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A Teoria da Literatura na Educação Básica: Três sombras e o conto da ilha
desconhecida navegam lado a lado na simbologia
Caroline Valada Becker (PUCRS)
Formar leitores, na Educação Básica, é um desafio. No primeiro ano do
Ensino Médio, essa tarefa torna-se ainda mais árdua, afinal, pela primeira vez na
vida escolar, o aluno é apresentado à Literatura como componente curricular. Nessa
circunstância – seguindo os conteúdos programadas para a série –, o professor
deve apresentar o conceito de literatura (mesmo que ele seja múltiplo), bem como
as definições de gênero literário.
Tendo em vista tal objetivo, este artigo, utilizando os pressupostos do
letramento literário, propõe um projeto de leitura ancorado no estudo das
simbologias e das teoriaa do imaginário. Para isso, duas obras, produções
contemporâneas de gêneros distintos, foram selecionadas: Três sombras, uma
graphic novel de Cyril Pedrosa, e O conto da ilha desconhecida, de José Saramago.
Nas duas narrativas, a tendência à fábula e à metaforização dão o tom e convidam o
leitor – no caso, os alunos – a verificarem a potencialidade da simbologia na
narrativa artística e literária.
Primeiramente, faz-se necessário justificar a escolha dos livros ficcionais a
serem trabalhados, justificativa que se desdobra em dois eixos: a pluralidade dos
gêneros artísticos e a temática a ser desenvolvida. Quanto aos gêneros, temos, lado
a lado, uma produção artística não-literária, o gênero quadrinhos, e o conto, gênero
narrativo curto. Quanto aos autores, temos dois nomes expressivos no seu meio;
tanto Cyril Pedrosa quanto José Saramago – no âmbito dos quadrinhos e no âmbito
literário respectivamente – pertencem ao cânone. A leitura dos quadrinhos permite
desenvolvermos a leitura de imagens (o que traço, cor e expressão de personagens,
por exemplo, agregam ao sentido construído página após página), a leitura de
lacunas temporais, isto é, as elipses temporais entre as vinhetas, compondo algo
como um letramento visual, habilidade essencial para o mundo contemporâneo.
Além disso, segundo Vinicius Rodrigues, pesquisador do gênero história em
quadrinhos, optar pela leitura do gênero quadrinizado na Educação Básica é
importante porque
tal fruição estética poderá ampliar a capacidade cognitiva ligada à leitura dos elementos simbólicos da própria literatura e criar, nesse
leitor escolar em formação, o hábito de desenvolver teias de relações – dentro do próprio texto literário e também para fora dele, incluindo articulações com outras linguagens narrativas e/ou artísticas em geral. (RODRIGUES, 2014, p. 235, grifos meus)
Nesse primeiro momento da “escolarização” da literatura, demonstrar ao
aluno que a arte literária está (sempre) em diálogo com o mundo – seja por meio do
cinema, por meio das artes plásticas, por meio de relações com notícias e jornais –
permite a formação de um leitor sem preconceitos de gênero, bem como um leitor
capaz de tecer leituras intertextuais, sempre ampliando sua enciclopédia, como
propôs Umberto Eco.
Quanto à temática, iremos, junto com as personagens, embarcar no universo
da simbologia e do imaginário. As duas obras selecionadas como corpus deste
projeto de leitura usam o ato de viajar como símbolo – uma viagem em busca de
uma alternativa; uma viagem em direção ao viver, ao auto-conhecimento. Na
dissertação intitulada “Mia couto e a simbologia de embarcações aquáticas: navegar,
mais do que preciso, é sonhável”, a pesquisadora Luara Pinto Minuzzi apresenta e
explica as diferentes tendências desse campo teórico, bem como define as diretrizes
de autores essenciais do assunto. Entre seus apontamentos, encontramos uma
explanação acerca das ligações existentes entre sujeitos, imaginário e literatura:
Também relacionada a essa capacidade do imaginário de sublimar os problemas do ser humano a fim de que consiga lidar com eles e de unir os homens de tempos e espaços diferentes, está a capacidade da literatura, sempre permeada por símbolos e imagens, de fazer com que o leitor se sinta como participante da história e se identifique com a situação e com os personagens. (MINUZZI, 2014, p. 23, grifos meus)
Percemos, então, três grandes tendências: os símbolos como um meio de
encararmos problemas inerentes à humanidade, os quais transcendem a
temporalidade e perpassam gerações; a literatura, por sua vez, registrando tais
símbolos, aproxima o leitor desse universo cifrado cuja dinâmica leva-nos do livro à
vida prosaica.
Nas obras selecionadas, portanto, lemos enredos cujo mote é o “viajar”. Esse
símbolo, quando contrastado com outras características da diegese e da construção
dos personagens, emoldura novos sentidos e incita o leitor a desprender-se da
concretude dos fatos e refletir. Em outras palavras, na graphic novel Três sombras,
lemos a trajetória de Joachim e Louis (pai e filho) que vivem uma viagem cujo
sentido essencial é a busca de alternativas para a morte, explicitando a dificuldade
de lidar com a morte. Em O conto da ilha desconhecida, lemos as ações de um
homem cujo objetivo é ganhar um barco para encontrar a ilha desconhecida, um ato
de viajar que o levará, segundo os diálogos do conto, ao encontro de si mesmo e
não ao encontro de um lugar concreto e real.
Do conceito de literatura à experiência de leitura: a busca pela formação de
leitores
Vejamos três distintos livros didáticos destinados ao primeiro ano do Ensino
Médio: 1. Português: contexto, interlocução e sentido – volume 1 (Editora Moderna,
2008), de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara;
2. Língua, Literatura e Produção de textos – volume 1 (Editora Scipinone, 2009), de
José de Nicola; e, por fim, 3. Português Ensino Médio (Coleção Ser protagonista) –
volume 1 (Editora SM, 2010). Na unidade destina à literatura, encontramos, nos três
exemplos, a apresentação do conceito de arte e, entre as práticas possíveis,
destaca-se a arte da palavra, isto é, a literatura. O sistema literário, então, é
apresentado nas três obras – dando ênfase, vale ressaltar, ao leitor/receptor – e, em
seguida, os gêneros literários (o lírico, o épico e o drama). Após mencionar
intertextualidade e representação (conceito evocado na obra da Scipione – devido a
uma citação de Afrânio Coutinho – e explorado densamente na obra da Moderna), a
linguagem torna-se o foco de análise, especificamente a linguagem conotativa e
denotativa. Menciono tais exemplos com o objetivo de verificarmos as exigências
das primeiras aulas de literatura – segundo tais obras didáticas, é claro. Em um
primeiro momento, associa-se arte à literatura; em seguida, tenta-se definir o
conceito de literatura para, enfim, mergulhar nos gêneros literários.
Pensando nessas necessidades inerentes à prática do docente de Literatura,
o projeto de leitura aqui apresentado – planejado para ser desenvolvido ao longo de
um trimestre – prevê uma série de etapas por meio das quais os alunos e leitores
consigam emoldurar, pouco a pouco, um conceito de literatura, ancorado-se na ideia
de representação do mundo por meio do fazer estético – seja a estética da palavra,
seja a estética do desenho, por isso a seleção de uma graphic novel.
Em síntese, o projeto a ser apresentado associa-se fortemente à construção
do conceito de literatura, o qual, em alguma medida, precisa ser apresentado nas
primeiras aulas do primeiro ano do Ensino Médio. À medida que conceitos como
sistema literário, leitor, autor, público, representação, forma e conteúdo são
apresentados (definidos e problematizados), as leituras literárias a serem
executadas devem ser preparadas – eis a imersão no literário.
Segundo o pesquisador Rildo Coson, no livro Letramento literário, há três
etapas essenciais para o ato leitura em âmbito escolar: a antecipação (por que leio
tal obra? Observação do título, da capa, do nome do autor etc); a decifração (a
decodificação em si); e a interpretação, (as relações estabelecidas pelo leitor ao
processar – decodificar – o texto) (Cf. COSSON, 2011, p. 41). A proposta do
letramento literário é justamente expandir essa dimensão, levar o docente a explorar
densamente cada uma dessas etapas, desdobrando-as em ações e práticas de
leitura, interpretação e escrita. Para isso, Cosson elaborou as “sequências
didáticas”, dividas em “Sequência didática básica” e “Sequência didática expandida”.
Vamos analisar (e utilizar como metodologia) a sequência expandida, cuja
composição é mais complexa, como vemos abaixo, na síntese que elaborei1:
a) Motivação: antecipar o que será lido;
b) Introdução: localizar o autor e a obra no campo literário;
c) Leitura: decodificar a obra, ou seja, a leitura na sua acepção mais simples;
d) Primeira interpretação: tecer impressões de leitura;
e) Contextualização: trazer informações sobre a obra em diversos níveis, a saber:
contextualização teórica: elementos teóricos múltiplos (como a simbologia);
contextualização histórica: época da diegese ou época de sua publicação;
contextualização estilística: características do período literário;
contextualização poética: elementos de gênero;
contextualização crítica: como a crítica especializada vê a obra;
contextualização presentificadora: a obra e a época atual.
f) Segunda interpretação: somar saberes, ou seja, unir a primeira e a segunda interpretação;
g) Expansão: estabelecer relações entre saberes, leituras, elementos culturais etc.
Tabela 1: o letramento literário e a sequência didática expandida.
Ao lermos a palavra “motivação”, escolhida por Cosson, podemos encará-la
como um objetivo quase intransponível, utópico; afinal, como motivar os
1 Em outros dois artigos, exploro detalhadamente a proposta de Rildo Cosson: “Entre testemunhos e
leituras. Um projeto de leitura na Educação Básica” e “Estórias Gerais e Primeiras Estórias: o sertão em imagens, o sertão em palavras. Uma proposta de leitura para a Educação Básica”.
adolescentes a ler? Contudo, trata-se de uma ação mais simples: algo como
despertar reflexões e pensamentos que, em alguma medida, possam dialogar com
as leituras a serem realizadas.
Tendo em vista o campo semântico da viagem e o trabalho com o gênero
híbrido dos quadrinhos, um bom princípio para o projeto é a leitura das duas tirinhas
abaixo – nomeadas “Quase nada” –, ambas produções dos quadrinistas brasileiros
Fábio Moon e Gabriel Bá:
Figuras 1 e 2: Questionamento acerca das motivações para viajarmos; elementos temáticos da
tirinha associados aos livros, especificamente ao barco.2
A primeira tirinha pode ser entregue aos alunos com o balão de fala do touro
em branco, motivando, dessa forma, a reflexão; cada leitor pode elaborar uma
resposta e, em seguida, comparar com a frase de fato enunciada pelo animal no
desenho. Além disso, é essencial o trabalho com a linguagem dos quadrinhos, isto
é, com a estética da narrativa gráfica. Por exemplo, contrastar o uso de vários
quadrinhos na tirinha da figura 2 com o único quadrinho da tirinha 1. É
indispensável, também, incitar os estudantes a indagar por que um touro está
dialogando com a personagem viajante – dessa forma, demonstramos aos leitores a
importância de observarmos, nas narrativas gráficas, as imagens. A segunda tirinha,
por sua vez, evoca um contexto histórico distinto, distante da contemporaneidade;
podemos indagar como era viajar no passado e na atualidade, associando, é claro,
às respostas elaboradas para a tirinha anterior. Por fim, o excerto “querendo
encontrar-se” pode ser o mote da discussão, para verificar, na percepção dos
alunos, o que isso significa.
A motivação acima descrita – etapa um do letramento literário – é pertinente
tanto para Três sombras quanto para O conto da ilha desconhecida. A etapa dois,
em oposição, deve ser realizada para cada uma das leituras. Breves textos
2 As tirinhas estão disponíveis no site dos autores, neste endereço
<http://www2.uol.com.br/10paezinhos/>.
informativos, retirados de revistas literárias, por exemplo, ou resenhas, são gêneros
textuais ideais para apresentarmos os autores trabalhados aos alunos. Para a
graphic novel, primeira obra a ser lido, como foi dito acima, é essencial sensibilizar
os alunos para a linguagem das histórias em quadrinhos e para a complexidade da
definição de narrativa gráfica e suas relações com o fazer literário. Assistir ao vídeo
“História em quadrinhos é literatura?”3, produzido pelo programa Entrelinhas, ou ler
alguma reportagem relacionada ao gênero quadrinhos.
A leitura efetiva das obras pode seguir diferentes dinâmicas; particularmente,
acho muito interessante e essencial a discussão em aula. Contudo, creio ser
pertinente um roteiro para organizar o debate, por isso, elaboro uma pergunta para
cada aluno e as distribuo em envelopes lacrados e numerados a serem abertos
apenas no momento da discussão. O aluno lê a questão para os colegas e, então,
responde-a. Em seguida, todos os colegas podem tecer seus comentários e,
envelope após envelope, a discussão encaminha-se. Reitero que essa organização
deve ser elaborada para cada uma das obras a ser lida, em momentos distintos e
com objetivos claros, os quais devem expandir a síntese do enredo.
A quinta etapa (as múltiplas contextualizações) pode ser elaborada em
diferentes momentos, com diferentes intensidades – dependerá, apenas, dos
objetivos do projeto. Vale ressaltar que não há necessidade de elaborar todas as
contextualizações ou desenvolvê-las exaustivamente. Vejamos alguns exemplos: a
contextualização histórica pode ser analisada no momento da discussão em aula, na
primeira interpretação, quando os alunos indicam a época da diegese e, em seguida,
o professor pode trazer informações sobre o momento da publicação bem como a
recepção que o livro teve (já explicitamos, assim, a contextualização crítica); a
contextualização estilística e poética, se seguirmos as atividades anteriormente
sugeridas, já terão sido contempladas. Por fim, há os elementos teóricos, os quais
serão o principal eixo a ser elaborado por meio deste projeto de leitura.
Proponho como campo teórico a simbologia e as teorias do imaginário,
evocando, dessa forma, a linguagem metafórica e denotativa – um dos conteúdos
exigidos no primeiro ano do Ensino Médio. A simbologia explorada na graphic novel
Três sombras materializa a ideia da arte como um meio de representação simbólica;
nessa história de Cyril Pedrosa, encontramos a representação da morte e do desejo
3 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=auCie_T6Mec>.
de sobreviver, compondo uma leitura múltipla que envolve o leitor em mais de um
nível de significação. A personagem Joachim, uma criança, concretamente foge –
sai em uma grande viagem – de três sombras misteriosas que aparecem em sua
vida, as quais, no desfecho do enredo, levam-no, caracterizando sua morte. No
campo metafórico e simbólico, lemos uma efetiva alegoria da morte que
inesperadamente surge e as pessoas à nossa volta tentam nos salvar – como faz o
pai de Joachim.
É nesse jogo do mágico e do fabuloso (o pacto de leitura estabelecido permite
lermos a narrativa como um universo mágico, no qual há seres como bruxos e
criaturas como as sombras que efetivam a passagem dos que estão a morrer);
entretanto, ao mesmo tempo, podemos compreender o enredo e seus elementos da
narrativa como uma alegoria da morte. A alegoria ganha fôlego quando verificamos,
nas teorias do imaginário, o significado de alguns dos elementos – objetos e ações –
presentes na trajetória do jovem Joachim, a criança que tenta, junto com seu pai,
escapar da morte.
Figura 3 e 4: o ato de viajar e o barco – a concretude dos eventos e a simbologia estão unidos.
(PEDROSA, 2011: 87 e 108)
No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, a viagem é descrita como a
“busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta de um
centro espiritual. Em todas as literaturas, a viagem simboliza, portanto, uma
aventura e uma procura, quer se trate de um tesouro ou de um simples
conhecimento, concreto ou espiritual” (CHEVALIER, 1991, p. 951-2). No caso de
Três sombras, a busca é evidentemente a fuga da morte, uma espécie de
imortalidade; no fim, essa trajetória revelerá um conhecimento espiritual e a
maturidade de Joachim, que aceita seu destino.
O barco é o meio de trasnporta utilizado pelas personagens para fugir das
três sombras (vale ressaltar que não temos indicações de tempo na obra, mas
alguns indícios sugerem a Idade Média). A barca, segundo Chevalier, é “o símbolo
da viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos” (1991, p.
121). Aqui, os dois sentidos são pertinentes, afinal, em vida, Joachim faz a viagem
no barco; contudo, mesmo tentando escapar da morte, é em direção à ela que ele
vai.
Figuras 5 e 6: As sombras e seus capuzes; as sombras reveladas, femininas e doces.
(PEDROSA, 2011: 209 e 250).
Já mencionei as três sombras, contudo não as analisei. Elas surgem como
uma assombração, responsáveis pelo medo e pelo desespero da família de
Joachim. Não vemos, ao longo da narrativa, seus rostos, apenas as capas que as
cobre. No fim, quando se revelam, são três moças encantadores que tratam Joachim
com docilidade. Segundo o Dicionário de símbolos, o três “sintetiza a triunidade do
ser vivo ou resulta da conjunção de 1 e de 2, produzido, neste caso, da União do
Céu e da Terra. [...] O três designa, ainda, os níveis da vida humana: material,
racional, espiritual ou divino.” (CHEVALIER, 1991, p. 902). Já as sombras seriam
de um lado, o que se opõe à luz; é, de outro lado, a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes. [...] A sombra é considerada por muitos povos africanos como a segunda natureza dos seres e das coisas e está geralmente ligada à morte. No mundo dos mortos, o único alimento é a sombra das coisas, leva-se aí uma vida de sombra. [...] Segundo uma tradição, o homem que vendeu
sua alma ao diabo perde com isso sua sombra. O que significa que, por não se pertencer mais, ele deixou de existir enquanto ser espiritual, enquanto alma. (CHEVALIER, 1991, p. 842-3)
As três são sombras, portanto, representam o trânsito entre a terra e o céu,
bem como a síntese do universo, do humano e do espiritual; elas, seres mágicos,
são responsáveis por essa transição entre o mundo dos vivos e dos mortos, já que
estão ligadas à morte.
As relações entre a vida e a morte estão presentes, também, na palavra
sopro. O pai de Joachim, tenatando salvar seu filho, dá seu “sopro” a um velho
feiticeiro; as sombras intervêm e devovlem o sopro ao pai (figura 6), justificando que
não estavam lá para cuidar dele (PEDROSA, 2011, p. 211). O Dicionário de
símbolos reitera a relação do sopro com o viver: “O sopro tem, universalmente, o
sentido de um princípio de vida; só a extensão do símbolo varia de uma tradição a
outra.” (CHEVALIER, 1991, p. 851).
Louis, pai de Joachim, ao tentar proteger o filho, vive um momento de delírio,
no qual digladia em uma guerra. Essa simbologia remete-nos à ideia de lutar para
conquistar algo: “De maneira ideal, a guerra tem por fim a destruição do mal, o
restabelecimento da paz, da justiça, da harmonia, tanto nos planos cósmico e social
quanto espiritual.” (CHEVALIER, 1991, p. 480).
Figura 7: Louis, em um devaneio, vive uma guerra para tentar salvar o filho. (PEDROSA, 2011, p.
217)
As últimas páginas da graphic novel reservam um texto que sintetiza a história
lida, os versos de um poema: “Nessa paisagem de primavera, / não há melhor nem
pior. / Os galhos com flores / brotam naturalmente. / Alguns são longos, / alguns são
curtos” (PEDROSA, 2011, p. 265). De modo livre, podemos associar a palavra galho
à vida das pessoas – algumas vidas são longas; outras, curtas. A árvore, enquanto
símbolo, indica “ideia do Cosmo vivo, em perpétua regeneração. Símbolo da vida,
em perpétua evolução e em ascensão para o céu, ela evoca todo o simbolismo da
verticalidade.” (CHEVALIER, 1991, p. 84), ou seja, a árvore representa o viver, o
estar em direção ao céu.
Esboçada a análise das simbologias da obra, retorno às etapas do letramento
literário, anteriormente anunciadas. A segunda interpretação acontecerá à medida
que outras informações forem acrescentadas ao universo dos alunos – ação
realizada por meio das contextualizações, como vimos. A segunda interpretação
será, também, simultânea à última etapa, chamada expansão. Tal momento
concretiza-se por meio da produção de um trabalho: os alunos serão convidados a
escrever um texto – o gênero textual assemelha-se a uma resenha – no qual
explorarão a simbologia presente no Três sombras, como fica claro neste enunciado:
Como vimos em aula, a literatura – assim como a arte – utiliza, em geral, uma composição conotativa da linguagem. Por isso, muitas narrativas são simbólicas, ou seja, por meio de seus enredos, sugerem um segundo sentido, como nas fábulas e nos contos de fadas que trazem uma “moral da história” ou, até mesmo, apresentam objetos que carregam sentidos complexos, como o espelho, a maçã etc. O livro trabalhado em aula, a graphic novel Três Sombras, de Cyril Pedrosa, apropria-se de uma série de simbologias para construir o enredo e a trajetória da personagem Joachim – cuja história é triste e bela ao mesmo tempo.
A interpretação simbólica das narrativas – que nomeamos teorias do imaginário – é uma das maneiras de estudar literatura, o que verificamos em obras teóricas como o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, no qual uma série de itens – objetos, elementos da natureza, verbos – são estudados e definidos simbolicamente. Em outras palavras, tais “coisas”, além de significarem o que significam no dia a dia, podem representar, nas construções artísticas, outros sentidos. Vejamos alguns exemplos (todos presentes na obra lida): barco, sopro, viagem, sombra, três, árvores e guerra.
Após ler as definições retiradas do Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, faça o que é pedido: primeiramente, deverás IDENTIFICAR, na narrativa Três Sombras, os símbolos acima referidos. Depois de identificá-los, deverás VERIFICAR e ANALISAR se os significados sugeridos pelo Dicionário de símbolos são mantidos ou são alterados – ou seja, as sombras da narrativa têm o mesmo sentido proposto por Chavalier? Sim?
Não? O que é modificado? O que é mantido? Por que tu tens essa opinião?
Para tanto, deverás escrever um texto descritivo (pois descreverás a história e os elementos simbólicos nela contidos) e argumentativo (pois defenderás se a simbologia existe na narrativa ou não). Em síntese, o texto produzido deverá APRESENTAR a graphic novel (imagina que teu leitor não conhece a obra) e INDICAR, por meio da ANÁLISE de trechos da obra (personagens, enredo, imagens selecionadas etc), as mudanças ou permanências de sentido tendo em vista o campo teórico do imaginário.
Bom trabalho!
Esse trabalho permitirá aos alunos analisarem detalhadamente a simbologia
da obra e exercitarem, ao mesmo tempo, a composição da escrita – um texto – e da
argumentação, tendo em vista que eles podem defender que a definição do
Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, é ou não pertinente para o estudo da
graphic novel.
Encerrada a sequência metodológica, entregues e corrigidos os trabalhos
(organizados para serem expostos ou publicados em um blog, afinal, é muito
importante que as produções escolares circulem na sociedade), passamos à obra de
José Saramago.
Para esta obra, a etapa “motivação” está completa – além das reflexões
iniciais, pertinentes a ambas as obras, o trabalho com a graphic novel é, sem dúvida,
uma das etapas de motivação – por isso o trabalho com projetos de leitura e eixos
temáticos torna-se interessante, pois permite tecermos associações). O segundo
momento, localizar o autor e a obra no campo literário, por sua vez, é bastante
importante, já que Saramago é um nome bastante expressivo. Alguma entrevista
com o autor, uma breve apresentação de suas obras e, até mesmo, um excerto da
narrativa fílmica Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meireles, são interessantes.
Em seguida, diferentemente do livro anterior, os alunos devem iniciar a leitura em
aula. Essa ação é imprescindível, uma vez que a composição narrativa elaborada
por Saramago é peculiar e pode (certamente causará) entranhamento. Lidas
algumas páginas, apresentado o estilo do autor, os alunos podem conluir a leitura
sozinhos e, então, o mesmo processo de discussão coletiva pode acontecer.
Novamente, as perguntas em envelopes numerados são distribuídas e cada aluno é
convidado a conduzir uma reflexão. As diferentes contextualizações, como
anteriormente percebemos, podem ser desenvolvidos durante a aula, durante as
questões. Além dos elementos da narrativa – análise básica quando estamos
trabalhando histórias –, alguns trechos do conto devem ser detalhadamente
trabalhados, como esta seleção:
[...] E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver [...] Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso [...] E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as águas, e não é verdade [...] Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer [...] o sonho é um prestigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se veem uma à outra, a mulher dorme a poucos metros e ele não soube como alcançá-la, quando é tão fácil ir de bombordo a estibordo. Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. [...] Neste momento o céu cobriu-se e começou a chover, e, tendo chovido, principiaram a brotar inúmeras plantas das fileiras de sacos de terra alinhadas ao longo da amurada, não estão ali porque se suspeite que não haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganhará tempo, no dia em que lá chegarmos só teremos que transplantar as árvores de frutos. [...] As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas [...] Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de uma lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava das à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma. (SARAMAGO, 1998, p. 39-62, grifos meus)
Primeiramente, podemos contrastar o sentido simbólico da viagem na obra
anterior e nesta. Pensando nesse jogo de sentidos, separei dois excertos do verbete
do Dicionário de símbolos. O primeiro trabalhamos anteriormente; agora,
acrescentamos à ideia de “aventura” e “procura” este trecho:
Mas essa procura, no fundo, não passa de uma busca e na maioria dos casos uma fuga de si mesmo. “Os verdadeiros viajantes são aqueles que partem por partir”, diz Baudelaire. Eternamente insatisfeitos, sonham com o desconhecido mais ou menos inacessível. [...] Neste sentido, a viagem torna-se o signo e o símbolo de uma perpétua recusa de si mesmo, da diversão da qual fala Pascal, e seria preciso concluir que a única viagem válida é a que o homem faz ao interior de si mesmo”. (CHEVALIER, 1991, p. 953, grifos meus)
Na obra de Saramago, as personagens são nomeadas a partir de seus
desejos ou funções, assemelhando-se a uma fábula. Nesse enredo sem espaço ou
tempo definidos (assim como em Três sombras, há indícios de que estamos na
Idade Média), “O homem que queria um barco” subverte a ordem naquela
comunidade; sua persistência faz o rei dar-lhe, de fato, um barco, e “a mulher da
limpeza” segue-o. É no diálogo entre ambos que desvendamos a acepção da ilha
como o próprio homem, algo referido pelo filósofo do rei; o ato de buscar a ilha pode,
então, ser compreendido como a ação de buscar a si mesmo, como lemos nas
palavras de Chavalier.
Vale ressaltar, também, que a associação do barco com uma ilha (temos,
pois, certa simetria entre as palavras barco-ilha-sujeito) acontece em um sonho do
“homem que queria um barco”; nesse sonho, depois de muitas sacas de areia serem
carregadas para o barco e depois de muito chover, o barco “torna-se” uma ilha. O
sonho seria, justamente, um “veículo criador de símbolos” (CHEVALIER, 1991, p.
843), reforçando esta proposta de análise. O barco, como Chevalier sugeriu, é a
travessia dos vivos ou dos mortos; se em Três sombras há o caminho de um vivo
em direção à morte, em O conto da ilha desconhecida, há o percurso de um vivo em
direção à vida.
Conclusão
A historiografia – a história da literatura – é, sem dúvida, essencial para
compreendermos a produção estética, contudo, ela é mais interessante para os
pesquisadores do que para os alunos. Na Educação Básica, o principal objetivo do
educador, parace-me, deve ser proporcionar a experiência de leitura, o ato de ler
literatura. Por meio dessa postura, acredito, conseguiremos implementar uma
disciplina que não mais escolariza a literatura, tornando-a artifical; por meio do ato
de ler, podemos convidar os alunos a viver a literatura.
Referências CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. 5. edição. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1991. COSSON, Rildo. Letramento literário. São Paulo: Contexto, 2011. MINUZZI, Luara Pinto. Mia Couto e a simbologia de embarcações aquáticas: navegar, mais do que preciso, é sonhável. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Letras, Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, 2014. PEDROSA, Cyril. Três sombras. Tradução de Carol Bensimon. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. RODRIGUES, Vinicius da Silva. Os potenciais da narrativa gráfica na formação do leitor literário: hibridização e autonomia. In: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego (Org.). Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis. São Paulo: Criativo, 2014.
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.