À sombra da jurema - a tradição dos mestres juremeiros na umbanda de alhandra

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  • 8/7/2019 sombra da jurema - a tradio dos mestres juremeiros na Umbanda de Alhandra

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    RevistaANTHROPOLGICAS, ano 8, volume 15(1): 99-122 (2004)

    sombra da Jurema:a tradio dos mestres juremeiros

    na Umbanda de AlhandraSandro Guimares de Salles1

    Resumo

    O presente trabalho versa sobre o culto da Jurema em Alhandra(municpio localizado no litoral sul da Paraba), tendo como princi-pal objetivo compreender o encontro entre esta tradio, que re-monta aos ndios da antiga aldeia Aratagui, e a Umbanda, cujaexpanso acompanha a burocratizao das instituies religiosas noEstado. No contexto do novo culto, a Jurema ser submetida auma reinterpretao mitolgica e ritual. Estas mudanas, contudo,no ocorreram de modo passivo, mas dentro de um processo din-mico e dialtico. Assim, procuramos mostrar, a partir dos relatosdos seus protagonistas, a importncia, na configurao dos atuaiscultos umbandizados, desta tradio, que fez de Alhandra referncia

    maior do culto para os juremeiros nordestinos.Palavras-chave: religiosidade popular, tradio, Umbanda, Jurema.

    1 Mestre em Cincias Sociais/Antropologia. E-mail: [email protected]

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    Abstract

    The present work examines the cult of the Jurema in Alhandra(town located in the southern coast of the Paraba) and has as itsmain purpose to understand the meeting between this tradition,

    which goes back to the native Brazilians of the old village of Arata-gui, and the Umbanda, whose expansion follows the bureaucrati-zation of the religious institutions in the State of Paraba. In thecontext of the new cult, the Jurema will be submitted to a brandnew mythological and ritual interpretation. These changes, however,did not occur in a passive way, but within a dynamic and dialectical

    process. Thus, we try to show from the stories of its protagoniststhe importance of that tradition in the configuration of the presentday umbandizared cults, which made of Alhandra one of thegreatest references for the northeastern juremeiros (followers of

    Jurema).

    Key words: popular religiosity; tradition; Umbanda; Jurema.

    Introduo

    O interesse pelo fenmeno da Jurema aparece muito tardiamente

    entre os estudiosos da religiosidade popular no Brasil. Mesmo sua pre-

    sena nos candombls de caboclo, registrada por Arthur Ramos (1988),

    Manuel Querino (1988) e Edison Carneiro (1991), passa quase desperce-bida ou ignorada por esses autores. O fato que desde Nina Rodrigues

    as atenes estavam voltadas para as religies afro-brasileiras conside-

    radas mais autnticas, mais puras, sobretudo as de tradio jeje-nag, o

    que levou Bastide a afirmar, com relao aos congressos sobre o negro,

    realizados na dcada de 1930 em Salvador e Recife, que neles o interesse

    pelo afro-brasileiro era sempre mais pelo afro que pelo brasileiro.

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    Nos ltimos anos, porm, a Jurema tem sido objeto de um debate

    significativo no mbito das Cincias Sociais. Este expressivo interesse

    pelo tema, no entanto, surge aps quase meio sculo dos trabalhos pio-

    neiros de Mrio de Andrade (1983) e Gonalves Fernandes (1938). Nessa

    redescoberta do tema em nossos dias, um dos enfoques dados a este

    fenmeno nos parece bastante significante: o culto da Jurema no mbito

    da Umbanda. Esta, desde o seu surgimento na primeira metade do

    sculo XX, tem se repartido em uma multiplicidade de verses, que re-

    fletem a prpria diversidade do povo brasileiro. O presente trabalho dis-

    cute o encontro entre esses dois universos no municpio de Alhandra,PB, buscando compreender suas implicaes na configurao dos atuais

    cultos umbandizados. Em nossa reflexo, procuramos mostrar que a sin-

    gularidade da Umbanda praticada na regio reside, sobretudo, na impor-

    tncia para os seus adeptos de um legado mtico e simblico, advindo da

    tradio local dos mestres juremeiros.

    Na tentativa de uma apresentao preliminar do que chamamos de

    culto da Jurema, podemos defini-lo como um complexo semitico, fun-

    damentado no culto aos mestres, caboclos e reis, cuja origem remonta

    aos povos indgenas nordestinos. As imagens e smbolos presentes neste

    complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos juremeiros como

    um Reino Encantado, os Encantos ou as cidades da Jurema.

    Um legado indgena

    Ainda conhecemos muito pouco sobre a religiosidade dos ndios

    nordestinos e menos ainda da religiosidade dos ndios do perodo colo-

    nial. Contudo, no necessrio muito esforo para perceber que neles se

    encontram as gneses do culto da Jurema. De fato, a presena de ele-

    mentos amerndios no cerimonial, a importncia da Jurema como ele-

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    mento de identidade tnica dos atuais povos indgenas do Nordeste,

    entre outros, no deixam dvidas quanto a essa procedncia. Podemos

    mencionar, ainda, a existncia de documentos que registram a ligao

    desses povos com a Jurema no perodo colonial. Um dos mais antigos, j

    bastante citado na literatura sobre o tema, foi descoberto por Cmara

    Cascudo, nos Arquivos da S em Natal. Nele mencionado o faleci-

    mento na priso, em 1758, de um ndio da aldeia Mepibu, no Rio Grande

    do Norte, preso por ter feito adjunto de jurema (Cascudo 1978: 28).

    Em 1788, o padre Jos Monteiro de Noronha faz, em seu Roteiro da Via-

    gem da Cidade do Par at as ltimas Colnias do Serto da Provncia, o seguinterelato sobre os ndios Amanaj: Nas suas festividades maiores uzo os

    que so mais hbeis para a guerra da bebida que fazem da raiz de certo

    po chamado Jurema cuja virtude nimiamente narctica (apud

    Lima 1946: 60).

    De um modo geral, a literatura deixada pelos escritores coloniais,

    bem como os documentos alusivos a esse perodo, ainda que de in-

    questionvel valor, so bastante superficiais quanto religiosidade desses

    povos. O fato que desde o primeiro sculo da colonizao foi difun-

    dida pelos missionrios a idia de que os ndios brasileiros no tinham

    religio, vivendo em completa anomia. Costumava-se dizer, por exem-

    plo, que a lngua dos gentios carecia das letras F, L e R e, deste modo,

    no possuam f, lei ou rei. Como escreveu frei Vicente de Salvador:

    Nenhuma f tm, nem adoram a algum deus; nenhuma lei guardam oupreceitos, nem tm rei que lhad e a quem obedeam (Salvador 1975:

    78). Assim, ao contrrio dos colonizadores hispnicos, cuja tradio

    demonolgica fez predominar a idia do ndio como um ser herege, os

    portugueses viam os habitantes do Novo Mundo como criaturas no

    idlatras, que no acreditavam em Deus, mas tambm no acreditavam

    no diabo. Como dir Viveiros de Castro: antes de serem efmeras e im-

    precisas esttuas de murta, os tupinambs foram vistos como homens de

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    cera, prontos a receber uma forma (apudVainfas 1999:29).

    Contudo, ainda no Brasil quinhentista surgem as primeiras mani-

    festaes de uma religiosidade nascida do encontro entre missionrios e

    ndios, inserindo o catolicismo na mitologia indgena. A chamada Santi-

    dade (Vainfas 1999) iria pr em cheque a idia de irreligiosidade indgena

    e, sobretudo, contradizer a apregoada docilidade dos tupis.2 Para

    Souza, o surgimento de uma religiosidade popular ainda no Brasil qui-

    nhentista, como foi o caso da Santidade, estaria ligado ao fato da prpria

    cristandade brasileira se distanciar da cristandade romana. Assim, o tipo

    de relao implementada entre Roma e o Clero no Brasil teriam dadoespao para o surgimento de uma cristandade especificamente colonial,

    muitas vezes subordinada ao poder temporal ou econmico. Segundo a

    autora, Mestios de branco, ndio e negro, estaramos como que conde-

    nados ao sincretismo pelo fato de no sermos uma cristandade romana

    (Souza 2002:88).

    O que fundamental em nossa reflexo, e para a discusso sobre o

    culto da Jurema, o fato da Santidade mostrar, ainda no primeiro sculo

    da colonizao, que os ndios estavam longe de absorver de forma pas-

    siva as idias e crenas do cristianismo europeu. Ao contrrio das

    narrativas da histria oficial, durante a colonizao os invasores tiveram

    que enfrentar forte resistncia desses povos. A Jurema e a Santidade,

    portanto, seriam exemplos desta resistncia ao colonialismo portugus.

    2 As santidades, e especialmente a Santidade de Jaguaripe, foram registradas atra-vs das confisses e denncias de baianos e pernambucanos diante do tribunalda inquisio em 1591 e 1592, e de dezenas de processos manuscritos deposi-

    tados na torre do Tombo em Lisboa.

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    A Vila de Alhandra e o Cl do Acais

    De acordo com Machado (1977), a aldeia Iguaraig, a que se

    refere Jaboatam, seria a mesma Aratagui. Assim, a primeira referncia

    aldeia que deu origem Alhandra teria sido feita ainda no final do sculo

    XVI. Esta teria sido construda pelos frades menores para proteger a

    nova fazenda do Capito Duarte Gomes (Jaboatam 1980). Os ndios l

    assentados vinham de um aldeamento jesuta e eram provavelmente

    tabajaras, uma vez que neste perodo o litoral sul, sob controle dosportugueses, era habitado por ndios aliados. Pouco tempo aps sua fun-

    dao, com a finalidade de mant-los mais distantes dos moradores, a

    aldeota e sua igreja seriam transferidas meia lgua acima. Em 1610, a

    aldeia aparece no Catlogo da Companhia de Jesus, com o nome de

    Assuno, estando sob a administrao dos jesutas de Olinda. Em 1746,

    ela administrada pelos padres oratorianos, sendo ento registrada como

    aldeia de Nossa Senhora da Assuno de Aratagu, pertencendo fregue-sia de Taquara. Doze anos mais tarde, na ocasio da elevao da aldeia

    categoria de vila, recebe o nome de Alhandra.3

    Quase um sculo aps ter se tornado vila, a antiga aldeia Aratagui

    continuava sendo habitada basicamente por ndios. Como demonstra a

    carta do Vigrio de Alhandra, Braz de Melo Moniz, de 14 de setembro

    de 1826,

    4

    o qual cumpria ordem do imperador para que fossem forne-cidas informaes que ajudassem na elaborao do plano geral da civili-

    zao dos ndios. Para tanto, o imperador precisava de dados sobre a

    3 O nome foi dado pelo Juiz de Fora da Comarca de Pernambuco, Miguel CarlosCaldeira de Pina Castelo Branco, em homenagem Vila de Alhandra portuguesa.

    4 Carta de 1826, encontrada no Arquivo Pblico da Paraba, do Vigrio deAlhandra ao Presidente da Provncia da Paraba, Alexandre Francisco de Seixas

    Machado.

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    Maria do Acais, recentemente falecida no chalet beira da estrada Joo

    Pessoa-Recife, confronte a sua capela cheia de santos bonitos, no seu stio

    imenso, gozou dum prestgio considervel que impunha sua reputao de

    grande catimbozeira. (...) era uma feiticeira notvel, enriquecida, de modos

    de grande senhora. A sua tcnica mgica, todavia, no era diferente dessa

    de todo dia das outras mesas. Mas as suas sesses eram muito fechadas, e o

    que fazia para todo mundo eram trabalhos encomendados e que realizava

    sem assistncia, no recesso do seu pequeno templo, defronte ao chalet.

    (Fernandes 1938: 85-86)

    A referida juremeira era irm do mestre Casteliano Gonalves e

    sobrinha da mestra Maria Gonalves de Barros, tambm conhecida por

    Maria do Acais (a primeira), de quem herdou, por volta de 1910, a pro-

    priedade denominada Acais.6 Esta, hoje pertencente a uma de suas netas,

    localiza-se ao oeste de Alhandra, as margens da antiga estrada Joo

    Pessoa/Recife. Possui uma casa principal, algumas casas de moradores e,

    na parte mais alta da fazenda, a capela de So Joo Batista. Por trs da

    capela, encontra-se uma escultura de um tronco de jurema, feita em con-

    creto na dcada de 1950, sobre o tmulo do mestre Flsculo, filho de

    Maria do Acais. Descendo um pouco direita, por trs da casa principal,

    v-se uma das cidades mais antigas de Alhandra, formada por trs ps

    de jurema preta. O lugar freqentemente visitado por fiis vindos deoutras cidades e at de outros Estados, que l rezam, acendem velas e

    6 A primeira referncia ao Acais feita acidentalmente, em 1934, por ArthurRamos, em O Negro Brasileiro. Nele, o autor cita um texto publicado noJornal de

    Alagoas, em que relatada uma caravana de Macei com destino ao Acais. Amatria explora, sobretudo, o fato de ter a mestra repreendendo um dos visi-tantes que descansava sob um p de jurema, a quem chamava mestre Esperidio,alegando que tal ato desrespeitoso seria a causa do insucesso do trabalho de cura

    por ela realizado.

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    deixam oferendas.

    O culto praticado pela tradicional famlia do Acais era o Catimb.

    Embora o termo apresente um carter bastante genrico, iremos utiliz-

    lo para designar o tipo de culto da Jurema que predominou em Alhandra

    at meados da dcada de 1970. Suas sesses, no entanto, no se diferen-

    ciavam, em parte, das atuais sesses de mesa ainda praticadas nos terrei-

    ros umbandizados: ambas consistem em sesses de consulta, de carter

    mais individual, nas quais o cliente recorre ao mestre (mdium) em busca

    de cura para seus males fsicos, mentais, espirituais ou, ainda, para resol-

    ver problemas do cotidiano os mais variados possveis.Contudo, o Catimb no pode ser descrito apenas como uma sesso

    de mesa, voltada exclusivamente para as aflies e urgncias do dia-a-dia,

    como a cura de enfermidades, problemas amorosos, intrigas na comuni-

    dade, etc. Embora o carter teraputico seja, de fato, central no culto,

    deve-se considerar em sua anlise a existncia de um complexo sistema

    de crenas, do qual conhecemos ainda muito pouco, fundamentado no

    Reino dos Encantados e nas cidades da Jurema.7 A semelhana deste

    culto na Paraba com aqueles descritos por Andrade (1983) e Cascudo

    (1978), sobretudo no Rio Grande do Norte, nos permite afirmar que o

    Catimb se expandiu por uma rea relativamente extensa.8 Este fato do

    mesmo modo exemplificado pela presena destes elementos nas sesses

    de Jurema realizadas no mbito da Umbanda, em vrias cidades do

    serto nordestino, como registrou Assuno (1999).

    7 Estas seriam sete: Jurema, Vajuc, Juna, Angico, Aroeira, Manac e Catuc.8 Ambos descreveram a utilizao dos mesmos objetos litrgicos, como a prin-

    cesa, o prncipe, a marca mestra e o fumo. H, do mesmo modo, referncia aum Reino Encantado da Jurema, alm da utilizao de uma mesma terminologiae da presena de entidades comuns, a exemplo do mestre Carlos, de Manoel

    Cadete, Rei Eron, entre outros.

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    As Cidades da Jurema: entre o passado e o presente

    A planta considerada sagrada em Alhandra a Mimosa tenuiflora

    (Willd.), jurema-preta, que pertence famlia das mimosaceae. De suas

    razes ou cascas produzida a bebida consumida durante as sesses. No

    Catimb, os ps de jurema utilizados na fabricao dessa bebida eram

    calados e consagrados a um mestre encantado, constituindo, assim, as

    chamadas cidades da Jurema. Estes espaos sagrados, apesar da

    reinterpretao que perpassa todo o culto, continuam a ocupar umaposio central no universo mitolgico dos atuais juremeiros da

    Umbanda.

    Ren Vandezande foi o primeiro a se ocupar deste fenmeno. Em

    nossa pesquisa, procuramos saber qual a atual situao destes santurios

    por ele registrado e o que hoje significam para os atuais mestres da

    Umbanda. Durante sua pesquisa em Alhandra, Vandezande registrou dez

    cidades, sendo nove em Alhandra e uma na praia de Tambaba, perten-

    cente ao municpio vizinho do Conde. Destas, duas j tinham desapare-

    cido, a de Tambaba e a do mestre Manuel Cadete. Esta ltima, hoje mais

    conhecida como cidade do mestre Cesrio, ressurgiu anos aps sua pes-

    quisa. Das oito que existiam, seis encontravam-se abandonadas e em vias

    de desaparecimento.

    Em Estivas, cujo acesso, sobretudo no inverno, bastante difcil,existia a cidade do mestre Major do Dia. A propriedade, tambm her-

    dada por Maria do Acais, foi vendida por sua nora, mestra Damiana.9

    Tempos depois, Estivas seria palco de um conflito de terra, que resultaria

    no assassinato de um dos seus moradores, o mestre Adauto. Em nossa

    9 Mestra Damiana era filha de Manoel Ferreira, conhecido como mestre ManoelCabor, e da mestra Maria Casimira Gonalves, sobrinha de Maria do Acais.

    Nomes de prestgio no Catimb de Alhandra.

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    ltima visita propriedade, encontramos a casa do stio demolida e o que

    restou dela invadida pelo mato. No lugar onde havia o renomado p de

    jurema existe agora uma lavoura. Vandezande, que conheceu este santu-

    rio, escreveu:

    A cidade mais antiga de jurema, cujo p de jurema teria sido plantada pelo

    mestre Incio, regente dos ndios, o arbusto velho e enorme que se

    encontra na atual propriedade Estivas, cujas fotografias esto saindo nos

    jornais e televiso... l perto h uma pequena casa escondida entre as

    rvores onde o ritual do Catimb praticado todos os sbados.(Vandezande 1975:129)

    A cidade do Acais formada por trs ps de jurema. O maior deles

    tambm dedicado ao mestre Major do Dias. O arbusto foi plantado

    junto s razes, ainda hoje preservadas, de uma jurema muito antiga, que,

    segundo Dorinha, atual proprietria, j existia quando sua av, Maria do

    Acais, em 1910, foi morar na fazenda. No Acais, pedaos de tronco e

    velhas razes de antigos ps que compunham as cidades so mantidos h

    dcadas exatamente no mesmo lugar. Assim, ao lado dos antigos ps de

    jurema, novos so plantados, garantindo, deste modo, a continuidade

    destes santurios.

    No lugar chamado Tapui encontra-se a cidade do mestre Cesrio.

    O local, cercado por uma lavoura, forma um grande crculo, tendo emseu interior, alm da cincia do mestre, vrias plantas e rvores. O san-

    turio fica dentro da propriedade do Sr. Silva, que, embora no freqente

    nenhum terreiro ou centro, permite as visitas e toques que so realizados

    no local.

    No centro de Alhandra existe a cidade da mestra Jardecilha, jure-

    meira mais conhecida por Zefa de Tino. Trata-se de uma cidade rela-

    tivamente nova, que, ao contrrio das demais, surge no contexto da

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    Umbanda, em meados da dcada de 1970. Dona Zefa ficou conhecida

    em Alhandra pelas sesses que realizava ao ar livre, denominadas por ela

    de tor, e por ter sido representante em Alhandra da Federao dos

    Cultos Africanos do Estado da Paraba.10

    As demais cidades mencionadas pelo autor, do mestre Tand, no

    stio Serro, do mestre Zezinho, no Acais de Cima, e o da mestra Izabel,

    no Camaari e no Tamaup das Flores, no existem mais.

    A jurema para ser considerada sagrada deve passar por um ritual que

    a diferencie das demais rvores. Mestre Incio da Popoca, com oitenta e

    dois anos de idade, que acompanhou vrios destes rituais em Alhandra,nos diz: [...] a cidade da Jurema s tem valor quando calada, inci-

    mentada. A da pra ela continuar [...] A cidade calada tem toda uni-

    dade... Se ela simples, no vale nada, um p de rvore qualquer.

    Existem diferentes formas de calamento ou incimentamento da

    jurema. Todas, no entanto, tm no fumo, o calo, seu elemento central.

    , ainda, mestre Incio da Popoca quem nos descreve como eram cala-

    das as cidades:

    Voc pega uma raiz daquela, serra ela, pega um taco de fumo assim, voc

    no corta, se cortar o fumo no presta, ento vai botando tudo at quebrar.

    Quando quebra, voc bate aqui, acende um cigarro, a a fumaa vem

    acompanhando, acompanhando, quando chegar distncia de abrir dois

    galhos, a aquela fumaa faz uma tochinha assim, a quebra uma praaqui, outra pra aqui, a voc marca, serra ela aqui pra tirar, pra fazer

    mestre, e aqui pega um taco de fumo e bate assim, cala ela todinha.

    A centralidade que as cidades ocupam no sistema de crena da

    10 Alm da autoridade que possua como representante do referido rgo, dona

    Zefa exerceu forte influncia espiritual sobre os mestres.

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    Umbanda local um dos aspectos singulares desta religio em Alhandra.

    A cidade de Tambaba, j desaparecida na poca da pesquisa de Vande-

    zande, a que mais se destaca neste contexto, sobretudo pelas suas im-

    plicaes na concepo do post-mortem, para a maioria dos umbandistas

    locais. Durante a nossa pesquisa, ouvimos diversas referncias a esta

    cidade como sendo o lugar para onde vo os espritos dos juremeiros

    mortos. Dona Judite, por exemplo, que gira na casa do mestre Edu,

    afirma:

    Quando ele morre [um juremeiro], que cientista mesmo, vai pra Praiade Tambaba. A gente sente quando ele morre. Vo porque tm que ir. Ele

    tem que passar por l logo. Ele vai pra l, depois ele vai procurar outros

    cantos.

    Muitos afirmam ouvir o estrondo que o mar faz quando morre

    um mestre. Como afirma Dona Ivete, filha-de-santo do mestre Ciriaco:

    Quando morreu seu Z Quati o mar deu um estrondo que todo mundo

    ouviu... Quando morre um catimbozeiro o mar d um estrondo. Hist-

    ria semelhante ouvimos do mestre Sebastio, juremeiro de setenta e trs

    anos de idade:

    Aqui no, mas na fazenda Abia, de l, o pessoal oice, oice o estrondo.

    tanto que at os crente mesmo, cumpade Vicente. As vezes, quando eutrabalhava l, eu dizia: cumpade, morreu algum catimbozeiro pro lado de

    Alhandra? Quando tinha morrido (ele dizia), morreu, que Tambaba esta

    noite deu uns estrondo que estremeceu o terreno de minha casa. Quando

    um juremeiro morre a cidade de Tambaba dispara [...]

    No h juremeiro em Alhandra que desconhea o fenmeno. Sua

    interpretao, contudo, bastante variada. Mestre Edu, o mais novo dos

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    pais-de-santo de Alhandra, dono do Templo Religioso Orix So Joo

    Batista, nos diz: Quando morre um juremeiro, a a pedra de Tambaba

    explode, d um estrondo. Eu j ouvi dizer por muito xangozeiro velho

    que fala isso, sabe?.

    J mestre Deca, pai-de-santo do Centro Esprita Ogum Beira Mar,

    procura interpretar o fenmeno partindo de uma concepo mais teol-

    gica:

    Olha, primeiro o que acontece que a alma vai at a cidade, da cidade vai

    at Tambaba, da Tambaba passa uns sete anos, com sete anos receberuma luz, uma limpeza, pra poder trabalhar nas matrias. Aqui, o ritmo

    da gente esse. botar a alma daquele mestre at a Tambaba, que nas

    cidades, n? Pra receber limpeza, doutrina, pra poder voltar trabalhar nas

    matrias.

    As cidades da Jurema so lugares sagrados e, como tais, constituem

    uma ruptura na homogeneidade do espao, demarcando, assim, uma

    geografia sagrada. Como dir Eliade: [...] todas as rvores sagradas deve-

    riam encontrar-se no Centro do Mundo e todas as rvores rituais ou

    troncos que so consagrados antes ou durante uma cerimnia religiosa

    qualquer so projetadas magicamente no Centro do Mundo (Eliade

    2002:40-41). As cidades so um elo entre o mundo dos vivos e dos

    encantados, simbolizando, ao mesmo tempo, morte e renascimento deum mestre falecido. O mestre planta e consagra a jurema a um mestre

    invisvel, com o qual trabalha. S aps o seu falecimento, no entanto, a

    cidade passar a ter fora. , portanto, necessrio morrer para dar vida

    cidade. Como escreveu Bachelard, facilmente encontrada no folclore e

    na mitologia uma sntese da rvore da vida e da morte, pois a rvore da

    morte, o Todtenbaum, simboliza o ser humano na vida e na morte

    (Bachelard 1990:240).

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    sombra da Jurema

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    A Umbanda

    A Umbanda, como nos diz Ortiz, conseqncia de um movimento

    duplo e dinmico: da abertura de alguns centros espritas kardecistas para

    os cultos afro-brasileiros e da influncia, sobre estes, das idias do espiri-

    tismo e dos valores do mundo branco. Este processo ser por ele deno-

    minado de embranquecimento e empretecimento (Ortiz 1991). Sua expanso

    por todo o pas estaria associada aos fenmenos de urbanizao e

    industrializao, que marcam o declnio de um modelo econmico fun-damentado na agricultura e a consolidao das cidades como o novo

    centro poltico e de produo.

    Os primeiros passos para transformar esse movimento em uma reli-

    gio foram dados no Rio de Janeiro. Assim, em 1939, fundada a pri-

    meira federao de Umbanda, e dois anos depois realizado o 1 Con-

    gresso Umbandista. Essas aes buscavam, por meio da disciplina e

    padronizao dos ritos, organizar a religio, exercendo um controle

    sobre sua prtica atravs de canais oficiais. A partir da dcada de 1950,

    iro surgir federaes de Umbanda em vrios Estados do pas. Estas iro

    desempenhar um papel fundamental na expanso desta religio em

    mbito nacional (Negro 1996).

    Uma das questes iniciais que levantamos sobre a expanso da

    Umbanda em Alhandra foi se, como pretende Ortiz (1991) em relao aomovimento umbandstico no Brasil, sua expanso estaria ligada a uma

    possvel urbanizao e industrializao da regio e, se de fato estivesse,

    quais seriam essas mudanas. Constatamos, no entanto, que nas ltimas

    dcadas no ocorreram grandes avanos em termos de urbanizao,

    vivendo, inclusive, a maioria da sua populao na zona rural. Do mesmo

    modo, no ocorreram grandes mudanas na economia, que continua

    fundamentada nas pequenas e mdias lavouras. Em todo o municpio,

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    apenas cerca de trs proprietrios so considerados grandes produtores,

    possuindo entre setenta e oitenta hectares de terras produtivas.11

    Acreditamos que o fenmeno da expanso da Umbanda em Alhan-

    dra bastante complexo, estando ligado a diferentes fatores. Um deles

    seria a aprovao, em 1966, durante o governo de Joo Agripino, tido

    como um marco modernizador, da Lei no 3.443 que garantia liberdade

    de culto em todo o Estado. Essa mesma Lei, no entanto, criava a Fede-

    rao dos Cultos Africanos do Estado da Paraba, a qual os terreiros

    teriam que estar filiados. Como se l em seu artigo 4, a Federao teria,

    entre outras atribuies, o papel de disciplinar o exerccio dessescultos no Estado e exercer a representao legal das atividades de suas

    filiadas. A filiao, que consistia no pagamento de anuidade e de uma

    taxa de licenciamento, torna-se condio sine qua non para o funciona-

    mento das casas de culto. Como ocorreu em vrios Estados do pas, as

    federaes de Umbanda iro desempenhar um papel fundamental na ex-

    panso desta religio em Alhandra.

    Uma religio traada

    Os terreiros de Alhandra esto localizados em ruas pobres, no

    pavimentadas, sendo a maioria da sua clientela formada por pequenos

    agricultores. Das seis casas de culto existentes na cidade, visitamos commais freqncia trs: o Centro Esprita do Mestre Z Pilintra, do pai

    Joo, tambm conhecido como mestre Ciriaco, o Templo Religioso

    Orix So Joo Batista, do mestre Edu, e o Centro Esprita Ogum Beira-

    11 Houve, inclusive, poca em que o municpio era mais prspero, sobretudo no

    incio do sculo passado, pela existncia do antigo Porto das Bestas, localizadono Rio Abia, de onde eram embarcadas cargas com destino ao Porto de Goiana,

    em Pernambuco.

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    Mar, do mestre Deca.

    A Umbanda de Alhandra marcada por dois universos integrados e,

    ao mesmo tempo, distintos: de um lado, orixs, exus e pomba-giras,

    cultuados nos toques para os santos ou orixs, de outro, mestres, cabo-

    clos e reis, cultuados nos toques para Jurema e nas sesses de mesa.

    Os toques so sesses pblicas que acontecem de quinze em quinze

    dias, sendo um dia para os orixs e outro para Jurema. Estas sesses se

    incluem na categoria das realizaes culturais, mencionadas por

    Geertz, as quais, no conjunto dos rituais que constituem uma determi-

    nada religio, se apresentam como rituais mais elaborados e mais pbli-cos, modelando espiritualmente um determinado grupo e envolvendo

    um maior nmero de disposies, motivaes e concepes metafsicas

    (Geertz 1989).

    H nos toques uma necessidade de transpassarem o limite entre o

    lcito e o no lcito, o que acontece, sobretudo, atravs da dana, do con-

    sumo de bebida alcolica, do fumo, enfim, em meio efervescncia da

    festa e do som intenso dos ilus (membranofones). Seriam o que deno-

    minou Michel Maffesoli de centralidade subterrnea: um verdadeiro

    conservatrio do saber viver popular, que s se mostra em algumas

    situaes paroxsticas (Maffesoli 1985:47). Estas sesses apresentam um

    carter ldico, transgressor e socializador, estando associada idia de

    festa, de brincadeira. Como nos diz Dona Judite, filha-de-santo do

    mestre Edu: [...] de primeiro era mesa branca. A gente faz agora toque, por causa da folia dos caboclo que gosta de brincar.

    As sesses de mesa so menos pblicas e no possuem um carter

    ldico. Basicamente, existem dois tipos destas sesses em Alhandra: o

    primeiro, chamado consulta, acontece sempre que algum procura o

    mestre em busca de cura para seus males fsicos, mentais, espirituais ou

    para resolver toda sorte de problemas. O segundo, denominado mesa

    branca, restrito aos filhos e filhas-de-santo e objetiva doutrinar os

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    mdiuns da casa. Embora tenham aderido Umbanda, muitos mdiuns

    continuam a se identificar mais com estas sesses, cuja influncia das

    tradicionais mesas de Catimb evidente. Sobre esta questo, vejamos o

    relato de Dona Judite, que gira no Templo Religioso Orix So Joo

    Batista:

    Eu ca no terreiro, mas nem era pra ter cado. De primeiro, quando eu ia

    pra o toque, eu ficava doente, agora, mesa branca no. Porque no tinha

    mais ningum que trabalhava com mesa. Tudinho era toque. A, eu tinha

    que cair no toque mesmo. (...) A mudana da mesa pra Xang tem muitadiferena. O mais melhor que eu sinto a mesa mesmo. Por uma parte, foi

    boa a parte dos orixs, porque na mesa branca no recebe os exus.

    Estes rituais mostram que o atual cenrio religioso de Alhandra se

    configura a partir da associao de traos do presente e do passado.

    Seguindo a idia de Balandier, podemos dizer que, se por um lado a tra-

    dio da Jurema apresenta uma figura passiva, cujo papel seria de

    memorizao deste passado e conservao do seu universo mtico e

    simblico, por outro, apresenta uma figura ativa, que se manifesta

    sobretudo atravs destes rituais (Balandier 1997). Estas prticas, por

    meio das quais as disposies e motivaes induzidas pelos smbolos sa-

    grados se encontram e se reforam mutuamente (Geertz 1989), mantm

    a tradio da Jurema em Alhandra viva e ativa.Devido a esta pluralidade, os umbandistas locais so por eles

    mesmos definidos como traados, ou seja, um mestre que domina as

    diversas linhas com as quais trabalha, um feito-em-tudo. Dona Maria,

    por exemplo, esposa do mestre Ciriaco, trabalha com a Jurema, onde in-

    corpora o mestre Z Pilintra, mas filha de Ians de Bal, que o seu

    guia-de-frente. Vejamos o que nos diz a prpria:

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    sombra da Jurema

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    Eu quero ser mais traado um com o outro do que s um... Porque todo

    meu tratamento mais na Jurema. Toda a minha consulta mais na

    corrente branca, corrente de luz. Chega um aqui, chega outro, t morrendo,

    eu arro, meu mestre de luz desce, fao aquela caridade, aquele benefcio, ele

    volta sade dele. A, motivo de dizer, eu quero ser mais da Umbanda.

    (...) Quando arra uma filha de santo que eu conheo, uma filha de

    Iemanj, eu to aqui na Jurema, t batendo pra Jurema, mas se arria uma

    filha de Iemanj eu vou logo nos ps dela, saudar, que eu sei qual foi a

    santa que desceu.

    A adeso Umbanda de Alhandra, portanto, no implica numa

    oposio a outras formas de religio ou na imposio rgida de uma

    determinada crena. Assim, encontramos concepes bastante diferentes

    dentro de um mesmo terreiro. No entanto, algumas idias, como a refe-

    rncia cidade de Tambaba como o lugar para onde vo os juremeiros

    aps a morte, aparecem em praticamente todos os relatos. Tambm

    comum a crena que um juremeiro, aps a morte, pode ir para a Jurema

    e tornar-se um mestre encantado. Sobre isto, vejamos o relato de

    Roberto, filho-de-santo do mestre Deca:

    Eu acredito que ns, depois que chega a se passar, passar desse mundo

    pro outro, no recente, mas depois de seus dez anos, a gente pode ser um

    mestre e abaixar em outra matria... Eu acredito que uma pessoa dessa vaipra Jurema, de fato, ser um esprito de luz. Mas tm muitos... que num vai

    no, depende da cama que preparar aqui na terra.

    Mesmo tendo aderido Umbanda, muitos mdiuns continuam se

    definindo como catlicos e participando ativamente das atividades da

    Igreja. Dona Ivete, por exemplo, filha-de-santo do Centro Esprita do

    Mestre Z Pilintra, integra (como outras umbandistas) a Comunidade

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    Me Rainha, grupo formado por mulheres catlicas de Alhandra. Seu

    relato bastante ilustrativo:

    Cada um que tem sua mediunidade, cada um trabalha do seu jeito, mas

    todo ele trabalha na Jurema. Eu sou uma pessoa muito catlica. Eu

    assisto centro esprita, eu assisto missa e assisto gira porque eu sou uma

    pessoa muito catlica. Graas a Deus, eu sou uma filha da Igreja. (...) O

    Rei da Jurema Jesus de Nazar, que meu pai Orixal. A gente se

    agarra com ele e com Jesus de Nazar.

    Consideraes finais

    Nosso trabalho procurou mostrar a importncia da tradio advinda

    dos antigos mestres juremeiros na configurao dos atuais cultos

    umbandizados de Alhandra. Ao fim deste percurso, destacamos os

    seguintes aspectos: a Jurema de Alhandra deriva dos ndios da antigaaldeia Aratagui, criada no final do sculo XVI pelos frades menores. A

    posio central que este complexo semitico ocupa no atual cenrio reli-

    gioso da regio, apesar das muitas reelaboraes por que tem passado,

    uma das evidncias da resistncia indgena ao colonialismo portugus. O

    Catimb, que ir inscrever o catolicismo na mitologia da Jurema, surge

    em decorrncia desta postura contestatria em relao catequese e dainterao entre ndios e colonizadores, dentro de um mesmo contexto

    social.

    Ao longo dos anos setenta, o cenrio religioso de Alhandra ser

    marcado pela legitimao da Umbanda frente a comunidade de juremei-

    ros e pela reelaborao da tradio da Jurema. Contudo, o encontro

    entre estes dois universos ser caracterizado por uma interinfluncia

    ativa, uma circularidade: ao ser submetida a um processo de reinterpreta-

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    sombra da Jurema

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    o mitolgica e ritual, a Jurema solidifica-se junto ao novo, adqui-

    rindo validade renovada, mas conferindo, ao mesmo tempo, singulari-

    dade Umbanda.

    Este carter dinmico da Jurema tem possibilitado a sua sobre-

    vivncia durante sculos. Sua continuidade, portanto, liga-se ao fato de

    que toda tradio, medida que permanece viva e ativa, luta contra a

    desordem, ao mesmo tempo em que se nutre dela (Balandier 1974).

    Este processo, contudo, no se d de modo passivo, mas por meio de

    uma longa conversao (Berger 1985). Por fim, podemos afirmar que a

    reelaborao do culto da Jurema em Alhandra, implementada pelaUmbanda, alimenta a dinamicidade desta tradio, lhe conferindo conti-

    nuidade.

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