“a sociedade polida laica” e o “respeito tÃo … · sua obra deus, um delírio, pensa alguns...
TRANSCRIPT
“A SOCIEDADE POLIDA LAICA” E O “RESPEITO TÃO SINGULAR À
RELIGIÃO”: UMA ANÁLISE INTERPRETATIVA DE DEUS, UM DELÍRIO DE
RICHARD DAWKINS
Maria Helena Azevedo Ferreira (UEM-LERR)1
Esta comunicação destina-se a entender de que modo Richard Dawkins (2007), em sua obra Deus, um delírio, pensa alguns grupos sociais e sua correlação com a religião. Dawkins, ao afirmar que a religião possui um respeito demasiadamente grande em nossa sociedade, até mesmo entre a “sociedade polida laica” (DAWKINS, 2007, p.16) deixa claro seu descontentamento com relação ao espaço de voz que os religiosos possuem, em detrimento dos ateus. A presença da religião na vida pública, na visão de Dawkins, não estaria ligada somente a atuação dos religiosos, mas também a grupos que possuem meios institucionais, como por exemplo os políticos e a mídia. Pensando nesses grupos abordados por Dawkins, procuraremos inferir de que maneira o autor os caracteriza, compreendendo-os dentro de um determinado contexto histórico. Levando em consideração, portanto, a dinâmica das ideias, suas trocas e suas insurgências. Para tal, utilizaremos como aporte teórico as considerações de Edgar Morin (2011), a fim de entender a relação sujeito/sociedade e sua relevância na dinâmica das ideias. Também nos basearemos nos apontamentos de Roger Chartier (1991) com o intuito de entender as representações presentes no discurso de Dawkins. Palavras-chave: Richard Dawkins; religião; sociedade.
Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES)
Em sua obra intitulada Deus, um delírio, Richard Dawkins, biólogo inglês,
expressa seu profundo descontentamento com o status que a religião possui na
atualidade. O desconforto de Dawkins com relação a religião é que esta estaria
ocupando um lugar de destaque na sociedade, influenciando setores políticos e de
interesse comum.
A articulação pretensamente ateísta militante de Dawkins, se volta a
desconstruir o ideário comum sobre religião. Deus, um delírio, após seu lançamento
foi considerado um best-seller, assim como outras obras de cunho ateísta que
ganharam notoriedade no mercado editorial, assim como receberam atenção nos
1Mestranda do programa de pós graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá e Integrante do Laboratório de Estudos em Religião e Religiosidades (UEM) sob a orientação da Profª Drª Vanda Fortuna Serafim.
meios midiáticos (CIMINO, SMITH, 2011). Consequentemente, com o amplo alcance
da obra, questões foram levantadas pelas leitores, assim Dawkins em seu prefácio a
edição de bolso2 procura responder algumas destas críticas.
Podemos destacar uma crítica dirigida à Dawkins: “Sou ateu, mas quero me
dissociar de sua linguagem estridente, destemperada e intolerante”. Procurando se
afastar de uma ideia de intolerância, que para Dawkins implicaria em uma ineficácia
do ponto de vista argumentativo, há uma preocupação em adotar um tom “bem-
humorado”, entendido como eficiente e que ao mesmo tempo serviria para construir
um aparato crítico. Dessa maneira, Dawkins se apropria do artificio do humor de modo
que determinado assunto que segundo o autor poderia ser expresso de forma
intolerante, no entanto, assume uma roupagem irônica fazendo um contato com a
intenção real, produzindo uma crítica em formato satírico. Podemos encontrar alguns
exemplos ao longo de seu livro que adotam esse tipo de postura, que tende a compor
uma crítica sob os moldes irônicos e por vezes humorísticos.
Conforme aborda Beth Brait o aparato retórico da ironia revela um universo de
“representações imaginárias, ideológicas [...] não apenas refletem contextos, expõem
determinados valores da época.” (BRAIT, 1996, p.41). Além disso, a ironia ainda pode
ser utilizada como forma indireta de argumentação de um interlocutor para com seu
público. Assim, o autor ao compor o seu discurso visando um público leitor, estabelece
a ironia como forma de abrir possibilidades de leitura por meio do “relato oficial”. Há,
portanto, na ironia uma referência ao “relato oficial”, que empregado naquele aparato
discursivo, se mune de um outro tipo de mensagem, transmitida muitas vezes de
forma jocosa, provocando, assim, um novo uso para esta. Cabe lembrar, que a ironia
conforme aborda Brait não possui necessariamente o elemento humorístico. O humor
seria um dos aspectos possíveis dentro da ironia, que pode armazenar diferentes
sentidos, passando do humorístico ao trágico. (BRAIT, 1996).
Olhando para a constatação de Dawkins de que sua linguagem adotaria um
tom “bem-humorado”, podemos observar que o humor na maioria das vezes aparece
ao longo da obra por meio do aparato da ironia3. Os excertos presentes em Deus, um
2 A edição brasileira de 2007 conta com dois prefácios, sendo o primeiro relativo a edição de bolso e a segunda a edição tradicional. 3 Ibid., p.55, 83, 96, 115, 372
delírio, exemplificam característica marcante na linguagem da qual Dawkins dispõe
ao tratar sobre religião e relativos. A questão do humor, que se insere sob a
perspectiva da ironia, é um dos dispositivos manifestados na obra, que se organiza
enquanto crítica. Dawkins, parece contrapor duas concepções de mundo,
apresentando primeiramente uma ideia concebida acerca da religião e seus
derivados, para em seguida apontar uma constatação “inesperada” pelo leitor,
constituindo, dessa forma, uma ironia e consequentemente sua crítica. A ironia, assim,
residiria, como retoma Brait, em uma presença/ausência do “sentido literal”, que se
assenta na mensagem que Dawkins quer transmitir; e do “sentido figurado”, que
apresenta-se enquanto escolha do vocabulário e das sentenças para se referir ao
fenômeno religioso.
A construção da crítica de Dawkins à religião por intermédio do humor se insere
em uma perspectiva mais ampla, onde o conhecimento produzido não fica somente a
cargo das escolhas individuais. Podemos, então, inferir a partir da discussão de Edgar
Morin (2011), que Dawkins não apenas “reflete” seu contexto, mas se encontra
enquanto produto/produtor de seu tempo.
O indivíduo enquanto produto/produtor de sua realidade, constrói o
conhecimento e é construído por ele enquanto parte de um espectro mais amplo. Com
isso, na construção do conhecimento, cultura, assim como os aspecto biológicos,
antropológicos e históricos, é “coprodutora” do conhecimento individual. (MORIN,
2011).
A relação complexa entre esses elementos, de acordo com Morin, permite que
as ideias surjam, ganhem autonomia, estabeleçam ligações entre si. Dawkins,
enquanto cientista, faz parte de empreendimento que visa uma particular construção
social da realidade. Contudo, além disso, Dawkins em Deus, um delírio volta-se
também ao conhecimento cotidiano, abarcando em sua narrativa, inclusive, o tom
“bem-humorado”, assim como incorporando elementos do cotidiano em seu discurso.
Neste sentido, quando optamos por perceber o humor na retórica de Dawkins,
enquanto instrumento de crítica, percebemos que há uma dialógica que compreende
a construção da ideia de religião com a necessidade retórica do humor. Entendendo
que Dawkins está intrinsecamente ligado à um imprinting cultural, pensar nesta cultura
enquanto coprodutora da visão do autor expresso em nossa fonte, diz respeito
também em perceber as insurgências do vínculo da crítica da religião através do
humor, enquanto uma prática que se estabelece a partir das apreensões da realidade,
ao mesmo tempo em que cria novos cenários.
Entendendo que a relação entre o humor e a religião é especialmente utilizada,
sobretudo pela mídia europeia e estadunidense4. Ao pontuarmos sobre as
insurgências dessa relação em algumas plataformas, como na produção de filmes,
nas performances humorísticas, assim como na mídia jornalística; algumas breves
considerações podem ser articuladas.
Pensando, essencialmente no caráter militante da obra, Dawkins procura, por
meio do artificio da linguagem, separar-se das ideias perigosas a efetivação de seu
discurso. Sendo assim, quando olhamos para a crítica dirigida ao autor de que sua
linguagem soa “estridente, destemperada e intolerante”, Dawkins se apega na
constatação de que a sua aparente intolerância, nada mais é do que uma forma de
crítica bem-humorada à religião. Existe, portanto, a preocupação em fazer com que o
seu discurso se distancie da percepção do que é ser “intolerante”, ou seja, em adotar
um tom grosseiro em algum tipo de argumentação.
Dawkins afirma vários segmentos satirizam os fenômenos sociais, como sátiras
políticas, críticas literárias e teatrais, que são muitas vezes elogiadas e justificadas
pela sociedade. A percepção de Dawkins acerca da presença da religião na esfera
social se assenta na constatação de que a religião estaria protegida de qualquer tipo
de crítica, até por aqueles que não são religiosos. (DAWKINS, 2007, p.45)
Assim, Dawkins entende que o âmbito no qual ele está inserido tem um respeito
com relação a religião e a fé, tornando-as quase imunes a qualquer tipo de crítica.
Desse forma, Dawkins entende que “a sociedade [balança] a cabeça em
desaprovação; até a sociedade polida laica [....]” (DAWKINS, 2007, p. 15-16). Em
4 Devemos aqui destacar algumas manifestações que tratam das religiões por meio do aparato humorístico. Alguns filmes foram feitos neste sentido, como “Life of Brian” (1979); “In God we tru$t” (1980); “Dogma” (1999); entre outras abundantes produções já no século XXI. O artifício cômico para tratar as religiões, também é frequentemente utilizadas por comediantes em suas performances de stand up, podemos destacar aqui George Carlin e Dave Allen, que fizeram sucesso nos EUA e na Europa, respectivamente, assim como foram alvo de várias polêmicas em razão das temáticas abordadas. A quantidade de comediantes no século XXI, que falam sobre religião, cresce exponencialmente, entre esses estão alguns nomes como Bill Maher, que também escreveu e estrelou “Religulous”, Lewis Black, David Cross, Doug Stanhope e Jim Jefferies, comediante australiano que reside nos Estados Unidos. Podemos ressaltar ainda os britânicos Ricky Gervais, Eddie Izzard, Marcus Brigstocke, Jimmy Carr, Richard Herring, Stewart Lee, Tim Minchin e Dara O’Briain.
consequência disso, qualquer tipo de crítica é vista como uma ação de cunho
intolerante, sendo assim, Dawkins se questiona “O que a religião tem de tão especial
para que asseguremos a ela um respeito tão privilegiado e singular?” (DAWKINS,
2007, p.54)
Se tanto nos Estados Unidos quanto na Europa é possível vermos que existem
produções que se munem do humor para falar de religião, até mesmo fazendo críticas
a esta, refletimos acerca do que Dawkins categoriza enquanto “sociedade polida
laica”. Dessa forma, percebendo o contexto no qual Dawkins está inserido,
focalizando, sobretudo na sociedade europeia5, procuramos analisar que tipos de
discursos, fundamentados no social, que permitem com que Dawkins construa a
concepção de que há uma sociedade que considera que a fé não deve ser satirizada,
imputando aos indivíduos que o fazem um ar de intolerância. Assim, a questão que
fica é quais seriam os grupos que constituem tal “sociedade polida laica”?
Políticas de tolerância da Europa: um breve panorama inglês
Na Europa do século XXI houve uma larga discussão acerca dos limites da
liberdade de expressão, como é o caso do humor, no que se refere à tolerância
religiosa. Um caso significativo é o das charges do profeta Maomé6, publicadas pelo
jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 30 de setembro de 2005. A publicação das
charges teve uma grande repercussão, como salienta Heiko Henkel (2010), tanto na
Europa quanto no mundo muçulmano. Por um lado o mundo muçulmano, países de
5 Tal direcionamento, contudo, não visa excluir os demais contextos sociais nos quais Dawkins está
inserido, como é o caso dos Estados Unidos. É evidente a íntima relação que Dawkins mantém com o público estadunidense, visto que para o autor seria um lugar profícuo para a divulgação do ateísmo, ao constatar que o status dos ateus do EUA seria equivalente ao dos gays cinquenta anos atrás, o autor salienta que no que se refere a militância ateia haveria um longo caminho a se percorrer, mas que seria um caminho plausível na medida em que “[...] os ateus seriam muito mais numerosos, especialmente entre a elite culta, do que muita gente imagina” (DAWKINS, 2007, p.27). Desse modo, nosso recorte neste artigo, tenciona perceber como a sociedade europeia, de um modo geral, se articula fornecendo um arcabouço para Dawkins construa sua visão de mundo. Visto que, conforme abordam Berger e Luckmann (1985) as construções operadas no coletivo, quando seguem um processo de institucionalizam dos hábitos, acabam por fazer-se interiorizar-se nos indivíduos, de forma com que estes manifestem ideias, concepções, hábitos, etc., comuns à sociedade em que vivem. Sendo assim, ao nos concentramos em como algumas ideias circulam na Europa, mais especificamente na Inglaterra, buscamos encontrar correlações entre Dawkins, que é inglês, e a sociedade na qual está inserido. 6 As imagens podem ser vistas em http://www.aina.org/releases/20060201143237.htm Acessado em
21/04/2016.
maioria islâmica e nas comunidades islâmicas dos países europeus entenderam a
publicação das charges como mais um exemplo do preconceito que sofriam por
professarem sua fé.
Por outro lado, houve uma massiva articulação da opinião pública europeia que
destacava que ações como a do jornal estariam baseadas no princípio de liberdade
de expressão. Contudo, muitos indivíduos e organizações islâmicas reclamara para si
o direito da liberdade de manifestação de suas crenças. (HENKEL, 2011)
Henkel, ao desenvolver uma reflexão, partindo da análise do impacto das
charges de Maomé, acaba por tocar em dois aspectos que aqui parecem relevantes.
O primeiro se assenta na responsabilidade do Estado em garantir a liberdade dos
indivíduos, inclusive no que diz respeito manifestação de suas crenças. O segundo
aspecto, ligado ao segundo em grande medida, é como essa discussão se torna
problemática no nível da prática e como ela vai ser interpretada de modos diversos
pelos indivíduos, assim como pelas instituições de poder.
Steven A. Weldon (2006), ao discorrer sobre as perspectivas acerca das
políticas de tolerância na Europa ocidental, pontua que algumas filosofias políticas
são postas em questão, compreendendo um período que alcança o começo da
década de 1990 até os anos iniciais do século XXI. Weldon, munindo-se de sua
análise empírica, assim como de reflexões de outros estudiosos sobre o tema; aponta
que três perspectivas acerca das filosofias políticas interferentes na questão da
tolerância na Europa podem ser classificadas.
O primeiro conceito explicado por Weldon é o “collectivistic-ethnic”, que
sumariamente baseia-se no entendimento de que um grupo encontra-se ligado por
similitudes étnicas, no qual o elemento de coesão do grupo se traduz em uma herança
étnica. O segundo conceito é o de “collectivist-civic”, onde o grupo encontra unidade
em termos seculares, ou nas disposições políticas, assim cada indivíduo compartilha
valores definidos politicamente, enquanto base para sua coesão. Por fim, Weldon
explicita o conceito de “individualistic-civic”, que também pode ser chamado de
pluralista, este ideal toma enquanto princípio de que todo o indivíduo tem o direito de
exercer livremente sua orientação cultural, assim o dever o Estado seria garantir que
grupos considerados minoritários tenham liberdade para exercerem suas crenças e
práticas.
Compreendendo estas três categorias enquanto modelos existentes na
sociedade europeia, Weldon, quando observa Grã-Bretanha, território que
compreende a Inglaterra, País de Gales e Escócia; observa que no geral, sua filosofia
política está mais próxima do que se conceitualiza enquanto “individualistic-civic”.
Assim, a partir dos questionários aplicados nesta região foi possível inferir que a
tolerância social e política é mais empregada no que diz respeito às minorias étnicas.7
Brighton (2007) também destaca o caráter multicultural da Inglaterra, que em
sua constituição histórica toma “integração” como um dos conceitos básicos no que
se refere na política para com as minorias. Brighton explica que desde década de
1960 a integração das minorias étnicas é debatida no âmbito político sob a ideia de
um multiculturalismo.
Brighton explica que em 1999 o Primeiro Ministro Tony Blair faz um discurso
salientando a necessidade da implementação a “doutrina da comunidade
internacional”. Este ideal tinha como princípio a ideia de que os seres humanos
compartilhariam valores globais, e que, portanto se basearia na concepção que
humanidade tem princípios em comum. Contudo, os acontecimentos do século XXI,
como os atentados do 11/09 e os atentados aos transportes públicos de Londres em
Julho de 2005, provocaram mudanças significativas no tratamento às diferenças
culturais. (BRIGHTON, 2007)
Os atentados aos transportes públicos londrinos, apesar de terem sido
realizados por cidadãos ingleses ligados a Al-Qaeda, promoveram uma longa
discussão acerca das políticas de imigração e a situação das minorias étnicas no país.
A pressuposição de que os ataques aconteceram pelo fato de que os muçulmanos
não estavam adequadamente integrados na sociedade, chamou a atenção para a
marginalização social e econômica sofrida por este grupo no âmbito da prática, à
7 A categorização do seria uma “minoria étnica” é variável de acordo com o país em que a pesquisa foi realizada, sendo assim Weldon justifica-se: Respondents had to first identify an ethnic minority group that they personally found “disturbing.” However, as a control group, tolerance questions also were administered to those who stated that there is an ethnic minority group other people in the country sometimes find disturbing. Since we want to understand cross-national variations in tolerance levels, as well as minimize missing data, I merged both groups to form the respondent population for the analysis. To ensure the respondent population was representative of the population as a whole, I ran difference of means tests for all individual-level independent variables in each country, comparing the respondent populations with those who failed to answer either question positively. No significant differences were found, suggesting that the respondent population is, in fact, representative of the population as a whole. (WELDON, 2006, p.336)
revelia da quimérica política multicultural almejada nas décadas passadas.
(BRIGHTON, 2007)
Com isso, em 2006 foi lançado o plano “prevenindo o extremismo juntos”. O
plano era que o governo e as entidades islâmicas do país trabalhassem juntos para
que questões como o tratamento das mulheres, a educação dos jovens muçulmanos,
treinamento das imãs regionais e locais, fossem repensadas. Através dessas medidas
esperava-se promover a integração dessa minoria étnica e ao mesmo tempo prevenir
radicalismos. (BRIGHTON, 2007)
Apesar das políticas afirmativas adotadas pela Inglaterra em favor das
minorias, como os muçulmanos, desde meados do século XX, Brigthon destaca que
estas muitas vezes foram utilizadas a fim de legitimar certo imperialismo por parte do
governo britânico. Ou seja, quando Tony Blair, primeiro ministro inglês entre os anos
de 1997 e 2007, diz que “We have to show that these are not western still less
American or Anglo-Saxon values but values in the common owership of humanity,
universal values that should be right of the global citizen” (BLAIR apud BRIGTHON,
2007, p.15) ele está a professar um modelo de sociedade a ser imposto para as
minorias. Ainda que se mantenha o tom “multicultural” dessas ações.
Desse modo, pensando em uma política inglesa que possui a pretensão de
fundamentar um discurso, no qual o projeto de integração ou até mesmo de proteção
dos muçulmanos é importante para a manutenção da sociedade nos mais diferentes
aspectos8. Tais políticas afirmativas, em relação aos muçulmanos, poderia ser,
portanto, ser vetor importante na construção do que Dawkins nomina enquanto uma
“sociedade polida laica”, que mesmo não sendo essencialmente religiosa, protege
religiões que se configurariam enquanto um mal?
Considerações finais: O “privilégio da religião” na “sociedade polida laica”
8 A presença dos muçulmanos em países europeus é um aspecto que precisaria de um maior
aprofundamento, visto que estes indivíduos, por vezes, encontram dificuldades em integrar-se a sociedade como um todo. Porém, por ora, cabe dizer que uma parcela da sociedade preocupava-se com o “radicalismo político”, as práticas sociais ligadas ao islamismo e a questão da delinquência, que alguns associavam aos jovens muçulmanos; enquanto outros grupos frisavam o caráter liberal e multicultural da maioria dos países europeus, que pretendem respeitar a identidade dos diferentes grupos. (HENKEL, 2010) Com isso, podemos dizer que de qualquer forma a discussão acerca da presença dos muçulmanos na Europa foi e ainda é fonte de intensos debates.
Dawkins, ao falar do privilégio que a religião possui, vê como problemática a
proteção de práticas religiosas possuem na sociedade. É certo que Dawkins não está
apenas a se referir ao islamismo. Entretanto, ao pensarmos em um contexto de
produção de Deus, um delírio, onde a presença dos muçulmanos está sendo
amplamente discutida na Europa, podemos deduzir que as ideias e práticas, inclusive
as políticas, tem peso considerável na construção do discurso de Dawkins acerca da
religião em um âmbito mais geral. Assim, tanto os debates sobre tolerância e
intolerância que se estenderam na Europa após o episódio das charges de Maomé,
quando as ações e ideais políticos na Inglaterra são significantes quando procuramos
entender as representações efetuadas por Dawkins relativas a presença da religião.
Dawkins em sua obra traz críticas diretas e indiretas ao governo inglês e ao
primeiro ministro Tony Blair, partindo, assim, do entendimento que a “política da
diversidade” é um dos abrigos das vozes da religião:
A mesma tendência a glorificar o exotismo de costumes religiosos étnicos, e de justificar crueldades em nome dele, aparece a todo momento. Ela é a fonte de conflitos internos na cabeça de pessoas liberais e de bem que, por um lado, não suportam o sofrimento e a crueldade, mas por outro foram treinadas por pós-modernistas e relativistas a respeitar as outras culturas tanto quanto a sua. (DAWKINS, 2007, p. 418)
Dawkins ainda tece críticas acerca da política da “diversidade” em direção ao
primeiro-ministro inglês à época, Tony Blair:
O primeiro-ministro de meu país, Tony Blair, invocou a "diversidade" quando desafiado na Câmara dos Comuns pela deputada Jenny Tonge a justificar o subsídio governamental a uma escola no nordeste da Inglaterra que (de forma quase isolada na Grã- Bretanha) ensina o criacionismo bíblico literal. O sr. Blair respondeu que seria triste se preocupações relativas àquela questão interferissem na obtenção de "um sistema escolar tão diverso como o que podemos ter" (DAWKINS, 2007, p.421-422)
Defender a diversidade, portanto, na visão de Dawkins, seria legitimar os
“rótulos”, especialmente o rótulo de pertença à uma religião. Este rótulo, seria
responsável por várias disputas entre grupos, sendo frequentemente utilizado, quando
“rótulos como a cor da pele, a língua ou o time de futebol preferido” (DAWKINS, 2007,
p.34) não entram em cena. Assim, a questão da diversidade para Dawkins seria
problemática não somente no que concerne ao espaço que a religião ocupa, mas
também pela legitimação das diferenças religiosas, que causariam inimizades.
A presença da religião, sustentada pela ideia de valorização da diversidade, na
opinião de Dawkins demonstra também a dificuldade que a esfera política tem de
categorizar a religião ou alguns tipos de religião enquanto danosa para o bem comum.
Esta dificuldade não é exclusiva da política, mas Dawkins entende que a mídia, além
de descaracterizar o problema que a religião causaria, ainda concede espaço para
que os representantes religiosos possam discorrer sobre uma variedade de temas.
Já em 2003, na obra O capelão do Diabo9, Richard Dawkins chamou atenção
para a atenção da mídia para com a religião. Ao apresentar a repercussão midiática
sobre o caso da clonagem da ovelha Dolly no final da década de 1990, Dawkins
questiona o espaço de fala concedido aos representantes religiosas sobre o tema.
Deste modo, pensar uma obra, ou até mesmo seu público leitor, se assenta na
percepção das configurações inerente aos “usos” e interpretação do sujeito que
observa uma realidade e a representa. A partir disso, pensar em uma representação
significaria, primeiramente, entender as atribuições efetuadas pelos indivíduos ao um
objeto. Esta operação designaria ao mesmo tempo uma ausência e uma presença,
isso porque ao representar uma imagem, a partir de suas referências memoriais, o
indivíduo se afastaria da “imagem original”. Contudo, este afastamento implica em
uma nova construção, presentificando, e, portanto, representando uma determinada
realidade. (CHARTIER, 1991)
A partir do que Chartier categoriza como “representação” é possível ver que
Dawkins atesta uma presença ao elemento muçulmano na sociedade. O pesquisador
Uzma Jamil (2014), ao buscar entender a composição da ideia do islã pelo ocidente,
considera que o episódio do 11/09 é marcante no que diz respeito a construção da
imagem do muçulmano. Após tal fato, o discurso na mídia e na política manifestam a
ideia de “guerra ao terror”10. Tais discursos colaboraram para que muitas pessoas,
9 A obra foi publicada no Brasil pela primeira vez em 2005 e consiste em uma coletânea de diversos textos de Dawkins compilados. 10 O discurso do presidente estadunidense à época, George Bush, em 20/09/2001 é bastante elucidativo no que diz respeito à essa “guerra ao terror”. Em seu discurso, Bush enfatizou o caráter terrorista do episódio do 11/09, destacando a Al Qaeda enquanto uma organização terrorista inimiga da nação e consequentemente, inimiga da democracia. Por conseguinte, este grupo é caracterizado como inimigo das liberdades, da liberdade religiosa, da liberdade de expressão, da liberdade de voto e
não somente os cidadãos estadunidenses, se entendessem enquanto vítimas de um
terrorismo global.
Deste modo, com as constantes discussões e representações da imagem do
islamismo nos âmbitos públicos, muitos tenderam a relacionar o muçulmano ao
terrorismo. Até mesmo a denominação religiosa “muçulmano”, por vezes, passou a
ser contornada, sendo preferível o termo “muçulmano moderado”. Portanto, o
islamismo, de um modo geral, é cada vez mais visto enquanto inimigo da liberdade e
da democracia. (JAMIL, 2014)
Contudo, os pré-conceitos acerca do Islã formulados no ocidente, chamaram
atenção para as práticas visíveis dos muçulmanos, como o uso do véu pelas mulheres,
os casamentos forçados, a mutilação genital feminina, dentre outros. Algumas destas
práticas eram aparentes no cotidiano inglês, fomentando um certo “paradoxo” entre
as prerrogativas multiculturais do país e a real manifestação das práticas islâmicas.
(MEER, MODOOD, 2009)
Estas práticas islâmicas são compreendidas enquanto ligadas a sharia, sistema
de leis próprios à comunidade muçulmana. Isso, de certa forma mostrou-se
conflituoso, na medida em que viria de encontro com o senso de “Britishness”, termo
que consistiria em um ideal de coesão da sociedade11.
Assim, há a uma ideia do que é ser britânico, o que não significaria, portanto,
celebrar as diferenças, mas sim, a diversidade de culturas sob o mesmo espaço, de
modo que as pessoas possam conviver harmonicamente. Desta forma, a política de
da liberdade de discordância, respectivamente. A ação da Al Qaeda, é qualificada por Bush não somente a nível local, mas também é acusada de interferir em democracias no oriente médio, assim como é acusada de interferir nas liberdades religiosas de cristão e judeus na Ásia e na África. Com isso, o ex-presidente os caracteriza como herdeiros das “ideologias assassinas do século XX”, dando ênfase na necessidade de uma guerra sem precedentes contra a Al Qaeda. Em conclusão, Bush faz uma chamada aos outros países para que tomem uma posição, e em um tom enfático diz: “Cada nação, de cada região, tem agora uma decisão a tomar: ou eles estão conosco ou estão com os terroristas.” (Tradução livre). O discurso se encontra disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=7uODYQKAVDg Acesso em: 06/05/2016 11 O termo foi destacado por Nasar Meer e Tariq Modood (2009) e por Brigthon(2007), sendo caracterizado por ser “meta-membership”, que, sumariamente, seria um ideal de coesão da sociedade. Merr e Modood trazem um relato, que foi endossado pelo governo britânico, proferido por Sir Bernard Crick acerca do termo “Britshness”: “[...] respect [for] the laws, the elected parliamentary and democratic political structures, traditional values of mutual tolerance, respect for equal rights and mutual concern... To be British is to respect those over-arching specific institutions, values, beliefs and traditions that bind us all, the different nations and cultures together in peace and in a legal order. ... So to be British does not mean assimilation into a common culture so that original identities are lost.” (CRICK apud MEER, MODOOD, 2009, p. 484)
“integração” inglesa não seria uma política de “assimilação”, isso quer dizer que em
primeiro plano, estaria o ser britânico na vida pública, estar sob a tutela da democracia
e valores de mútua tolerância; e, em segundo plano, o livre exercício religioso.
Agora, podemos partir para algumas suposições acerca da representação de
Dawkins com relação ao islamismo. Se para Dawkins mesmo a expressão muçulmana
moderada, termo que aparece quase em tom de justificativa neste período, é
considerada danosa, as expressões mais extremas são categorizados como
opositores diretos à liberdade e aos princípios das “sociedades iluminadas”.
Apesar das críticas profundas de Dawkins com relação ao islamismo, ao ponto
de ser acusado de adotar uma linguagem intolerante, o autor se defende e procura
afastar-se desta alcunha. Deste modo, o autor entende-se e entende sua obra
enquanto um convite para a liberdade de escolha, compreendida enquanto valor
inerente a todo ser humano.
Fonte impressa:
DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007
Bibliografia:
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Editora da Unicamp,
1996
BRIGHTON, Shane. British Muslims, multicuturalism and UK foreign policy:
‘integration’ and ‘cohesion’ in and beyond the state. International affairs, London, v.
83, n.1, p. 1 -17, 2007
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo,
v. 11, n. 5, p. 173-191, 1991
DAWKINS, Richard. O capelão do Diabo: ensaios escolhidos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003
HENKEL, Heiko. Fundamentally Danish? The Muhammad Cartoon Crisis as
Transitional Drama. Human Architecture: Journal of the sociology of self-
knowledge, Belmont, v. 8, n. 2, p.67-82, outono, 2010
JAMIL, Uzma. Reading Power: Muslims in the War on Terror Discourse.
Islamophobia Studies Journal, Berkeley, v. 2, n.2, p.29-42, 2014
MEER, Nasar; MODOOD, Tariq. The Multicultural State We’re In: Muslims,
‘Multiculture’ and the ‘Civic Re-balancing’ of British Multiculturalism, Political Studies,
Bristol, v. 57, p. 473-497, 2009
MORIN, Edgar. O método 4: As ideias, habitat, vida, costumes, organização.
Trad. Juremir Machado. 5ª ed. Porto Alegre: Sulinas, 2011.
WELDON, Steven A. The Institutional Context of Tolerance for Ethnic Minorities: A
Comparative, Multilevel Analysis of Western Europe. American Journal of Political
Science, Michigan, v. 50, n. 2, p. 331-349, 2006