos.33
A constituição de 1967, a primeira da ditadura militar instaurada em 1964,
conferia ao Presidente amplos poderes,34 como o de edição de decretos com força
30 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 103.
31 BoNAViDES, Paulo; ANDrADE, Paes de. História constitucional do Brasil. rio de Janeiro, 1991, p. 418.32 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 110.33 ViLLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras. São Paulo, 2011, p. 60.34 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 291.
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de lei para determinadas matérias,35 mecanismo amplamente utilizado durante
o período de vigência deste texto constitucional. Por se tratar de uma ditadura,
a constituição foi arquitetada para fortalecer o chefe do Executivo e a União, de
modo a centralizar o poder na figura do Presidente, eleito de maneira indireta pelo
Congresso Nacional e por delegados de Assembleias Legislativas.36
o tema da responsabilidade do Presidente manteve-se com as disposições
do texto constitucional anterior quanto ao processo e julgamento em hipóteses
tanto de crimes de responsabilidade, como de crimes comuns. A única modifica-
ção foi a inclusão de um prazo de sessenta dias para arquivamento do processo,
caso não estivesse ainda sido concluído o julgamento. A emenda que veio a alte-
rar o texto de 1967, por alguns considerada constituição de 1969, preservou os
dispositivos referentes à responsabilidade do Presidente.
Já a Constituição Federal de 1988, resultado de um lento processo de en-
cerramento do regime militar e consequente redemocratização, consagra a har-
monia e a independência entre os poderes, conceito por anos rejeitado, em razão
da centralização excessiva decorrente do período ditatorial. A limitação recíproca
entre os poderes, portanto, é evidente no atual texto, o que acabou influenciando
o tema da responsabilidade, cujos dispositivos combinam ideias e conceitos já
previstos em constituições anteriores.
A forma de processo e julgamento, após juízo de admissibilidade realizado
pela maioria qualificada da Câmara dos Deputados, perante o Senado Federal nos
crimes de responsabilidade e perante o Supremo tribunal Federal nas infrações
penais comuns, prevista no art. 86, mantém o conteúdo já constante da consti-
tuição de 1891, a primeira republicana. Ademais, outra previsão do primeiro texto
constitucional republicano e igualmente transportada à Constituição Federal de
1988, é a possibilidade de suspensão do titular da chefia do Executivo de suas
funções, entretanto com a inclusão de especificidades relativamente a cada tipo
de crime.
Quando se tratar de crime de responsabilidade, conforme dispõe o art. 86,
§1º, ficará suspenso após a instauração do processo pelo Senado, já em hipótese
de infrações penais comuns, a suspensão ocorrerá após o recebimento da denún-
cia ou queixa-crime pelo Supremo tribunal Federal. Se o julgamento não estiver
concluído em cento e oitenta dias, a suspensão do Presidente cessa, sem prejuízo
do regular andamento do processo, conforme art. 86, §2º. A estipulação de um
35 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 119.
36 SArMENto, Daniel; SoUZA NEto, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte, 2012, p. 119.
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prazo para encerramento de tal suspensão, conforme mencionado anteriormente,
foi enunciada pela primeira vez na constituição de 1967.
Não pode o Presidente, ainda, como informa o art. 86, §3º da Constituição
Federal, estar sujeito à prisão nas hipóteses de prática de infrações penais co-
muns, enquanto não suceder a sentença condenatória. Além disso, conforme
consta do art. 86, §4º, também não é possível que seja responsabilizado por atos
considerados estranhos ao exercício das funções presidenciais no período de vi-
gência do seu mandato, conteúdo previamente enunciado apenas da constituição
de 1937.
A responsabilidade do Presidente da república encontra-se prevista na
Constituição Federal, mas não exclusivamente, uma vez que a Lei nº 1.079/50
regula também, tanto os crimes de responsabilidade, como o respectivo julgamen-
to. o atual modelo de responsabilização do chefe do Executivo, portanto, combina
novos elementos a outros já constantes de textos constitucionais prévios.
2 Crimes de responsabilidade
No Brasil, como reflexo do sistema presidencialista, a figura do Presidente
da república concentra as chefias de Estado e de governo,37 bem com da
Administração Pública. tal regime entrega ao titular da chefia do Executivo relevan-
tes poderes constitucionais, como a escolha da composição ministerial e a própria
direção administrativa.38 o que, inclusive, manifesta o conteúdo paradoxal dos
efeitos do presidencialismo: confere-se ao Executivo, sob o revestimento da legiti-
midade democrática, incumbências de modo a torná-lo um poder expressamente
forte e estável, entretanto vigora um estado de constante e intensa desconfiança
da forma como tais poderes, por serem canalizados em apenas uma pessoa,39
podem afetar os rumos do Estado.
tal suspeita é precisamente um dos fundamentos da existência de mecanis-
mos de responsabilização do Presidente da república, como é o caso do próprio
impeachment. As experiências associadas à configuração clássica da chefia de
Estado, momento em que o rei gozava de isenção completa de responsabilidade,
ou até mesmo ao arbítrio irrestrito ligado aos regimes ditatoriais, acabam por
repercutir na organização político-estrutural, bem como na criação de instrumentos
que possam evitar a concentração excessiva de poder.
37 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2501.
38 LiNZ, Juan José. the Perils of Presidentialism. Journal of Democracy, the John Hopkins University Press v. i, n. 1, 1990, p. 51-69.
39 LiNZ, Juan José. the Perils of Presidentialism. Journal of Democracy, the John Hopkins University Press v. i, n. 1, 1990, p. 51-69.
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SUZANA MAriA FErNANDES MENDoNçA
Como as funções de ofício presidencial são amplas e expressivas, de modo
a afetar diretamente as diretrizes internas e externas do Estado, como a pró-
pria população, mostra-se indispensável a existência de ferramentas que possam
evitar maiores danos em caso de desvio de conduta. Nesse sentido, quando a
atuação ilegal do chefe do Executivo vier a atingir determinados bens jurídicos
previstos no texto constitucional, configura-se hipótese de prática de crime de
responsabilidade.
2.1 Enquadramento
o papel do Presidente pode ser ramificado em chefia de Estado e chefia de
governo, de modo a ter ressonância direta nas escolhas político-administrativas
conforme o sistema.40 Nos regimes presidencialistas, já que ambos são concen-
trados na mesma pessoa, o ofício presidencial assume uma posição demasiada
expressiva na condução política do Estado. Assim, as incumbências cabíveis ao
Presidente da república, por serem constitucionalmente previstas,41 conferem le-
gitimidade às decisões de governo por ele tomadas.
Entretanto, o próprio texto constitucional impõe limites aos poderes do
Presidente, sejam estes associados à própria distribuição de atribuições e conse-
quente equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário; ou até mesmo referentes
à responsabilidade pela sua conduta. Por constituir a figura detentora do comando
administrativo nacional, o Presidente deve estar sujeito a certos mecanismos que
possam minimizar efeitos que de alguma forma possam ser desfavoráveis ao
Estado e à população.
Assim, o Presidente da república responde por seus atos conforme um con-
junto de regras previstas tanto na Constituição Federal, como em lei específica
sobre a matéria. tal construção é nomeadamente relevante no sentido de se
estabelecer limites até mesmo ao chefe de Estado e de governo, de modo a
retratar que nem mesmo o ocupante do mais alto cargo da república está isento
de responsabilização em caso de prática de atividades ilícitas, como ocorria no
período da monarquia constitucional, momento em que era vigente a irresponsa-
bilidade penal absoluta.
Em caso de violação direta de normas enunciadas no texto constitucional
e na legislação específica, os atos do chefe do Executivo serão enquadrados
nas hipóteses de crimes de responsabilidade.42 Estes são, portanto, infrações
40 griMALDi, Selena. the role of italian Presidents: the Subtle Boundary between Accountabilty and Political Action. Bulletin of Italian Politics, v. iii, n. 1, 2011, p. 103-125.
41 MorroNE, Andrea. il Presidente dela repubblica in transformazione. Rivista dell’Associazione Italiana dei Constituzionalisti, n. 2, 2013, p. 1-18.
42 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1255.
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político-administrativas43 decorrentes do exercício de funções públicas que confi-
guram situações não tratadas no âmbito do Direito Penal, mas sim no campo do
Direito Constitucional.44
2.2 Características
os crimes de responsabilidade caracterizam-se, quanto ao sujeito, como
aqueles cometidos por ocupantes de alguns dos altos cargos da república, como
o Presidente, os Ministros de Estado e da Corte Suprema, ou até mesmo no
âmbito dos estados, os governadores. Logo, as infrações enquadradas como cri-
mes de responsabilidade atingem bens nomeadamente expressivos da ordem
constitucional, de modo a configurar um dever dos titulares de cargos políticos a
sua preservação e efetivação.45 Mostra-se como incumbência dos três poderes,
assim, em observância ao equilíbrio e ao controle mútuo proposto pelo princípio
da separação dos poderes, a manutenção da legitimidade de tais posições, de
modo a serem seus respectivos ocupantes hábeis para o exercício adequado das
funções que lhes foram atribuídas.
Podem ser os crimes de responsabilidade ramificados em infrações políticas
e crimes funcionais,46 a depender da conduta praticada. Não configuram, portan-
to, mera infração de caráter administrativo e disciplinar,47 nem mesmo prática
de delito comum prevista apenas na legislação penal. Mas um nível diverso de
conduta ilícita, uma vez que cometida por altos cargos políticos, aqueles que, teo-
ricamente, encontram-se legitimamente em posição de representação da vontade
popular, porém apresentando um comportamento diverso, de modo culminar com
o rompimento da confiança coletiva depositada nos titulares de tais postos.
Ademais, o trâmite processual é especial, distinto daquele aplicado em caso
de crimes cometidos por qualquer do povo, ou seja, pessoa não ocupante de um
dos cargos políticos em questão. A sanção imposta quando comprovada a prática
delituosa é política,48 de modo a gerar a perda do cargo e a inabilitação para exer-
cício de funções públicas pelo período de oito anos, conforme consta do parágrafo
único do art. 52 da Constituição Federal. Há, portanto, particularidades em relação
ao processo e à competência de julgamento, bem como quanto às decorrentes
43 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2527.
44 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.45 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça,
Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.46 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.47 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.48 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1257.
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penas e seus respectivos efeitos,49 quando a conduta do Presidente enquadra-se
no conjunto de hipóteses de crimes de responsabilidade.
2.3 Hipóteses
A violação direta dos dispositivos constantes da Constituição Federal e
da Lei nº 1.079/50, específica sobre a matéria, por meio de atos praticados
pelo Presidente da república, configuram hipóteses descritas como crimes de
responsabilidade. o art. 85 do texto constitucional prevê que constitui crime de
responsabilidade a conduta do chefe do Executivo que vier a atentar contra a
existência da União, o livre exercício dos demais poderes, do Ministério Público
ou até mesmo dos Entes Federativos; a segurança nacional, a lei orçamentária,
o cumprimento da lei e das decisões judiciais e o exercício de direitos políticos,
individuais e sociais.
o rol de hipóteses enunciado em tal dispositivo, entretanto, é meramente
exemplificativo,50 uma vez que a lei que regula os crimes de responsabilidade
apresenta mais detalhes e especificidades. Ademais, reputa-se insuficiente a
mera listagem dos bens jurídicos tutelados, já que, em razão do princípio da lega-
lidade criminal e consequentemente da tipicidade, os elementos de uma conduta
ilícita devem ser devidamente descritos, caso contrário tais normas sequer serão
revestidas de efetividade.51
Ademais, as condutas que constituem crime de responsabilidade são aque-
las praticadas no exercício do mandato ou sob a alegação ou para exercê-lo, res-
pectivamente in officio e propter officium.52 Portanto, o Presidente responde por
eventual atividade ilícita executada no período de vigência do mandato apenas se
esta tiver alguma correlação propriamente com o exercício das funções atribuídas
ao ofício presidencial ou para o seu desempenho.
Se a atuação do titular do comando do poder Executivo vier a ser enquadrada
em qualquer das hipóteses de crime de responsabilidade, enumeradas no texto
constitucional e discriminadas na legislação específica sobre a matéria, de modo
a ter sido a atividade decorrente do exercício de suas funções, não há qualquer
imunidade presidencial capaz de evitar o início do processo. o procedimento re-
ferente aos crimes de responsabilidade, nesse sentido, contém especificidades,
49 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.
50 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 532.51 MirANDA, Jorge. imunidades Constitucionais e Crimes de responsabilidade. Revista Direito e Justiça,
Universidade Católica Portuguesa, ano XV, tomo 2, 2001, p. 27-48.52 PEÑA DE MorAES, guilherme. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo, 2012, p. 444.
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caracterizando-se como uma modalidade singular de processo, já que se trata
justamente do julgamento do chefe de Estado e de governo.
2.4 Processo e julgamento
o procedimento decorrente da conduta caracterizada como crime de res-
ponsabilidade apresenta duas fases, sendo estas o juízo de admissibilidade e
o processo e julgamento.53 A acusação, de elaboração realizada por qualquer ci-
dadão, pode ser conhecida ou não pela Câmara, caso sim, seguirá para votação
de declaração de procedência,54 o que ocorrerá se atingido o quórum de 2/3 da
Câmara dos Deputados, conforme consta do caput do art. 86 da Constituição.
Caso a acusação for admitida pela Câmara, o Presidente ficará afastado de suas
funções pelo período de 180 dias.55 Em seguida, será submetido a julgamento
pelo Senado Federal, que funciona como um verdadeiro tribunal56 político.
A fase de instrução será realizada por uma comissão processante formada
por ¼ dos senadores. Após as diligências, haverá a elaboração de uma peça acu-
satória final, garantida a ampla defesa do acusado durante o procedimento. Então
o Presidente do Senado comunica ao Presidente do Supremo tribunal Federal a
data do julgamento,57 uma vez que este é responsável pela condução do mesmo.
A condenação ocorrerá se 2/3 dos senadores, em votação em caráter nominal, se
posicionarem nesse sentido.58
A pena decorrente da condenação tem natureza política, já que o próprio
julgamento realizado pelo Senado apresenta a mesma característica, sendo base-
ado em juízo de conveniência e oportunidade.59 A sanção enseja a perda do cargo
ou impeachment, bem como a inabilitação para exercício de funções públicas pelo
intervalo de oito anos, conforme disposto pelo art. 52, parágrafo único do texto
constitucional.
Impeachment, portanto, é um instrumento institucional associado ao poder
Legislativo que constitui justamente uma sanção de caráter político-administrativo
que tem como consequência a remoção do Presidente da república sob reves-
timento legítimo e constitucional.60 Assim, apesar de as hipóteses de práticas
53 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2529.
54 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.55 rAMoS tAVArES, André. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo, 2013, p. 2213.56 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 551.57 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 533.58 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p.
2533.59 NoVELiNo, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo, 2013, p. 3201.60 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1265.
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indevidas estarem tipificadas na legislação específica sobre o tema, a sanção
retrata especialmente o cunho político de todo o procedimento. Além de o julga-
mento ocorrer no âmbito do Congresso Nacional, sendo o juízo de valor aplica-
do eminentemente político, a penalidade imposta também apresenta a mesma
natureza.
A responsabilidade política, nesse sentido, manifesta-se de maneira autô-
noma em relação à concepção de ilicitude, até mesmo em razão da condução do
processo tendo como parâmetro o juízo de conveniência e oportunidade. Não é ne-
cessário no contexto da responsabilidade política, ainda, um exame de culpa, nem
mesmo há qualquer conexão com o dolo ou a negligência por parte do Presidente,
de modo a revelar-se de certa forma como uma reponsabilidade objetiva.61
Ademais, os obstáculos constitucionais, tais como a dupla fase de julga-
mento em duas câmaras ou mesmo o quórum mínimo tanto para a admissibilida-
de, como para a condenação e consequente impeachment, caracterizados como
pressupostos formais, indicam que tal medida deve ser empregada apenas em
conjuntura de cunho eminentemente excepcional. iniciar um processo que possa
vir a gerar a destituição do Presidente da república, portanto, é uma providência
extrema, e em razão disso, exige o preenchimento de uma série de requisitos, que
serão avaliados por meio de um juízo de caráter político.62
A perda do cargo em decorrência do processo e julgamento político, assim,
deve ser uma medida aplicada apenas em circunstâncias de manifesta afronta à
Constituição, ou seja, da prática de crimes de significativa gravidade63 que afetem
o adequado andamento do Estado. Funciona, assim, como uma ferramenta de
resguardo em caso de eventuais arbitrariedades cometidas pelo Presidente.64
Não se pode permitir, entretanto, que o impeachment seja utilizado singu-
larmente como instrumento de revisão de resultados eleitorais, uma vez que não
foi concebido com essa intenção ou esse objetivo. A sua aplicação indevida viria a
estabelecer o enfraquecimento e a fragilização não apenas do mecanismo gerador
da destituição do Presidente em razão da prática de crime de responsabilidade,
mas nomeadamente da própria democracia.
61 otEro, Paulo. Direito Constitucional português, organização do poder político. v. ii, Coimbra, 2017, p. 34.62 VALLE, Jaime. O poder de exteriorização do pensamento político do Presidente da República. Lisboa,
2013, p. 509.63 iSENBErg, Joseph. impeachment and Presidential immunity from Judicial Process. Yale Law and Police
Review, v. 18, n. 1, 1999, p. 53-109.64 EgUigUrEN PrAELi, Francisco José. La Responsabilidad Constitucional y Penal del Presidente de la
República en Peru: Propuesta para su reforma. tesis PUCP, Lima, 2007, p. 42.
187r. bras. de Dir. Público – rBDP | Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018
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3 Crimes comuns
o Presidente da república, escolhido por força da vontade popular, configu-
ra-se como indivíduo legitimamente apto para o desempenho regular de suas atri-
buições constitucionalmente previstas. A finalidade da responsabilidade perpassa
justamente por circunstâncias em que o chefe de Estado e de governo venha
a apresentar uma conduta incompatível com aquela para a qual foi legitimado.
Entretanto, a atuação irregular não se enquadra apenas em situações que de
alguma forma estejam relacionadas com o cargo político em questão, como é
característica dos crimes de responsabilidade, que só podem ser praticados por
ocupantes de determinados cargos da república.
A ramificação dos crimes claramente disposta no texto constitucional ex-
põe a relevância, bem como a necessidade, de se regular cenários em que o
Presidente venha a exercer suas funções em descontinuidade com as normas
que conduzem o adequado andamento do poder político. Nesse sentido, o regime
de responsabilização do titular do Executivo trata não apenas daquelas práticas
classificadas como crimes de responsabilidade, mas também do comportamento
que possa ser enquadrado nas hipóteses de crime comum.
3.1 Conceito
o texto constitucional não deixou de pontuar a importante disposição refe-
rente à matéria de responsabilidade: ao Presidente podem ser imputados não
apenas aqueles crimes necessariamente decorrentes de seu ofício, como é o
caso dos crimes de responsabilidade, mas também aqueles que podem ser co-
metidos por qualquer cidadão, não detentor de cargo político. As práticas que se
enquadrem nestas hipóteses são classificadas como crimes comuns.
os crimes comuns, portanto, compreendem qualquer tipo de conduta ilí-
cita caracterizada como infração criminal,65 definidos tanto na legislação penal
comum, como na especial,66 o que inclui diversas modalidades, como os delitos
eleitorais ou contravenções penais.67 Logo, o Presidente também responde caso
venha a agir de maneira ilícita por conduta tipificada apenas na legislação penal,
diversamente dos crimes de responsabilidade, cuja previsão encontra-se primaria-
mente na Constituição e, em maiores detalhes, na lei especial sobre a matéria.
o processo decorrente da prática de crime comum também segue um
procedimento único, justamente por se tratar do titular do Executivo. o juízo de
65 FErNANDES, Bernardo gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rio de Janeiro, 2011, p. 534.66 AFoNSo DA SiLVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo, 2011, p. 550.67 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1262.
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admissibilidade a ser realizado pela Câmara dos Deputados mantém-se, bem
como o quórum de 2/3 para que avance à próxima fase. Entretanto, o Presidente
é submetido a julgamento perante o Supremo tribunal Federal, ao contrário dos
crimes de responsabilidade, hipótese em que o processo seria enviado para o
Senado, conforme previsão do art. 86 do texto constitucional. o Presidente será
suspenso de suas funções, ainda, se a denúncia ou queixa-crime for recebida pelo
StF, pelo mesmo prazo aplicado em caso de afastamento pela prática de crime de
responsabilidade, cento e oitenta dias.
3.2 Atos estranhos ao exercício de suas funções
A divisão de infrações que podem vir a ser praticadas pelo titular da
Presidência da república, em crimes comuns e de responsabilidade, não esgo-
ta, ainda, as ramificações possíveis associadas à responsabilização do chefe do
Executivo. Há também aquelas condutas que estão conectadas ou não de alguma
forma ao ofício presidencial; entretanto, o texto constitucional prevê expressamen-
te apenas os atos estranhos ao exercício das funções presidenciais. isso ocorre
por motivo claro, já que as condutas necessariamente conexas com a atuação
de ofício do Presidente são justamente aquelas enquadradas como crimes de
responsabilidade.
A Constituição, em seu art. 86, §4º, dispõe que não responde o Presidente,
durante o período de vigência do seu mandato, por atos estranhos ao exercício de
suas funções. Assim, quanto às infrações comuns, em uma análise superficial,
poderia até se adotar a premissa de que os crimes relacionados ao exercício
da função presidencial seriam apenas crimes de responsabilidade, o que viria a
enquadrar todos os crimes comuns como condutas estranhas ao cargo e, conse-
quentemente, não passíveis de gerar responsabilização do Presidente na vigência
do seu mandato.
No entanto, um ponto ainda estaria à margem de tal proposição: os crimes
comuns. Não faria sentido o texto constitucional mencionar a hipótese de julga-
mento pela prática de infrações penais comuns, se o Presidente não pudesse ser
responsabilizado durante o seu mandato.
Se o Presidente vier a cometer algum dos crimes previstos na legislação
penal, deve-se analisar se este tem alguma conexão com o ofício presidencial.
Caso do exame resulte uma resposta negativa, o Presidente será submetido a
julgamento apenas quando da conclusão do período do seu mandato. Contudo,
na hipótese de haver ligação entre o crime praticado, constante da legislação
criminal, e a atividade presidencial, sucederá a possibilidade de julgamento do
titular da Presidência da república, ainda durante a vigência do seu mandato, por
crime comum.
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Logo, os crimes de responsabilidade estão sempre associados ao ofício,
justamente por ser a sua prática necessariamente ligada a determinados cargos
da república, nomeadamente o de Presidente. Já as infrações comuns, caso esti-
verem de certa forma conectadas às funções presidenciais, serão passíveis de jul-
gamento durante o período de vigência do mandato, caso contrário, apenas após
a conclusão deste, uma vez que estarão devidamente enquadradas no dispositivo
de imunidade por atos estranhos.
3.2.1 irresponsabilidade penal relativa
A cláusula de irresponsabilidade penal relativa prevista no texto constitu-
cional é uma consequência da existência de atos estranhos às funções presi-
denciais. Neste caso, não responde o titular do Executivo durante o período do
seu mandato. o efeito desta cláusula, assim, é dar imunidade ao Presidente da
república por aqueles atos que se evidenciem como estranhos às atividades ine-
rentes ao ofício presidencial,68 de modo a impedir que o titular do Executivo esteja
sujeito à persecução penal por tal conduta.
o texto constitucional, dessa forma, ao dispor sobre a possibilidade de jul-
gamento do Presidente da república por crimes comuns, desperta, por força da
cláusula de irresponsabilidade penal relativa, a hipótese de infrações comuns
relacionadas com as funções do ofício presidencial. A harmonização entre os
dispositivos de imunidade em caso de atos considerados estranhos às funções
presidenciais e o de processo e julgamento por crimes comuns ocorre, assim,
nas circunstâncias em que as infrações previstas na legislação criminal estão
associadas à atividade político-administrativa.
A posição do Presidente, como sendo de relevância inquestionável e, ainda,
associada a amplos poderes, também deve manter a sua existência escoltada
por uma previsão de responsabilidade penal e política por eventuais infrações
praticadas no exercício de tal atividade, até mesmo em observância ao princípio
republicano.69 Entretanto, justamente por se tratar do mais elevado e significativo
cargo em um Estado, especialmente em um sistema presidencialista, deve haver
prerrogativas compatíveis com a magnitude de tal posição, como é o caso da
cláusula de irresponsabilidade penal relativa ou imunidade presidencial.
A relatividade referente à imunidade decorre do fato de que esta não abrange
responsabilidade civil, tributária, administrativa ou política.70 Assim, o Presidente
pode responder em processos instaurados em qualquer das matérias em questão,
68 StF, Supremo tribunal Federal. inq 1418/rS, rel. Min. Celso de Mello, DJ 08/11/2001.69 StF, Supremo tribunal Federal. inq 927-0/SP, rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/02/1995.70 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672/DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.
190 r. bras. de Dir. Público – rBDP | Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018
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uma vez que a irresponsabilidade penal relativa não se comunica com as demais,71
de modo a não caracterizar, assim, uma irresponsabilidade irrestrita e absoluta do
chefe de Estado e de governo.
Ademais, outro efeito dessa cláusula é a impossibilidade de estar o
Presidente sujeito à prisão em hipóteses de prática de infrações comuns enquanto
não sobrevier sentença condenatória, conforme art. 86, §3º, da Constituição.
tal dispositivo é válido apenas ao Presidente da república, como prerrogativa
de chefe de Estado,72 de maneira a não se estender aos chefes do Executivo
estaduais.73 Ao dispor sobre este tema, a intenção do legislador constituinte era
precisamente preservar o Presidente da república de uma eventual decretação de
prisão temporária, preventiva74 ou até mesmo em flagrante delito.
A cláusula de irresponsabilidade penal relativa ou imunidade presidencial,
portanto, abrange aquelas infrações penais comuns praticadas pelo Presidente,
ainda que executadas durante a vigência do mandato, que não guardem qualquer
associação com o exercício das funções presidenciais. Apresenta-se, dessa for-
ma, como uma prerrogativa compatível com a magnitude da atividade exercida
pelo chefe de Estado.
3.2.2 Conduta anterior ao início ao mandato
Há a possibilidade de estar em trâmite ação judicial contra o Presidente
da república iniciada em momento anterior à diplomação. Nesse caso, por se
tratar de hipótese enquadrada como ato estranho à função, o titular do Executivo
apenas responde após o término do período de vigência do mandato. outro efeito
associado também à imunidade presidencial referente à conduta anterior ao iní-
cio da diplomação é a suspensão do processo e da prescrição até a conclusão
do mandato,75 caso já estiver em trâmite ação judicial em desfavor do chefe de
Estado e de governo.
Considerando que após o início do mandato não é possível que se responda
por atos estranhos ao ofício presidencial, tal prerrogativa é pertinente no sentido
de evitar que haja prescrição e, como consequência, que o ocupante do cargo
de Presidente da república deixe de responder por eventual infração cometida
antes da diplomação. impede-se, ainda, que o cargo de chefe do Executivo possa
vir a ser utilizado como escudo de proteção em caso de prática de ilícito anterior
71 BULoS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2015, p. 1261.72 NoVELiNo, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo, 2013, p. 3206.73 StF, Supremo tribunal Federal. ADi 1634 MC, rel. Min. Néri da Silveira, DJ 08/09/2000.74 StF, Supremo tribunal Federal. ADi 1020 MC, rel. Min. Celso de Mello, 17/11/1995.75 StF, Supremo tribunal Federal. HC 83154/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 21/11/2003.
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à posse, de modo a se tornar a referida posição meramente um mecanismo de
imunidade ou de extinção da responsabilidade criminal.
Assim, tanto em condutas anteriores à diplomação, hipótese que claramente
não apresenta qualquer conexão com o exercício do ofício presidencial, como
nas infrações penais comuns que não se revelem ligadas às atividades funcio-
nais, aplica-se a suspensão do processo e da prescrição de maneira provisória.76
Segue-se, dessa maneira, a previsão constitucional de que a responsabilização
por atos estranhos ao exercício de suas funções ocorre apenas após o fim da
vigência do mandato, seja em razão da suspensão de processo penal prévio ou
pela vedação de instauração de ação penal.
3.3 In officio e propter officium
As situações enquadradas como infrações comuns são não apenas aquelas
estranhas ao exercício das funções presidenciais, mas também as que manifes-
tam qualquer relação com as atividades atribuídas ao titular do Executivo. Quando
o ilícito praticado tiver relação com o ofício, o Presidente estará sujeito à respon-
sabilização ainda durante o período do seu mandato.
tal conexão com as funções, ademais, apresenta duas ramificações possí-
veis: in officio, no exercício do mandato,77 e propter officium, em razão do exercício
das funções78 ou a pretexto de exercê-las. Assim, o princípio da irresponsabilidade
penal absoluta do Presidente não foi consagrado pelo texto constitucional, uma
vez que, em caso de prática de delitos penais in officio ou propter officium, será
passível de persecução criminal, desde que obtida autorização prévia da Câmara
dos Deputados.79
Seria interessante, nesse sentido, supor a existência de um cenário em
que apenas uma conduta do Presidente venha a se enquadrar simultaneamente
em uma circunstância de crime de responsabilidade e de crime comum, como
por exemplo um dos possíveis ilícitos contra a Administração Pública, previstos
tanto na legislação penal comum, como na legislação específica sobre respon-
sabilidade. Nesse caso, é de se questionar se seria hipótese de bis in idem ou
se o julgamento por ambos procederia de maneira perfeitamente viável, uma vez
constituem esferas diversas.
76 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p. 2535.
77 PEÑA DE MorAES, guilherme. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo, 2012, p. 444.78 MENDES, gilmar; goNEt BrANCo, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo, 2014, p.
2535.79 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.
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o julgamento por crimes comuns é de atribuição do Supremo tribunal
Federal, após autorização pela Câmara dos Deputados. Em tal conjuntura, como
pena pelo comportamento indevido, os direitos políticos do Presidente seriam ob-
jeto de perda ou suspensão, desde que sucedida condenação criminal transitada
em julgado, conforme art. 15, iii, do texto constitucional. Já a punição por crime de
responsabilidade é justamente a perda do cargo, bem como a inabilitação por oito
anos para o exercício da função pública, sem prejuízo de outras sanções judiciais
que se mostrem cabíveis nessa situação, conforme parágrafo único do art. 52 da
Constituição Federal.
Na eventualidade de uma conduta ferir bens jurídicos variados, é possível
que o agente seja julgado nas instâncias penal, administrativa e civil, como consta
da legislação específica sobre o regime de servidores públicos, Lei nº 8.112/91.
Sendo o Presidente um agente público, especificamente o agente político, se um
ato vier a ser passível de responsabilização política e criminal simultaneamente,
por analogia, poderia responder em ambas as instâncias sem configuração de
bis in idem. Ademais, o próprio texto constitucional dispõe sobre a viabilidade de
demais sanções judiciais cabíveis quanto a comportamento do titular do Executivo
que venha a se caracterizar como ilícito.
3.4 outras questões problemáticas
o Presidente da república, como detentor da chefia de Estado, de governo
e da Administração Pública, distingue-se por sua relevância política no cenário na-
cional. A matéria de responsabilidade, dessa forma, é especialmente relevante no
sentido de impor limites e estabelecer medidas adequadas à atuação do ocupante
de tão significativa posição política.
Nesse sentido, é impossível, dada a relevância do tema, bem como o grau
de expressão do cargo de Presidente da república, como líder de Estado e repre-
sentante da vontade popular, em especial em um regime presidencialista, que
não se suscitem indagações e suposições que envolvam justamente sua respon-
sabilidade. Despertam-se as mais diversas questões e ponderações acerca da
temática, algumas delas extremamente recentes.
3.4.1 instauração de inquérito
o regime de responsabilização referente aos atos estranhos às funções,
bem como aos considerados in officio e propter officium encontra-se claramente
definido. Entretanto, uma questão controversa, inclusive recentemente, é a pos-
sibilidade ou não de instauração de inquérito para averiguar o comportamento do
Presidente da república ainda no período de vigência do seu mandato.
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Quando a conduta estiver associada ao exercício do ofício presidencial, é
lícito e válido que se venha a se instaurar procedimento policial para a devida
investigação da atuação do titular do Executivo, até em razão da possibilidade de
julgamento por crimes comuns prevista no texto constitucional. A fase inquisito-
rial, como forma de se coletar elementos probatórios que venham a subsidiar uma
futura demanda, mesmo que o agente investigado seja o Presidente da república,
seria plenamente aceitável. inclusive, caso recente comprova tal hipótese, uma
vez que após inquérito para se apurar determinados atos do titular do Executivo,
o Ministério Público acabou por oferecer a denúncia.
o real problema reside naquelas condutas que derivam de atos estranhos
ao exercício das funções, como ocorreu recentemente, em situação em que o
Presidente foi acusado de cometer ilícitos eleitorais durante a campanha. Como
mencionado anteriormente, aquela atuação indevida anterior à diplomação não é
passível de questionamento judicial ou persecução penal, enquanto estiver vigen-
te o mandato do chefe de Estado e de governo.
Questiona-se, assim, se a cláusula de irresponsabilidade penal relativa, refe-
rente aos atos estranhos às atividades presidenciais, também se estenderia para
a fase pré-processual ou inquisitória. Em caso parecido, julgado no ano de 1993,
o então Presidente da república também havia sido acusado de prática eleitoral
delituosa durante a campanha. Na época, indagou-se se a prerrogativa de imuni-
dade presidencial não seria suficiente para resguardar o titular da Presidência da
república.
Entretanto, a decisão não lhe foi favorável. o texto constitucional, nesse
sentido, protege o Presidente de eventual persecução penal por atos estranhos ao
exercício de suas funções, de modo a não poder ser submetido a qualquer ação
de natureza persecutória por parte do Poder Público, desde que no plano judicial.80
tal cláusula reveste, ainda, aquelas condutas praticadas em momento anterior à
investidura no cargo.
Nesse sentido, em sede judicial, a imunidade quanto aos atos estranhos às
funções permanece intacta, conforme previsão constitucional. No entanto, uma
vez que o inquérito não consta do plano judicial, pois é considerado como elemen-
to da fase pré-processual, não haveria impedimento no sentido de se investigar
eventual conduta estranha ao ofício, até como forma de subsídio para futura ação
penal81 no momento oportuno em observância às disposições constitucionais,
inclusive, sem riscos de que determinadas provas se percam.
80 StF, Supremo tribunal Federal. inq 672, rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/04/1993.81 StF, Supremo tribunal Federal. Pet 5569, rel. Min. teori Zavascki, DJ 18/05/2015.
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3.4.2 Linha sucessória presidencial
o texto constitucional elenca possíveis substitutos do Presidente da
república, como forma de solucionar a circunstância de vacância do cargo. o
primeiro em ordem de substituição para assumir o posto vago é, evidentemente, o
Vice-Presidente, conforme previsão constante do art. 79 da Constituição Federal.
Entretanto, em caso de impedimento de ambos, o disposto no art. 80 resolve tal
obstáculo, uma vez que serão chamados sucessivamente para o exercício da fun-
ção presidencial, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado
e o Presidente do Supremo tribunal Federal.
Nesse sentido, os titulares de determinados cargos podem vir a ocupar a
posição de Presidente da república em caso de impedimento deste. Como houve
um caso recente de impeachment, o Vice-Presidente assumiu o posto de chefe do
Executivo, no entanto, uma das consequências é justamente a falta de um Vice,
até o fim de seu mandato. Assim, a chance de um dos demais atores assumir
provisoriamente a Presidência foi elevada consideravelmente.
Entretanto, em conjuntura ocorrida há pouco, questionou-se a legitimidade
de o Presidente do Senado constar da linha sucessória presidencial, uma vez
que já corria processo penal contra o ocupante deste cargo, o que o colocava em
situação de réu. o texto constitucional, em seu art. 86, §1º, prevê a suspensão
do Presidente da república do exercício de suas devidas funções em caso de
recebimento de denúncia por parte do Supremo tribunal Federal.
Assim, o objetivo do legislador constituinte, ao dispor sobre o afastamento
de natureza cautelar e provisória, é claro no sentido de preservar o cargo e a figura
de Presidente da república, bem como de manter o respeito e a credibilidade das
instituições republicanas.82 Logo, os réus criminais, perante o Supremo tribunal
Federal, presentes na linha sucessória de substituição do chefe do Executivo são
impedidos de, em eventual vacância do posto, serem convocados a assumir a
posição em questão.83
Não haveria sentido, portanto, que ao eventual substituto que esteja em
condição de réu em ação penal, seja dada prerrogativa maior que ao próprio
Presidente da república, legítimo titular de sua posição. Ademais, não há impedi-
mento constitucional para o regular exercício de sua respectiva função legislativa;
entretanto, há a vedação, por interpretação jurisprudencial, para o desempenho do
ofício da Presidência da república.84
82 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.83 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.84 StF, Supremo tribunal Federal. ADPF 402, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 07/12/2016.
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Conclusão
o Presidente da república corresponde a uma figura que inspira respeitabi-
lidade e confiança por parte da população, especialmente em virtude de ter sido
elevado a tal posição em decorrência da vontade popular expressa por meio de
eleições. Como detentor da chefia de Estado, de governo e da Administração
Pública, o Presidente representa uma figura que desperta maior atenção da socie-
dade, e, consequentemente, sua atuação suscita um elevado grau de cobrança
popular.
Nesse sentido, a amplitude e a variedade de poderes atribuídos ao ofício
presidencial entrega ao ocupante de tal cargo funções de extrema relevância e
influência no cenário político e social nacional. Por outro lado, a extensão e a
expressividade das competências conferidas ao Presidente da república pode
configurar uma fonte de situações diversas que envolvem práticas conduzidas de
maneira inescrupulosa, aptas a produzir consequências negativas tanto para o
Poder Público, como para própria a sociedade.
A eventual conduta de caráter questionável que pode vir a ser praticada
pelo Chefe de Estado e de governo acaba desmantelando toda a estrutura de
credibilidade e segurança ligadas ao cargo. Assim, a previsibilidade normativa de
ferramentas capazes de prevenir eventuais práticas abusivas e inconsequentes,
especialmente considerando a abrangência dos poderes associados à função pre-
sidencial, manifesta-se essencial para a garantia de estabilidade do Estado.
Entretanto, caso o cenário que vise se prevenir venha a ser concretizado,
revelando-se através de um comportamento presidencial que viole dispositivos
constitucionais e legais, a viabilidade da responsabilização do Presidente mostra,
nomeadamente, que até mesmo o ocupante do mais alto cargo da república
está submetido às normas regentes do Estado. Nesse sentido, a necessidade de
mecanismos capazes de trazer equilíbrio ao sistema, bem como de controle de
eventuais danos decorrentes de uma atuação irresponsável, é o que fundamenta
a existência da responsabilidade do Presidente da república.
A amplitude e a intensidade de seus poderes, se indevidamente utilizados,
viabilizam o exercício da função presidencial de maneira inadequada ou até mes-
mo inconsequente, prejudicando a estabilidade do Estado e rompendo com a con-
fiança pelo povo depositada através da escolha democrática. Para tal hipótese,
a possibilidade de responsabilização reproduz a importância de se ter um instru-
mento de contrapeso, hábil a reestabelecer o equilíbrio do sistema.
Apresentando como fundamento o princípio da separação dos poderes, a
responsabilidade integra Legislativo e Judiciário nas fases de processo e julga-
mento, com as devidas funções cabíveis a cada um, conforme o procedimento em
questão. o Presidente da república responde, assim, pelas práticas de crimes de
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responsabilidade e de infrações comuns, com as especificidades associadas a
cada procedimento e proporcionais à relevância do cargo em questão.
os crimes de responsabilidade assim se caracterizam pela violação de dis-
positivos constitucionais ou específicos da legislação que regula o tema, necessa-
riamente decorrentes do exercício do cargo. Já as infrações comuns representam
aquelas práticas previstas na legislação comum, imputadas a qualquer cidadão,
porém cometidas pelo Presidente da república.
Muito embora possa cometer crimes comuns como qualquer cidadão, o
Presidente da república não responde por tais infrações como qualquer cidadão.
As prerrogativas associadas à sua função colocam o Presidente em posição de
julgamento por crimes comuns, durante o período de vigência de seu mandato,
apenas perante o Supremo tribunal Federal.
Ademais, a previsão de suspensão do exercício de suas funções uma vez
recebida a denúncia, a inviabilidade de decretação de prisão enquanto não hou-
ver sentença condenatória e a impossibilidade de responsabilização por atos es-
tranhos ao ofício durante o mandato revelam não apenas a relevância do cargo
presidencial, mas a gravidade de uma eventual prática de crime comum por um
Presidente da república.
As consequências para a sociedade e para o Estado de estar em trâmite um
processo pela prática de infração comum pelo Chefe de Estado e de governo são
manifestamente críticas. Pode-se questionar, inclusive, a legitimidade para o exer-
cício do ofício presidencial de quem comete ilícitos penais mesmo na condição de
ocupante do mais alto cargo da república, ao qual se encontra exclusivamente em
decorrência do resultado da escolha democrática.
o regime de responsabilidade do Presidente da república pela prática de
crimes comuns, portanto, revela-se essencial para indicar que todos estão sub-
metidos às disposições constitucionais. Ademais, visa proteger a respeitabilidade
e a confiança suscitadas pelo cargo presidencial, que deve ser ocupado apenas
por pessoa que se manifeste apta a conduzir as funções decorrentes da chefia de
Estado, de governo e da Administração Pública conforme parâmetros legais e valo-
res de idoneidade, retidão e honestidade, em respeito à posição que desempenha
apenas em virtude da vontade popular.
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A rESPoNSABiLiDADE Do PrESiDENtE DA rEPÚBLiCA PELA PrátiCA DE CriMES CoMUNS
Abstract: the President of the republic, as the maximum expression of the popular will, revealed through democratic choice, is presented as a figure that inspires confidence and credibility. However, the head of State and government may break with the respectability emanated from his occupation from the moment he commits crimes, associated or not with his function. Due to this fact, it is necessary to exist the President’s accountability regime, which regulates these situations precisely, whether because of acts that represent crimes of responsibility or common infractions. the possibility of acting that configures a common crime practiced by the occupant of the Presidency of the republic carries with it several issues and problems, some of which are dealt with in the present work.
Keywords: Accountability. President of the republic. Common Crimes.
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informação bibliográfica deste texto, conforme a NBr 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas técnicas (ABNt):
MENDoNçA, Suzana Maria Fernandes. A responsabilidade do Presidente da república pela prática de crimes comuns. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 171-198, jan./abr. 2018.