a sociedade do consumo e a vida do espírito

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A sociedade do consumo e a vida do espírito. Por Michel Aires de Souza A sociedade do consumo é a personificação da ilha de Ogigia, mencionada na Odisséia de Homero, onde Ulisses ficou sete anos preso pela ninfa Calipso (aquela que encobre). Ela vivia em uma gruta, na encosta de uma montanha. A ninfa prometia a Ulisses eterna juventude e prazeres eternos se ele ficasse com ela. A ilha é conhecida na cultura grega como “Campos Elíseos”. É o destino dos heróis após à morte, concebido como um paraíso, onde os homens virtuosos descansam. É um lugar florido, arborizante, de lindas paisagens, onde os homens se divertem e vivem de prazeres eternos. Ali seria encontrado o rio Lethe, cujo significado grego é “esquecimento”, “ocultação”. Todo aquele que bebesse desse rio esqueceria sua vida passada. A sociedade do consumo é o modo de produção e reprodução material e espiritual que expande e transforma o consumo de mercadorias no principal fator das relações e das práticas sociais. Tal como a Ilha de Ogigia, a sociedade de consumo propicia uma fauna e uma flora de objetos e prazeres inimagináveis, mas também produz o esquecimento e a alienação sobre nossas próprias vidas. Nesta Ogigia dos tempos modernos, as pessoas vivem vidas que não escolheram, se aferram a valores, crenças e modos de ser e pensar sem nunca refletirem sobre eles ou sobre suas escolhas. Os indivíduos não sabem o que querem e também não sabem o que sentem. Eles se comportam de forma irrefletida, apenas vivem para consumir, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida ou o que acreditam ser os meios corretos de alcançá-lo. Eles ignoram o que realmente buscam, o que são, o que desejam, o que é relevante ou

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Artigo sobre a sociedade do consumo e seus impactos na vida mental dos indivíduos

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A sociedade do consumo e a vida do esprito.

Por Michel Aires de Souza A sociedade do consumo a personificao da ilha de Ogigia, mencionada na Odissia de Homero, onde Ulisses ficou sete anos preso pela ninfa Calipso (aquela que encobre). Ela vivia em uma gruta, na encosta de uma montanha. A ninfa prometia a Ulisses eterna juventude e prazeres eternos se ele ficasse com ela. A ilha conhecida na cultura grega como Campos Elseos. o destino dos heris aps morte, concebido como um paraso, onde os homens virtuosos descansam. um lugar florido, arborizante, de lindas paisagens, onde os homens se divertem e vivem de prazeres eternos. Ali seria encontrado o rio Lethe, cujo significado grego esquecimento, ocultao. Todo aquele que bebesse desse rio esqueceria sua vida passada.

A sociedade do consumo o modo de produo e reproduo material e espiritual que expande e transforma o consumo de mercadorias no principal fator das relaes e das prticas sociais. Tal como a Ilha de Ogigia, a sociedade de consumo propicia uma fauna e uma flora de objetos e prazeres inimaginveis, mas tambm produz o esquecimento e a alienao sobre nossas prprias vidas. Nesta Ogigia dos tempos modernos, as pessoas vivem vidas que no escolheram, se aferram a valores, crenas e modos de ser e pensar sem nunca refletirem sobre eles ou sobre suas escolhas. Os indivduos no sabem o que querem e tambm no sabem o que sentem. Eles se comportam de forma irrefletida, apenas vivem para consumir, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida ou o que acreditam ser os meios corretos de alcan-lo. Eles ignoram o que realmente buscam, o que so, o que desejam, o que relevante ou irrelevante para suas vidas. Viver na sociedade do consumo viver num mundo atemporal e do esquecimento.

Em Educao e Emancipao o filsofo alemo Theodor Adorno argumentou que a sociedade burguesa est subordinado de um modo universal a lei da troca. Esta por sua prpria natureza atemporal, assim como o clculo, as mercadorias e a produo industrial. No existe tempo na relaes de troca, tal como no existe tempo na racionalidade tcnica. Elas so determinadas por ciclos contnuos e pulsantes. Com isso, a memria, o tempo e a lembrana so liquidados pela prpria sociedade burguesa em seu desenvolvimento, como se fossem uma espcie de resto irracional () (ADORNO, 1995, p.33). Para Adorno, a perda da memria e da lembrana bastante til na reproduo da sociedade, uma vez que tem a funo de adaptar os indivduos as formas de domnio social prevalecentes. Quando a humanidade se aliena da memria, esgotando-se sem flego na adaptao do existente, nisto reflete-se uma lei objetiva do desenvolvimento. (Ibidem., p.33)

O que se evidencia hoje em nossa sociedade, que os homens no se encontram mais rodeados por outros homens, mas por objetos. Baudrillard em seu livro Sociedade do Consumo mostrou-nos que o conjunto das relaes sociais j no tanto com seus semelhantes, mas com as coisas. Segundo ele, vivemos o tempo dos objetos () existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucesso permanente (BAUDRLLARD, 1970, p.18). Como conseqncia disso, vivemos o no tempo. Por sua prpria natureza os objetos so atemporais. O computador, o MP3, o celular, o Ipod, a televiso, o eletrodomstico s reforam cada vez mais o individualismo e a solido dos indivduos. a superioridade das coisas em detrimento dos homens. As relaes humanas se reificaram, banindo as relaes afetivas. Os objetos invadiram, conquistaram e colonizaram nossa vida espiritual. Se o tempo uma forma apriori da nossa sensibilidade, se o tempo uma caracterstica do pensar humano como afirmou Kant, ento o mundo dos objetos desprovido de tempo. Por esta razo, vivemos na intemporalidade. A nossa vida uma sucesso de presentes, desprovido de passado e futuro.

Na sociedade do consumo o indivduo determinado por uma rotina ininterrupta. Os mesmos gestos, as mesmas atividades, as mesmas diverses. Acordar sempre no mesmo horrio, pegar o mesmo nibus, realizar as mesma atividade no trabalho, ver os mesmos rostos, seguir para casa seguindo o mesmo trajeto. O tempo parece no existir. Zigmunt Bauman no seu livro Vida para o consumo (consuming life) compreendeu a passagem do tempo na sociedade do consumo como um tempo pontilhista (pontuado), como uma sucesso de presentes. Para ele, o tempo no mais linear e cclico, como costumava ser para os membros de outras sociedades. O tempo se fragmentou numa multiplicidade de instantes eternos. Citando as palavras de Mafessoli: a vida, seja individual ou social, no passa de uma sucesso de presentes, uma coleo de instantes experimentados com intensidades variadas (MAFESSOLI, apud BAUMAN, 2008, p. 46). Bauman citou ainda o termo cunhado por Stephen Bertman, cultura agorista ou cultura apressada, para denotar a maneira como vivemos na sociedade do consumo. Nesta sociedade o consumo instantneo e a remoo tambm instantnea de seus objetos. Novos objetos e necessidades surgem a todo momento e so consumidos ininterruptamente. uma profuso de instantes que se repetem atravs das mesmas aes e atividades que se equivalem. Com a perda da noo de tempo o indivduo encontra-se alienado em relao a sua prpria vida e a sua interioridade, vive-se apenas para o trabalho e para o consumo.

Esse vcuo interior, essa falta de sentido da vida tem uma conseqncia para a vida espiritual do indivduo: a violncia, as drogas, as compulses e as doenas psquicas. No a toa que nossa poca conhecida como a era dos antidepressivos. A onda de depresso e de ansiedade tornou-se um fato comum no mundo contemporneo. Para a Organizao Mundial da Sade at 2020 a depresso se tornar a segunda principal doena em escala mundial, atrs apenas de doenas cardacas. As empresas farmacuticas chegam a gastar 25 bilhes de dlares com propagandas de antidepressivos. Hoje a depresso j a primeira causa de incapacidade de adultos acima dos trinta anos.

A sociedade burguesa tornou o consumo o fundamento compulsivo da civilizao. Vivemos na era das compulses: compulso por comida, compulso sexual, compulso por drogas, compulso por compras. Numa sociedade onde as relaes humanas tornaram-se reificadas, onde a vida dos homens sem sentido e fragmentada, o resultado so as compulses. Toda tenso, conflito, frustrao gera uma grande carga emocional, que geralmente descarregada num comportamento compulsivo. Para os psiclogos e psicanalistas toda compulso serve como uma forma de compensao de nossas frustraes e ansiedades. Nos entregamos ao excesso para compensar. Vivemos como na ilha de Ogigia, no reino do esquecimento, buscando prazeres contnuos e ininterruptos. Estamos sempre rodeados por infinitas possibilidades de satisfao, sempre a procura de novos prazeres e objetos que nos satisfaam.

Comprar tornou-se uma necessidade orgnica. Fazer compras nos propicia um grande prazer e nos faz esquecer. O consumo um momento de catarse. a purificao da alma atravs da identificao com o objeto. o momento supremo de descarga emocional. Quando consumimos nos sentimos aliviados de qualquer tenso emocional acumulada. Um dia estressante de trabalho, uma discusso com o chefe, o engarrafamento do trnsito, o mal humor do conjugue, desaparecem da conscincia como num passe de mgica. Esquecemo-nos de nossos problemas, de nossas frustraes e do nosso cotidiano regular e montono. O consumo um momento ldico e atemporal de grande descarga afetiva.

A catarse do consumo equivalente a catarse religiosa. Nos ritos religiosos observamos uma grande quantidade de descarga emocional, o indivduo chora, ri, se deslumbra, sente alegria, xtase, contentamento. Aristteles foi o primeiro a perceber estes sentimentos no teatro grego, que surgiu como manifestao religiosa em homenagem aos deuses. Ele usou o termo catarse para expressar o efeito peculiar exercido pelo histria dramtica sobre os seus espectadores. Na passagem da alegria para a desgraa do heri, o espectador experimentaria sentimentos de piedade, compaixo, terror, repugnncia, raiva, alegria. Para ele, a histria teria o objetivo de purificar os espectadores ao excitar esses afetos que agem como uma espcie de alivio ou descarga de sua prprias emoes. Dessa forma, a catarse se manifesta num duplo sentido, como prazer e como alvio.

A sociedade do consumo se caracteriza por ser uma sociedade do prazer e da satisfao. Se estivermos tristes, em depresso ou tediados basta ir ao shopping e comprar as marcas e os produtos que desejamos para recuperarmos o equilbrio emocional. Para o homem contemporneo, no h nada mais prazeroso do que fazer compras e no h nada mais feliz do que consumir. Consumir um produto significa sentir-se bem, alegre e feliz. Este argumento no especulativo, mas cientfico. Estudos da neurocincias mostraram que o consumo de um produto estimula o ncleo accumbens, que pertence ao sistema lmbico e funciona como o centro do prazer. Suas clulas nervosas so ativadas por um neurotransmissor, a dopamina, levando liberao dos chamados opiceos endgenos produzidos pelo prprio organismo. Estas substncias esto associadas sensao de prazer e bem-estar. Dessa forma, o consumo alm de suprir um desejo e uma necessidade causa prazer e torna o indivduo alegre e feliz.

O diagnstico acima demonstra que a tese de Freud, a de que os indivduos no poderiam viver sobre o princpio de prazer, tornou-se uma falcia. Ao refletir sobre o propsito da vida, Freud chegou concluso de que o objetivo da civilizao no o prazer, mas a renncia a ele. A vida do indivduo a busca constante pela realizao da satisfao do prazer, mas esta satisfao impossvel de realizar num mundo carente e escasso de recursos. O mundo hostil as necessidades humanas, para tudo que bom e prazeroso exigem-se trabalhos penosos e sofrimentos. O individuo deve trabalhar para poder sobreviver. Ele deve abandonar o princpio de prazer e se submeter ao princpio de realidade. O processo civilizatrio marcado pela renncia e pelo sentimento de insatisfao que os homens experimentam vivendo em sociedade. Apesar desse diagnstico, Freud no esperava que a humanidade chegasse a um estgio de abundncia e satisfao. Ele no esperava que o desenvolvimento tcnico e cientfico possibilitasse aos seres humanos uma grande quantidade de bens materiais e intelectuais, capaz de satisfazer prazeres inimaginveis.

O principio de prazer e o princpio de realidades so os dois princpios que regem o funcionamento mental. Na evoluo da humanidade o ser humano teve que substituir o princpio de prazer pelo princpio de realidade, uma vez que a o mundo externo hostil a satisfao das necessidades humanas. Os processos mentais descritos por Freud so regulados num primeiro momento pelo princpio de prazer. A busca do prazer uma luta pelo escoamento livre das quantidades de excitao causado pelo impacto da realidade externa sob o organismo. O alvio de estmulos seria a completa gratificao da excitao. Contudo, atravs do conflito do homem com o mundo externo surge um outro princpio que deve proteger e reger o funcionamento mental: o princpio de realidade. Esse princpio aparece secundariamente como uma modificao do princpio de prazer, tornando-se a pedra angular dos processos mentais, em particular, dos processos conscientes (Ego). Foi atravs do princpio de realidade, no seu confronto com o princpio de prazer, que o organismo teve que construir defesas que o protegessem dos desprazeres causado pelo mundo externo.

Para Freud a substituio do princpio de prazer pelo princpio de realidade foi necessrio na histria da civilizao. Seu argumento afirma que o homem para viver em sociedade no pode viver sob o regime do princpio do prazer. Este programa nem se quer realizvel, pois toda a ordem do universo se ope a ele e, alm disso, estaramos por afirmar que no plano da criao no inclui o propsito do homem ser feliz (FREUD, 1974, p.3025). No atual estgio da civilizao, a teoria da cultura freudiana tornou-se problemtica. O princpio de prazer tomou o lugar do princpio de realidade. A nossa poca provou, ao contrrio do que pensava Freud, que a sociedade pode ser regida pelo princpio de prazer. O diagnstico de Freud falhou, pois ele universalizou a cultura de sua poca para toda a histria da civilizao. Ele vivia na poca vitoriana, num perodo de valores ticos como respeito, civilidade, polidez, considerados as mais elevadas virtudes sociais. Mas tambm era uma poca de preconceitos, represso moral e hipocrisia. Apesar de viver num perodo de desenvolvimento tcnico e cientfico, de industrializao e de grandes empreendimentos, Freud nunca imaginou que pudesse existir uma sociedade do consumo, cujo princpio o prazer e a satisfao.

A primeira caracterstica do princpio de prazer que ele busca uma satisfao constante. Entre um prazer e outro nada melhor que um novo prazer. Este o princpio compulsivo do aparelho mental. O objetivo do princpio de prazer liberar as tenses acumuladas do aparelho neuronal. Freud relaciona o prazer e o desprazer quantidade de excitao existente neste aparelho. Corresponde ao prazer a diminuio da quantidade de excitao e ao desprazer o aumento dessa quantidade. A busca do prazer uma luta do organismo para diminuir as quantidades de excitao, causado pelo impacto da realidade externa sob o organismo. Freud chamou esse mecanismo de aliviar as tenses de princpio de constncia, ou seja, a tendncia do aparelho neuronal em manter a quantidade de excitao baixa ou mais constante possvel. Ele compreende este princpio como um conceito econmico. Cada vez que a tenso aumenta no aparelho este princpio se encarrega de descarreg-la.

O princpio de prazer o fundamento psicolgico da sociedade do consumo. Este princpio no afetado pelo tempo, ignora valores bem e mal, moralidade, esfora-se simplesmente pela satisfao de suas necessidades instintivas. Ele compulsivo em sua prpria essncia. Da a explicao para as compulses e a descarga emocional que os produtos da sociedade do consumo propiciam. O consumo propicia uma grande prazer aliviando as tenses do dia-a-dia enfrentado por milhes de seres humanos.

A sociedade do consumo pode ser definida utilizando a terminologia de Herbert Marcuse, como unidimensional. unidimensional na medida em o aparato produtivo e as mercadorias se impem ao sistema social como um todo. As mercadorias, os produtos, os entretenimentos, os transportes, a alimentao trazem consigo atitudes, hbitos, emoes e formas de ser e pensar. Prendem, assim, os consumidores agradavelmente aos produtos e formas de bem-estar social. Os produtos desta sociedade invadiram a dimenso interior do homem submetendo-a as formas de domnio social prevalecentes O prprio indivduo reproduz e perpetua os controles externos em sua conscincia. Essa introjeo ocorre a partir de processos relativamente espontneo, onde o Eu transfere o exterior para seu interior. A produo, distribuio de mercadorias, o trabalho e os entretenimentos idiotizados tomaram a vida espiritual do indivduo.

Bibliografia

ADORNO, Theodor. Educao e emancipao. So Paulo: Paz e Terra, 1995.

BAUDRILLARD, Jean. La socit de consommation: ses mythes, ses structures. Paris: Edition Danol, 1970.

BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformao das pessoas em mercadoria. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

FREUD, S. El Malestar en la cultura. Madri, Ed. Standard, Obras completas, Tomo VIII, Madri, 1974.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade indstrial. Rio de janeiro:Zahar, 1967.